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A RACIONALIZAÇÃO DA MORTE E SEU CONTEXTO

SOCIOLÓGICO: AS MUDANÇAS TUMULARES COMO FORMA

DE SECULARIZAÇÃO.

Árife Amaral Melo (UNESP),

[email protected]

Resumo: O presente trabalho propõe-se apresentar uma análise qualitativa a respeito da

relação existente entre o processo de secularização da morte e as mudanças estéticas na

morfologia tumular, na qual percebe-se hoje muito mais o seu caráter utilitário do que

sacral, tomando como parâmetro a ausência de estatuário e ornamentos nos túmulos

mais recentes e a padronização dos mesmos. Nesse sentido, é importante analisar os

processos sociais e ideológicos envolvidos para compreender tal fenômeno, procurando

identificar que tais variações no cenário cemiterial refletem também uma relação com o

processo de mudanças significativas de conduta, particularmente no que se refere à

morte, que diante do oferecimento de facilidades "modernas", poupam os enlutados de

manter contato direto com os cadáveres, criando um novo tipo de relação com a morte e

com a constituição das necrópoles, principalmente em sua morfologia.

Palavras-chave: Morte; secularização; racionalização.

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Investigar o contexto da secularização da morte numa perspectiva sociológica

implica em examinar de que maneira o fim da vida exerce influência sobre a conduta,

assim como a maneira de como a morte é enfrentada repercute na sociedade. Nesse

caso, deve-se delimitar alguns parâmetros de análise no que se refere a esse evento,

pressupondo que o processo de secularização pela qual tais práticas passam e a

mercantilização da morte como subproduto dessa relação podem levar à reflexão de

perspectivas ideológicas importantes, principalmente àquelas não necessariamente

religiosas, mas sim no que se refere aos mecanismos racionais e burocráticos sobre a

morte.

Entende-se que os agentes sociais no decorrer de sua trajetória herdam,

invariavelmente, uma cultura que permite dar sentido às suas vidas, se realizando tanto

na expressão de valores pessoais (quando o próprio indivíduo a realiza) quanto também,

quando outros o fazem. É o caso da morte: pode-se observar uma mentalidade ou uma

ideologia a partir do que é expresso após o momento final, tanto pela sociedade dos

viventes quanto pela constituição da necrópole conforme nota-se na constituição dos

cemitérios, que é o local onde o cadáver será decomposto longe dos olhares dos seus

entes mais próximos, compondo um elemento imanente no processo de socialização.

Porém, em se tratando de reproduzir padrões sociais de uma época, uma característica

marcante é observada nos túmulos mais antigos das necrópoles: a necessidade de

destacar o jazigo, transformando o cemitério em um local de variedade estética tumular,

como um museu a céu aberto. Porém, a constituição da cidade dos mortos ultrapassa a

mera alegoria, sendo também um espaço de demonstração de força econômica, social e

política, como será visto no decorrer deste artigo.

Compreendendo o cemitério como um espaço macabro de socialização, entende-

se que a prática do rito funerário possui significação necessária para suportar a dor da

perda; é necessário recordar e homenagear aqueles que se foram para assim eternizá-los;

cultiva-se assim não somente uma memória afetiva que projete para os vivos as virtudes

ou grandezas daqueles ali inumados, mas também uma motivação de caráter valorativo

sobre a história de si e daqueles que sejam próximos de seus mortos. O espaço de

lamentação

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e saudade que é o cemitério está intimamente vinculado às nuances religiosas do ato de

depositar ali o cadáver e lhe prestar homenagens, mas de certa forma, implica a prática

de um ritual conectivo e reflexivo que remete ao momento histórico e social dos grupos

envolvidos, deixando como legado uma preponderância de visão de mundo que pode

ficar cristalizada em um túmulo ou mausoléu. Isso ocorre porque a forma como esses

elementos são dispostos e dotados de algum simbolismo não é estagnado, mas

dinâmico, e a influência de uma sociedade que expressa seus valores é refletida até

mesmo na maneira de como os vivos tratam seus mortos, ou seja, o cadáver se

desintegra, e não mais será visível; mas em contrapartida, os valores de seus familiares

e/ou do grupo ao qual pertenceu ficará vinculado ao estilo de vida que experimentou e

poderá ser eternizado pelo grau de dedicação empregado na construção de seu memorial

mortuário.

O ato de preservar na lápide os valores e a memória é um elemento marcante nas

necrópoles; existe então uma perspectiva de reconhecimento social projetado ao futuro,

numa dimensão íntima, mas que visa notoriedade e admiração de outros (os vivos).

Dado esse cenário, cria-se uma situação na qual os mortos ocupam o mesmo espaço,

porém determinado e significado pelos vivos. O aspecto não tangível do corpo daquele

que se foi permanece na memória, mas o tangível (o corpo) deve ser conduzido a um

local e instalações apropriadas para que o mesmo seja honrado, purificado e seu legado

perpetuado.

Ideologicamente reproduzido pelo senso comum, a morte seria talvez o mais

“democrático” dos eventos da vida humana, pois comumente acredita-se que ela não faz

nenhuma distinção (social, econômica, política, etc.) para tirar os vivos do convívio

com os seus pares. No entanto, apesar de haver certa eloquência nessa afirmação, essa

ideia se limita somente ao âmbito do fenômeno biológico do cessar da vida, pois ao

lidar com a morte os vivos deixam, quer seja intencional ou desinteressadamente,

evidentes as diferenças sociais: as mesmas discrepâncias encontradas na pólis são

também encontradas na necrópole. Por essa razão, o cemitério não se configura tão

somente como um local religioso de cultivo da memória dos antepassados, mas também

um local dos que vivem e projetam suas aspirações e concepções de mundo através da

composição coletiva dessa cidade dos

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mortos. Em suma, apesar de ser um solo sagrado, os cemitérios possuem fatores

sociológicos, políticos e econômicos relevantes para a constituição do mesmo. De certa

maneira, até lhe confere uma razão de ser, pois, apesar do sofrimento da perda e a busca

pelo descanso dos entes que se foram ser uma questão típica de um ethos religioso, os

fatores materiais também exercem influência sobre as ações feretrais. Segundo Weber

(1974, p. 310), “É claro que o modo de vida determinado religiosamente é, em si, profundamente influenciado pelos

fatores econômicos e políticos que operam dentro de determinados limites geográficos,

políticos, sociais e nacionais”. Destarte, o cemitério não é composto como mero centro

religioso de contemplação e luto, mas ali se localizam expressões identitárias e culturais

que denotam a influência das transformações da sociedade ad extra luto e da morfologia

tumular, no qual o processo de secularização, racionalização e de apropriação dos

mecanismos econômicos se entrelaçam.

A partir dessa apropriação e da reprodução de um sistema vigente em torno da

morte e da constituição da morfologia tumular, gera-se uma mudança naquele sentido

sacral para uma situação na qual o luto e sepultamento são cada vez mais passíveis de

movimentar uma logística e um mercado. Nesse sentido, o trato dado aos mortos

possibilita o surgimento de profissionais especializados na tarefa de proporcionar aos

cadáveres os devidos cuidados, tanto no que se refere à sua composição durante o

velório quanto o local em que serão depositados. A saída do necrotério até a inscrição

do epitáfio envolve uma gama de indivíduos que fazem da atividade voltada aos mortos

uma profissão, e da morte um meio de vida, pois estes profissionais isentam amigos e

parentes, antes responsáveis por todo esse trabalho, para se dedicar exclusivamente à

dor da perda e às homenagens devidas aos que partiram. Para que isso ocorra, processos

são desenvolvidos a tal ponto que sua influência pode ser percebida tanto nas técnicas

empregadas na lide com os mortos, bem como no local onde estes serão sepultados,

numa significação que permite observar criticamente a constituição dos espaços

fúnebres.

A inumação e a morfologia tumular

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Demonstrar determinada mensagem a partir das práticas relacionadas à

inumação e ao luto é uma atitude valorativa, simbólica e legitimante. A ordem social

estabelecida interfere diretamente na maneira como os vivos tratam os seus mortos e

isso ocorre fortemente no âmbito religioso: a relação entre a religião e a legitimação se

dá no que se refere à utilização dos preceitos religiosos como forma ampla de delimitar

os aspectos sacrais dos não sacrais. Dessa maneira é estruturada a formação da

necrópole, onde o rito do luto seria o fator demonstrativo da morte do ponto de vista

religioso; porém, a relação entre o sacro e o profano é mais intima do que aparenta,

pois, concomitante a isso também há a construção de um aparato memorial que reflete

os valores sociais, morais e simbólicos das famílias que ali jazem e dos seus

descendentes que ali cultuam sua memória. Naquele local erigido pelos seus não há

somente a superação da morte, mas também, a capacidade de demonstrar sua presença

no decorrer dos tempos. Segundo Berger (1985, p. 48-49)

[...]A legitimação religiosa pretende relacionar a realidade humanamente definida como a

realidade última, universal e sagrada. As construções da atividade humana, intrinsecamente

precárias e contraditórias, recebem assim, a aparência de definitiva segurança e permanência.

Até a segunda metade do século XIX, particularmente no Brasil, a morte se

apresentava como um evento intimista, dada a relação de proximidade entre vivos e

mortos num espaço muito próximo, haja vista que não raro o enterro era realizado em

locais hoje considerados impróprios, como nos fundos da casa ou da fazenda. O local

ideal para o enterro era nas proximidades da Igreja, chamado ad sanctum, e caso o

morto fosse figura ilustre, poderia ser sepultado até mesmo no templo. Ariés (2000, p.

45) dedica importante estudo sobre as variantes sociais da morte, e a complexa relação

que esta tem no decorrer da história sobre o seu destino: após a morte, no decorrer dos

tempos discutiu-se sobre o local apropriado para o morto, intra muros, e sua

proximidade com os santos nas igrejas, pois segundo o autor, não raro podia-se sentir o

fedor dos corpos em decomposição nesse modelo de inumação, causador de problemas

de saúde pública. Esse problema alimentou as teorias miasmáticas, fortemente

relacionadas às teses higienistas sobre o destino

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dos corpos: se mal depositado pode ser fonte de inúmeros danos àqueles que circulam

próximos às suas sepulturas. Portanto, é necessária a criação de um local mais

apropriado para o destino dos cadáveres. O enterro ad sanctum deixa de ser uma

prioridade e o cemitério público passa a ser o destino dos corpos que nessa situação, se

tornaram indesejáveis para o convívio com os vivos.

Surge então um novo paradigma: órfãos do terreno santo que era proporcionado

pela Igreja, os enlutados devem fazer dos cemitérios seu novo campo santo; mas para

isso terão que trazer para si a responsabilidade de constituir um espaço adequado e

funcional, justamente porque questões como saúde pública, higiene e a separação

Igreja-Estado são determinantes na construção desses locais e do processo de

racionalização pelo qual a morte passará. Nesse bojo, a divisão social antes marcada por

aqueles enterrados próximos ou distantes da Igreja passa agora a ser marcada pelo nível

de ostentação dos memoriais: quanto maiores e mais suntuosos forem os túmulos ou

mausoléus, maior a demonstração de poder.

A morte e seu significado numa sociedade racionalizada

Os procedimentos sociais envolvendo a morte (luto, inumação, constituição de

memorial) perpassam por fatores a priori na questão da religiosidade. Desde o momento

do morrer até o respeito para com o cadáver implicam circunstâncias determinadas por

uma religião e no caso brasileiro em particular, na sua maioria, denominações cristãs. A

simbologia da cruz e do crucifixo no caso católico remete à esperança da salvação das

almas e do culto a elas. No entanto, estes elementos não deixam, concomitantemente, de

serem afetados por elementos sociais racionalizados historicamente. Como já foi

afirmado aqui, a secularização do Estado bem como a forte influência do capitalismo na

vida cotidiana (e isso inclui o luto e a morte) foram importantes para as transformações

que se observa nessa temática. Weber (2002, p. 99) faz uma breve localização sobre

essas duas esferas que permeiam a sociedade destacando o escopo de ambas (religião e

Estado):

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Uma associação política será chamada de “Estado” se, e na medida em que, seu

quadro administrativo reivindicar com sucesso a monopolização de uso legítimo da

força física na imposição de sua autoridade. A ação social, especialmente de uma

associação será politicamente orientada se, e na medida em que, seu propósito for o

de influenciar a liderança de uma associação política, seja para apropriação,

expropriação, atribuição ou reatribuição dos poderes governantes. A associação de

dominação será chamada de “hierocrática” se, e na medida em que, empregar, para

manter sua autoridade, a “coerção psíquica” por meio da concessão ou não de

benefícios religiosos (coerção hierocrática). Uma associação hierocrática

compulsória com uma organização contínua será conhecida como uma “Igreja” se, e

na medida em que, seu quadro administrativo reivindicar um monopólio do uso

legítimo da coerção hierocrática.

Essa desvinculação “administrativa” em torno do local de enterro, antes

monopolizado pela Igreja e a partir de então transferido para o Estado está inserida num

processo que afeta diretamente as mentalidades envolvidas principalmente no que se

refere à forma de se realizar essa prática, ou seja, nesse local agora secularizado, cabe

aos vivos dar novo significado e atribuir ao túmulo toda a carga emocional antes

depositada no modelo ad sanctum.

Dessa maneira é possível perceber que os corpos já não são apenas

responsabilidade dos parentes do morto ou da Igreja. Reside sobre o evento uma

necessidade de controle e quantificação no qual há a existência de um necropoder (se

comparado ao conceito foucaultiano de biopoder que será abordado a seguir), no qual o

corpo passa a ser objeto de análise, de controle e distribuição sob a égide da segurança,

da saúde pública, que pela inversão que até o século XVIII se configurava no “permitir

viver” passou para o “fazer viver”. Por consequência, permite-se que agora a soberania

do Estado sobre os corpos passe ao estágio de “deixar morrer”. Foucault em sua

construção da ideia de biopoder mostra que essa complexa relação entre o Estado e os

corpos dos indivíduos afeta diretamente os ritos funerários, haja vista que os mesmos

deixam de ser espetáculos e passam ser de foro íntimo, reservado:

Ora, agora que o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o

direito de intervir para fazer viver, (...) do momento em que, portanto, o poder

intervém sobretudo nesse nível para aumentar a vida, (...) daí por diante a morte,

como termo da vida, é evidentemente o termo, limite, a extremidade do poder. Ela

está do lado de fora, em relação ao poder: é o que cai fora de seu domínio, e sobre o

que o poder só terá domínio de modo geral, global, estatístico. Isso sobre o que o

poder tem domínio não é a morte, é a mortalidade. E, nessa medida, é normal que a

morte, agora, passe para o âmbito do privado e do que há de mais privado.

(FOUCAULT, 1999, P. 295-296)

A análise foucaultiana contribui para considerar que essa passagem implica na

constituição dos cemitérios públicos, onde todos os mortos jazem

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num local próximo uns dos outros. Assim, essa situação possibilita analisar que um

cemitério é um potencial local de exibição de uma história social, que inclui a

ostentação impressa nos mausoléus e túmulos cravejados de rochas nobres e estátuas de

bronze, fazendo de alguns espaços da necrópole uma verdadeira exposição de edifícios

tumulares. Observa-se nesse contexto intimista indicado por Foucault que ao se tornar

coisa particular, esse processo envolvente do luto alcança, no desenvolvimento da

modernidade, um distanciamento do evento da morte e da religião como representante

do alento que deve ser dado aos enlutados. A religião permanece, mas de maneira opaca

frente ao peso racional que a logística mercadológica funérea e tumular exercem sobre a

sociedade. Inclui-se nesse processo a superação daquela religião sisuda e distante,

inalcançável. No Brasil, o afastamento dos cadáveres da proteção da Igreja proporciona

uma personalização da estética tumular nos cemitérios laicos, possibilitando que os

envolvidos nesse processo possam expressar suas aspirações religiosas, bem como seus

valores de maneira mais pessoal no que se refere à estética da “última morada”.

Ressalte-se porém, que não se pretende tratar aqui da elevação da ostentação

arquitetônica e da liberdade de expressão em detrimento da fé cristã ou qualquer fé, mas

observar que, do ponto de vista jurídico-político em contraste com o religioso, pode-se

constatar que existem fatores ad extra que impulsionam o trato com a morte de maneira

significativa e significante. Para a configuração do modelo cemiterial que existe no

século XXI, há um aspecto de profundas mudanças pelas quais a sociedade passou no

decorrer da sua história. Está fotografado ali nas estruturas de concreto, metais e pedras

uma trajetória não somente do falecido mas de toda a sociedade pela qual passaram

ainda em vida. A secularização dos espaços cemiteriais permitiu que essa fotografia

fosse sendo modificada dia após dia, e não somente sob as cores que a religião até então

permitia.

A derrota institucional da Igreja impacta sobre o processo de decisão sobre o

destino dos corpos, antes sob o controle (ou pelo menos com o aval) das autoridades

eclesiásticas, mas que agora passa pela sociedade civil e pelo Estado, e isso implica na

adoção de parâmetros técnicos e científicos para lidar com os mortos. Nesse sentido, a

preocupação com os aspectos higiênicos que

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envolviam o fim a ser dado aos cadáveres foi fundamental no processo de afastamento

dos locais de sepultamento do convívio com os vivos.

As teorias miasmáticas acreditavam que, assim como os doentes poderiam

transmitir doenças às pessoas saudáveis, os corpos sepultados de maneira relapsa

poderiam, durante sua decomposição, gerar determinados gases que seriam nocivos à

saúde. Tem-se então um caso de saúde pública, que proporcionou o escopo necessário

para o fim da prática do sepultamento sem padronização adequada. Nesse ínterim, surge

a normatização dos locais em que serão destinados os corpos, ou o planejamento

daquilo que após a segunda metade do século XIX serão os cemitérios laicos que hoje

se apresentam. Heuer (2004, p. 11-12) aponta a relevância dessa mudança:

Para neutralizar a ação desses gases, uma série de práticas foi estabelecida pelas

autoridades higiênicas. A primeira delas foi a separação entre o mundo dos vivos e

dos mortos. Se os mortos eram enterrados no meio do núcleo populacional, agora

são criados espaços específicos para recebê-los. Surgem então os cemitérios

públicos que, obedecendo as novas normas de higiene, vão controlar os corpos e

normatizar os enterros. Todo o seu planejamento, arquitetura, organização interna e

administração tem como objetivo a minimização da ação mórbida dos miasmas. A

medida das sepulturas, as árvores, o muro, os espaços vazios, a capela mortuária,

faziam com que os miasmas permanecessem bem longe das populações. Mas além

de controlar os miasmas, a construção dos cemitérios também teve outro objetivo.

Se até então muitos enterros não entravam na contabilidade mortuária, com o

surgimento das novas necrópoles essa situação se modificou. Os cemitérios públicos

fizeram parte da estrutura que permitiu conhecer a totalidade de óbitos. Assim, com

base nestes números, foi possível desenvolver as medições estatísticas. Esses

números eram essenciais para a administração, pois era através da estatística que a

população se tornava uma realidade quantificável.

Convém ressaltar que essas transformações sociais que mostram um

enfraquecimento da religião não se devem somente a aspectos exógenos, mas também

endógenos da conduta: partindo do pressuposto de que há uma expressão de valores no

trato com os cadáveres e com os túmulos, bem como no lidar com a dor da perda, pode

existir, por parte dos grupos enlutados, particularmente os menos favorecidos, certa

resistência às respostas religiosas para a consternação perante a morte, colocando a

religião sob pressão. Ou seja, se por um lado o desenvolvimento racional, tecnológico e

científico acaba sendo mais incisivo nas camadas sociais mais elevadas, os mais pobres

também são afetados, pois tanto a ciência quanto a religião não suprem a necessidade de

respostas para a dor do luto, pois, numa sociedade cada vez mais secularizada, como

suportar o sofrimento de maneira resignada em um

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mundo no qual os menos merecedores podem sofrer mais do que os merecedores? A

ética católica antiga, voltada para as recompensas no reino dos céus não é mais

suficiente. Weber (1982, p. 318) aponta para esses aspectos, destacando a influência da

racionalidade e do enfraquecimento da magia como referências ao problema:

A necessidade de uma interpretação ética do “significado” da distribuição das

fortunas entre os homens aumentou com a crescente racionalidade das concepções

de mundo. À medida que os reflexos religiosos e éticos se foram tornando cada vez

mais racionalizados e primitivos e as noções mágicas foram eliminadas, a teodiceia

do sofrimento encontrou dificuldades crescentes. Era demasiado frequente o

sofrimento individualmente “imerecido”; não eram os homens “bons”, mas os

“maus” que venciam – mesmo quando a vitória era medida pelos padrões da camada

dominante, e não pela “moral dos escravos”.

Contudo, convém ressaltar que apesar dessa resistência ser latente no que se

refere a um ethos sobre a morte, a prática religiosa dedicada ao enterro e ao culto aos

mortos não perde sua essência: a espiritualidade sobre tal atividade permanece e tem

suas origens psicológicas preservadas, pois ainda é um mecanismo de superação,

constituindo uma situação dicotômica. Considerando essa dicotomia entre o racional (o

cemitério) e o religioso (o significado de estar ali), cabe buscar na constituição do

cenário mortuário as formas encontradas pelas famílias para sublimar o sentimento de

frustração gerado pela morte.

Nas necrópoles fica evidente pela arquitetura sofisticada de alguns túmulos, que

estes tentam representar a vida de seus antepassados influentes ou de poderio

econômico e político, tais como famílias de passado vinculado com a nobreza, uma

burguesia cafeeira ou industrial e até mesmo congregações religiosas católicas. Nessa

mesma medida se revela o espaço das famílias menos favorecidas, com túmulos

simples, de arquitetura muitas vezes rústica, mas que de uma ou outra maneira tenta

manifestar algum tipo de marca para aqueles que o visitam, como é o caso das

fotografias mortuárias, as mensagens nas lápides, ou mesmo a ausência desses adornos,

que pode denotar a falta de recursos financeiros para a construção ou manutenção dos

jazigos, o fim de uma geração ou esquecimento por parte dos parentes e amigos. Assim

como a suntuosidade de uma casa pode demonstrar prestígio, a falta deste pode ser

observada na simplicidade de uma habitação sem recursos

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arquitetônicos. Destarte, é importante observar nos cemitérios uma gama de objetos que

simbolizam os mais diferentes processos sociais pelos quais a sociedade dos vivos se

organiza ou é organizada, fazendo desses fatores algo que pode ser lido e

compreendido, na busca dos significados dados pelos indivíduos que compuseram esses

locais, pois:

Quando submetidos à leitura, os dispositivos funerários plasmados nos túmulos

permitem traduzir não só acomodações e equilíbrios, mas também tensões e

mudanças operadas no contexto de um grupo específico ou no corpo social mais

amplo; assim como é também capaz de revelar atos institucionais e de condutas

sociais e morais diversos, tendo sempre como preocupação dar sentido e significado

a alguma coisa. (MOTTA, 2009, p. 74)

Par tentar compreender essa assinatura social marcada nos cemitérios, faz-se

mister perceber os contrastes que ali se fazem evidentes ou discretos. Esses contrastes,

apesar de não serem os únicos determinantes, permitem compreender a divisão entre

aqueles que podem e os que não podem manifestar suas homenagens pela ostentação

das lápides. Tal divisão existe e é latente, e por isso é necessário observar essas

diferenças, compreender as nuances sociológicas ali impressas, delimitando referenciais

que possibilitem uma análise mais profunda e que seja também extra muros dos

cemitérios, estabelecendo as conexões necessárias com os grupos sociais envolvidos nas

vicissitudes dos processos que envolvem o luto, bem como as representações implicadas

na construção da memória familiar e social dos que se foram. Procurando identificar um

parâmetro para observar a conjuntura da necrópole, percebe-se que esta cristaliza em

sua forma os processos sociais e ideológicos a partir de alguns princípios: a) estética:

bem como as habitações dos vivos, os mortos cuja história é privilegiada

financeiramente é refletida senão pelo estatuário e ostentação pelo tamanho, o é no

mínimo pelo material utilizado na construção dos jazigos. b) conservação: o item

anterior repercute neste, haja vista que não raro é possível encontrar jazigos que já

tiveram amplo destaque e que se mantém, bem como alguns que estão sendo

deteriorados pela ação do tempo e já não mais refletem o antigo esplendor. Todavia, os

mais simples quando não conservados, beiram a degradação. c) geografia: essa situação

pode ser hoje dividida em ainda duas categorias, com o advento do capitalismo

moderno sobre a morte: c.1: pode-se perceber que, em geral, a distribuição dos

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túmulos e mausoléus de famílias detentoras de algum poder ou relevância no passado

localizam-se em pontos mais privilegiados, bem como o espaço que ocupam (regiões

centrais, na entrada e/ou próximos às ruas mais amplas, facilitando o acesso e a

visualização) ao passo que os túmulos das famílias mais simples geralmente estão

localizados em regiões periféricas ou discretamente ofuscados pelos túmulos mais

suntuosos; c.2: a estratificação social pode chegar ao ponto em que se criam espaços

exclusivos (novos cemitérios ou novas alas em alguns cemitérios públicos) para que os

mortos sejam enterrados junto àquelas famílias cujo poder aquisitivo permite adquirir

lotes em que assemelham-se a condomínios. d) números de controle: tanto os túmulos

mais simples quanto os mais suntuosos são marcados com números (perpétuas)

catalogados, que possibilitam o controle burocrático dos enterros bem como a contagem

dos mortos. Percebe-se então uma estrutura relativamente pensada e calculada, cuja

influência burocrática sustenta a necessidade administrativa sobre as necrópoles,

reforçando ou reproduzindo as relações de poder existentes na sociedade vivente. O

controle sobre o destino dos corpos pela via burocrática condensa a racionalidade

aplicada ao cotidiano de maneira que a necrópole não mais se constitui de maneira

desordenada, espontânea, caótica, mas segue um padrão cada vez mais tecnicista.

Tal pragmatismo em torno da morte ilustra um momento histórico e sociológico

que não foi exaurido, mas que se renova, no qual a significação da morte, apesar de

ainda ter como pano de fundo o questionamento e a inconformidade com a finitude da

vida, serve de exemplo de como a sociedade moderna ainda ressignifica o luto e as

condutas em seu entorno, provocando mudanças no establishment religioso, que até

então era sustentáculo de uma conduta e mentalidade sociais. Isso ocorre, por exemplo,

quando se identifica nas sociedades modernas atuais o afastamento dos vivos em

relação aos mortos, pelo menos no que se refere ao seu aspecto mais concreto, ou seja, o

tratamento dado aos mortos desde o falecimento até a inumação.

Considerações finais

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Em se tratando de uma análise sociológica da morte, é possível observar que o

processo de racionalização, bem como as transformações oriundas da modernidade são

muito presentes no processo de significação da morte e da inumação. No entanto, isso

não implica necessariamente a existência de um “fim” da religiosidade relacionada à

morte, mas sim que o aspecto pragmático da morte tem se desenvolvido com solidez, e

isso se reflete diretamente na formação das necrópoles. Percebe-se que a morte ainda

significa para a sociedade ocidental um momento de dor, reflexão e questionamento

sobre a vida após a morte. Contudo, apesar de sua essência se manter, aparentemente

tudo o que há de acessório em torno da morte foi assimilado pelas transformações da

sociedade moderna e ressignificado por ela. Nesse contexto, há um fato novo talvez

ainda não explorado suficientemente pelas ciências sociais: a memória coletiva antes

cristalizada nas lápides dos túmulos torna-se cada vez mais diluída pela busca formal e

pragmática no destino dado aos corpos sem vida, fazendo do túmulo um objeto muito

mais prático do que memorial. Nesse contexto, os cemitérios passam cada vez mais da

condição de museus a céu aberto para a situação de departamento de arquivos, onde há

uma preocupação maior com os dados cadastrais do morto (nome, nascimento, morte), e

não necessariamente com o culto à sua história e/ou da família. Associado a isto,

acrescenta-se o fator ideológico de legitimação de uma mentalidade sectária entre

grupos sociais de acordo com seu poder econômico. Essa lógica da frieza e do

afastamento dos vivos em relação aos mortos poderia ser tão somente a reprodução do

afastamento social entre dominantes e dominados, que não é característica oriunda

exclusivamente da modernidade, mas que se apresenta apenas sob nova representação.

As inumações intra muros, ad sanctum e os padrões até mesmo de tempos mais antigos

já representavam essa divisão social, mas não com tanta veemência quando o

afastamento se refere aos seus entes mais próximos, que desejam cada vez mais apartar-

se de seus cadáveres. Reserva-se essa observação em especial ao modelo brasileiro, haja

vista que a herança católica foi fortemente responsável por esse modelo monumental de

jazigos, mas que, sob a influência do processo de secularização desencadeado pela

modernidade, cede lugar agora para um modelo prático, usual, onde o termo “sem vida”

torna-se perfeitamente aplicável.

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A racionalidade capitalista como forma de controle da ordem social reforça tal

situação, pois enfraquece as expressões mais autênticas da relação do homem com a

vida e a morte, valorizando em seu lugar o cálculo e a relação custo/benefício em

detrimento do sentimento intimista que é o luto. Nisso, a racionalização do mundo

material se move sobre o cotidiano, ofuscando valores antigos em prol do reforço de

uma ideologia predominantemente individualista e superficial, fazendo com que os

novos modelos vinculados à morte também o sejam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar Editores. 1982.