a quimera democrÁtica na amÉrica latina: o brasil sob o impÉrio

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A QUIMERA DEMOCRÁTICA NA AMÉRICA LATINA: O BRASIL SOB O IMPÉRIO Guillermo Johnson

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Guillermo Johnson

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  • A QUIMERA DEMOCRTICA NA AMRICA LATINA:O BRASIL SOB O IMPRIO

    Guillermo Johnson

  • A QUIMERA DEMOCRTICA NA AMRICA LATINA:O BRASIL SOB O IMPRIO

    Guillermo Johnson

    2013

  • Universidade Federal da Grande DouradosEditora UFGD

    Coordenador editorial : Edvaldo Cesar MorettiTcnico de apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho

    Redatora: Raquel Correia de OliveiraProgramadora visual: Marise Massen Frainer

    e-mail: [email protected]

    Conselho Editorial Edvaldo Cesar Moretti | Presidente

    Wedson Desidrio Fernandes | Vice-ReitorPaulo Roberto Cim Queiroz

    Guilherme Augusto BiscaroRita de Cssia Aparecida Pacheco Limberti

    Rozanna Marques MuzziFbio Edir dos Santos Costa

    Impresso e Acabamento: Triunfal Grfica e Editora | Assis | SP

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central - UFGD

    325.3J661q

    Johnson, Guillermo.A quimera democrtica na Amrica Latina : o Brasil sob

    o imprio / Guillermo Johnson Dourados-MS : Ed. UFGD, 2013.

    250 p.

    ISBN: 978-85-8147-042-9Possui referncias.

    1. Imperialismo Amrica Latina. 2. Poltica econmica. 3. Colonialismo. I. Ttulo.

  • s minhas filhas,Tain e Ana Clara,Luz do farol da minha vida.Aos trabalhadores e oprimidos,Promissores protagonistas do amanh igualitrio,Sangue destas folhas esqulidas.

  • SUMRIOINTRODUO 09CAPTULO 1 - AMRICA LATINA NO CENRIO INTERNACIONALColonialismo e mercantilismo: primrdios da submisso e explorao latino-americana no sistema mundialHegemonia e dependncia no sistema mundialApontamentos do debate sobre o sistema mundialAs perspectivas dependentes e associadas de insero econmica e poltica dos pases latino--americanos no cenrio mundialA vitalidade crtica da sociologia latino-americana

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    CAPTULO 2 - DOMINAO HEGEMNICA E RECOLONIZAO:ASPECTOS POLTICOS E ECONMICOSGlobalizao, mundializao, imperialismoImprio ou imperialismo?O Imperialismo segundo LninA construo da atual hegemonia mundialAspectos econmicos e polticos do processo recolonizador da Amrica Latina

    57

    CAPTULO 3 - O FETICHE DA DEMOCRACIA LIBERALDemocracia, mercados e sociedade civilAnlise crtica da concepo de democracia como valor universalO processo e a luta pela democratizao na Amrica LatinaAs teorias da transio democrtica: breve balano crtico

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    CAPTULO 4 - CONDICIONANTES EXTERNOS REALIZAODAS DEMOCRACIAS NACIONAISProcessos decisrios nacionais e interferentes internacionaisMecanismos de transferncia de riquezas desde a periferia latino-americanaA dvida externa latino-americana: metstase dos povosDesregulao dos mercados e fluxos de capitaisALCA e bilateralismo: a recolonizao em curso

    141

  • CAPTULO 5 - A DEMOCRACIA, O ESTADO E AS PERSPECTIVAS SOB O PROCES-SO DE RECOLONIZAO DA AMRICA LATINAPoltica estatal e controle socialAs diretrizes das polticas sociais sob o neoliberalismoPerspectivas de superao da condio neocolonial

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    CONCLUSES 219REFERNCIAS 227ANEXOS 241

  • INTRODUO

    As mudanas no sistema mundial que vivenciamos nas ltimas trs dcadas nos compe-lem a experimentar um processo intenso de internacionalizao da economia denominado de diversas formas: globalitarismo, globalizao, mundializao, entre tantos outros , que influencia nosso estilo de vida de variadas formas.

    Independente da variedade e gradao com que se concebam estas mudanas, informa-es oficiais confirmam o aprofundamento da desigualdade na distribuio mundial da renda, decorrente de uma poltica de contrao das atribuies sociais do Estado, da flexibilizao das relaes trabalhistas e da progressiva diminuio das barreiras alfandegrias (para o inter-cmbio de mercadorias, mas, principalmente, para o livre fluxo do capital financeiro), entre outras. Desde essa tica a realidade apresentada como se os aspectos econmicos, em parti-cular os no desejveis, fossem externalidades conjunturais do sistema social e poltico sob o capitalismo. Simultaneamente, a democratizao possui uma relao umbilical com os aspectos econmicos, e se ergue como a promessa ideolgica que ir resolver os problemas de que a sociedade padece, atravs de maior participao, transparncia e outras caractersticas, objetos dos desejos das lutas histricas dos trabalhadores.

    As questes acima apontadas, assim como tantas outras relacionadas a essas temti-cas, tm tomado conta das discusses polticas e econmicas. So numerosos os estudos que contribuem para as questes relacionadas com a democracia e a insero dos pases latino americanos na economia mundial. Os trabalhos que analisam e propem tendncias de conso-lidao das democracias, assim como aqueles que buscam modalidades alternativas de insero da regio no cenrio internacional so abundantes. Mas, ao mesmo tempo, persistem questio-namentos relacionados com a distribuio da riqueza e, particularmente, com os mecanismos e setores que interferem direta ou indiretamente nos processos decisrios, sejam polticos ou econmicos.

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    Na esteira destas indagaes desperta especial ateno a maneira como se consuma a complexa trama de distribuio mundial do poder. Referindo-se a esta situao, o embaixador e ex-membro do Instituto de Pesquisas Internacionais do Itamaraty, caracteriza que a lideran-a do sistema internacional, em seus aspectos econmicos, polticos e militares, exercida des-de a Segunda Guerra Mundial pelos EUA [...], e, sobre a atual conjuntura, considera que se acentuam as caractersticas de unilateralismo, arbtrio e arrogncia da potncia de hegemonia contestada (GUIMARES, 2001a, p. 106). Inclusive, em discurso na Ordem dos Advogados do Brasil, o ento Presidente Fernando Henrique Cardoso teceu crticas s relaes estabele-cidas, dizendo que estas so tpicas de uma poca ps-imperialista (RODRIGUES, 2001, p. 8). Se essas afirmaes faziam sentido antes dos eventos de 11 de setembro de 2001, quando caractersticas unipolares da dominao hegemnica ainda no estavam expostas, atualmente brevemente citando a invaso dos Estados Unidos ao Afeganisto e Iraque, sua crescente ascendncia econmica, poltica e militar, aliada estrutura hierrquica do sistema financeiro configuram uma temtica que percorre desde escritos jornalsticos at acadmicos de norte a sul. Foi, possivelmente, uma leitura semelhante anterior da situao internacional que fez um recente presidente do Brasil, Luiz Incio Lula da Silva, em discurso na 59 Assembleia Geral da ONU, afirmar que os pases ricos exercem uma nova forma de colonialismo sobre os mais pobres, reforando que uma lgica drena o mundo da escassez para irrigar o privilgio que o conduziu a condenar a globalizao assimtrica e excludente (JORNAL DO BRASIL, 2004).

    Tendo em vista a multiplicidade de facetas em transformao, este trabalho coloca em evidncia o carter persistentemente autocrtico dos atuais regimes polticos na Amrica La-tina1 e, em particular, no Brasil, no mbito de uma intensa tentativa de recolonizao liderado pelo pas hegemnico. Estudamos as caractersticas que o processo decisrio, considerado democrtico, das polticas governamentais assumiu na Amrica Latina, analisando as suas di-retrizes. Ao mesmo tempo, o seu escopo no aborda a recente ascenso de governos de vis

    1 Quando nos referirmos Amrica Latina, consideraremos Mxico, Amrica Central, Amrica do Sul e os pases do Caribe: Cuba, Haiti, Repblica Dominicana e Porto Rico. A heterogeneidade histrica e contempo-rnea da insero destes pases ser abordada no decurso deste estudo.

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    nacionalista e populista de esquerda2, que a partir da metade da presente dcada tem prolifera-do nos pases hispanos de Sul Amrica.

    O processo pesquisado possui como eixo ordenador a nova relao dos pases hege-mnicos com a Amrica Latina, em particular o Brasil. Considerando aspectos econmicos, polticos e sociais, estamos habilitados a pensar que existe um aprofundamento da relao de dependncia, que possvel ser denominado de recolonizao poltico-econmica. Neste contexto, desnuda-se o carter totalitrio do processo decisrio que se implanta, em particular, nos pases latinos do continente americano, apresentado como sistema democrtico.

    Torna-se, assim, imperativo discutir as caractersticas implcitas do processo, que con-sideramos autocrtico, de deciso vigente no sistema capitalista. Para tal, concepes clssicas e contemporneas do que se compreende como processos democrticos sero arroladas, para contrapor concepo de que estamos perante um Estado que no neutro base das pre-missas liberais e sim um Estado a servio de um exguo setor da sociedade, a burguesia, hoje de carter eminentemente financeiro.

    A bandeira da superioridade da democracia liberal perante outros regimes polticos se ergue aps a consolidao dos pases denominados comunistas nas dcadas de 1920 e 1930. A democracia, liberal, apresentava-se como sinnimo de liberdade poltica perante o carter autoritrio vigente nos pases do socialismo real. Desde ento se tem colocado como princi-pal paradigma, baseado na liberdade do jogo institucional e como espao de realizao das liberdades individuais, nos limites do capitalismo. Portanto, torna-se necessrio abordar as caractersticas gerais do debate em torno da democracia desde o Estado liberal clssico. Ainda importante lembrar que, aps a Segunda Guerra Mundial, a maioria dos pases europeus possuiu regimes democrticos burgueses, enquanto que nos pases da Amrica Latina predo-minaram regimes abertamente totalitrios, sendo que nestes as caractersticas populistas se faziam presente de forma recorrente.

    2 Estamos nos referindo, particularmente, aos governos de Chvez na Venezuela, Correa no Equador, Mora-les na Bolvia ou Kirchner na Argentina. A recente transformao na conjuntura exigiria um estudo especfico desta realidade, ainda que seja possvel, a priori, observar que eles acontecem com marcados constrangimentos democrticos.

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    A viso democrtica analisada abarca tanto as expresses institucionais que adota quan-to o contedo das polticas executadas. Isto , procura-se evidenciar a fragilidade que os go-vernos vivenciam e, em geral, os seus regimes, ao colocarem em risco qualquer perspectiva de lucros das empresas dos pases hegemnicos. Se esta ameaa se tornar premente, os pases he-gemnicos, em particular os Estados Unidos da Amrica (EUA), exibem o seu poderio militar com vistas a intimidar qualquer deciso que no contemple seus planos estratgicos.

    importante destacar, em termos metodolgicos, que no consideramos, nos termos das nossas anlises, em mbito internacional, que os processos em exame se constituem de forma ordenada, sincrnica e uniforme. Estamos analisando a existncia de uma poltica or-ganizada como tendncia, na tentativa de delinear uma diretriz poltica e econmica organi-zativa da interveno dos pases hegemnicos e das burguesias nacionais. Frequentemente trabalhamos com essas perspectivas como ponto de chegada dessas invectivas, o mais corrente que elas se encontram em caminhos intermedirios das mesmas, decorrentes do contexto geral e particular em que esto imersas, eminentemente da correlao de foras das classes em pugna, em torno do projeto em anlise (CRUZ, 2004). Essa atitude investigativa confere ao trabalho, ainda que eminentemente estruturalista, a dinmica inerente da luta de classes; assim ainda que tendencialmente torne-se mais evidente os empreendimentos do polo hegemnico, a configurao definitiva da poltica em curso decorrente da resistncia organizada das clas-ses oprimidas.

    No marco histrico-estrutural da crise econmica do ajuste neoliberal, a presente anli-se desdobra-se nos seguintes aspectos: identificar caractersticas comuns e especificidades dos processos democrticos adotados no conjunto dos pases latinos da Amrica, e as particula-ridades do caso brasileiro; elaborar a crtica dos limites da crtica ao neoliberalismo; analisar a relao existente entre a construo dos regimes democrticos na Amrica Latina e a implanta-o da poltica neoliberal; explicitar a futura configurao da democracia, visando instalao da rea de Livre Comrcio das Amricas, sob a gide dos EUA, tomando como referncia as relaes entre os pases participantes do Tratado de Livre Comrcio da Amrica do Norte (NAFTA); analisar as possveis relaes entre a concepo democrtica atualmente vigente e a aplicao das transformaes que conduziram ao aprofundamento do desemprego em massa e precarizao e superexplorao do trabalho.

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    Cientes de que o estudo instigante, polmico e complexo, consideramos opor-tuno salientar que a presente obra consiste numa leitura crtica dos processos de demo-cratizao dos pases latinos da Amrica. Neste escopo, no faz parte deste trabalho re-alizar estudos exegticos em torno de conceitos e processos, seno que temos adotado posturas especficas e remetido o aprofundamento das mesmas ao arcabouo terico respectivo.

    Realizamos um estudo histrico-comparativo entre as caractersticas da realidade colo-nial latino-americana e os elementos polticos e econmicos que apresentam comportamen-tos semelhantes, salvando as caractersticas particulares de cada perodo e pas. Enfatizamos o processo decisrio, tomando como base as relaes internacionais no que se refere s pro-postas e decises expressas nas agendas dos governos brasileiro e americano, do FMI, do BM e da Organizao do Livre Comrcio (OMC).

    A perspectiva que o trabalho aborda no de uma via de mo nica, e sim de um processo dinmico, de ao e reao. Isto , que as polticas nacionais na Amrica Latina no acontecem por simples anseio das foras hegemnicas no cenrio mundial, seno tambm pela deciso de serem introduzidas pelos governos locais e que, ao mesmo tempo, os ritmos e dimenses dessas polticas decorrem das manifestaes e presses po-lticas das classes exploradas das sociedades latino-americanas. Na presente anlise no ser focalizada a importncia e a dimenso que os movimentos populares tm assumido na oposio s polticas implantadas pelos governos no incio do presente milnio, esta-mos nos referindo desde os movimentos insurrecionais e de rua at as organizaes que, desde a institucionalidade, pugnam por construir caminhos para uma mudana social e econmica radical. Isso no significa que desvalorizemos a importncia desses movimen-tos, seno que precisamente pela sua relevncia torna-se indispensvel uma pesquisa mais aprofundada.

    Assim sendo, no Captulo 1, iniciamos com uma breve abordagem histrica da relao dos pases latino-americanos com o restante do globo, procurando identificar aspectos polti-cos e econmicos inseparveis no cotidiano do exerccio do poder que permitam identifi-car os padres de dominao externa nos pases latinos da Amrica.

    Constatamos a persistente relao de subordinao dos pases da Amrica Latina com

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    os pases hegemnicos3 nos diversos momentos dos ltimos cinco sculos. O continente americano, desde o momento em que foi achado, amargou relaes de submisso com os pases europeus e, contemporaneamente, com o atual hegemon da economia mundial.

    A primeira relao que o continente americano experimentou com os pases euro-peus nos alvores da modernidade desempenharam papel hegemnico foi de explorao e opresso, que se expressava econmica, cultural e politicamente de diversas maneiras; dentre elas, na violncia que o Imprio exercia sobre a colnia, atravs da escravizao, primeiro dos autctones e depois dos negros. No perodo colonial, que se estende desde que o continente americano foi invadido pelos europeus at o sculo XIX com diferen-as temporais de cada pas no trmino desta relao , a Coroa comandava o processo decisrio, escolhia diretamente os funcionrios que executavam suas ordens e determinava as regras econmicas s quais os habitantes das colnias deviam se submeter. As polticas eram executadas a despeito do anseio e da conivncia destes, isto , atravs do consenso ou da violncia.

    Resgatamos a arquitetura histrica do sistema mundial e sua atual configurao, veri-ficando seu carter hierrquico e excludente, bem como analisamos as diretrizes das polticas que visaram possibilidade de construir um projeto nacional independente no mbito das relaes capitalistas vigentes do ps-guerra, conhecidas como teorias da dependncia. Para tal, expomos as ideias dos seus mais conhecidos expoentes e resgatamos a atualidade da sociologia crtica latino-americana, focalizando dita expresso nas elaboraes de Florestan Fernandes, particularmente na sua fase considerada de acadmico militante que aflora contemporaneamente s teorias da dependncia.

    A compreenso acerca das caractersticas atuais da dominao hegemnica e uma aproximao da ideia de recolonizao o assunto que ordena o segundo captulo. A delimi-tao conceitual em torno de globalizao, mundializao e imperialismo de cabedal im-portncia para este estudo. Neste sentido, consideramos mundializao conceito cunhado por Chesnais (1996) mais procedente, tendo em vista a dominncia financeira da presente

    3 Este termo utilizado por Arrighi e Silver (2001) e se refere ao pas ou conjunto de pases que influenciam ou determinam as relaes comerciais, produtivas, polticas e jurdicas de uma regio considervel do globo.

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    fase do capital. Resgatamos, tambm, o conceito de imperialismo de Lnin, que posterior-mente ser objeto de uma pequena tentativa de atualizao.

    Deixando de lado a controvrsia com a polmica ideia de globalizao, investimos na anlise crtica debate com a obra Imprio, de Hardt e Negri, resgatando para tal a teoria leninsta de imperialismo.

    Objetivando criar um ambiente favorvel discusso da recolonizao, explicitamos a dinmica, assim como as principais caractersticas da construo da atual arquitetura he-gemnica, colocando em evidncia o carter financeiro do capital nesta fase. Em seguida, procuramos delinear os atributos distintivos do que consideramos o reverso da nova relao imperialista em curso, a qual denominamos de processo recolonizador, na senda de uma nova onda (neo)colonizadora. Cientes das dificuldades inerentes introduo de um novo conceito dessa magnitude assumimos os contratempos de uma elaborao ainda incipiente.

    O terceiro captulo dedicado teoria democrtica, com diversas abordagens desde a Antiguidade bero da civilizao ocidental em sua preocupao com o melhor governo. Debatemos as concepes contemporneas de democracia, centrando ateno na polmica com a concepo materialista histrica. Inserimo-nos no debate atual de realizao da demo-cracia no contexto da globalizao, principalmente buscando compreender as perspectivas da sua realizao sob a gide do mercado.

    Consideramos medular a anlise crtica em torno da concepo de democracia como valor universal, que permeia desde os anos oitenta as estratgias de transformao social; para essa tarefa, convocamos alguns dos principais representantes dessa linha de argumentao do debate brasileiro.

    Ainda nesse captulo ensaiamos uma breve discusso em torno da luta pela democra-tizao na Amrica Latina, tentando desvendar as limitaes e dubiedades que marcam sua trajetria. Finalmente, apresentamos uma breve avaliao crtica da transitologia e consolidologia, disciplinas que estudam os devires da democratizao na regio, tomando como substrato terico a sua concepo formal.

    No quarto captulo, colocamos em evidncia os mecanismos econmicos e polticos que sustentam a subordinao dos pases latinos da Amrica. Para tal, recorremos ao relatrio elaborado pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento que posteriormen-

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    te fornecer excelentes dados para fundamentar nossas afirmaes , relacionados com A Democracia na Amrica Latina. Essas fontes permitiram confirmar que as dificuldades de realizao das democracias ainda que formal encontram-se intimamente imbricadas com a questo econmica.

    Ainda nesse captulo focalizamos o funcionamento da dvida externa como mecanismo privilegiado de transferncia de riquezas produzidas na regio, sem desmerecer a mirade de estratagemas relacionada ao mesmo fim. Consideramos necessria a abordagem das novas formas de regionalismo, nas quais se inserem os pases latino-americanos, destacando a ALCA lado a lado com os acordos bilaterais que refletem a relao assimtrica das relaes interna-cionais.

    As mazelas sociais decorrentes da implantao da poltica neoliberal incentivada de diversas formas pelas Instituies Multilaterais de Financiamento consistem na abordagem inicial do quinto captulo. Ensaiamos uma atualizao e alargamento do conceito de controle social: inicialmente como modalidade prioritria das diretrizes das polticas sociais em mbito nacional e, posteriormente, como uma extenso do conceito no que se vincula ao insistente interesse do hegemon em manter as democracias formais na Amrica Latina.

    Ainda, para concluir o dito intervalo, examinamos as anlises prospectivas dos mais destacados intelectuais que estudam a poltica internacional, desde o ponto de vista crtico at as perspectivas de superao da presente relao hierrquica e excludente do sistema mundial.

    A concluso do presente trabalho afirma que, perante o momento em que grandes setores das massas reivindicam maiores liberdades democrticas como uma representao da vontade de retomar as rdeas do processo decisrio de forma continuada, obstculos se apre-sentam para sua consecuo. Mas a resposta para superao dessas dificuldades no est no horizonte da institucionalidade vigente, particularmente nas tentativas de alargar espaos de representao ou deliberao. Nesse sentido, os setores progressistas e amplos setores da esquerda, em particular os reformistas, alimentam a esperana de que com a democracia, ainda que liberal, os problemas econmicos e sociais podero ser solucionados sendo que neste veio proliferaram os embries da concepo da democracia como valor universal. A pesquisa realizada, entre tantos outros escritos neste sentido, verifica que no foi necessrio esperar muitos anos para que o entusiasmo inicial se dilusse perante os indicadores econmicos e sociais, que retornaram com fora na agenda dos pases latino-americanos.

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    Captulo 1

    AMRICA LATINA NO CENRIO INTERNACIONAL

    Neste captulo abordaremos sucintamente os antecedentes da incluso poltica e eco-nmica da Amrica Latina no sistema internacional, destacando as diretrizes das relaes de subordinao que historicamente persistem desde o Brasil Colnia e apontando os elementos centrais do sistema-mundo contemporneo. Ao final apresentaremos diversos aspectos das elaboraes tericas que focalizam o desenvolvimento da regio.

    As transformaes sociais, polticas e econmicas das ltimas trs dcadas sacudiram as concepes predominantes at ento vigentes. A partir do incio da dcada de 1970, assistimos nos pases latinos do continente americano, a uma intensa retomada das teses liberais, cuja hegemonia vem-se consolidando nas dcadas subsequentes, implicando mudanas polticas e ideolgicas que se inscrevem em transformaes de abrangncia mundial. As explicaes mais recorrentes, eminentemente de cunho econmico, esforam-se em justificar estas mudanas por um agravamento do problema inflacionrio e um agudo comprometimento fiscal de gran-de parte dos estados latino-americanos4.

    4 Quando nos referirmos a Amrica Latina queremos considerar Mxico, Amrica Central, Amrica do Sul e os pases do Caribe: Cuba, Haiti, Repblica Dominicana e Porto Rico. indispensvel registrar sucintamente que a heterogeneidade que caracteriza a insero destes pases pode ser apreendida, entre tantos outros estu-diosos crticos da insero latino-americana, nas elaboraes de Fernandes (1981a) ao interpretar as diversas formas de dominao externa: nessa perspectiva, apenas alguns pases, como Argentina, Uruguai, Brasil, Mxico, Chile, etc., conheceram sucessivamente todas as formas de dominao externa. Outros pases, como Haiti, Bolvia, Honduras, Nicargua, Guatemala, El Salvador, Repblica Dominicana, Paraguai, Peru etc., experimentaram a primeira e a segunda formas tpicas de dominao externa, tornando-se economias de enclave e verses modernizadas do antigo sistema colonial ou do neocolonialismo transitrio do incio do

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    A presente situao est associada s transformaes econmicas e polticas iniciadas nos anos 1980, com os primeiros indcios da crise de acumulao capitalista frequentemente reduzida denominada crise do petrleo , mudana do padro de produo industrial; incorporao da tecnologia digital ao fluxo de capitais e ao fim do bloco comunista, como ad-versrio do capitalismo, entre os mais importantes. Isto se coaduna s mobilizaes populares que conduziram derrocada dos regimes totalitrios, eminentemente militares, na maioria dos pases da Amrica Latina.

    Sendo assim, a derrubada do Muro de Berlim e a pulverizao da antiga Unio Sovitica so interpretadas pelo establishment como smbolo de Fim da Histria, do trunfo final da te-oria liberal sobre o totalitarismo encarnados nos fascismos e no nazismo e o comunismo (ANDERSON, 1995). Mas, a partir da tica do materialismo histrico e dialtico sobre esse perodo, pode-se afirmar que a tal bipolaridade era aparente, pois em ambos os polos, o capi-talista e o comunista tambm denominado socialismo real , a liberdade e a necessidade no eram satisfeitas para toda a populao, conduzindo a que qualquer tentativa de instalao de um governo democrtico baseado na satisfao das necessidades bsicas da maioria fosse neutralizada com represso. Os conhecidos massacres, perseguies e torturas daqueles que, coletiva ou individualmente, apresentaram-se como ameaa para qualquer um dos sistemas era, e continua sendo, o mtodo predileto para dirimir as discrdias. Os trabalhadores no possu-am, e nem possuem, as perspectivas de satisfao das necessidades materiais em igualdade de condies livremente (CERDEIRA, 1998).

    Segundo o pensamento liberal, o capitalismo considerado o grande vitorioso no embate com as foras que o tm impedido de avanar para uma sociedade com maior distri-buio da riqueza no mbito da sua concepo de liberdades econmicas e polticas. A partir desta perspectiva, vivemos uma retomada das velhas bases liberais da sociedade, uma ofensiva do capital com desdobramentos nos mais diversos aspectos da realidade.

    Omite-se, nestas perspectivas, o fato de que vivemos numa sociedade pautada pela de-sigualdade, baseada na explorao de classes, na qual o aumento na produo de riqueza se

    sculo XIX (p. 19, grifos no original). Consideramos no mbito da conjuntura em anlise a persistncia dessa situao nos dias atuais.

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    relaciona diretamente ao aumento de pobreza, e no ao contrrio, como comumente se afir-ma. Neste cenrio, os pases que eram denominados, eufemisticamente, como em desenvol-vimento, hoje so perifricos; mas isto, por sua vez, traduz-se numa mudana nos papis na produo e distribuio da riqueza que cada pas ou regio do planeta, desempenhar na atual conjuntura. Neste desenho de uma recente conjuntura global, inscreve-se a necessidade de compreender os papis a serem desempenhados e as perspectivas a eles associadas pelos pases da Amrica Latina.

    No mbito desta anlise ressurgem a complexidade e extrema variedade da realidade dos pases latino-americanos5. A intrincada histria dos povos que ocupam uma diversidade geogrfica crivada de contrastes se apresenta como um desafio instransponvel. A pluralidade dimensional dos seus pases se encontra atravessada pelas caractersticas do seu solo e clima, relacionados, por sua vez, s necessidades de explorao econmica que desde a ocupao eu-ropeia impuseram as regras de insero provindas de ultramar e que tornaram realidade os pases latinos da Amrica como um objeto de estudo, a priori, de difcil apreenso. So inegveis as profundas mudanas que o continente americano vivenciou desde o incio da sua coloniza-o, no que se refere sua composio demogrfica, aos desenhos institucionais, s mutaes das persistentes estruturas de classes, s transformaes das caractersticas da produo de bens, s modalidades histricas do relacionamento com as riquezas naturais ou das diferentes formas que, no decurso at o presente, os pases e regies construram relaes de intercm-bio cultural, poltico e econmico entre si e com os pases fora do continente. Neste sentido, seguindo o veio de uma leitura do percurso cronolgico da dominao, pode-se reivindicar a descoberta de que a histria no apenas a cincia do que muda, mas tambm do que parece

    5 Uma contribuio analtica importante para a compreenso da diversidade que caracteriza os pases latinos da Amrica est presente em Soares (2001, p. 25), frequentemente utilizada nas anlises cepalinas. A categoria conceitual heterogeneidade estrutural, inicialmente elaborada por Anbal Pinto, ergue-se como uma catego-ria conceitual ampla, que engloba os traos dominantes das sociedades latino-americanas contemporneas, aludindo a coexistncia de formas produtivas e relaes sociais correspondentes a diferentes fases e moda-lidades do desenvolvimento da regio, mas interdependentes em sua dinmica no interior de Estados politi-camente unificados. No decurso das elaboraes desta anlise, consideraremos como teoria subjacente para compreenso da distribuio de poder e riqueza no sistema mundial a teoria do desenvolvimento desigual e combinado, provinda do arcabouo materialista histrico-dialtico, sobre o qual discorreremos mais adiante.

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    imutvel, essa descoberta incomparavelmente mais fcil para o estudioso da Amrica Latina (DONGHI, 1975, p. 9). Reconhecendo essa heterogeneidade de manifestaes, nesta obra no est colocado o desafio de retomar a exegese da dominao histrica, seno discutir o trajeto que o processo decisrio6 tem apresentado, em perspectiva macro, no sentido de vislumbrar as suas mutaes, mas, eminentemente, destacar a persistncia e as diversas manifestaes que assume a subordinao hegemnica.

    O resgate desta abordagem que privilegia a dinmica histrica das construes he-gemnicas como macro-compreenso do processo decisrio torna-se necessrio perante a crescente desigualdade a qual os pases latino-americanos vivenciam externa e internamente. Pois, na presente conjuntura, a esmagadora maioria das elaboraes das cincias humanas interpreta essa alterao do cenrio internacional como uma crise das meta-narrativas, uma falncia do arcabouo conceitual que propunha construir explicaes abrangentes e coerentes aos fatos da realidade, traduzindo-se na afirmao do fim da modernidade. Nesta viso, ins-creve-se a concepo ps-moderna, que pugna por uma leitura da sociedade em que primam as fragmentaes sociais, a carncia de um projeto social totalizante explcito e confere papel destacado ao indivduo no cenrio social. Por sua vez, esta denominao no pretende anular a diversidade de elaboraes do perodo em fito, mas s visa utilizar uma nomenclatura referen-cial a partir de uma perspectiva dialgica. Assim, as indiscutveis evidncias de mudanas que vivenciamos em mbito mundial desde o ltimo quartel do sculo passado levaram a maioria das elaboraes tericas a representar a realidade como um novo cenrio de profuso da di-versidade e uma ampliao das liberdades de ao e pensamento, incentivando o abandono das teorias sociais universalizantes, munidas de categorias analticas relacionadas a uma concepo manifesta de sociedade e com um projeto poltico claramente delineado. As teorias em foco decretam o fim das certezas decorrentes das meta-narrativas, que nada mais explicam.

    6 Quando nos referimos ao processo decisrio buscamos apreender os atores e espaos em que so discu-tidos e decididos os desgnios dos pases, incluso um conjunto abrangente destes; no contexto da estrutura hierrquica contempornea de poder estamos dizendo que existe um nico conjunto de regras ou um nico conjunto de imposies dentro do qual essas vrias estruturas operam (WALLERSTEIN, 1999, p. 453). Com isto, buscamos colocar em evidncia que a estrutura verticalizada do poder limita ao seu pice as atribuies de deliberar acerca do rumo de diversos Estados e Naes.

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    Portanto, analisar a dinmica mundial requer a procura de regularidades sincrnicas entre os setores sociais envolvidos nas decises no decurso do longo perodo da insero da regio. Isto significa que o estudo no se limitar a estabelecer relaes num plano contempo-rneo. Uma das bases deste reside na perspectiva de resgatar o passado das relaes de subor-dinao dos pases latino-americanos, no percurso histrico das relaes de dominao que se remontam ao descobrimento da Amrica, e situar as mudanas qualitativas atuais sob a hege-monia dos EUA. A abordagem indicada se prope mais abrangente, interdisciplinar, buscando alicerces de sustentao na histria, alm das disciplinas pertencentes s cincias humanas. As dimenses das transformaes podem ser percebidas em todos os mbitos da realidade, porm o escopo desta anlise est sustentado eminentemente nas contribuies provindas da histria, economia, sociologia e a cincia poltica. No pretendemos empreender uma anlise exaustiva das elaboraes em torno da compreenso macroestrutural da insero da Amrica Latina no cenrio internacional, nem reescrever a histria, mas buscamos retomar o fio histrico das elaboraes crticas desta relao subalterna a partir da tica da Sociologia Cr-tica adotando o arcabouo do materialismo histrico. Deste modo, procuramos reexaminar a literatura existente com foco no processo decisrio, visando expor as contradies internas da atual democracia representativa nos pases latinos da Amrica, no que tange aos termos da prpria deciso.

    Como toda anlise implica uma postura perante a realidade, torna-se necessria a expo-sio das categorias analticas que sero utilizadas como referncias. Neste captulo, aborda-mos as relaes entre Estados desde a tica dos pases perifricos , hegemonia e dependn-cia, resgatando a vigncia e pertinncia destas categorias, j utilizadas em diversos estudos das cincias humanas e econmicas.

    Colonialismo e mercantilismo:

    primrdios da submisso e explorao latino-americana no sistema mundial

    [...] o sistema colonial do mercantilismo que d sentido colonizao europeia no perodo que medeia entre os descobrimentos martimos e a Revoluo Industrial (NOVAIS, 1993, p. 14).

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    A relao de dependncia dos pases da Amrica Latina com os pases hegemnicos7 sustentada nos ltimos cinco sculos se apresenta com diversos matizes. Essa situao se refle-te nas vrias modalidades histricas da diviso internacional do trabalho, construda a ferro e fogo, na perspectiva da distribuio desigual da riqueza. O continente americano, desde a sua insero no sistema mundial, amargou relaes de submisso com os pases europeus e, pos-teriormente, tambm com outros pases hegemnicos da economia mundial (FERNANDES, 1981a; IANNI, 1974; 2004).

    A primeira relao que o continente americano experimentou com os pases europeus foi de explorao e opresso, atravs da apropriao das riquezas e da tentativa, nada amigvel, de catequizao dos infiis habitantes destas terras. Alis, foi precisamente a grande extenso de terras, agora disponveis, que alimentou a cobia dos conquistadores que, j em pleno mercantilismo, vislumbraram a macia explorao mineira e aucareira na Amrica Latina. A colonizao deste Novo Mundo se traduzia em progresso para a metrpole, pelo expressivo aumento na circulao de mercadorias, o qual, sem dvida, representava um agente moderni-zador para a rede comercial europeia nos sculos XVI, XVII e XVIII. No longo perodo que se estende da agonia do feudalismo irrupo da Revoluo Industrial a economia colonial significou o efeito e estmulo dos mercados metropolitanos (BOSI, 1992, p. 20).

    A despeito da diversidade e especificidades que caracterizaram as relaes das econo-mias centrais europeias com as colnias perifricas, indispensvel resgatar as linhas mestras.

    As colnias devem: primeiro dar metrpole um maior mercado para os seus produtos; segundo, dar ocupao a um maior nmero dos seus (da metrpole) manufatureiros, artesos e marinheiros; terceiro, fornecer-lhe uma maior quantidade dos artigos de que precisa (POSTLETHWAYT apud NOVAIS, 1993, p. 16).

    A poltica econmica dos pases centrais, na Europa, visava ao constante aumento da sua riqueza nacional, que se manifestava atravs de uma balana comercial favorvel, com medidas tarifrias protecionistas, aliada ao fomento da produo de bens nas colnias que lhes

    7 O conceito de hegemonia ser apresentado nas elaboraes do prximo ponto.

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    permitissem uma concorrncia vantajosa com as outras naes. A exportao dos excedentes de produo que inicialmente foram ocasionais e posteriormente se alaram como principal objetivo era estimulada pelo Estado atravs de diversos mecanismos restritivos do mercado interno, incentivando o aumento demogrfico e, posteriormente, promovendo a regulao do mercado de trabalho, visando sempre lucratividade (NOVAIS, 1993; IANNI 1974). Na diviso internacional do trabalho e da riqueza no perodo aqui analisado, as colnias se erguem como retaguarda econmica da metrpole, garantindo a suficincia de suprimentos, matrias primas e minrios.

    O mecanismo comercial fundamental em que se baseava o sistema colonial era o ex-clusivo ou pacto colonial de comrcio, que consistia em que cada metrpole reservava-se o monoplio de comrcio de suas colnias, sendo que estas ltimas tinham por sua vez garantido o mercado metropolitano e o apoio naval da potncia colonizadora (CARDOSO; BRIGNOLI, 1983, p. 72). Assim, o usufruto do monoplio na compra dos produtos coloniais rendia aos colonizadores lucros considerveis na compra e na venda, realizando transferncia de renda real das colnias para a metrpole, para as mos da camada empresria, relacionada ao comrcio ultramarino. O caminho inverso, a venda de produtos provindos dos pases euro-peus nas colnias tambm rendia a essa elite econmica lucros altos, pois podiam fixar o preo que lhes convinha, fortalecendo o processo de acumulao primitiva pelos empresrios dos pa-ses centrais. Mais uma vez necessrio apontar a diversidade e as particularidades conjunturais que decorrem no extenso perodo analisado que, no tocante s transaes mercantis, apresenta diversos mecanismos associados. interessante mencionar a restrio frequente de comercia-lizao por parte de embarcaes estrangeiras, manifesta na profcua legislao colonial, assim como a recorrncia da utilizao do contrabando e do corso como mecanismos de uma relao competitiva pela apropriao dos lucros provindos do comrcio mercantil. Outra modalidade de explorao colonial consistia na negociao de concesses e licenas, que permitiam aos mercadores estrangeiros a possibilidade legtima de lucrar com o comrcio colonial.

    O projeto colonizador no mbito econmico se confunde com as caractersticas pol-ticas do absolutismo vigente no perodo. fundamental frisar que abordamos um momento de longa e intensa transio, pois a vida econmica transcorre entre a gradativa dissoluo da estrutura feudal e a consolidao da produo capitalista, configurando-se no que foi conve-

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    niado denominar como capitalismo mercantil8. Ainda que a cautela seja necessria por se tratar de um perodo transicional, possvel afirmar, esquematicamente, que as relaes polticas se resumem a um centro europeu, onde se elaboram as decises, s quais as colnias, em diversos continentes do globo, so subordinadas. Assim, [...] uma combinao de estamentos e castas produziu uma autntica sociedade colonial, na qual apenas os colonizadores eram capazes de participar das estruturas existentes de poder e de transmitir posio social atravs da linhagem europeia (FERNANDES, 1981a, p. 13).

    A mirade de tenses sociais, polticas e econmicas associadas ao fortalecimento da poltica mercantilista no cenrio internacional entre os sculos XVI e XVIII se relacionam com o fortalecimento de um poder estatal centralizado e economicamente intervencionista.

    [...] o estado moderno ps em execuo com maior ou menor intensidade, variando no tempo e no espao, com xitos ou frustraes ao longo de sua existncia, a poltica eco-nmica mercantilista, que preconizava, simultaneamente, a abolio das aduanas internas e consequente integrao do mercado nacional, tarifas externas rigidamente protecionis-tas para promover uma balana favorvel do comrcio e consequente ingresso do builln, colnias para complementar e autonomizar a economia metropolitana (NOVAIS, 1993, p. 26).

    A relao de submisso em mbito macroestrutural se desdobra no plano estritamente poltico nas designaes de mandatrios e no desenho vertical das decises endereadas aos pases colonizados. A partir da descrio do Brasil-Colnia, elaborada por Bosi (1992), poss-vel destacar aspectos de dominao caractersticos nas relaes polticas e econmicas vigentes no perodo9: a estrutura poltica enfeixa os interesses dos senhores rurais sob uma administra-o exercida pelos proprietrios; as juntas se compem de funcionrios reais [...] a sua ao controlada em Lisboa; de 1696 em diante, at as cmaras municipais sofrero interferncia

    8 Com relao a estas expresses da relao colonial, interessante observar elaboraes detalhadas em Car-doso; Brignoli (1983), em particular o captulo 2.9 Para informaes mais detalhadas do funcionamento e dos critrios para usufruir e desempenhar cargos no Perodo Colonial brasileiro, assim como para aprofundar a compreenso da estrutura administrativa, ver Schwartz (1979), em especial os captulos 7, 8, 11 e 12.

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    da metrpole que nomear os juzes de fora se sobrepondo a instituio dos juzes eleitos nas suas vilas (BOSI, 1992, p. 24).

    A total intromisso nas decises e cargos de exerccio de poder nas colnias foram as justificativas que as ascendentes oligarquias esgrimiram perante a centralizao crescente da Coroa, constituindo-se em um dos fatores de crise do sistema poltico desde fins do sculo XVIII. Outro elemento importante reside na luta pelo controle das colnias latino-americanas entre os pases europeus, particularmente entre Holanda, Frana e Inglaterra. Estes dois as-pectos so apontados por Fernandes (1981a) como referencias que marcaram, na sua periodi-zao, o fim do primeiro tipo de dominao externa.

    Em sntese, pode-se dizer que a formao colonial no Brasil vinculou-se: economica-mente, aos interesses dos mercadores de escravos, de acar, de ouro; e, politicamente, ao absolutismo reinol e ao mandonismo rural, que engendrou um estilo de convivncia patriarcal e estamental entre os poderosos, escravista ou dependente entre os subalternos (BOSI, 1992).

    Durante o colonialismo, que compreende o perodo em que o continente americano foi ocupado pelos europeus at o sculo XIX com diferenas temporais de cada pas no trmino desta relao , a Coroa comandava o processo decisrio, escolhia diretamente os funcion-rios para executar suas ordens e determinava as regras econmicas s quais os habitantes das colnias deviam se submeter. As polticas eram implantadas a despeito do anseio e da coni-vncia destes, isto , atravs do consenso ou da violncia. Pode-se afirmar que o substrato da colonizao moderna de natureza eminentemente comercial, pois se baseava na produo para o mercado externo, em particular europeu, que se configurava como uma economia com-plementar que fornecia produtos tropicais e metais preciosos (NOVAIS, 1993).

    O sistema colonial consolidou dois setores bsicos na produo de mercadorias: um setor exportador, voltado para o consumo europeu; e outro de subsistncia, relacionado ao incipiente mercado interno. O primeiro imprimia a dinmica sistmica, configurando uma economia dependente do influxo externo. Essa estrutura conferia uma intensa concentrao de renda para a burguesia europeia, ainda que os colonos senhoriais detivessem uma vida pomposa de ostentao.

    Encarada de conjunto, a sociedade colonial espoliada pela burguesia metropolitana, mas nessa mesma sociedade colonial a camada de colonos-senhores situa-se numa posio

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    privilegiada, o que permite a articulao das vrias peas do sistema. E o escravismo, que o reverso da medalha, reaparece como seu elemento essencial: mais uma vez, agora sob novo ngulo, explorao colonial significa explorao do trabalho escravo (NOVAIS, 1993, p. 94, grifos no original).

    Digno de lembrar o fato de que esta relao, decorrente da diviso social em classes, mais uma expresso da violncia que o Imprio exercia sobre a colnia, atravs da escra-vizao, tanto dos aborgines10 quanto dos negros trazidos involuntariamente aos milhes. Essas formas compulsrias de trabalho, caractersticas do sistema colonial, eram adequadas acumulao primitiva do capital na medida em que era necessrio produzir para o mercado europeu com a maior margem de lucratividade, para o qual o assalariamento se tornava invi-vel. A escravatura moderna colonial pode ser mais bem apreendida ao considerarmos o trfico negreiro um importante setor do comrcio colonial (NOVAIS, 1993, p. 84-9).

    [...] a escravido moderna , em sua essncia, uma escravido mercantil: o escravo no s constitui uma mercadoria; a principal mercadoria de uma vasta rede de negcios (que vai da captura e do trfico ao mercado de escravos e forma de trabalho), a qual conta, durante muito tempo, como um dos nervos ou a mola mestra da acumulao do capital mercantil (FERNANDES, 1976, p. 230).

    Ento, os pases coloniais complementam as economias nacionais europeias, conferin-do-lhes mais autonomia e contribuindo para sua competitividade no mercado internacional

    10 O Frei Bartolom de las Casas, em sua Brevsima relacin de la destruccin de las ndias (1552), estima em 15 milhes o nmero de ndios mortos entre 1492 e 1542; em outro registro referente a um perodo menor, no Haiti, onde inicialmente contava-se 1,1 milho de pessoas, em 1507 a populao no excede os 60 mil (FERRO, 2004). Os clculos relacionados com o nmero de aborgines que habitavam nestas terras so ainda controversos por exemplo, em torno do seu nmero no norte de Amrica, instituies oficiais afirmam a existncia de uma populao inicial de aproximadamente meio milho de pessoas, outras estimativas acad-micas mais recentes apontam nmeros em torno de 10 milhes. Mas, para alm dos clculos preocupados com a dimenso do genocdio do descobrimento, o extermnio dos indgenas continua: hoje, o ndice de pobreza nas reservas indgenas quatro vezes superior mdia nacional (NDIAYE, 2004, p.77), referindo-se realidade estadunidense e canadense. Para mais informaes e anlises sobre esta temtica, recorrer, entre outros, a Ferro (2004), particularmente na sua Parte I O Extermnio.

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    concentrando renda na camada empresarial ligada ao comrcio ultramarinho , ao mesmo tempo em que se incorporam como importante elo para a acumulao originria do capital, na senda para a formao do capitalismo (FERNANDES, 1976). Chega-se assim ao ncleo di-nmico do sistema, pois enquanto atinge o seu pleno funcionamento, cria as condies de sua crise e desnuda os elementos para sua superao, ao mesmo tempo em que [...] era da prpria lgica do sistema de explorao colonial do Antigo Regime que as potncias mercantilistas competissem furiosamente na rbita do Ultramar; tal competio s se resolvia, enfim, com a hegemonia de uma delas (NOVAIS, 1993, p. 104). O sentido essencial do sistema colonial deve ser compreendido segundo elemento constitutivo no processo de formao do capita-lismo moderno (Idem, p. 33), isto , eminentemente comercial e abertamente capitalista. J Cardoso e Brignoli (1983) salientam que a economia da metade do sculo XV at a metade do sculo XVIII eminentemente pr-capitalista, ao mesmo tempo em que vincula a heterogenei-dade das sociedades coloniais de acordo com as caractersticas das potncias metropolitanas ao grau de insero no mercado mundial, ao tipo de produo, s caractersticas da mo de obra e ao carter da colonizao.

    A Revoluo Industrial pode ser considerada um referencial para se compreender o percurso das transformaes no mbito da produo que se inicia no sistema estamental feu-dal com a comercializao ocasional de excedentes, numa fase pr-mercantil, levando a uma dedicao exclusiva de um setor da sociedade para a exportao dos produtos. Dito processo econmico, de forma abrangente, abarca a acumulao do capital comercial, a diviso social do trabalho, a mercantilizao dos bens econmicos e a especializao da produo. A configura-o da dominao colonial se fundamenta no fortalecimento de um estado integrador como gerente das polticas mercantilistas nas colnias ultramarinas, sendo o pioneiro da acumulao primitiva de capitais. As economias coloniais se transformaram em produtoras especializadas de mercadorias para o mercado europeu, tornando-se uma alavanca importante para supera-o das dificuldades que as economias dos pases centrais possuam na busca de um cresci-mento econmico sustentado, erguendo-se como vital estmulo para a originria acumulao burguesa nas economias europeias.

    No complexo interregno em que transita o enfraquecimento das leis coloniais, constri--se a independncia poltica dos pases latino-americanos dos seus respectivos imprios. Re-

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    ferencialmente, essa transio se inicia com a independncia dos EUA, em 1776; as guerras que envolveram as disputas polticas e econmicas dos pases europeus, entre 1792-1815, e a Revoluo Industrial na Gr Bretanha como corolrio da Revoluo Francesa, em 1789. De acordo com Marini (2000, p. 106), a revoluo industrial [...] corresponde na Amrica Latina independncia poltica, que na primeira metade do sculo XIX, a partir da estrutura social e institucional, passam a orbitar em torno da Inglaterra, ainda em condio subordinada.

    A transio da relao colonial para o capitalismo perifrico completa-se em fins do sculo XIX, processo variado e complexo que se estende pelo sculo, configurando-se como uma nova ordem colonial. De acordo com Cardoso; Brignoli (1983, p. 138), estas transforma-es se efetuaram atravs de trs processos bsicos: abolio da escravido, a reforma liberal e a colonizao das reas vazias.

    Os processos abolicionistas se deram ao longo de vrias dcadas, sendo que nas co-lnias britnicas, francesas e holandesas foram decorrentes de imposies metropolitanas; o Haiti, imerso numa complexa conjuntura local e internacional, construiu uma nova nao ne-gra decorrente da revolta de escravos e quilombolas; j os casos brasileiros e cubanos vivencia-ram um longo processo abolicionista vinculado s presses externas e s correlaes internas de classes associadas produo agrcola. Interessa ressaltar que o fim da escravatura no foi imediatamente sucedido por um predomnio do trabalho assalariado, mas de novas formas de limitaes efetivas da liberdade e profunda dependncia pessoal, que se estenderam tambm para os imigrantes.

    A consolidao dos estados nacionais se vincula ao processo poltico da reforma liberal, que opera a passagem para o capitalismo dependente. Na base desta transio, encontra-se a constituio de um mercado de terras caracterizado por uma trajetria de apropriao predominantemente violenta , pois a mudana na estrutura agrria visava formao de um mercado funcional s necessidades da economia de exportao. Nesse percurso, a Igreja perde grande parte da sua fortuna territorial, estabelece-se uma luta pelo fim das propriedades comu-nais de resultado heterogneo, conforme o pas e regio a se considerar , e as classes domi-nantes pugnam pela construo de um arcabouo jurdico e fiscal que valorize a propriedade privada (CARDOSO; BRIGNOLI, 1983, p. 160-91). importante frisar que a pretendida

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    importao dos ideais e valores liberais pelos territrios ibero-americanos, historicamente, traduziu-se em mera semelhana formal dos seus modelos, europeu ou estadunidense.

    Papel dominante na economia exportadora desempenhou a ocupao das reas vazias, pois a caracterstica extensiva da produo agrria demandara cada vez mais terra, usufruda sob o instituto da propriedade privada. A desigual utilizao do solo na produo inclusive relacionada sua disponibilidade material poderia ser vinculada como indicador da pujana econmica dos pases, destacando-se significativamente as plancies do Rio da Prata e o pla-nalto de So Paulo.

    A persistncia das relaes de dominao no cenrio internacional na primeira metade do sculo XIX configurou, para algumas das naes de independncia recente, uma simples transferncia da relao colonial. As trajetrias de consolidao poltica e incorporao no mercado mundial foram obstrudas para alguns pases, particularmente os da Amrica Central: Porto Rico passou de uma situao colonial, sob domnio espanhol, para os EUA; j Nicar-gua, Repblica Dominicana, Honduras, Panam e Haiti sofreram intervenes norte-america-nas de diversas intensidades. Paraguai foi dizimado, sendo o seu retrocesso econmico e social cristalizado aps a Guerra da Trplice Aliana (IANNI, 1974).

    Concebe-se, na teoria tradicional da revoluo burguesa, que o papel de uma classe do-minante, ou fraes desta, na construo dos Estados nacionais latino-americanos, deveria se materializar na habilidade em organizar uma economia que conseguisse se adaptar s crescen-tes demandas que o mercado mundial fazia dos seus produtos agropecurios. Evidentemente, isto significa que tenha conseguido romper a resistncia das estruturas, interesses e atitudes herdadas do perodo colonial, ou foi capaz de controlar um processo de povoamento e ocupa-o agrcola de uma regio vazia (CARDOSO; BRIGNOLI, 1983, p. 217). Outros elementos associados organizao do Estado so as delimitaes geogrficas e a consagrao de smbo-los (bandeiras, escudos, hinos), que se tornam referencial comum queles que se identificam com os valores nacionais. No terceiro quartel do sculo XIX, o comrcio dos pases latino--americanos apresenta um surto expansionista, que coincide com a acelerao dos processos de reorganizao interna das economias nacionais, ao mesmo tempo em que, nas conjunturas moderadas, como as do quartel subsequente ao mencionado, a expanso tambm arrefece. A essa vinculao profunda das economias exportadoras latino-americanas ao sistema mundial

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    hegemonizado pelos pases industrializados, Donghi (1971) denomina de ordem neocolonial. Fernandes (1981a) tambm designa o perodo em fito da mesma forma, considerando-o seu segundo tipo de dominao externa, qualificada como uma dominao indireta no vcuo da desagregao do antigo sistema colonial, em que os pases possuam apenas o controle dos processos econmicos.

    Para uma melhor compreenso da insero dependente ou limitada, conforme Car-doso e Brignoli (1983), devem ser consideradas a estrutura e a dinmica das classes sociais vigentes no sculo XIX, erguidas a partir da apropriao individual da terra e de um sistema de extrao do excedente. Essa relao, segundo Marini (2000), permite a transferncia do ex-cedente obtido nos pases latino-americanos para a metrpole, nas primeiras dcadas daquele, atravs do intercmbio desigual de mercadorias produzindo e exportando bens primrios, em troca de manufaturas de consumo e emprstimos. J na segunda metade do mesmo scu-lo, quando a balana comercial comea a se tornar favorvel aos pases da Amrica Latina, a transferncia do excedente de produo se realiza atravs do mecanismo decorrente da dvida externa11. Um terceiro padro de dominao externa, conforme Fernandes (1981a) consolida--se a partir da quarta dcada, vinculada Revoluo Industrial na Europa.

    No segundo e terceiro quartel do sculo XX, os pases latino-americanos usufruram um perodo de certa autonomia poltica, permitindo-se ensaiar traos de polticas nacionalistas e, em alguns casos, construindo uma burguesia nacional. Esse perodo baliza, para Fernandes (1981a), o incio de um quarto padro de dominao externa, caracterizado pela expanso das grandes empresas corporativas nos pases da regio (isto significa a sua insero no sistema imperialista do capital). Em certos momentos, essa burguesia nacional enseja estratgias de enfrentamento com o capital internacional, chegando a construir barreiras alfandegrias que protegeram as indstrias nacionais. No perodo de 1955-1970, no Brasil, a participao da indstria no Produto Interno Bruto (PIB) saltou de 19% para 30%, como parte de uma estra-tgia que pretendia consolidar um regime de substituio de importaes. Nesta conjuntura

    11 Na mesma obra, Marini (2000) revela dados interessantes para compreender este mecanismo de transfe-rncia de riquezas da periferia para o centro. Schwartz (1979) tambm faz meno ao carter histrico desse estratagema de transferncia de riquezas dos pases perifricos para os do centro.

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    protecionista da economia brasileira, na qual o Estado implantou uma poltica restricionista regulando ou at abolindo as importaes que compitam com as empresas sediadas no pas , criaram-se melhores condies para o desenvolvimento da indstria nacional, promoven-do importantes mudanas na estrutura da economia brasileira (FURTADO, 2000; MARINI, 2000).

    A configurao das relaes dos pases latino-americanos no cenrio internacional do sculo XX em diante sero abordadas a posteriori, sendo que importante destacar que a hege-monia dos pases, inicialmente europeia e posteriormente estadunidense, percorre a histria da nossa rica terra, com a conivncia, implcita ou declarada, das classes dominantes tupiniquins.

    Hegemonia e dependncia no sistema mundial

    Os debates em torno das razes e as diversas formas que assumiram as relaes de do-minao entre os pases remontam a pocas longnquas e trazem tona diversos pensadores da economia, cincia poltica, sociologia e das relaes internacionais, para mencionar algumas reas de conhecimento.

    Sem necessariamente discutirmos a distribuio mundial do poder nos diferentes mo-mentos da histria, podemos afirmar que est relacionada diretamente com as perspectivas de concentrao de renda e poder que a dinmica da luta de classes tem modelado. J Ferdinand Braudel, em finais da dcada de 80, no mbito do debate sobre a possibilidade, pouco provvel, de que os EUA estivessem deixando de cumprir um papel hegemnico no cenrio mundial, afirmava que o mundo no pode viver sem um centro de gravidade (apud FIORI, 2001, p. 11). Torna-se realmente uma constatao, em particular numa sociedade pautada pela apro-priao individual da produo social, compreender que, para sustentar as relaes, deva-se construir um arcabouo de ideias que legitimem e de preferncia naturalizem a distribuio desigual da riqueza e, quando essas ideias no mais convenam, a posse de um brao armado que permita, pelo uso da fora, sustentar a dita relao12.

    12 O pensador florentino Maquiavel, em sua clssica obra poltica O Prncipe, do incio do sculo XVI, j acon-selhava tticas semelhantes aos prncipes que quisessem conquistar e/ou se manter no poder.

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    Acerca desta relao no cenrio internacional, urge enfatizar que

    [...] o mundo nunca esteve entregue de forma mais incontestvel ao arbtrio de uma s potncia hegemnica que estivesse to radicalmente orientada pelo seu commitment liberal, e pelo objetivo de construir e sustentar uma ordem internacional baseada em conjunto de regimes e instituies regionais e globais consagradas pela aceitao coletiva, no capo do desarmamento como no do comrcio e dos investimentos (FIORI, 1999, p. 71).

    precisamente neste sentido que se concebe como hegemonia no sistema mundial o fato de que existe s uma potncia com condies geopolticas para impor uma concatena-o estvel da distribuio social do poder (WALLERSTEIN, 2002, p. 34). O mesmo autor enfatiza ainda que os perodos de exerccio de verdadeira hegemonia no sentido da existncia de paz como ausncia de luta militar entre grandes potncias so escassos13. Ao mesmo tempo, esses perodos esto relacionados construo de certa legitimidade, isto , um con-sentimento passivo dos principais protagonistas polticos, assim como tambm implicam a fcil aceitao dos rumos apontados pela potncia hegemnica.

    A hegemonia, portanto, mais do que a dominao pura e simples, e diferente dela: o poder adicional que compete a um grupo dominante, em virtude de sua capacidade de conduzir a sociedade em uma direo que no apenas atende aos interesses desse grupo dominante, mas tambm percebida pelos grupos subalternos como servindo a um in-teresse mais geral (ARRIGHI; SILVER, 2001, p. 36).

    Por sua vez, os autores citados concebem que a dominao se sustenta na coero, no uso da fora militar; ao passo que a hegemonia seria uma dominao consensual, susten-tadas atravs de mecanismos institucionais que mantm pacificamente a legitimidade do poder. Essa perspectiva tende a cindir o exerccio do poder em mbito internacional, numa

    13 As elaboraes de Lenin (1986) em torno das caractersticas inerentes ao exerccio da relao imperialista conduzem s mesmas concepes quando afirma que Las alianzas pacficas preparan las guerras y a su vez surgen de las guerras condicionndose mutuamente, engendrando una sucesin de formas de lucha pacfica y no pacfica sobre una misma base de vnculos imperialistas y de relaciones recprocas entre la economa y las polticas mundiales (p. 152).

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    perspectiva no violenta, que seria o exerccio hegemnico; e uma violenta, relacionada do-minao militar.

    Neste trabalho a referncia conceitual est sustentada a partir de uma reelaborao, mais precisamente de uma transposio, do conceito gramsciano de hegemonia, realizada por Fausto (2002/2003) para o plano das relaes internacionais. A hegemonia, desta forma, um composto de consenso e coero, sendo que uma no prescinde da outra e, por sua vez, uma consolida dialeticamente a outra, pois, o componente da fora tende a sobrepujar o consenso, mas no a ignorar este ltimo (Idem, p. 46). Para compreendermos essa realidade no sistema mundial, necessrio considerarmos que o consenso entendido pela vigncia dos impe-rativos de mercado que, tambm frequentemente, expressam-se em modalidades poltico--jurdicas e a coero se configura explicitamente no recurso aos meios extraeconmicos de dominao, isto , a utilizao explcita do brao armado com vistas a impor, a manter ou a restabelecer uma ordem hierrquica no campo internacional.

    A discusso contempornea sobre a hegemonia econmica e a estrutura da poltica mundial se estabelece fortemente da dcada de 1980. Em particular, tornou-se um debate obrigatrio nas universidades dos EUA e dos intelectuais anglo-saxes na procura de uma explicao para a crise do dlar e para a derrota americana no Vietn14. A crise econmica dos anos 70 e 80 do sculo passado, assim como os novos arranjos geopolticos internacionais, traziam a apreenso de um retorno ao fascismo e eventual possibilidade de uma guerra de considerveis dimenses, nos moldes da Segunda Grande Guerra. Por isso, a partir dos polos dominantes, as preocupaes dos estudos gravitam em torno do ciclo de vida e da identifica-o de aspectos e caractersticas que permitam construir cadncias, visando conhecer as de-corrncias futuras da hegemonia estadunidense ou da sua eventual decadncia (FIORI, 2001, pp. 9-10). Inevitavelmente, subjacente a esta preocupao, mais acadmica, uma considervel parcela dos intelectuais estadunidenses refletiu, nas suas discusses sobre a hegemonia, a agen-da da poltica externa norte-americana, norteada por uma leitura de vitria na Guerra Fria. Simultaneamente, do lado do bloco comunista, a partir da adoo pelo Partido Comunista da Unio Sovitica (PCUS) de uma poltica que defendia no ser mais necessrio internacionalizar

    14 A este tipo de abordagem Robert Cox (apud FIORI, 2001) denomina problem solver system.

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    a luta pelo fim da propriedade privada, propondo a tese do socialismo num s pas, o cerne da anlise se concentrava nos refinamentos da poltica de no agresso como corolrio do que foi conhecido como Guerra Fria, aliados ao crescente endividamento financeiro destes pases15.

    Na senda deste nosso prisma analtico, importante destacar os apontamentos de Wal-lerstein (2002), que considera a URSS uma potncia subimperialista dos Estados Unidos porque ela cumpria a funo de garantir a ordem e a estabilidade dentro de uma zona em condies que, na verdade, ajudavam a permitir a manuteno da hegemonia mundial norte--americana (p. 22).

    Efetivamente, no Terceiro Mundo, a poltica dos comunistas continuou sendo a quin-ta coluna de sustentao da hegemonia dos EUA (Ibid, p. 22-3). A partir da negao, desde os anos 1930, de estender a revoluo para outros pases, a bipolaridade no sistema mundial torna-se aparente. Para se compreender a diferena com a concepo de Wallerstein (2002), necessrio esclarecer elementos mnimos sobre as posies polticas e econmicas do bloco comunista, particularmente da Unio de Repblicas Socialistas Soviticas (URSS), num per-odo histrico decisivo na consolidao da hegemonia estadunidense: a Segunda Guerra Mun-dial. Um exemplo mundialmente conhecido o pacto de no agresso que Stlin estabelece com Hitler, o que este ltimo no respeita, ao ordenar a invaso da Rssia, desde a posio que tinham tomado na Polnia e que fora derrotada pela imensa organizao popular. Pos-teriormente, nos pactos que pem fim a essa Guerra, os Acordos de Yalta e Postdam, Stlin participa da partilha pacfica com os EUA das reas de influncia a que cada pas teria direito. Esta diviso do mundo, mais clara no Continente Europeu, baseia-se no compromisso de no permitir novas revolues imagem da bolchevique, na Rssia de 1917. O desdobramento dessa poltica no mbito dos partidos comunistas se manifesta na ruptura da independncia de classes princpio poltico da prxis decorrente do arcabouo do materialismo histrico , atravs da ttica generalizada de construir frentes populares pelo mundo afora. Esta con-cepo poltica conhecida como a perspectiva da revoluo por etapas, que se fundamenta

    15 O ponto de chegada dessa poltica pode ser observado, dentre outros elementos significativos, nas medidas polticas e econmicas que fizeram parte do conjunto de medidas que conformaram a Glasnost e a Perestroi-ka, implementadas por Mikail Gorbachov, no ocaso da Unio de Repblicas Socialistas Soviticas (URSS).

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    na necessidade de realizar transformaes sociais e polticas que a burguesia no mais estaria disposta a implantar atravs da aliana do proletariado com os setores das classes dominantes considerados progressistas (MORENO, 2003). Em ltima instncia, isto uma variante distorcida e parcial das teorias modernizadoras ou desenvolvimentistas que propunham re-alizar as reformas proteladas pela revoluo burguesa (reforma agrria, industrializao, pleno emprego, entre outras). Esta poltica, no decorrer do terceiro quartel do sculo XX, levou a diluir as possibilidades de confronto real por parte da classe explorada com a institucionalidade e as bases econmicas do sistema capitalista por todo o globo.

    No final dos anos de 1990 acontece um evento decisivo no cenrio internacional, que reacendeu os debates: a queda do Muro de Berlim e o fim da Unio Sovitica. Estes se er-gueram em principal preocupao da conservao hegemnica, como interrogantes sobre as perspectivas de reconfigurao na distribuio da riqueza e poder mundial. Os arautos da ordem vigente continuaram concentrando seus esforos intelectuais na teoria da estabilidade hegemnica, enquanto outros analistas procuraram desvendar os pilares que sustentam a do-minao econmica e poltica do atual hegemon, visando ao seu declnio e/ou compreender as possibilidades de sua futura destruio.

    Apontamentos do debate sobre o sistema mundial

    As evidncias sobre as mudanas considerveis que tomaram conta do cenrio inter-nacional desde o ltimo quartel do sculo XX no se erguem como polmica, mesmo porque esto presentes em grande parte da literatura que discute as tendncias globais da economia e da sociedade. As intensas discusses gravitam em torno das causas, as hierarquias conceituais que permitem construir uma explicao coerente para a atual realidade, assim como na elabo-rao de cenrios prospectivos sobre as tendncias predominantes que a presente correlao de foras das classes sociais em pugna aponta.

    Nessa arena de rduas contendas sobre o tema, dois autores se destacam nos ltimos anos, internacionalmente, na tentativa de compreenso das perspectivas de transio da hege-monia dos EUA: Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi, ambos embasados nas teses brau-delianas. Este ltimo afirma que o ciclo longo de acumulao e hegemonia norte-americano

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    teria entrado, em 1970, em crise terminal de durao imprevisvel (FIORI, 2001, p. 11), sendo que esta fase seria parte de uma crise secular na dinmica do capitalismo, assinalado por um estgio final de intensificao na acumulao financeira da riqueza.

    Wallerstein (2002) considera que no capitalismo j aconteceram trs ciclos de exerccio hegemnico: o primeiro, no sculo XVII, com a hegemonia holandesa; o segundo, no sculo XVII e XIX, com a hegemonia britnica; e o atual, que se inicia em meados do sculo XX, a hegemonia dos EUA. Em sua concepo, a mudana acontece pautada pela combinao dos ciclos de Kondratieff16 e os hegemnicos, sendo que

    Os ciclos de Kondratieff tm durao aproximada de cinquenta a sessenta anos. Suas fases A so basicamente o espao de tempo em que se podem proteger determinados monoplios econmicos importantes; as fases B so os perodos de relocalizao geogr-fica da produo cujos monoplios se exauriram, bem como o perodo de disputa pelo controle de outros monoplios (WALLERSTEIN, 2002, p. 36).

    As outras estruturas recorrentes, os ciclos hegemnicos, relacionam-se com a disputa entre dois pases importantes que aspiram sucesso da anterior potncia hegemnica, con-vertendo-se no centro principal da acumulao de capital (Ibidem). Esses perodos consistem em processos mais longos, ao mesmo tempo em que esto associados s possibilidades da transio hegemnica com a necessidade de possuir fora militar e os recursos financeiros para sustent-la suficiente para enfrentar uma longa e dura guerra.

    Para Wallerstein (2002) a crise atual de acordo com a concepo de que todos os sistemas esto determinados por cadncias cclicas visando restabelecer um equilbrio mnimo apresenta todos os aspectos sintomticos de uma crise capitalista normal ou de uma fase B dos ciclos de Kondratieff, isto , uma desacelerao do crescimento da produo e declnio

    16 O economista russo Kondratieff realizou contribuies aos estudos de Marx sobre os ciclos capitalistas. Os estudos deste ltimo sobre o movimento de acumulao do capital o levaram a concluir sobre a existncia de perodos intercalados de expanso e crise econmica (tambm conhecidos como ondas de Kondratieff). Segundo o seu esquema, os ciclos de crise apareceriam aproximadamente a cada 10 anos, j Kondratieff concluiu que, alm dos ciclos curtos, haveria ciclos longos de crise e recuperao econmica com durao aproximada de 50 anos.

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    da produo mundial per capita; crescimento da taxa de desemprego; um agudo processo de financeirizao ou uma transferncia relativa dos lucros da atividade produtiva para ganhos derivados das manipulaes financeiras; o aumento do endividamento do Estado; o desloca-mento de indstrias velhas para regies de salrios mais baixos; um crescimento dos gastos militares, no de natureza estritamente militar, mas com o objetivo de sustentar a demanda anticclica; o decrscimo no salrio real da economia formal, assim como o aumento da eco-nomia informal; o declnio da produo de alimentos popularmente acessveis; e crescentes impedimentos sociais e jurdicos migrao.

    O autor assinala tambm que, alm dos ciclos rtmicos, os sistemas histricos apresen-tam tendncias seculares que exacerbam as suas contradies internas, pois, em determinado momento essas contradies se tornam to agudas que provocam flutuaes cada vez maiores. Isto implica o princpio do caos, que se bifurca em dimenses imprevisveis, levando ao surgimento de uma nova ordem sistmica, ou seja, a configurao de uma nova ordem hege-mnica. Para Wallerstein (1999; 2002) a questo central a ser analisada est relacionada com a configurao futura que aponta o sistema mundo atual; isto , investigar se a economia inter-nacional capitalista j ingressou ou est ingressando numa poca de caos.

    No outro veio analtico este autor, isto , para alm dos fenmenos sintomticos do in-cio de uma fase B dos ciclos de Kondratieff17, afirma que a crise iniciada nos anos 70 tambm apresenta indcios de uma crise de hegemonia. Nesta perspectiva, o fim da hegemonia norte--americana estaria perceptvel de acordo com os seguintes indicativos:

    [...] maior fora econmica de grandes potncias aliadas; instabilidade monetria; perda de autoridade nos mercados financeiros internacionais com a ascenso de novos centros de deciso; crises fiscais do pas hegemnico; enfraquecimento da polarizao e da tenso poltica mundial, que eram fontes de organizao e estabilidade (neste caso, a Guerra Fria); menor vontade popular de sacrificar vidas pela manuteno do poder hegemnico. (WALLERSTEIN, 2002, p. 37-38).

    17 Mandel (1982) descreve essa situao como uma onda larga, com tonalidade de estagnao.

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    Se ainda forem considerados a estagnao do desemprego em patamares muitos altos mundialmente, as baixas taxas de lucro, a persistente instabilidade financeira e o crescimento da mobilizao social por conta do aumento da carncia de solues que diminuam o fosso de desigualdade social, Wallerstein (2002) considera que o sistema mundial no se encontra numa situao catica, mas num momento crucial da fase B de Kondratieff.

    Perante a iminncia do fim de uma fase hegemnica do capital, ainda persiste a possi-bilidade de acontecer um renovado perodo expansivo da economia mundial, mas, segundo Wallerstein (2002), essa pretensa nova era de prosperidade tomando como referncia os ciclos anteriores no possuir o esplendor de prosperidade, legitimidade e paz do perodo 1945-67/73. Aponta o autor um cenrio pouco otimista, mesmo ante o hipottico surgimento de uma nova fase expansionista do ciclo de Kondratieff.

    Arrighi e Silver (2001) esboam uma crtica ao modelo de anlise da construo e tran-sio hegemnica de Wallerstein, pois afirmam que, ainda que as propriedades sistmicas ajam como foras coercitivas na escolha dos Estados que se tornaram hegemnicos, essa mesma tendncia est imersa numa ampla reorganizao do sistema e na mudana das suas proprieda-des, que s poder ser decidida no plano emprico-histrico.

    Esses autores se inserem no debate que focaliza a compreenso das perspectivas atuais de uma transio hegemnica e, se essa anlise se confirmar, apontam as possveis caracters-ticas predominantes que esse Estado assumir.

    A formao e expanso do sistema mundial moderno, portanto, so concebidas como seguindo no uma trajetria nica, estabelecida h quatrocentos ou quinhentos anos, mas passando por diversas mudanas para novos trilhos, instalados por complexos especficos de rgos governamentais e empresariais (ARRIGHI; SILVER, 2001, p. 31).

    A tese central da sua abordagem consiste em conceber que os perodos de exerccio de uma determinada hegemonia apresentam sinais expressos atravs de expanses sistmicas do comrcio e da produo, que, por sua vez, esto sustentados por pactos sociais entre grupos dominantes e subordinados (SILVER; SLATER, 2001, p. 161). Afirma que os perodos de exerccio de uma determinada hegemonia se caracterizam por um crculo virtuoso de refor-o entre paz social e expanso do comrcio e da produo. J os perodos de transio hege-

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    mnica so identificveis por uma intensificao da concorrncia entre naes e empresas no meio de conflitos sociais que conduzem s revoltas sistmicas, colapsos estatais e revolues isto , por uma intensa agitao social em mbito internacional.

    indispensvel considerar que, no decurso histrico dos exerccios hegemnicos, a abrangncia da influncia do poder do Estado lder tem aumentado de maneira sensvel. A esse fenmeno Arrighi e Silver (2001) denominam expanso sistmica. possvel, sucintamente, captar a abrangncia das transformaes, retomando as peculiaridades geogrficas de insero econmica do sistema colonial ainda vigente no incio do sculo XIX, com a integrao global desse poderio atualmente existente. A expanso sistmica desempenha um papel importante na explicao das caractersticas distintivas entre os anteriores perodos hegemnicos e o atual, pois as caractersticas do hegemon solapam as bases sociais das sucessivas hegemonias mundiais, ao mesmo tempo em que novos grupos e classes sociais crescem em tamanho e poder de ruptura.

    As anlises cclicas, como possvel inferir das elaboraes de Wallerstein (1998; 1999; 2000; 2002; 2003), no visam superao da realidade por conceber que a estrutura de poder recorrente, apresentando pequenas variaes no percurso. Tornar desejvel uma realidade que vise abolir as desigualdades sociais de distribuio das riquezas e do poder uma postura poltica que no reside nos anseios das grandes potncias ou grupos econmicos, mas, ao con-trrio, torna premente apontar caminhos para os sujeitos coletivos que clamam por melhores condies de vida.

    Ainda que possamos concordar com a adoo da definio historiogrfica central do capitalismo que dominou o sculo XIX necessrio apontar uma diferena fundamental em relao dinmica, no cclica e no padronizada, do decurso histrico, ante o qual se torna pertinente destacar a lei do desenvolvimento desigual e combinado (NOVACK, 1988). Perante uma perspectiva de anlise dialtica da realidade esto presentes no somente instituies e foras sociais que se encontram no centro do processo decisrio, seno tambm as que so seu objeto, sendo que estes ltimos possuem graus, conjunturalmente elevados, de ao poltica que podem interferir e at se contrapor s decises, mudando assim a realidade18.

    18 Para bem da verdade, o prprio Wallerstein (2002, pp. 53-4) concebe a necessidade de uma nova famlia

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    Um argumento contestvel de Wallerstein (2002) reside nas condies em que se daria a transio hegemnica, pois se partirmos da sua anlise de que estamos perante uma crise sis-tmica, duvidoso pensar que existam perspectivas em se erguer uma nova hegemonia; diante disso o que prima o caos (prevalece a padronizao cclica da explicao prospectiva ante a dinmica social subjacente).

    Outra tese bastante contraditria esgrimida pelo autor est em pressupor que a emer-gncia de uma nova fase expansiva do capital no eliminaria certos fenmenos caticos presentes na atual situao de crise. Desde o ponto de vista de uma explicao marxista das crises do capital, esse tipo de explicao no faz sentido, pois para se considerar uma nova expanso capitalista, deveria acontecer um aumento dos nveis de emprego e, decorrente disto, uma reduo das desigualdades, assim como um apaziguamento dos movimentos antissistema.

    As perspectivas dependentes e associadas de insero econmicae poltica dos pases latino-americanos no cenrio mundial

    Recorrentemente o debate em torno das polticas de insero soberana dos pases pe-rifricos toma conta da arena. Assim, esgrimam-se argumentos sobre as perspectivas de de-senvolvimento econmico e social destas sociedades, num cenrio rigidamente disciplinado e altamente interdependente. A abrangncia do percurso histrico e geogrfico em fito nos leva a combinar as anlises polticas com as econmicas, visando reunir as vrias configuraes em que a hegemonia dos pases centrais tem se manifestado, redefinindo, por sua vez, as relaes centro-periferia em escala mundial (FIORI, 2001; WOOD, 2003).

    de movimentos de oposio ao sistema como perspectiva de superar o status quo, mas ainda considera que talvez esses movimentos no apaream, no sobrevivam ou no sejam flexveis o bastante para superar as dificuldades. Mas no esse o foco das suas preocupaes analticas, ainda que as suas prospeces futuras para a transferncia hegemnica no reservem expectativas de melhoria nas condies de vida para a maioria da populao, que pugna por sobreviver na periferia do sistema mundo. possvel deduzir uma viso ctica deste autor perante as esperanas de superao da desigualdade social questes a serem aprofundadas no captulo V.

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    Anteriormente, abordamos de forma sucinta a insero da Amrica Latina no cenrio da colonizao ibrica, na qual examinamos as caractersticas de subordinao e explorao que os pases padeceram. Como abordado, a incorporao desses pases no desenvolvimento desigual do sistema mundial desde a sua fase mercantilista apresenta-se sob estrutura rigi-damente hierarquizada, vinculados atravs da deteriorao secular do intercmbio das suas mercadorias. Configura um sistema mundial que sempre se organiza em torno do seu centro cclico principal, sendo que em perodo recente, no sculo XIX, esse papel fora desempenha-do pela Inglaterra e, no XX, consolida-se a liderana dos EUA.

    A relao dos pases latino-americanos com o resto do globo tem se pautado pela sub-misso aos ditames dos pases hegemnicos nas diferentes conjunturas dos ltimos cinco s-culos. Essa relao, sem dvida, no foi construda sem resistncias nem confrontos, pois a relao colonial se consolidou dizimando milhes de autctones que habitavam estas terras, que enfrentaram as foras coloniais ao longo do espao e do tempo, pugnando pela sua so-brevivncia. No devemos esquecer o imenso contingente de negros que foram escravizados, sendo arrancados da frica e obrigados a ser a principal fora de trabalho nas fazendas de toda Amrica, mas que por diversas vezes manifestaram sua capacidade de organizao e con-fronto explorao colonial, apresentando o seu pice de organizao social alternativa nos quilombos (FERRO, 2004). Com essas breves menes, queremos enfatizar que a dominao das potncias hegemnicas enfrentou resistncias diversas para a construo dos seus dom-nios em nossas terras, mas, at o momento, foram insuficientes para reverter a conservao da assimetria do poder.

    Relacionada com uma mudana qualitativa da correlao de fora entre as classes, a partir da Primeira Guerra Mundial, o triunfo da revoluo socialista na Rssia, a ascenso da social-democracia alem e do crack da Bolsa de New York, entre outros fatos histricos, a clas-se trabalhadora conquista uma srie de reivindicaes pelas quais pugnava h longa data. Neste contexto, inicialmente nos pases europeus, inicia-se uma poltica intervencionista do Estado na economia tendente a regular as relaes entre capital e trabalho.

    Na Amrica Latina, a mesma concepo de Estado se implanta a partir dos anos de 1930. No Brasil, inaugura-se a interveno do Estado brasileiro no mandato de Getlio Vargas o pai dos pobres ; na mesma esteira, na Argentina, acontece o primeiro mandato de Juan

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    Domingo Pern; e, no Mxico, a transformao apontada acontece no governo Crdenas. Em cada um desses pases, assim como nos outros latino-americanos, inauguraram-se caracters-ticas peculiares da concepo geral de interveno estatal como fiadora da sobrevivncia da populao, ainda que sejam evidentes as diferenas qualitativas e quantitativas entre a regulao estatal que se consolidara nos pases europeus, comparadas com a que fora implementada nos pases latinos da Amrica19.

    O Estado de Bem-Estar Social, ou Welfare State20, foi disseminado com nfase aps a Segunda Guerra Mundial, principalmente nos pases europeus. Cabia ao Estado a correo de falhas do mercado, a superao das crises econmicas e a sustentao do nvel de atividade econmica, bem como assumir a responsabilidade pela insero social dos cidados atravs de polticas de garantia de renda e proviso de servios pblicos. A essa concepo de Estado, podemos associar o alento de uma teorizao que consolidasse a ideia de construir um desen-volvimento autnomo dos pases.

    Assim, frequentemente se localiza o incio do pensamento desenvolvimentista aps o fim da Segunda Guerra Mundial, no bojo do processo de descolonizao que toma conta do mundo e que no mbito dos pases latino-americanos se apresenta enquanto uma indepen-dncia econmica que viabilize seus Estados nacionais, seu desenvolvimento e seu bem-estar (DOS SANTOS, 2000, p. 14). importante salientar que o surgimento das teorias da depen-dncia se relaciona com a tentativa de construir uma compreenso da realidade latino-america-na para alm das teorias positivistas e funcionalistas at ento predominantes.

    El pensamiento latinoamericano enfrentar estas corrientes para construir nuevos mar-cos tericos y metodolgicos que analicen, interpreten e investiguen los fenmenos de la realidad social, as como los contenidos y temas de las ciencias sociales para adaptarlos

    19 Outros aspectos analticos relacionados s modalidades de interveno estatal e sua relao com o dese-nho das polticas sociais nos pases da regio e sua dinmica no decurso do sculo XX sero abordados no captulo V.20 Welfare State, Estado de Bem Estar, Estado Social ou Estado Providncia, , em parte, investidor econ-mico, em parte regulador da economia e dos conflitos, mas tambm Estado benfeitor que procura conciliar crescimento econmico com legitimidade da ordem social (TOLEDO, 1997, p. 75). A produo acadmica em torno desta temtica vastssima.

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    a las nuevas vicisitudes de la historia latinoamericana (SOTELO VALENCIA, 2005, p. 35).

    Essas concepes consolidam-se aps a ltima Grande Guerra, com pases arrasados pelos enfrentamentos armados, e no mbito da Guerra Fria, com a populao demandando melhores condies de vida, a potncia hegemnica que se consolida no fim do perodo blico assume a preocupao com a noo de desenvolvimento como um meio de assegurar a paz mundial (MATTEDI, 2002, p. 96).

    Os anos 50 e 60 do sculo XX so caracterizados como a idade de ouro do desenvolvi-mentismo, sendo abordada conceitualmente por duas vertentes. Uma delas engloba as teorias da modernizao, ou do desenvolvimento propriamente dito, embasadas nas elaboraes evo-lucionistas e nas noes de progresso provindas de Adam Smith e David Ricardo e da Socio-logia evolucionista do sculo XIX, que interpretavam o subdesenvolvimento como um atraso. Essa perspectiva apontava a ideia de que os pases pobres precisavam percorrer o caminho das sociedades modernas cujo bero fora a Europa e se consolidara nos EUA para atingir o desenvolvimento, apresentando a modernizao ocidental como ponto de chegada para os pases subdesenvolvidos21. Para se atingir essa senda de desenvolvimento seria necessrio

    [...] a adoo de normas de comportamento, atitudes e valores identificados com a racio-nalidade econmica moderna, caracterizada pela busca da mxima produtividade, a gera-o de poupana e a criao de investimentos que levassem acumulao permanente da riqueza dos indivduos e, em consequncia, de cada sociedade nacional (DOS SANTOS, 2005, p.16).

    A outra vertente se constri como crtica viso modernizadora, como pensamento crtico, heterodoxo. Esta perspectiva se inicia com as elaboraes da Comisso de Estudos para Amrica Latina (CEPAL), com Prebisch, a partir de 1950, destacando que o problema estrutural e no do atraso, que sucintamente caracteriza a relao de dependncia por traos

    21 O pice desta concepo de sociedade civilizada e sua consequente caracterizao dos pases perifricos se expressa em Rostow, em sua obra The Process of Economic Growth, com primeira edio em 1961.

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    especficos. Posteriormente, em meados dos anos 60, surgem as teorias da dependncia22 como um esforo crtico para compreender as limitaes de um desenvolvimento iniciado num pe-rodo histrico em que a economia mundial estava j constituda sob a hegemonia de enormes grupos econmicos e poderosas foras imperialistas (DOS SANTOS, 2005, p. 26).

    Esse corpo de ideias transformou-se na matriz de uma escola de pensamento e no funda-mento terico de um projeto e uma estratgia poltico-econmica para a Amrica Latina que vigorou com sucesso, do ponto de vista do crescimento econmico, at o incio dos anos 80, pelo menos nos casos de Brasil e Mxico. Secundariamente, suas ideias somaram-se a vrias outras correntes e projetos de industrializao, que formaram, em conjunto, o caldo de cultura da ideologia desenvolvimentista da dcada de 50 (FIORI, 2001, p. 41).

    O enfoque das elaboraes sobre o carter do desenvolvimento dos pases da Amrica Latina apresentava uma postura claramente estruturalista tendo como principal referncia os estudos da CEPAL; prescrevendo, em particular, que a superao da condio de subdesenvol-vimento (ao qual se associava a tendncia de inviabilizao dos pases da Amrica Latina como Estados nacionais) dependia do avano da industrializao nacional. J nos anos 80, ao resumir o enfoque estruturalista ou desenvolvimentista da CEPAL, Fiori (2001) afirmou que buscava demonstrar que o desenvolvimento da periferia no era derivado de uma tendncia espontnea do desenvolvimento capitalista, seno que o resultado da ao das prprias sociedades perif-ricas se constituam em resposta s crises do centro capitalista, mobilizando o fortalecimento da atividade estatal para promover a industrializao nacional.

    De maneira geral, as teorias da dependncia podem ser resumidas em quatro ideias centrais:

    1) O subdesenvolvimento est conectado de uma maneira estreita com a expanso dos pases industrializados;

    22 So numerosos os trabalhos que visam construir taxonomias das diversas teorias da dependncia, classifi-cando autores e suas posturas, entre os quais podem ser citados Dos Santos (2005), particularmente no seu captulo 2; e a obra de Sotelo Valncia (2005).

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    2) O desenvolvimento e o subdesenvolvimento so aspectos diferentes do mesmo pro-cesso universal;3) O subdesenvolvimento no pode ser considerado como a condio primeira para um processo evolucionista;4) A dependncia no s um fenmeno externo, mas ela se manifesta tambm sob diferentes formas na estrutura interna (social, ideolgica e poltica) (DOS SANTOS, 2005, p. 27).

    Durante o auge do otimismo desenvolvimentista