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A PROMESSA

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XXX – Quixotes e Sanchos Panças

Quando a vida é acanhada, só pensa no que foi; e, quando a vida é atrevida,

não pensa no que será. A virtude anda ali entre uma e outra vida, sabendo todos

nós que só temos uma vida e que não temos hipótese de ensaiar ou repetir o que

passou. O ontem já passou. O amanhã é incerto e só o hoje é que se pode

aproveitar.

Quando a D. Pedro, as dores de alma começaram cedo, mas as dores do corpo

chegaram tarde. Sem ser estoico, gostava das dores que sentia. Via cada costela

partida e não tratada, como uma medalha de uma vitória alcançada que a vida lhe

dava. Por isso não foi ligando. Sentiu as dores fortemente na proa da galera ‘D.

Amélia’, antes de desembarcar às seis da tarde em Pampelido, quando abriu a

boca para gritar “Soldados! Aquelas praias são as do malfadado Portugal: ali

vossos pais, mães, filhos, esposas, parentes e amigos suspiram pela vossa vida e

confiam nos vossos sentimentos, valor e generosidade. Vós vindes trazer a paz a

uma nação inteira e a guerra somente a um governo hipócrita, despótico e

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usurpador.” O mesmo sentiu quando mais tarde, enervado, berrou “Não me

obrigueis a empregar a força para vos libertar!”

Depois tudo foi acontecendo apressada e bruscamente ao sabor do tempo que

vivia e em finais de Abril de 1834, as dores já eram difíceis de esconder aos leais

companheiros que não mais o largaram desde que D. Pedro colocou os pés na areia

lusa. A Eduardo, a Arrais e a outros soldados e espiões mais chegados, que

constituíam a sua guarda pessoal, sempre repetiu que eram as costelas partidas,

com um sorriso agridoce, mesmo quando cuspia sangue no lenço que a marquesa

de Santos bordara.

Parte desses homens apenas largaram o Duque de Bragança, por momentos,

para lhe relatarem as palavras de Saldanha e de Terceira a Azevedo e Lemos que

ouviram proferir, na casa de Saramago, em Evoramonte.

Nesse 26 de Maio de 1834, definiu-se o futuro de D. Miguel, mas pouco do

futuro de Portugal. Muitos dos homens de D. Miguel prometeram a si mesmos não

baixar os braços, enquanto Saldanha e Terceira, não só sonhavam ter mais poder

como planeavam afastar bem depressa o grupo de soldados chegados a D. Pedro.

Saldanha bem lembrava o tempo em que o seu avô, Sebastião José de Carvalho e

Mello, tentou substituir a sucessão de D. Maria I por D. José, filho da princesa e

tendo fracassado acabou afastado desgraçadamente do poder, mesmo com todas as

qualidades que ninguém lhas negava. Segundo os novos poderosos, os que

guardavam o Duque de Bragança, eram vinte homens que só olhavam pelo bem de

D. Pedro e constituíam, com as interpretações deformadas da sociedade, para

controlar o Duque e todo o reino. Eram eles a maior das ameaças, pois tinham uma

inocência, uma bondade e um romantismo que nada se articulavam com a

realidade mundana. Uma ameaça muito maior do que a dos que se rendiam, pois

para pacificar o país, D. Pedro não queria vinganças e exigia que fossem

integrados rapidamente, amnistiando crimes que remontavam a 1826.

A inveja e o ódio aos soldados de D. Pedro, aumentaram porque só eles

podiam permanecer sem limite de tempo no quarto D. Quixote, em Queluz. Esses

não temiam a tuberculose e eram tratados como irmãos pelo doente. Foram eles

que cumpriram as últimas vontades do Duque de Bragança e que por mar levaram

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o seu coração para a invicta cidade do Porto. Estiveram, igualmente, ao lado de D.

Pedro quando este escreveu uma última carta aos ‘brasileiros’.

Até esse momento, ‘brasileiro’ era uma palavra pejorativa como ‘portuga’,

pois os ‘brasileiros’ eram os vendedores de pau-Brasil e traficantes de escravos.

Até ali e durante mais algum tempo, os habitantes do Brasil eram ‘brasilienses’ ou

‘brasilícos’. A palavra era tão pouco querida que em São Paulo, no século XVII,

houve uma revolta num convento quando um jesuíta chamou outro de ‘brasileiro’.

Aliás, é curioso pois a independência e a unidade do Brasil não se fez à beira

do Ipiranga, mas cresceu nas repúblicas e bancos da universidade de Coimbra,

com os filhos dos negreiros e dos comerciantes da colónia. Até meados do século

XX foi para a Coimbra dos Doutores que a elite brasileira mandou os seus filhos

serem gente. Foi lá que cresceram José Bonifácio e outros, como o ‘Bidom’ que era

assim tratado por ter um ‘Dom’ pelo lado do pai e outro ‘Dom’ pelo lado da mãe.

Tudo gente que inicialmente se opunham ao fim da escravatura.

A escravatura era um negócio em expansão e D. Pedro de Alcântara

considerava todos os homens iguais, independentemente da quantidade de

melanina na pele. E, pese embora pouco se fale nisso, no Brasil, muitos eram os

escravos brancos, fruto da miscigenação e também, porque muitos perdiam a

liberdade, devido a uma vida desgraçada de dívidas e prodigalidade. Não eram só

os ricos que tinham escravos. Havia quem tivesse escravos para substituir a sua

própria profissão e ofício e assim não comparecia ao serviço. Foi esse um dos

motivos principais para que políticos e republicanos brasileiros conspirassem no

afastamento do primeiro Imperador e, infelizmente nesse e noutros tantos

assuntos, o Imperador acabou a falar sozinho ou só com os seus leais soldados.

Finalmente, após a morte do Duque de Bragança, no mesmo quarto que o viu

nascer e no palácio que foi abandonado após as suas segundas núpcias com um

príncipe alemão, a rainha D. Maria II agraciou alguns desses militares fieis ao

Senhor seu pai com títulos, como aconteceu com Luís de Mendonça Arrais, e que

outros súbditos se negaram a receber, como Eduardo. Mas mesmo com a morte de

D. Pedro, os homens que ocupavam o poder sentiam-se ameaçados pela sombra

dos soldados de D. Pedro. Assim, a todos aqueles que tinham sido nobilitados, a

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nova classe política cuidou de os afastar para longe de Lisboa e aos que do povo

ficaram, a ordem era para eliminar secretamente e sem grandes alaridos.

Assim, descuidando-se os liberais em intrigas palacianas, os miguelistas,

mesmo sem D. Miguel, foram-se unindo, tendo na ideia a manutenção de uma

guerra de guerrilha que acabasse por enfraquecer e levar à derrota dos liberais.

Os governantes secretamente organizaram uma quadrilha para assassinar

Eduardo e outros amigos do falecido Duque de Bragança, designados entre os

bandidos, como ‘a colmeia do rei’. Depressa mataram com veneno, punhal ou

forca, os ex-soldados. Eduardo e alguns outros, fugiram sem que antes não

tivessem lutado pela própria vida. A Maçonaria aliara-se aos fortes e abandonou

igualmente esses ‘irmãos’. Ela própria os procurava para acelerar a história e

consagrar o triunfo do liberalismo. A cada morte de um soldado de D. Pedro, todos

os documentos onde constassem o seu nome eram modificados ou queimados.

Havia a necessidade de apagá-los da história.

‘Chalaça’, regressado a Portugal, tentou salvar todos, sem se comprometer

com a sua própria vida ou deixar que a Maçonaria se apercebesse do seu

envolvimento.

Do outro lado e mais seguros do que essas ameaças, no Alentejo e no Algarve,

os vencidos depressa organizaram guerrilhas que prontamente foram aplaudidas

pelas populações e se estenderam ao resto do país. De entre os revoltados,

sobressaíram a Sul, o ‘Remexido’ e a Norte, o ‘Zé do Telhado’, no centro atacava

ferozmente a quadrilha que se tinha abrigado em Loriga, de Estanislau Xavier de

Pina, natural da Várzea de Meruge.

Depressa os miguelistas usaram as várias reformas administrativas, iniciadas

com a Lei de 27 de Julho de 1822 e que visava “…restituir às Câmaras a sua antiga

dignidade…”, para colocarem o povo do seu lado, face aos políticos que nos

gabinetes ignoravam tudo e todos.

O país depressa se mudou e muitos e variados interesses se instalaram num

Portugal pobre, roubado por todos e pecante. Uma terra, onde já se sabe que

quando não há pão, todos bulham sem razão. As reformas administrativas levar-

me-iam horas a explicar e mesmo assim, teria sérios opositores que ao lerem estas

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páginas, se insurgiriam. Fica apenas a minha opinião, que não é a melhor e

certamente a mais correcta.

Tudo começou confuso em 1822 e ainda não estava resolvido em 1896, quando

foi aprovado o último Código Administrativo de Portugal do século dezanove.

Mouzinho da Silveira e Passos Manuel bem tentaram, mas acabaram sós e com

muitos inimigos. O poder oscilou entre as paróquias e as câmaras, entre os padres

e os vereadores. A Beira uniu-se e dividiu-se várias vezes, ao sentido dos partidos

que muitas vezes se repartiram também. A Serra da Estrela passou no papel da

Beira, para a Beira Baixa e da Beira Baixa para a Beira Alta, sem sair do mesmo

torrão de terra e de pedras.

Talvez a medida mais acertada fosse a que muitas vezes foi defendida pelo

1ºBarão de Alvoco e no final do século vinte, ressuscitada por um presidente da

Câmara Municipal de Seia, de que a Serra devia ser uma província com identidade

própria. Mas os interesses sobrepõem-se sempre às vontades e ainda hoje Loriga

diz que perdeu o concelho devido ao apoio dado aos miguelistas. Quem sabe se não

terá razão, mas agora é tarde. Igual sorte, teve Alvoco da Serra e que apoiava D.

Pedro, quando Sebastião era o presidente da Câmara. Até ao final do século

dezanove, os concelhos foram reduzidos a um terço do seu número inicial, mas

ainda hoje o povo não esqueceu e as reformas, apesar de quase dez séculos de

existência, ainda não acabaram e continuarão bem vivas. Não podemos viver duas

vidas para sabermos como seria diferente.

Três semanas depois da morte de D. Pedro no mesmo quarto onde nasceu em

Queluz, o Zé da Cabeça foi cercado por saltadores, perto de Coja. Os homens

pareciam intimidar, mas deles sobressaiu Vaz Patto que prontamente ordenou que

o deixassem passar. O Zé já não se lembrava, mas o saltador lembrou aos

companheiros de que havia sido salvo pelo Zé muitos anos antes, depois dos

franceses partiram. A admiração de Vaz Patto era enorme e isso garantiu que o Zé

nunca tivesse problemas nas terras controladas por esse salteador e o seu bando.

Foi Vaz Patto que levou Eduardo ao Zé, numa noite, quando este procurava

Sebastião, ferido e fugido dos homens que o queriam matar. O salteador encontrou

Eduardo em Porto de Raiva, onde o rio Alva casa com o Mondego. Escondeu-o em

Chão de Éguas e lá voltou com o Sebastião e o José.

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Nesse Inverno, já em Janeiro de 1835, quando a anarquia se implantava, o Zé

voltou ao passado quando regressou aos arquivos da Universidade de Coimbra

para falsificar a identidade de Eduardo, na companhia deste e de Sebastião. Dali

trataram de passar pela loja maçónica. A entrada foi bem mais complicada.

Eduardo rasgou a folha, onde escreveu o nome de baptismo com o próprio sangue,

pela costura da encadernação.

Depois, tratou-se de mudar a aparência. Laurinda foi chamada e sozinha

conseguiu extrair um sinal grande que Eduardo tinha na bochecha esquerda. Deu

golpe igual na bochecha direita, depois espalhou uma pasta lamacenta com

camomila e outras ervas misturadas com claras de ovo, para que cicatrizasse sem

recorrer a linhas e agulhas, que o desfigurariam para sempre.

Foi tratamento que repetiu por quase um mês, sendo que nos últimos dias

lavava as feridas com sumo de laranja e de limão. Finalmente, Laurinda voltou

àquela palheira, embrulhada no xaile de sempre, colocou num prato de estanho

um pó branco ao qual juntou a mesma medida de mel e de azeite, que conseguiu

obter do dono do lagar da Cabeça. Misturou tudo e esfregou no cabelo e na barba

que Eduardo deixara crescer e com a qual cobriu as bochechas. O tratamento

também foi repetido por alguns dias, até que o cabelo e a barba pareciam mais

brancos do lençóis alvos a corar ao Sol. Tudo acompanhado de um emagrecimento

inesperado, fez com que Eduardo parecesse uma pessoa muito diferente na

aparência e na idade. Romanov não estranhou e esteve sempre do lado do dono,

lambendo as feridas, enquanto Eduardo dormia de noite.

Eduardo era procurado pelos seus presumíveis assassinos não só pelas

características físicas, mas também por andar acompanhado de um gato amarelo,

por isso Sebastião e o Zé sugeriram que se visse livre de Romanov, mas Eduardo

não o fez. Achava que outrora, nos Açores, Romanov lhe havia salvo a vida e por

isso, tinha uma dívida para com o bicho.

No Verão de 1835, parecia que o Governo e a Maçonaria se tinham esquecido

de Eduardo, por isso, Sebastião cuidou de lhe arranjar uma casa na actual rua do

Porto em Loriga, com um quintal traseiro e com capoeira, para que Eduardo não

se sentisse preso. À gente de Loriga, o Zé da Cabeça explicava a presença da nova

personagem na terra como um tio brasileiro que antes vivera no porto. Que fora

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criança para o Brasil, onde tinha trabalhado num botequim do Rio de Janeiro.

Espalhou que era viúvo e pai de uma rapariga com o nome de Ana Bárbara.

Em Maio colhia-se a batata ‘do cedo’. Castravam-se bezerros, porcos e

cordeiros, que só de imaginar me dói. É o melhor mês para a criação de coelhos e

regar as hortas à tardinha. Espiga o grão e a nossa gente diz que em Maio a

chuvinha da Ascensão dá palhinha e pão. Foi também a 3 de Maio de 1835 que o

quarto filho de D. Francisca e de Sebastião nasceu. António foi muito mimado

pelas duas irmãs e pelo irmão João que ainda muito pequeno já ajudava na

celebração da santa missa.

Embora o país fervilhasse e a anarquia estivesse instalada, Eduardo encontrou

em Loriga a paz e o sossego que tantas vezes procurava.

Tal paz foi abruptamente interrompida no primeiro fim-de-semana de Agosto

quando a caravana do Zé da Cabeça ficou presa por militares na Figueira da Foz.

A queixa perdeu-se ou vinha do tempo em que o Dr. Fernandes Thomaz era juiz

em Arganil e começou a perseguir o Zé, sob a acusação falsa de ter roubado a

família Veiga. O Dr. Fernandes Thomaz talvez tenha sido dos políticos mais sérios

que passou por Portugal. Homem que viveu no final da vida apenas da política,

quando a política não era remunerada e que consta que morreu de fraqueza. A sua

imagem eternizou-se da pintura de Veloso Salgado e, aquele que foi alcunhado

pelos seus contemporâneos de ‘Pai da Pátria’, não deixou sérios discípulos.

Quanto a Queluz, depois da morte de D. Pedro, nunca mais foi habitado por

um monarca português. Caiu no abandono e só foi socorrido por D. Manuel II que

o doou ao Estado, pouco tempo antes de ser implantada a República. Hoje é museu

e abrigo de chefes de Estado estrangeiros, em visitas oficiais a Portugal.