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A PROMESSA

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A PROMESSA

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XXVIII – Ao fim ao cabo

Dizem muitos entendidos e alguns mais sabidos, que tudo o que fazemos é

feito pela necessidade de evitar a dor ou pelo desejo de obter prazer. Claro que dor

e prazer é algo muito subjectivo, pois assenta em convicções, valores e experiências

vividas que cimentam o carácter de cada um e a mesma experiência nem sempre

resulta da mesma forma. Conta-se, aliás que dois presos numa cela, espreitaram

pelas grades e enquanto um só via o chão lamacento da rua, o outro admirava o

Céu estrelado e com isso ficava feliz. Os homens são complicados ou complicam-se.

Era o cheiro que fica depois da chuva caída aquele que o Zé da Cabeça mais

gostava. Viciante ao ponto dele procurar sempre cheirar a terra molhada depois de

chover. Gostava de terra. Gostava de ver as culturas crescerem, da sua colheita, da

sementeira, mas sobretudo de ver crescer tudo de um nada. Passou a vida a

comprar terra, por causa do cheiro da terra molhada e por gostar da Primavera.

Também Póvoas gostava da terra. Para o general Póvoas, a terra era sinal de

poder e importância, mas importante já ele tinha nascido. Nasceu numa quinta

grande, com casa comprida e portão largo. Foi baptizado com todas as honras e

pelo lendário bispo da Guarda e de Pinhel, D. Mendonça Arrais. Era filho de

Marecos, fidalgo da Casa Real e ouvidor do Brasil, e de sua esposa Mariana

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Vitória de Castro Sousa e Almada, descendente de D. Antão Vaz de Almada. Mas a

fortuna nascera do avô paterno, outro Marecos que muito contrabando fez entre

Portugal e Espanha e vice-versa.

Todos na Guarda tratavam a sua família como se de príncipes se tratassem e

eles só se curvavam ao bispo, que quase diariamente jantava em sua casa,

ocupando a cabeceira da mesa e que fora superior militar de Marecos.

Para Marecos a disciplina e a fé eram lei e ordem. Não se discutiam. Nada se

discutia, impunha-se a sua vontade, que era a dono de muita coisa.

Para D. Mendonça Arrais tudo se discutia e a lógica impunha-se, por isso,

pela amizade, educação e bom-senso, cedo o bispo da Guarda e de Pinhel deixou de

prestar atenção a Marecos. Havia naquela família tanta vaidade e novo-riquismo

que quase fazia esquecer a velha e valente nobreza que tinham no sangue.

Na cabeça de Póvoas, desde criança, só havia um degrau a subir na vida.

Para ele bastava que a sua família fosse mais conhecida e estimada do que a

família Mendonça Arrais, mas a isso não se chega com vaidade e dinheiro, por

muito empenho e cobiça. Aliás, a cobiça e a inveja sobre os Mendonça Arrais

tornou-se doença, pois estes, por mais bem vistos que fossem pelo povo, nem em

fama nem em dinheiro estavam próximos da família de Póvoas. Todo aquele que

vive em função do que vê no vizinho, tem um capricho pouco ou nada saudável ao

espírito e à alma.

Na juventude, Poças cobiçou a mãe de Luís de Mendonça Arrais, senhora

mais velha do que ele em dez anos e cunhada de D. Mendonça Arrais. Uma paixão

que apenas confessou aos irmãos e nunca foi declarada. Uma paixão platónica que

se tornou doença, uma doença que transpirava ódio no olhar; por isso, evitava

muitas vezes o bispo da Guarda e de Pinhel. Toda essa raiva canalizou-a para o

belicismo. Esforçou-se por uma licenciatura em Direito, da qual desistiu. Mas, com

uma teimosia que muitas vezes é virtude, formou-se em Matemáticas com

excelentes notas. Tentou ser militar, mas a falta de destreza não o fez um militar

igual aos outros e preterido pelo exército recorreu ao próprio pai que lhe pagou

uma companhia pessoal, com cavalos e tudo.

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Depois, a rainha, toda a família real e enorme comandita partirem para o

Brasil. Vieram os franceses e a oportunidade de Poças brilhar surgiu e muito

brilhou.

Uma vez mais a história provou que, muitas vezes, são os pouco dotados que

com determinação e perseverança conseguem o que outros não alcançam com

inteligência, por falta de empenho.

Na Iª Invasão Francesa, já Póvoas era major e só foi derrotado pela esperteza

do major Rechau, que sempre foi mais esperto que as cobras e as raposas, juntas.

Com a ocupação dos franceses, foi mandado para França pelo Junot, mas desertou

como Rechau e juntou-se aos britânicos.

Sendo um cavaleiro e líder espectacular, Póvoas depressa chegou a coronel e

depois, a brigadeiro. Em 13 de Maio de 1820, quando se deu a Revolução Liberal,

já era marechal de campo. Apoiou a revolução entusiasticamente, tendo sido um

dos deputados que votou a Constituição.

Deu então conta de que os Mendonça Arrais estavam do seu lado e isso

provocou-lhe um certo amargo de boca, que corrigiu após a Vilafrancada, três

anos depois, aderindo ao Partido Absolutista, de D. Miguel.

Coube ao general Póvoas esmagar a insurreição do Porto, num primeiro sinal

da Guerra Civil, em 16 de Maio de 1828, num dia em que nas ruas do Porto

correram levadas de sangue.

Por essa altura, todos os que não eram ingénuos e adivinhavam o que viria a

caminho, armaram-se da melhor forma que puderam. O Douro voltou a recorrer

aos homens da Serra da Estrela. Ferreira, pai de D. Antónia Adelaide Ferreira, a

‘Ferreirinha’, foi dos primeiros a ir buscar homens aos Montes Hermínios. Foram

esses homens de Loriga, Alvoco da Serra, Lapa dos Dinheiros, São Romão e

Valezim que Ferreira juntou um dia, na Senhora do Desterro e levou para

proteger a Quinta do Vesúvio e Gaia. Foram esses e descendentes desses que

ajudaram a fugir a ‘Ferreirinha’ quando o Duque de Saldanha impôs casar a filha

de D. Antónia com o seu filho.

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Foi o mesmo António Ferreira que viu mais longe, antes dos outros e um dia,

temendo o pior, que sempre veio, em 1830, desceu o Douro de rebelo e vendeu ao

desbarato todo o vinho que tinha. Foi então, chamado de doido por todos e até pelo

próprio irmão.

Meses depois, a história deu-lhe razão quando todo o vinho das caves de Vila

Nova de Gaia foi roubado. Nesses dias, quando muitos eram os aflitos, Ferreira

comprou ao preço da chuva todo o vinho do Douro e com a ajuda dos ‘cartagenos’

de Loriga, em sucessivas caravanas de carros de bois, tratou de transportá-lo para

a barra da Figueira da Foz. Dali, com o ‘Mosca’ a comandar os navios da Póvoa de

Varzim e de Viana do Castelo, o vinho chegou depressa a Inglaterra e Ferreira

ficou milionário.

Na semana em que Estanislau Xavier de Pina tomou conta de Loriga, a vila

estava quase vazia de homens e os que sobravam nada podiam fazer. A notícia

correu depressa, porque a maldade é vaidosa e gosta de se dar a conhecer.

Não passou uma semana, quando todos os homens com força, vontade,

amizade, coragem ou sangue serrano se já tinham unido à volta de dois principais

homens, o padre de Alvoco da Serra e o Senhor Manuel Luís. Vieram homens da

Erada, de todas as terras vizinhas de Loriga e até de terras mais afastadas como

Rio de Mel. Uns montados e outros a pé. Mercadores, moços de bestas, tecelões e

agricultores, mulheres, mas tudo gente de fibra.

Desde sempre que Loriga é quase invencível do ponto de vista militar.

Localizada entre sete cabeços e abraçada por três ribeiras, erguida num vale

glaciar, suportada por courelas e protegida por cômbaros, é uma fortaleza que a

natureza construiu e o homem aprimorou.

Quase cego, o Senhor Manuel Luís descreveu Loriga a todos, quase todos os

cantos e lugares da terra e com um pedaço perdido de uma vide, desenhou no chão

um mapa, mesmo ali à saída da Igreja de Alvoco da Serra. O povo estava

entusiasmado até que o Senhor Manuel Luís informou todos de que Loriga só

conseguiria ser tomada por gente de Loriga.

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Só a gente da vila é que conhecia bem os terrenos, as quelhas e o resto. Está-

lhes no sangue e é intuitivo e atávico como a peçonha. Sem a gente de Loriga,

tirassem a ideia do juízo.

Assim, o padre de Alvoco da Serra mandou vários moços ao encontro das

caravanas de mercadores, mas ficou para um antepassado do ‘Vinho Branco’ a

tarefa de ir buscar o ‘Major’. Só ele, como militar na reforma, sabia com

organizar os homens.

Achá-lo foi uma sorte, pois nessa semana, o francês tinha ido a Unhais da

Serra e depois de passar pelas Penhas da Saúde, acoitou-se por umas horas na

Fraga do Rodeio, em Cortes do Meio, com tempo suficiente para ser encontrado

pelo moço.

Ao início, ainda houve receio que alguns ‘cartagenos’ pensassem que era por

mal que os vizinhos iam tomar Loriga, mas depois, bem convencidos, tiveram de

ser acalmados pelo Zé da Cabeça; porque, por vontade deles, matavam tudo o que

fosse estranho e se metesse pela frente quando chegassem a Loriga.

Três dias depois, Sebastião largou o comando da caravana que ia para

Cárceres, por cima da ribeira da Cerejeira, que é uma das mães da ribeira de São

Bento. Ali se encontrou com o ‘Queixinhas’ do Casal do Rei e com o Zé da Cabeça.

Os três juntaram-se a outros três ‘mata-lobos’, o ‘Cospe-Cospe’, o Nuno da

Ermelinda e o ‘Ramela’.

Os ‘mata-lobos’ eram homens que existiam em quase todas as terras da Serra

da Estrela. Colocavam armadilhas às alcateias e depois de apanharem os lobos,

espetavam-lhe a cabeça numa vara alta e desciam às aldeias e vilas. Batiam em

cada porta de cada casa, pedindo dinheiro que não era certo, mas que ajudava ao

sustento dos próprios e das suas famílias. No final da colheita do dinheiro, eles

deixavam os lobos pendurados no Adro da Igreja, sendo que por vezes, de noite lá

voltavam para sacá-los e irem-nos usar no mesmo peditório da terra vizinha.

Assim, os fregueses mais sabidos, viam sempre se o sangue estava fresco e

negavam-se a pagar quando estava seco. Mas até nisso, havia vigarice, pois muitas

vezes, ao sangue, o ‘mata-lobos’ juntava vinagre para que não coalha-se.

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Naquele dia, quando o Sol despertava por de trás da Garganta de Loriga,

Sebastião descalçou as botas. Os outros imitaram-no. Tirou a jaqueta e o colete,

escondendo tudo por trás de uma pedra. Depois encardiu as unhas com terra e

com ela também esfregou a cara. Arranjou um molho de lenha com um podão que

escondeu num pedaço de carqueja, no meio do molho. Amarrou tudo com a

travinca e a corda. Finalmente, desceram a Tapada Real e as Tapadas.

Ao mesmo tempo, nas igrejas de Alvoco da Serra, da Cabeça e da Vide, as

mulheres, de joelhos dobrados, começaram a rezar pelos homens que se ariscavam

e pela gente de Loriga. As ricas escondiam por baixo do saiote e as pobres no

avental, uma faca que as protegesse, caso algum bandido entrasse na casa do

Senhor. D. Francisca também lá estava, apesar de poucos dias terem passado após

ter tido mais um desmancho.

Depressa se puseram no meio da vila de Loriga e todos os salteadores

pensaram tratar-se de pobres rurais. Sebastião chegou-se devagar à beira de

Xavier e num instante, daqueles instantes enquanto o Diabo esfrega o olho, sacou

do podão bem afiado e encostou-o à garganta do chefe dos salteadores e gritou

um...

- Vamos falar!

Xavier apenas conseguiu dizer:

- Tem calma!

Em segundos, Sebastião desarmou Xavier e respondeu...

- Tenho toda a calma do mundo.

Nessa altura, já Sebastião tinha desarmado Xavier e a calma dele assustava o

bandido, que pensava estar diante de um valente ou um doido. A conversa

continuou mais serena.

- Que queres? Ao que vens? E quem és?

- Não interessa quem sou. Sou um homem desta terra que quer os meus bem.

- Mas não é a portares-te assim…meu menino.

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Entretanto, já uma outra caravana de ‘cartagenos’ que chegavam a Loriga se

juntara, na Portela da Selada, à gente que lá esperava.

O ‘Lamparinas’ juntou todos com o padre de Alvoco da Serra. O ‘Major’ e o

Senhor Manuel Luís deram as ordens. Era preciso não temer os bandidos e impor-

lhes respeito. Estavam lá, na Portela da Selada, homens que não temiam morrer,

outros desceram pelo Cabeço das Resteves, enquanto outros tantos subiam pelo

Pero Negro.

Quando a quadrilha do Xavier, começou a sentir barulho, queimou as pontes

de madeira, mas os ‘cartagenos’ sabiam bem os locais para passarem as ribeiras a

vau, fosse no Cortiçor ou perto do poço da Curilha e do poço Forte. Eram os de

Loriga, que mais nervosos saltavam e corriam em direcção à vila. Muitos, apenas

com um podão, um sacho ou um machado na mão. Quando avistaram um Botelho,

natural de Seia, no fundo do Cortiçor, deram cabo dele.

De nada valeu aos salteadores uma fogueira grande no meio da ponte Nova e

talvez tenha sido a única vez, que Loriga, também conhecida por berço de Viriato,

foi tomada ao invasor.

De portas trancadas e baraço recolhido das portas, as mulheres, os velhos e

as crianças, viram depressa os homens de Loriga e os seus vizinhos reconquistar a

sua terra e desarmar a quadrilha.

Quando tudo parecia ter serenado, uma parte do grupo dos saltadores que

tinha ido a Seia, apareceu. Era chefiado por Feliciano Cruz Fonseca.

Os homens que estavam na Tapada do Chão do Dorno e na Praça, depressa

foram dominados e desarmados pelos salteadores, mas Sebastião não tirou a

lâmina da garganta de Xavier, nem o Zé da Cabeça se deixou desarmar, escapando

pelo telhado de uma casa mais rasteira.

O padre de Loriga tentou acalmá-los, mas quando os salteadores pareciam

dominar, o major Rechau apareceu aos murros e aos tiros, vindo da Eira do

Mendes, com vizinhos de Alvoco da Serra, da Erada e do Sabugueiro munidos de

podões, sachos e machados, que assustavam com chocalhos que badalavam à

cintura.

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Pela Fonte do Vale, subiram homens e mulheres sem medo, da Cabeça, do

Muro, da Vide, de Casal do Rei, que o Zé da Cabeça orientou depois de terem

alcançado o Pero Negro.

A coisa ficou complicada, no adro da Igreja de Santa Maria Maior de Loriga

e só os padres de Loriga e de Alvoco da Serra é que conseguiram terminar com a

bulha.

Ficou então combinado, que todos os salteadores poderiam ficar abrigados

em Loriga, mas nenhum deles poderia fazer mal às gentes da terra e às terras

vizinhas até aos limites da Covilhã e de Arganil.

Quando todos o juraram, Sebastião tirou o podão da garganta de Xavier.

Lembrou-lhe que, se alguma vez o tornasse a chamar menino, ia desta para

melhor.

Xavier, apenas foi morto perto da Lourosa, quase vinte anos depois, pelo

João Brandão, mas pediu à viúva para ser sepultado junto do amigo Feliciano

Cruz Fonseca.

Quanto ao major Rechau, depois de muitas batalhas e a ele se dever o

caminho da Rua dos Mercadores e o Trilho do Major, já viúvo, morreu engasgado

com um pedaço de broa no forno d’Amoreira, que era de uma neta da Teresa, num

dia de animação, na companhia do ‘Cospe-Cospe’ e do ‘Beiços-de-Cabra’.

A gente de Loriga sepultou-o no cemitério, onde agora é o largo de Santo

António. Durante muito tempo, as mulheres colocaram-lhe flores sobre a cova e

cada mercador que passava tirava-lhe o chapéu.

Actualmente, estima assim, a gente de Loriga tem-na pelos militares ingleses

que um dia tombaram, em plena IIª Guerra Mundial, na Penha do Gato, na Terça-

Feira de Carnaval de 1944.