a prática da tradução como fonte de aprendizagem de língua materna

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PERTEL, Tatiany. A prática da tradução como fonte de aprendizagem de língua materna: uma atividade comunicativa empoderadora. In: DEPAULA, Lillian; REZENDE, P.; CASTRO, M. C. de; PERTEL, T. (org.) Tradução: sobre a quintahabilidade na língua, no outro, na arte. São Carlos: João & Pedro, 2014. p. 131-149 131 A prática da tradução como fonte de aprendizagem de língua materna: uma atividade comunicativa empoderadora Tatiany Pertel O que ocorre, de fato, é que, quando me olho no espelho, em meus olhos olham olhos alheios; quando me olho no espelho não vejo o mundo com meus próprios olhos desde o meu interior; vejo a mim mesmo com os olhos do mundo - estou possuído pelo outro. (FARACO, 2005, p. 43) 1 Introdução Neste artigo, queremos retomar as discussões sobre o uso da tradução interlingual 2 como recurso didático na sala de aula de língua estrangeira nos moldes mais modernos e com base nas discussões mais recentes sobre o tema. Afirmamos que ao contrário do que foi sistematicamente defendido no século passado, quando a tradução não era considerada um processo natural tampouco comunicativo, e o uso da língua materna em sala de aula de língua estrangeira era considerado 1 , Na obra intitulada “Autor e Autoria”, Faraco faz uma reflexão sobre as ideias de Bakhtin e, especialmente com respeito a essa epígrafe, parafraseia Bakhtin (Estética da Criação Verbal, 1997), quando reflete sobre o autor e o herói. Portanto, suas palavras na referida epígrafe se constituem numa reflexão sobre o pensamento Bakhtiniano. 2 Segundo Jakobson (1959, p. 64) existem 3 tipos de tradução: 1) a tradução intralingual ou reformulação (rewarding) [que] consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua; 2) a tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua; [e] 3) a tradução inter- semiótica ou transmutação [que] consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais. Trataremos, neste trabalho, especialmente da tradução interlingual.

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PERTEL, Tatiany. A prática da tradução como fonte de aprendizagem de língua materna: uma atividade comunicativa empoderadora. In: DEPAULA, Lillian; REZENDE, P.; CASTRO, M. C. de; PERTEL, T. (org.) Tradução: sobre a quintahabilidade na língua, no outro, na arte. São Carlos: João & Pedro, 2014. p. 131-149

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A prática da tradução como fonte de aprendizagem de língua materna:

uma atividade comunicativa empoderadora

Tatiany Pertel

O que ocorre, de fato, é que, quando me

olho no espelho, em meus olhos olham olhos alheios; quando me olho no espelho

não vejo o mundo com meus próprios olhos desde o meu interior; vejo a mim mesmo com os olhos do mundo - estou

possuído pelo outro.

(FARACO, 2005, p. 43)1

Introdução

Neste artigo, queremos retomar as discussões sobre o uso da

tradução interlingual2 como recurso didático na sala de aula de língua

estrangeira nos moldes mais modernos e com base nas discussões mais

recentes sobre o tema. Afirmamos que ao contrário do que foi

sistematicamente defendido no século passado, quando a tradução não

era considerada um processo natural tampouco comunicativo, e o uso da

língua materna em sala de aula de língua estrangeira era considerado

1 , Na obra intitulada “Autor e Autoria”, Faraco faz uma reflexão sobre as ideias de Bakhtin e, especialmente com respeito a essa epígrafe, parafraseia Bakhtin (Estética da Criação Verbal, 1997), quando reflete sobre o autor e o herói. Portanto, suas palavras na referida epígrafe se constituem numa reflexão sobre o pensamento Bakhtiniano.

2 Segundo Jakobson (1959, p. 64) existem 3 tipos de tradução: 1) a tradução intralingual ou reformulação (rewarding) [que] consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua; 2) a tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua; [e] 3) a tradução inter-semiótica ou transmutação [que] consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais. Trataremos, neste trabalho, especialmente da tradução interlingual.

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prejudicial, por isso foi banido da sala de aula, a prática da tradução é

uma atividade cognitiva natural e fisiológica, praticada pelos alunos,

queira o professor ou não. Se desenvolvida e aplicada com cuidado, a

tradução pode se mostrar um recurso de grande importância não

somente para o desenvolvimento da língua estrangeira, mas

necessariamente um instrumento de redescobrimento e reconstrução da

língua materna e dos aspectos culturais do aprendiz. Além disso, o uso

da tradução com fins didáticos pode ser uma atividade comunicativa

intercultural e empoderadora, capaz de transformar nossos alunos do

ensino básico em sujeitos críticos e reflexivos. Porém, cabe ao professor

dar à tradução um lugar de destaque, conferindo a ela o lugar na sua sala

de aula que lhe foi tirado, desde que praticada com a consciência de que

seja uma prática de criação, reconstrução, autoria e diferença, e não mais

uma busca pela equivalência ao texto ‘original’.

Tradução: ponte para o outro, ponte para si mesmo

Estamos vivendo um tempo de mudanças. O século XXI é um lugar

onde os sujeitos se constroem numa gigantesca facilidade de interagir

com a diversidade cultural que os mais recentes meios de comunicação

tecnológica nos oferecem. As fronteiras geográficas já não são barreiras

eficazes que impeçam as trocas dialógicas entre sujeitos de culturas ou

nações diferentes. O conceito de sujeito Bakhtiniano agora ganha

proporções tão significativas quanto a necessidade de se tornar bilíngue e

intercultural.

Porém, numa era onde se vê uma exigência em se tornar

globalizado, há que se enfatizar uma ainda maior necessidade do sujeito

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redescobrir-se, valorizar-se e tornar-se ciente da sua identidade, para

então deixar-se modificar na interação com o mundo. O conhecimento

sobre si mesmo é o primeiro passo para conhecer o outro. E, ao conhecer

o outro, preserva-se e ao mesmo tempo modifica-se, deixando que o

outro exerça sobre si uma força transformadora, mas, ao mesmo tempo

contribuindo para que o outro se modifique. Como nos lembra Bakhtin

(1997, p. 26-7), “[...] na vida o que nos interessa não é o todo do homem,

mas os atos isolados com os quais nos confrontamos e que, de uma

maneira ou de outra, nos dizem respeito”, o que nos leva a perceber a

importância do contato com o outro, da interação, da dialogia para que

possamos nos compreender melhor.

Para Bakhtin, “[...] é ainda em nós mesmos que somos menos aptos

para perceber o todo da nossa pessoa” (1997, p. 27). Dessa forma, vemos

claramente a verdadeira essência do ato de traduzir, pois essa prática

revela o outro, mas naturalmente faz florescer aspectos idiossincráticos

do próprio tradutor, da sua língua materna e de sua cultura. Esses

aspectos não são tão visíveis quando trabalhados dentro da própria

língua, pois estamos acostumados a eles de forma que passam

despercebidos em tarefas comuns de leitura e produção textual (oral ou

escrita). As línguas exercem influências umas sobre as outras, e a

tradução pode ser responsável por tornar essas diferenças mais

compreensíveis, dando-nos a oportunidade de explorar o potencial que

ambas as línguas envolvidas na prática tradutória tem a oferecer (DUFF,

1989).

Além da competência linguístico-comunicativo e cultural, a

tradução oferece inúmeras outras vantagens para ser utilizada em sala de

aula. Outro fator de desenvolvimento encontrado na prática da tradução

é a competência intercultural imprescindível para o sujeito do mundo

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contemporâneo cujas interações podem ocorrer com sujeitos do mundo

todo. A competência intercultural é responsável por uma mudança de

foco e, decerto, de postura, numa busca por compreender os sujeitos da

interação com perspectiva de transpor abismos culturais e diferenças,

cujo resultado se dá na redescoberta da própria cultura e na reformulação

dos conceitos sobre a cultura do outro.

Um terceiro importante componente que pode emergir da prática

da tradução em sala de aula de língua estrangeira é o empoderamento. A

tradução pode ser responsável pela conscientização numa perspectiva

Freiriana de empoderamento. As atividades de tradução bem planejadas

e desenvolvidas pelo professor podem oferecer ao aluno a promoção da

consciência crítica sobre o mundo e sobre os conhecimentos,

transformando-se em sujeito reflexivo capaz de transformar sua realidade

para, então, agir na sociedade. O conhecimento relativizado através da

prática da tradução pode levar o aluno a pensar sobre os problemas

sociais, políticos e as ideologias que permeiam as práticas sociais, pois ao

traduzir de uma língua para outra, o aluno deve perceber as diferenças

não somente linguísticas, mas, sobretudo sociais, culturais, históricas e

ideológicas contidas na mensagem do texto fonte. Vejamos como cada

uma das relações pode acontecer.

A prática da tradução como fonte de desenvolvimento da competência linguístico-comunicativa

O uso de atividades de tradução interlingual tem gerado

discussões no âmbito das pedagogias voltadas ao ensino/aprendizagem

de línguas estrangeiras. Segundo autores como Mounin (1975), Leffa

(1988), Widdowson (1991), Moita Lopes (1996), Ridd (2003), Paiva (2005),

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de modo geral esses questionamentos emergem, num primeiro olhar, por

um sentimento de oposição quase ideológica ao modelo da Metodologia

Tradicional (MT) da Gramática Tradução (GT). Para Widdowson (1979,

p.107), “a rejeição do uso da tradução baseia-se, em geral, na presunção

que implica necessariamente estabelecer equivalências estruturais”.

Porém, entendemos o processo de tradução como fonte de

desenvolvimento de outras habilidades e competências além da estrutura

de uma língua.

Teóricos de tradução acreditam que a competência tradutória é

uma atividade complexa que envolve outras competências como: a

competência linguística, a cultural, a intercultural, a textual, a social, a

transferência, a diferença, a pesquisa, e noções de identificação de

assuntos específicos (NEUBERT, 2000 apud SCHÄFFNER, 2003, p. 93).

Através da prática da tradução para o português de textos escritos

em língua estrangeira os alunos deverão pensar e comparar aspectos

múltiplos das culturas envolvidas, adquirir conhecimentos

interdisciplinares sobre história, política, meio ambiente, geografia, artes,

língua, dentre outros e tirar conclusões inesperadas, não estereotipadas

sobre as culturas em jogo. Pois, a atividade de tradução é uma operação

no nível de uso efetivo da língua, e não somente no nível de construção

linguística e tem como objetivo desenvolver no aprendiz a ciência do

valor comunicativo da língua que está aprendendo através da referência

explícita às funções comunicativas da sua própria língua

(WIDDOWSON, 1978, p. 160). As pesquisas que deverão fazer para

traduzir fortalecerão seus conhecimentos em ambas as línguas e culturas,

desenvolvendo, assim, um senso crítico sobre variados aspectos.

A prática da tradução interlingual, segundo Duff “auxilia-nos a

compreender melhor a influência de uma língua sobre a outra, a corrigir

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erros de hábitos que muitas vezes passam despercebidos e a explorar o

potencial de ambas as línguas” (DUFF, 1989, p. 6, tradução nossa). Duff

ressalta que a tradução desenvolve três qualidades essenciais durante a

aprendizagem linguística: precisão, clareza e flexibilidade (DUFF, 1989, p.

7). Essas características fazem com que o aluno/tradutor construa

conhecimento linguístico, mas, sobretudo, cultural e comunicativo, tendo

que avaliar possibilidades para redigir uma mensagem clara e precisa e

ao mesmo tempo sendo flexível. A prática da tradução, dessa forma, leva

o aluno/tradutor a descobrir formas de se expressar em ambas as línguas.

Ao realizar a leitura do texto fonte e a busca por elementos que

possam dar ao tradutor a possibilidade de transmitir a mensagem, há

uma operação que se estabelece em nível tanto linguístico quanto

comunicativo. Porém, cabe ao professor levar o aprendiz a se desprender

da noção de língua como estrutura, noção logocêntrica de signo

arbitrário. A perda de significados seria inevitável se o aluno/tradutor se

mantivesse no nível do transporte dos signos linguísticos. Essa noção

locogêntrica de tradução, defendida por teóricos como Catford

(1965/1980), não leva em conta aspectos como funções, objetivos,

historicidade, cultura, ou aspectos ideológicos, encarando o processo

tradutório como uma atividade de simples transporte de significados do

texto ‘original’ para o traduzido, (ARROJO, 1993). Apresenta o tradutor

como tendo “função meramente mecânica” (ARROJO, 2002, p. 12), sendo,

por uma visão/noção logocêntrica, e como denomina Venuti (1986 apud

ARROJO, 1993, p. 138), “[...] invisível em duas frentes, uma textual ou

estética, a outra socioeconômica”. A reprodução desse pensamento

logocêntrico pode levar à conclusão de que a tradução seria impossível,

ilegítima ou ineficiente, podendo somente oferecer reflexos pálidos e

oblíquos do texto fonte (ARROJO, 2003).

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A tradução deve ser compreendida pela perspectiva

desconstrutivista, onde o produto da tradução é compreendido como

outro original. Como “não há signo linguístico antes da escritura3”

(DERRIDA, 1973, p. 17), poderíamos dizer que não há um significado

primeiro, um original como preconizam os estruturalistas. A cada

escritura a relação significado/significante se refaz, tecendo-se novas

tramas, formando-se diferentes desenhos, outras formas, e, assim, tendo-

se, a cada nova leitura, “[...] a ilusão de se prender o signo na nova

malha” (GRIGOLETTO, 1992, p. 32). A significação, dessa forma, é gerada

num processo dinâmico, sendo construída a partir do jogo4 formal das

diferenças, ou seja, o signo somente adquire significação pela sua

diferença em relação a outros elementos. Por isso, o texto, numa

perspectiva desconstrutivista, não pode assumir nem possuir nenhuma

significação definitiva, e o aluno/tradutor deve ser levado a uma

interpretação inicial do texto fonte, uma leitura onde irá produzir os

significados e será fiel à sua interpretação desse texto. Sua tradução,

portanto, será uma representação do que ele mesmo é, do que pensa, do

que sente e da sua compreensão do mundo, que deve ser auxiliada pelo

professor num pensamento crítico e reflexivo. A prática da tradução,

3 Escritura – Derrida utiliza esse termo fora do seu sentido corrente, levando em conta seu sentido metafórico. De acordo com o autor, no sentido corrente, a escritura “[...] é letra morta, é portadora da morte. Ela asfixia a vida”. Por outro lado, em seu sentido metafórico, a escritura remete à “[...] voz da consciência como lei divina, o coração, o sentimento, etc.” (DERRIDA, 1973, p. 21). Ou seja, a escritura é tomada no sentido em que sua natureza se encontra na “[...] voz que se ouve ao se encontrar em si”: uma leitura íntima e individual que procede do interior de cada indivíduo. A escritura não está sujeita à autoridade de quem escreve. O sentido de um texto está sempre adiado, nunca pode ser fixado.

4 Jogo – O conceito de jogo aparece como a possibilidade de destruição de um significado transcendental. É um processo de concretização do sentido das palavras, cujo mecanismo não se encontra pré-determinado. As palavras, segundo Derrida, não possuem um sentido único, estável, mas se encontram à deriva, num jogo aberto de significações. O sentido de uma palavra só existe em função da forma como se relaciona com outras palavras, e é sempre adiado, num interminável jogo de significações. O jogo, segundo Derrida, acontece num campo onde há “[...] substituições infinitas no fechamento de um conjunto finito” (DERRIDA, 1971, p. 244).

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especialmente em sala de aula, não pode ser considerada um transporte

de signos, privando-a da sua dimensão comunicativa, pois, segundo Ridd

(2003, p. 97), a tradução não pode ser resumida a uma atividade de mera

testagem de gramática ou troca de roupagem lexical.

Dessa forma, se as atividades de tradução forem cuidadosamente e

pragmaticamente planejadas e aplicadas em sala de aula, com especiais

cuidados para com a escolha de gêneros textuais diversificados, levando-

se em consideração o conteúdo dos mesmos, e buscando a abordagem

comunicativa e funcional da língua, além da contextualização, sua

eficácia quanto ao desenvolvimento da competência linguístico-

comunicativa, tanto da língua estrangeira quanto da língua materna, será

notável.

De modo especial, a tradução nos dá a oportunidade de

conhecermos melhor nossa própria língua, cultura, sociedade e mesmo

idiossincrasias. Ao ler e interpretar o texto fonte em outra língua, o

aluno/tradutor deverá buscar na sua língua e cultura materna as

diferenças que ocuparão um lugar de destaque na composição do texto

que revelará uma mensagem ‘equivalente’ à do texto-fonte. Da mesma

forma, a partir de uma consciência crítica e reflexiva, perceberá que sua

língua jamais conseguirá transportar a mensagem do texto-fonte de igual

forma. Porém, a beleza da diferença e a riqueza da sua língua materna se

mostrarão no momento do ato tradutório.

Essa discussão, entretanto, deve ser fomentada pelo professor, pois

ao invés de perpetuar o discurso de imperialismo que há tempos permeia

a sala de aula de língua estrangeira, o professor deve buscar a valorização

da cultura e da língua materna, num ato de subversão, conscientização e

reconstrução dos conhecimentos e das verdades absolutas.

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Do cultural ao intercultural através da prática da tradução

Não basta que o aluno aprenda sobre a cultura do outro, numa aula

expositiva sobre outras culturas, como geralmente acontece em sala de

aula de língua estrangeira. O mais importante é oportunizar ao aluno a

experiência de analisar e confrontar situações comunicativas e culturais

novas e desconhecidas, através das quais ele possa experimentar um

novo olhar sobre o outro e sobre si mesmo. Para tanto, trabalhar a “esfera

de interculturalidade” (cf. KRAMSCH, 1993), um processo dialógico que

diz respeito à interação social entre falantes, leitores e textos de diversas

culturas, é essencial.

A utilização de atividades de tradução em sala de aula de língua

estrangeira pode levar o aluno ao desenvolvimento da competência

intercultural quando de seu processo resulta aquisição de conhecimentos

diversos, preparando o aluno/tradutor para o contato dialógico com

diversas culturas. O aluno do mundo globalizado não deve adquirir

somente conhecimento linguístico-comunicativo, mas, sobretudo

competência intercultural para saber lidar com os mais diferentes

padrões culturais, padrões de comportamento diversos, regras de

convivência, valores e crenças.

As Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM)

publicados em 2006 corroboram esse fato, pois segundo o documento a

contribuição de uma aprendizagem de Línguas Estrangeiras vai além de

qualquer instrumentação linguística devendo levar o aprendiz a estender

o horizonte de sua comunicação para além de sua comunidade linguística

restrita própria.

[...] é importante fazer com que o aluno entenda que em determinados contextos (formais, informais, oficiais, religiosos,

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orais, escritos, etc.), em determinados momentos históricos (no passado longínquo, poucos anos atrás, no presente), em outras comunidades (em seu próprio bairro, em sua própria cidade, em seu país, como em outros países), pessoas pertencentes a grupos diferentes em contextos diferentes comunicam-se de formas variadas e diferentes (OCEM, 2006, p. 92).

De acordo com Byram, Gribkova e Starkey (2002, p.40) a

competência intercultural envolve: a) a habilidade de estabelecer relações

entre a cultura de origem e a cultura estrangeira; b) a sensibilidade

cultural e a habilidade de identificar e usar uma variedade de estratégias

para o contato com outras culturas; c) a capacidade de lidar com

situações de conflito e mal-entendidos, desenvolvendo assim um papel

de intermediador entre sua própria cultura e a cultura estranha; e d) a

habilidade de superar relações estereotipadas.

Quando transformado em tradutor interlingual, o aluno passa a

desenvolver competências linguístico-comunicativa e intercultural, e

então a aprendizagem sobre culturas acontece num processo consciente e

reflexivo de comparação entre a cultura materna e outras culturas. Mais

uma vez, vemos a construção e reconstrução do conhecimento, não

somente da língua estrangeira, mas, sobretudo da língua e cultura

maternas. Os textos (orais ou escritos) são produtos de comportamentos

contextualizados que mostram traços de práticas sócio-textuais de uma

cultura de uma forma razoavelmente explícita em sua estrutura

(SHÄFFNER, 2003, p. 94). Nesse sentido, quando um texto é

traduzido, o aluno/tradutor o interpreta com o auxilio de suas próprias

experiências prévias e do seu ponto de vista. Como o objetivo do tradutor

é possibilitar a compreensão através de línguas e culturas e buscar a

acessibilidade de informações, um alto nível de competência

comunicativa intercultural é construído (STIEFEL, 2008). Durante a

prática da tradução de textos e as consequentes discussões sobre a

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mesma, o aluno/tradutor poderá estar envolvido em processos como a

negociação, a construção de identidades, a discussão sobre valores,

normas, crenças, regras, tradições e discursos das línguas envolvidas.

Essa prática da tradução interlingual, cross-cultural, individual, social e

discursiva pode, dessa forma, ter grande relevância para o

desenvolvimento da competência intercultural.

Assim, a prática da tradução pode auxiliar no desenvolvimento dos

componentes da competência intercultural que, segundo Byram,

Gribkova e Starkey (2002), são: conhecimento, habilidades e atitudes,

complementados pelos valores individuais que são parte das identidades

sociais. Para os autores, a fundação da competência intercultural está nas

atitudes do falante e mediador intercultural: 1) Atitudes interculturais:

uma disposição para relativizar seus próprios valores, crenças e

comportamentos, e ter aptidão para ver como eles podem parecer aos

olhos e perspectiva do outro que possui um conjunto diferente de

valores, crenças e comportamentos; 2) Conhecimento: de grupos sociais e

seus produtos e práticas em seu próprio país e no país do seu

interlocutor; 3) Habilidades de interpretação e relacionamento:

habilidade de interpretar um documento ou evento proveniente de outra

cultura, explicá-lo e relacioná-lo a documentos e eventos de sua própria

cultura; 4) Habilidades de descoberta e interação: habilidade de adquirir

novos conhecimentos de uma cultura ou de práticas culturais e a

habilidade de operá-los sob as condições da comunicação e da interação

em tempo real; 5) Consciência Cultural Crítica: habilidade de avaliar

criticamente práticas e produtos do seu próprio país e cultura e dos

países e culturas alheias (BYRAM; GRIBKOVA; STARKEY, 2002, p. 12-

13). Dessa forma, o aluno/tradutor participa de um processo de

ensino/aprendizagem dialógico – tanto de língua estrangeira quanto de

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sua língua materna –, onde aprende a apreciar e respeitar as diferenças

entre culturas.

No entanto, se os professores não estiverem preparados para a

aplicação de tais atividades com direcionamentos e orientações

necessárias, o processo de aprendizagem intercultural não se completa.

Segundo Fennes e Hapgood (1997) citados em Mendes (2007), não pode

haver sucesso na adoção de abordagem intercultural em sala de aula se

não houver planejamento, estrutura, orientação e monitoração constantes,

bem como a avaliação do desenvolvimento do processo.

Empoderamento através da prática da tradução O termo ‘empoderamento’ é um neologismo criado a partir do

vocábulo inglês empowerment. Estudos históricos sobre o surgimento do

termo revelam que possivelmente teve suas raízes na Reforma

Protestante, iniciada por Martinho Lutero no século XVI (BAQUERO,

2012). O termo tem sido usado em diferentes contextos e áreas de

conhecimento, principalmente nas áreas de saúde pública, psicologia

comunitária e administração.

Na área da educação, a questão do empoderamento parte da

discussão sobre conscientização, levantada por Paulo Freire (1979). Gohn

(2004 apud BAQUERO, 2012) nos lembra que o termo empoderamento

pode ser compreendido a partir de dois pontos de partida diferentes:

compreendendo-se o verbo ‘empoderar’ como sendo transitivo ou

intransitivo. Como verbo transitivo, empoderar “[...] envolve um sujeito

que age sobre um objeto, [...] significa dar poder a outro, compartilhando

alguns poderes que determinados profissionais devem ter sobre outros”

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(BAQUERO, 2012, p. 179, ênfase do autor). Como verbo intransitivo, “[...]

empoderar se refere a um processo através do qual pessoas ganham

influência e controle sobre suas vidas e, consequentemente, se tornam

empoderadas” (idem).

A partir de uma perspectiva Freiriana, o empoderamento é visto

como um ferramenta para transformação da realidade social. O

empoderamento individual se constrói através do desenvolvimento da

percepção crítica da realidade social de forma a poder questioná-la e

refletir sobre ela e as relações nela construídas. Para Freire, “[...] a

conscientização é o olhar mais crítico possível da realidade, que a

“desvela” para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que

ajudam a manter a realidade da estrutura dominante” (FREIRE, 1979).

Assim, o sujeito crítico, empoderado, autônomo, dialoga com a realidade

questionando os mitos e relativizando os ‘fatos’ que lhe são apresentados.

Esse diálogo deve acontecer, principalmente na educação, a partir de

uma postura epistemológica que visa problematizar a forma oficial do

conhecimento, numa incansável busca por respostas que envolve também

um processo inesgotável de contestação e redescoberta desse

conhecimento. Esse processo, segundo Freire (1981) deve ser relacional,

em que ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, e sim os

homens se educam entre si mediados pelo mundo. Assim, o

empoderamento só poderá ser alcançado através das relações construídas

por um diálogo constante com outros sujeitos e com o mundo.

A tradução se insere nesse contexto por ser ferramenta importante

para a reflexão crítica e, dessa forma, auxiliar no desenvolvimento do

sujeito empoderado. A prática da tradução interlingual utilizada em sala

de aula de língua estrangeira pode reunir uma busca pelo

desenvolvimento das competências linguístico-comunicativa e

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PERTEL, Tatiany. A prática da tradução como fonte de aprendizagem de língua materna: uma atividade comunicativa empoderadora. In: DEPAULA, Lillian; REZENDE, P.; CASTRO, M. C. de; PERTEL, T. (org.) Tradução: sobre a quintahabilidade na língua, no outro, na arte. São Carlos: João & Pedro, 2014. p. 131-149

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intercultural e empoderamento, num olhar voltado para a construção de

um sujeito crítico e reflexivo.

Segundo Bakhtin, “nosso próprio pensamento [...] nasce e forma-se

em interação e em luta com o pensamento alheio, o que não pode deixar

de refletir nas formas de expressão verbal do nosso pensamento” (1997,

p. 318). Essa prática dialógica revela-se naturalmente na atividade da

tradução interlingual. Ela só pode ocorrer a partir de um diálogo entre

vários elementos que compõem o processo. Esse encontro é

necessariamente permeado pelas experiências do tradutor, pelas suas

concepções de língua, de linguagem, de mundo, e de sujeito. Ao traduzir

– esse é o ponto chave do empreendimento – o aluno/tradutor poderá

relativizar todos os elementos que compõem o processo, ao invés de

aceitar a realidade que nos é dada. A tradução é uma atividade que pode

tanto perpetuar discursos de poder e verdades – uma fenomenologia

ingênua do ato de traduzir – quanto experiência de reflexão e crítica.

Segundo Rajagopalan, “quando a tradução ocorre em condições de

relações desiguais de poder [...] torna-se [...] uma luta para alavancar

significados como se eles estivessem abrigados no texto fonte, [...] Isso

necessariamente envolve ressignificar as colocações no texto fonte”

(RAJAGOPALAN, 2013).

Dessa forma, ao ser crítico e reflexivo, o aluno/tradutor realiza a

obra da diferença, recriando o ‘original’, redescobrindo os significados,

bem como ressignificando-os, numa dialogia que revela o texto

traduzido, construído a partir de um jogo que, futuramente, ao ser lido e

re-lido, será substituído por outra escritura. O fato, é que o

aluno/tradutor participa desse processo de forma crítica e reflexiva, a

partir de um saber sui generis. Portanto, como já dito anteriormente, o

aluno/tradutor deverá ser orientado pelo professor a conceber a prática

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da tradução de forma desconstrutivista, renovadora, capaz de redesenhar

um discurso, muito mais do que transportar significados que

supostamente estariam presos ao ‘texto original’.

Assim, o aluno/tradutor se vê tendo que tomar decisões que

mudarão não somente a sua realidade, mas, sobretudo a realidade como

um todo. Pois, como afirma Freire,

Diante de um “universo de temas" em contradição dialética, os homens tomam posições contraditórias; alguns trabalham na manutenção das estruturas, e outros, em sua mudança. Na medida em que cresce o antagonismo entre os temas que são a expressão da realidade, os temas da realidade mesma possuem tendências a serem mitificados, ao mesmo tempo que se estabelece um clima de irracionalidade e de sectarismo. Este clima ameaça arrancar dos temas sua significação profunda e privá-los do aspecto dinâmico que os caracteriza. Numa tal situação, a irracionalidade criadora de mitos converte-se, ela própria, em tema fundamental. O tema que se lhe opõe, a visão crítica e dinâmica do mundo, permite “desvelar” a realidade, desmascarar sua mitificação e chegar à plena realização do trabalho humano: a transformação permanente da realidade para a libertação dos homens (FREIRE, 1979, s/p).

A busca pelo sentido e pelo seu lugar na construção dos textos

traduzidos pode fazer com que o aluno/tradutor pense os temas dentro

da sua realidade cultural, social e histórica. Uma visão crítica e dinâmica

do mundo, como afirma Freire, aplicada ao processo da tradução pode

ainda mais: criar uma postura julgadora do conhecimento. A prática da

tradução pode revelar as possibilidades nunca enxergadas numa situação

de ensino de língua estrangeira que perpetua visões hegemônicas. Ao

traduzir para sua língua materna, o aluno/tradutor deve se ver

ultrapassando a “[...] fronteira entre ser e ser mais humano, melhor que a

fronteira entre ser e não ser” (FREIRE, 1979, s/p), uma vez que percebem

a riqueza existente em sua língua, cultura e história que pode lhe oferecer

a crítica reflexiva sobre as diferenças entre as culturas e as línguas, e não

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uma visão de submissão a outras culturas. Assim, partem para um

empreendimento cujo objetivo é alcançar o “possível não experimentado”

(idem) que a tradução pode lhe proporcionar.

Para alcançar o empoderamento através da tradução, entretanto, o

aluno/tradutor deve ler, interpretar, questionar e discutir os conteúdos e

as mensagens dos textos propostos para a atividade da tradução, que

devem ser autênticos. Essa pré-atividade deve conduzi-lo à redescoberta

e relativização do conhecimento. Ao buscar meios para traduzir, o

aluno/tradutor pensará nas possibilidades linguísticas, sociais, culturais,

históricas, ideológicas com as quais poderá reconstruir/recriar o texto em

sua língua materna. Essa fase lhe fará transcender a fronteira do “ser

mais humano” da qual nos fala Freire.

Mais uma vez, é importante salientar o papel do professor na busca

por esse empreendimento. A tradução pode ser invocada tanto da

perspectiva objetivista, onde a experiência do aluno não desempenharia

papel importante no processo de tradução e reestruturação do

conhecimento quanto da perspectiva construtivista, na qual o aprendiz

poderá construir sua própria realidade.

Para ser válido, o ensino-aprendizagem com vistas à

interculturalidade e ao empoderamento deve espelhar o modelo de

educação proposto por Freire que pressupõe a consideração da vocação

ontológica do homem – vocação de ser sujeito – e as condições em que ele

vive: num determinado lugar, num determinado momento, em certo

contexto (FREIRE, 1979). Assim, quanto mais o aluno for sujeito ativo no

processo de construção e reconstrução de conhecimentos, consciente do

seu lugar e dos lugares dos outros, quanto mais crítico e reflexivo se

tornar esse sujeito, muito maior será o seu comprometimento com a sua

realidade e com a construção das identidades sociais.

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Considerações finais O papel da tradução no processo de ensino/aprendizagem de

língua estrangeira pode ser tanto prejudicial quanto proporcionar o

desenvolvimento de habilidades e competências necessárias ao sujeito do

mundo globalizado. A tradução, se empregada de forma consciente, bem

planejada e desenvolvida, criativa e pragmática pode enriquecer o ensino

e a aprendizagem de si mesmo, num empreendimento de

redescobrimento e reconstrução de si e do outro. Esse enriquecimento

pode ocorrer numa busca não por equivalentes, mas pela diferença que

existe quando o texto traduzido trará características construídas pelo

próprio aluno/tradutor, um sujeito participante reflexivamente e

criticamente do discurso, dialogando com o texto-fonte e com os demais

elementos que compõem o jogo formal das diferenças existentes no

processo da construção de escrituras.

Esse conjunto pode transformar a sala de aula de língua estrangeira

num laboratório de construção e reconstrução do conhecimento, pois as

respostas que o aluno/tradutor der e as escolhas que fizer no ato

tradutório, as discussões que devem seguir as traduções não mudam

somente a forma de ver as realidades e as línguas com as quais constrói

conhecimento de mundo, mas muda o próprio aluno, cada vez um pouco

mais, e sempre de modo diferente.

Referências

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PERTEL, Tatiany. A prática da tradução como fonte de aprendizagem de língua materna: uma atividade comunicativa empoderadora. In: DEPAULA, Lillian; REZENDE, P.; CASTRO, M. C. de; PERTEL, T. (org.) Tradução: sobre a quintahabilidade na língua, no outro, na arte. São Carlos: João & Pedro, 2014. p. 131-149

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