educação em língua materna

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Stella Maris Bortoni de Figueiredo Ricardo

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Page 1: Educação em língua materna

Stella Maris Bortoni de Figueiredo Ricardo

Page 2: Educação em língua materna

Estado do Acre

Governador Jorge Viana

Vice-GovernadorArnóbio Marques

Secretaria de Estado de Educação do AcreMaria Corrêa da Silva

Coordenadora de Ensino Superior da SEEAMaria José Francisco Parreira

Fundação Universidade de Brasília — FUB/UnB

ReitorTimothy Martin Mulholland

Vice-ReitorEdgar Nobuo Mamiya

Decano de Ensino e GraduaçãoMurilo Silva de Camargo

Decano de Pesquisa e Pós-graduaçãoMárcio Martins Pimentel

Faculdade de Educação — FE/UnB

DiretoraInês Maria M. Zanforlin Pires de Almeida

Vice-DiretoraLaura Maria Coutinho

Coordenadora PedágogicaSílvia Lúcia Soares

Coordenador de InformáticaTadeu Queiroz Maia

Centro de Educação a Distância — CEAD/UnB

DiretorProfessor PhD. Bernardo Kipnis

Coordenadora ExecutivaJandira Wagner Costa

Coordenadora PedagógicaMaria de Fatima Guerra de Sousa

Gestão PedagógicaMaria Célia Cardoso Lima

Gestão de ProduçãoBruno Silveira Duarte

Design GráficoJoão Baptista de Miranda

Equipe de RevisãoBruno RochaDaniele SantosFabiano ValeLeonardo MenezesRoberta Gomes

Apoio LogísticoFernanda Freire Pinheiro

Page 3: Educação em língua materna

Conhecendo a autora_______________4

Seção 1A sociedade brasileira: características sociológicas _________7

Introdução____________________________________________8

Diversidade lingüística e pluralidade cultural no Brasil ____ 1�

A comunidade de fala brasileira_________________________��

Analisando o Português do Brasil_______________________ �6

Seção 2A variação lingüística em sala de aula____________________4�

Competência comunicativa____________________________ 50

Seção 3Revendo a variação lingüística no Português do Brasil____ 59

Referências_______________________ 82

Sumário

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Conhecendo a autora

Stella Maris Bortoni de Figueiredo Ricardo

Possui graduação em Letras Português e Inglês pela Uni-versidade Católica de Goiás (1968), mestrado em Lingüística pela Universidade de Brasília (1977) , Doutorado em Lingüística - Univer-sity of Lancaster (1983) e pós-doutorado em Etnografia Educacional na Universidade da Pennsylvania (1990). Atualmente é professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Foi presidente da ANPOLL (1992-4) e vice-presidente e presidente em exercício da ABRALIN (2003-5). Foi diretora do Instituto de Letras da UnB (1993-7). Já publicou no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em Educação e Lingüística, trabalhando principalmente com os seguin-tes temas: educação em língua materna, formação de professores, alfabetização, etnografia de sala de aula e letramento. Vem atuando nos últimos cinco anos como consultora para o MEC em diversos projetos de formação continuada de professores. Mantém na in-ternet a página http://www.stellabortoni.com.br, dirigida especial-mente a professores em atividade e em formação.

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A sociedade

brasileira:

características

sociolingüísticas

Objetivos: identificar as principais características sociolingüísticas da

sociedade brasileira e suas implicações para a educação.

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Caro(a) cursista,

Para começarmos a conversar sobre nossa língua ma-terna e as tarefas que temos de realizar em sala de aula a fim de aju-dar nossos alunos a desenvolverem sua competência comunicati-va, escolhemos para você este pequeno trecho do livro Rememórias Dois, de Carmo Bernardes, no qual o autor narra uma experiência interessante dos seus primeiros dias na escola:

Entrei numa lida muito dificultosa. Martírio sem fim o não entender nadinha do que vinha nos livros e do que o mestre Frederico falava. Estranheza colosso me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi desse tempo o mal que me acompanha até hoje de ser recanteado e meio mocorongo. Com os meus, em casa, conversava por trinta, tinha ladineza e entendimento. Na rua e na escola - nada; era completamente afrásico. As pessoas eram bichos do outro mundo que temperavam um palavreado grego de tudo.

Já sabia ajuntar as sílabas e ler por cima toda coisa, mas descrencei e perdi a influência de ir à escola, porque diante dos escritos que o mes-tre me passava e das lições marcadas nos livros, fiquei sendo um quar-ta-feira de marca maior. Alívio bom era quando chegava em casa.

Os meninos que arrumei para meus companheiros eram todos filhos de baiano. Conversavam muito diferente do que estava escrito nos li-vros e mais diferentes ainda da gente de minha parentalha. Custei a danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas não quiseram aprender a minha. Faziam era caçoar. Nestes casos, por exemplo: eu falava “sungar”, os meninos da rua falavam “arribar”, e mestre Frederico dizia “erguer”. Em tudo o mais era um angu-de-caroço que avemaria.

Um dia cheguei atrasado e dei a desculpa de que o relógio lá estava “azangado”. Aí o mestre entortou o canto da boca e enrugou o couro da testa e derreou a cabeça e ficou muito tempo assim de esguelha fisgado em mim, depois estralou:

-O rélogio está o quê?!!

Ah, meu Deus... Tampei a cara com o livro, e uma coceira descomedida nas popas me pôs a retocar e a esfregar no banco, como quem tinha panhado bicho. Um menino que gostava muito de mim foi me salvar e embaraçou-se todo também:

-Ele está dizendo que o relógio da casa dele “escanchelou”! Mestre Frederico derreou a cabeça para o outro lado e tornou a

Introdução

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estralar:

-O quê!!!

Ajuntou a boca no maior afinco de estancar um riso quase vertente, ínterim em que a risadagem já ia entornando na sala toda. -Silên...cio!...

E, peculiarmente, a palmatória surrou miúdo no tampo da mesa. Em tudo o mais era nesse teor. Era – não: é. Vivi até hoje empenhado na pe-leja mais dura, com o viso de me acostumar a falar de acordo, e não sou capaz. Em estando muito prevenido é que às vezes dou conta de puxar mais ou menos os efes e erres, assim mesmo sujeito a desastrosas sila-badas... Descuidei, que seja, resvalo, e quando quero acudir é tarde.

Sem maior esforço, dou conta de arrumar direitinho um fraseado com aparência de erudito, e em pouco prazo estiro no papel uma chorola certinha, conforme preceitua a gramática. Contar um caso bem conta-do, com cautela de não dar motivos a enjoamento em quem vai ler, é que não sou capaz porque tolhido dentro das regras que Mestre Frede-rico me ensinou nunca pude armar uma estória que prestasse. A coisa não se expressa, fica tudo pálido, enxabido, um negócio maninho que não há que traga.

Só desaçaimado de tudo quanto é fiscalização de regras e formas, sou capaz de ajeitar uma prosa sofrível. Aí vou desaloiando de dentro de mim as palavras e as formas que trago na massa do sangue., olvido o mundo que me cerca e me engolfo numa lembrança qualquer mal apa-gada, e assim, às vezes arrumo uma escrita que não enfada muito.(BERNARDES, Carmo. Rememórias Dois, Goiânia: Leal, 1969, pp. 18-20.)

Carmo Bernardes foi um grande escritor regionalista nascido em Patos de Minas, em 1915, e já falecido. Seu nome ge-ralmente é associado ao movimento literário regionalista goiano, pois foi em Goiás que ele passou toda sua vida e ambientou vários de seus livros, como Vida Mundo, Jurubatuba, Rememórias e Reme-mórias Dois. Sua produção literária reflete com fidelidade a rique-za da cultura rural da região onde nasceu e viveu. A narrativa que lemos é uma retrospectiva de sua experiência na Escola Municipal de Formosa – GO, município para onde sua família se mudou, trans-portada por tropas de burros em 1915. O episódio relatado deve ter ocorrido em meados da década de 20.

Ao ler o texto, você encontrou algumas palavras que não fazem parte de seu repertório lingüístico. Você não as conhece porque algumas delas são palavras e expressões características da cultura rural da região Centro-Oeste onde o autor nasceu e foi cria-do. Outras, além de pertencerem ao léxico regionalista também são arcaicas, isto é, já não são usadas com freqüência, tendo sido pre-servadas na cultura de grupos sociais mais isolados, como é o caso das comunidades rurais. Há ainda no texto expressões que são mais comuns na língua oral que na língua escrita. Vamos reler o texto sublinhando essas palavras.

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Entrei numa lida1 muito dificultosa. Martírio sem fim o não entender nadinha do que vinha nos livros e do que o Mestre Frederico falava. Estranheza colosso me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi desse tempo o mal que me acompanha até hoje de ser recanteado2 e meio mocorongo. Com os meus, em casa, conversa por trinta, tinha la-dineza3 e entendimento. Na rua e na escola - nada; era completamente afrásico4. As pessoas eram bichos do outro mundo que temperavam um palavreado grego de tudo.

Já sabia ajuntar as sílabas e ler por cima toda coisa, mas descrencei5 e perdi a influência6 de ir à escola, porque diante dos escritos que o mes-tre me passava e das lições marcadas nos livros, fiquei sendo um quar-ta-feira de marcar maior7. Alívio bom era quando chegava em casa.

Os meninos que arrumei para meus companheiros eram todos filhos de baiano. Conversavam muito diferente do que estava escrito nos li-vros e mais diferentes ainda da gente de minha parentalha8. Custei a danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas9 não quiseram aprender a minha. Faziam era caçoar. Nestes casos, por exemplo: eu fa-lava “sungar”, os meninos da rua falavam “arribar”, e mestre Frederico di-zia “erquer”. Em tudo o mais era um angu-de-caroço que avemaria.

Um dia cheguei atrasado e dei a desculpa de que o relógio lá estava “azangado”. Aí o mestre entortou o canto da boca e enrugou o couro da testa e derreou10 a cabeça e ficou muito tempo assim de esguelha11 fisgado em mim, depois estralou:

-O relógio está o quê?!!

Ah, meu Deus... Tampei a cara com o livro, e uma coceira descomedida nas popas me pôs a retocar e a esfregar no banco, como quem tinha panhado12 bicho. Um menino que gostava muito de mim foi me salvar e embaraçou-se todo também: -Ele está dizendo que o relógio da casa dele “escanchelou”! Mestre Frederico derreou a cabeça para o outro lado e tornou a estralar 13:

-O quê!!!

Ajuntou a boca no maior afinco de estancar um riso quase vertente, ínterim em que a risadagem já ia entornando na sala toda. -Silên...cio!...

E, peculiarmente, a palmatória surrou miúdo no tampo da mesa.Em tudo o mais era nesse teor. Era – não: é. Vivi até hoje empenhado na peleja14 mais dura, com o viso de me acostumar a falar de acordo, e não sou capaz. Em estando muito prevenido é que às vezes dou conta de puxar mais ou menos os efes e erres, assim mesmo sujeito a desas-trosas silabadas... Descuidei, que seja, resvalo, e quando quero acudir é tarde. Sem maior esforço, dou conta de arrumar direitinho um fraseado com aparência de erudito, e em que pouco prazo estiro no papel uma cho-rola15 certinha, conforme preceitua a gramática. Contar um caso bem contado, com cautela de não dar motivos a enjoamento em quem vai ler, é que não sou capaz porque tolhido dentro das regras que mestre Frederico me ensinou nunca pude armar uma estória que prestasse. A coisa não se expressa, fica tudo pálido, enxabido16, um negócio mani-nho17 que não há que traga. Só desaçaimado18 de tudo quanto é fiscalização de regras e formas, sou capaz de ajeitar uma prosa sofrível. Aí vou desalojando de dentro

1 “Lida” – é um substantivo derivado do verbo ‘lidar’ que significa ‘trabalhar’ ou ‘lutar’. Confira seu significado em um dicionário. Os substantivos que são formados de verbos com a junção das vogais – o,-a,-e ao radical do verbo são chamados deverbais, e o processo de sua formação é conhecido como deriva-ção regressiva. Veja a pequena relação abaixo e depois a complete para que você fixe bem o processo de derivação regressiva. Lembre-se de que ao traba-lharmos com a formação das palavras, estamos no campo da Morfologia.

lid + ar > lid + a (lidar > lida)abal + ar > abal + o (abalar > abalo)afag + ar > afag + o (afagar > afago)enlaç + ar > enlac + e ( enlaçar > enla-ce)chor + ar > chor + o ( _____> _______)recu + ar > recu + o ( _____> _______)toc + ar > toqu + e ( ______> _______)busc + ar > busc + a ( _____> _______)

2 “Recanteado” – é um adjetivo deri-vado do substantivo ‘recanto’. Confira no dicionário o significado de recanto, mas lembre-se de que, entre os diver-sos significados que o dicionário apre-senta, você vai selecionar o significado adequado ao contexto. No nosso caso, o significado é o de esconderijo. ‘Recante-ado’ é, então, aquela pessoa que gosta de se isolar num lugar reservado. Ao se referir ao menino como ”recanteado”, o autor quis enfatizar seu temperamen-to introvertido. O adjetivo ‘mocorongo’ que também usou tem um significado semelhante. Confira-o no dicionário.

3 “Ladineza” – é um substantivo deriva-do do adjetivo ladino com o acréscimo do sufixo – eza. É um caso de derivação sufixal, que ocorreu assim: ladin + eza. Escreva ao lado outros substantivos formados com esse sufixo. Vamos agora ao dicionário para ver o significado de ‘ladino’. Ladino é o mesmo que ‘astuto’, ‘esperto’. “Ladino” e ”ladineza” são pala-vras que estão caindo em desuso, mas não chegam a ser arcaísmos.

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4 “Afrásico” – não é uma palavra do lé-xico regionalista, como as outras que acabamos de ver. É uma palavra com-posta com o prefixo a-, que herdamos do grego antigo e que tem o sentido de negação. Afrásico significa que é mudo, sem linguagem. É claro que o autor usou a palavra como um exagero, para enfati-zar a sua dificuldade de se expressar no ambiente da escola. O uso de exageros para dar ênfase a um conceito é conhe-cido como hipérbole.

5 ”Descrencei” – o verbo ‘descrençar’ é formado pelo prefixo des-, de origem latina, que contém a idéia de negação. ‘Descrençar’, então, é perder a crença, mas na cultura rural em que Carmo Ber-nardes foi criado, ‘descrençar’ significa perder o entusiasmo, a motivação. Você certamente já ouviu pessoas usando esse verbo nessa acepção. E você? Tam-bém tem o costume de usar o verbo ‘descrençar’ para significar a perda de estímulo e motivação?

6 ”Influência” – essa palavra foi usada no sentido de entusiasmo, animação. Nesse sentido, a palavra é característica das falas regionais e rurais. Confira-a no dicionário.

7 ”Quarta-feira de marca maior” – essa expressão equivale a ‘preguiçoso’, ‘relap-so’, ‘descompromissado’. Observe que a expressão, além de ter um caráter regio-nalista, é também própria da linguagem oral, coloquial.

8 Observe a formação do substantivo ‘parentalha’, com o sufixo -alha, que formam palavras de uso popular como ‘gentalha’.

9 ”Trancas” – é um regionalismo que sig-nifica indivíduo que serve de empecilho ou tem mau caráter. Confira-o no dicio-nário.

10 O verbo ‘derrear’, que significa ‘arrear’, tem hoje em dia uso restrito e é mais en-contrado no linguajar rural.

de mim as palavras e as formas que trago na massa do sangue., olvido o mundo que me cerca e me engolfo19 numa lembrança qualquer mal apagada, e assim, às vezes arrumo uma escrita que não enfada muito.(BERNARDES, Carmo. Rememórias Dois, Goiânia: Leal, 1969, pp. 18-20.)

O texto de Carmo Bernardes, além de nos ensinar mui-tas palavras e expressões novas, que ilustram a riqueza da cultura e da linguagem rural nos conduz a uma reflexão sobre a Língua Por-tuguesa no Brasil, suas características e variação, especialmente as diferenças entre o Brasil urbano e o Brasil rural. Vimos que o episó-dio que o autor nos narrou transcorreu na década de 20. Como era o Brasil naquele tempo? No ano de 2000, o IBGE iniciou um censo que nos vai mostrar quantos somos e como a sociedade brasileira se constitui e se organiza. Vamos saber, então, quantos brasileiros vivem no campo e quantos já estão radicados nas áreas urbanas. No censo de 1996, a população brasileira era de aproximadamente 157 milhões de habitantes, dos quais 78,35% viviam em área urbana e 21,6% em área rural. Ao longo dos dois últimos séculos, a população do Brasil cresceu muito e houve uma intensa migração do campo para as cidades. Observe na tabela seguinte esse processo. Em se-guida, complete a tabela com os dados referentes ao censo de 2000. Esses dados você pode obter no IBGE.

Como você pôde ver, quando a família de Carmo Ber-nardes se radicou na zona rural de Formosa – GO, na década de 20, assim como eles havia mais de 26 milhões de brasileiros vivendo no campo. Vejamos agora na tabela 2 como esse processo de concentra-ção populacional nas cidades teve conseqüências na escolarização.

Tabela 2: A evolução da alfabetização no Brasil.

Quando olhamos a tabela 2, ficamos animados ao ver que o percentual de população não-alfabetizada vem diminuindo. Mas não podemos nos deixar enganar com esse declínio nos nú-meros percentuais, por várias razões: primeiro porque os números

Tabela 1: Crescimento da população rural e urbana no Brasil.

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11 “olhar de esguelha” quer dizer ‘olhar enviesado, ‘olhar de lado’.

12 Em ‘panhado’ vemos a perda do pre-fixo a-. Na história da Língua Portugue-sa, temos muitas palavras que se preser-varam com duas formas: com o prefixo a- e sem esse prefixo. Exemplos desse fenômeno são juntar/ajuntar; sentar/as-sentar; soprar/assoprar; mostrar/amos-trar; voar/avoar. Observe que, nesses pares de palavras, uma delas passou a ser a forma de prestígio, enquanto a outra ficou restrita aos falares rurais. No par ‘arreparar’/’reparar’, a primeira forma hoje em dia só é encontrada no repertó-rio de falantes de origem rural enquan-to a segunda, é encontrada nos falantes urbanos. Isso não significa que uma seja errada e outra certa, como você já sabe. Trata-se de duas variantes da mesma palavra que caracterizam diferentes fa-lares da nossa língua. Ao longo desta unidade, vamos falar muito sobre essa questão de variação, prestígio e precon-ceito.

13 O verbo ‘estralar’ foi usado aí num sentido figurado significando ‘esbrave-jar’, ‘xingar’.

14 “Pelejar” é uma palavra de pouco uso por pessoas de origem urbana, mas mui-to empregada em áreas rurais. Significa ‘luta’, e, por extensão, ‘esforço’, ‘trabalho’.

15 “Chorola” é um termo regional que o autor usou com o sentido de texto in-formal.

16 “Enxabido” é o mesmo que ‘desenxa-bido’, ou seja, ‘sem sabor’, insípido’. Confi-ra no dicionário.

17 “Maninho” é sinônimo de ‘esteril’, ‘não aproveitável’.

18 O adjetivo “desaçaimado” é formado com o prefixo-des, que você já conhece, mais o verbo ‘açaimar’, que significa ‘pôr um açaimo’, que é um tipo de cabresto que se coloca em cavalo para montaria. O adjetivo desaçaimado foi usado em sentido figurado, isto é, ‘sem cabresto’, ‘sem repressão’.

19 Engolfar’ é uma palavra formada com o prefixo em- ou en, de origem latina que significa ‘movimento para dentro’, como em ‘embarcar’, ‘enterrar’. No texto foi usado em sentido figurado, ou conotativo para significar ‘penetrar’, ‘mergulhar’.

totais da população não-alfabetizada não têm um movimento des-cendente e, sim, ascendente. Em segundo lugar porque, se exami-narmos os dados com mais detalhamento, verificamos que o anal-fabetismo não atinge igualmente toda a população: concentra-se na população rural, que é, secularmente, a menos beneficiada no processo de desenvolvimento do país. A tabela 3 mostra essa distri-buição. Os dados se referem aos censos de 1970 e 1980.

Tabela 3: Taxas de alfabetização na população brasileira de 15 anos ou mais.

Ano base: 1996

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Atividade

Com base nos dados percentuais da tabela 3, construa dois gráficos sobre a distribuição da população não-alfabetizada no Brasil: o primeiro contemplando a variável “localização de domicílio” (rural e urbano) e o segundo contemplando a variável “gênero” (ho-mens e mulheres). Leve seus gráficos para a sala de aula e os mostre para seus alunos. Será interessante para eles descobrirem quais os grupos sociais que mais sofrem com a falta de escolarização.

Reflita

1) – Por que o percentual de não-alfabetizados na zona rural é quase o dobro do percentual de área urbana?

2) – Por que, na faixa de 15 a 19 anos, o percentual de homens não-alfabetizados (7,9%) é muito superior ao percentual de mulheres não-alfabetizadas (4,0%)? Observe que o mesmo fe-nômeno está ocorrendo em proporções menores nas faixas de 20 a 24, de 25 a 29 e de 30 a 39 anos. Quando chegamos às faixas de mais de 40 anos, a tendência se reverte: o percentual de mulheres não alfabetizadas é superior ao dos homens não-alfabetizados. Que características sócio-econômicas e culturais da sociedade brasileira explicam essas tendências? Discuta essas questões com seus cole-gas e, em seguida, com seus alunos.

Diversidade lingüística e pluralidade cul-tural no Brasil

Voltemos agora à narrativa da experiência do autor Car-mo Bernardes, na escola do Mestre Frederico. Ele nos fala de sua experiência em casa, com sua parentalha, na rua com os “filhos de baiano” e na escola onde encontrava um palavreado grego de tudo. Esses são os três ambientes onde uma criança começa a desenvol-ver o seu processo de sociabilização: a família, os amigos e a escola. Podemos chamar esses ambientes, usando uma terminologia que vem da tradição sociológica, de domínios sociais. Um domínio so-cial é um espaço físico onde as pessoas interagem assumindo cer-tos papéis sociais. Os papéis sociais são um conjunto de obrigações e de direitos definidos por normas socioculturais. Os papéis sociais são construídos no próprio processo da interação humana. Quando usamos a linguagem para nos comunicar, também estamos cons-truindo e reforçando os papéis sociais próprios de cada domínio. Vejamos alguns exemplos. No domínio do lar, as pessoas exercem os papéis sociais de pai, mãe, filho, filha, avô, tio, avó, marido, mulher, etc. Quando observamos um diálogo entre mãe e filho, por exem-plo, verificamos características lingüísticas que marcam ambos os papéis. As diferenças mais marcantes são as intergeracionais (ge-ração mais velha/geração mais nova) e as de gênero (homem/mu-lher). Você, caro (a) cursista, conhece bem essas diferenças sociolin-

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güísticas que ocorrem na interação no seio de sua própria família. No segundo fascículo, você terá mais informações sobre esse tema.

Discuta

Este é um bom tema para você discutir com colegas, amigos, com seus familiares e até com seus alunos: no ambiente familiar, como os papéis que as pessoas exercem são determinan-tes da linguagem que elas usam? Em outras palavras, quais as dife-renças entre a linguagem do marido e da mulher, ou da mãe e dos filhos?

Atividade

Com base na sua reflexão e discussão, monte com seus alunos uma pequena peça de teatro em que fiquem bem claras as diferenças lingüísticas observadas no interior da família e relaciona-das aos papéis sociais.

Carmo Bernardes, nas suas memórias, nos diz que, com seus parentes “conversava por trinta, tinha ladineza e entendimen-to”. É, sem dúvida, no domínio do lar e da família onde nos sentimos mais à vontade para conversar. Por isso, o menino em sua casa era tão tagarela. Não se sentia constrangido. Podemos dizer que, nessas circunstâncias, a pressão comunicativa sobre ele era mínima. Já na escola...

Você pode observar que a transição do domínio do lar para o domínio da escola é também uma transição entre uma cul-tura predominantemente oral e uma cultura permeada pela escrita, que vamos chamar de cultura de letramento. O menino Carmo Ber-nardes, ao entrar na escola, já estava alfabetizado, mas não tinha fa-miliaridade com a cultura de letramento. Sendo um menino criado em zona rural, restrito ao âmbito da família, não entendia ‘nadinha do que vinha nos livros e do que o Mestre Frederico falava’. Como um mestre à moda antiga, nosso colega Frederico caprichava mui-to na linguagem. Por exemplo em vez de falar ‘levantar’, falava ‘er-guer’. Sua formalidade, associada ao seu rigor, contribuiu para criar no menino um grande temor e insegurança lingüística. Temia não estar falando ou se comportando à altura dos padrões ditados pelo mestre. Por isso se calava. Você, que também é professor, já perce-beu que as condições descritas por Carmo Bernardes são as que contribuem para criar nos educandos a insegurança lingüística. Vol-taremos a falar disso em muitos outros pontos de nossos fascículos de Educação e Língua Materna.

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Reflita

Vimos que o mestre Frederico era muito formal na sua linguagem em sala de aula. Provavelmente era também formal nos outros domínios sociais. Hoje em dia, encontramos poucas pessoas que mantêm grande formalidade em suas interações. Mas cabe aqui tomarmos um pouco de nosso tempo para refletirmos sobre a seguinte questão: Os professores devem manter sempre um estilo cuidado e formal em sala de aula? Ao contrário do do-mínio do lar, onde predominam a afetividade e a espontaneidade, o domínio da escola deve ser sempre marcado pela formalidade e rigor no uso da fala?

Na sala de aula, como em qualquer outro domínio so-cial, encontramos grande variação no uso da língua, mesmo na lin-guagem da professora que, por exercer um papel social de ascen-dência sobre seus alunos, está submetida a regras mais rigorosas no seu comportamento verbal e não-verbal. O que estamos querendo dizer é que, em todos os domínios sociais, há regras que determi-nam as ações que ali são realizadas. Essas regras podem estar do-cumentadas e registradas, como nos casos de um tribunal do júri ou de um culto religioso ou podem ser apenas parte da tradição cultural não-documentada. Em um ou outro caso, porém, sempre haverá variação de lingüística nos domínios sociais. O grau dessa variação será maior em alguns domínios do que em outros. Por exemplo, no domínio do lar ou das atividades de lazer, observamos mais variação lingüística do que na escola ou na igreja. Mas em to-dos esses casos há variação porque a variação é inerente à própria comunidade lingüística. Vamos nos deter na variação que se obser-va na escola. Para começar, há as diferenças relacionadas aos papéis sociais: professores, diretores, coordenadores, etc., desempenham função de autoridade que lhes confere direitos especiais e também obrigações, entre elas a de usar uma linguagem mais cuidada – que podemos chamar também de monitorada – que a dos alunos. Há também as diferenças relacionadas aos eventos que têm lugar na escola: eventos de sala de aula são mais formais que eventos que ocorrem na cantina ou no recreio. Mas, mesmo em sala de aula, há eventos que são conduzidos com mais formalidade e mais monito-ração lingüística que outros.

Em pesquisas conduzidas em escolas no Estado de Goiás e no Distrito Federal, observamos que os professores monito-ravam muito sua linguagem quando conduziam eventos que eram mediados pela língua escrita, mas eram muito espontâneos em eventos de estrita oralidade. Chamamos os primeiros de eventos de letramento e registramos entre eles a aula de leitura, o ditado, a fala simultânea à escrita no quadro negro, entre outros. Já os even-tos de estrita oralidade são intervenções curtas do professor para manter a disciplina ou passar informações que têm um alto grau de dependência contextual, do tipo: “Abram o livro na página tal”. São também eventos de oralidade brincadeiras que o professor faz com o objetivo de criar uma atmosfera de maior envolvimento e afetivi-dade. Estudando rigorosamente essas interações em sala de aula,

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pudemos constatar uma ampla gama de variação lingüística. Nos eventos de letramento, constatamos um alto grau de monitoração na linguagem do professor; já nos eventos de oralidade, os profes-sores se monitoravam menos e eram mais coloquiais. Essa forma in-tuitiva de administrar a variação em sala de aula é salutar porque dá ao aluno a oportunidade de interagir com um grau maior ou menor de monitoração estilística. Voltaremos a essa questão brevemente.

Reflita

Propomos a você que reflita sobre o seu discurso em sala de aula para verificar como esse discurso varia em relação à formalidade. Em que momentos você se percebe monitorando seu estilo? Em que momentos Você se sente mais livre para falar com seus alunos?

Atividade

Convide um (a) colega para assistir à sua aula. Peça a ele/ela para observar e anotar os momentos em que você varia seu grau de monitoração estilística. Veja um exemplo recolhido em uma 4ª série do Ensino Fundamental em uma escola no DF, pela pesqui-sadora Vera Aparecida de Lucas Freitas: (P – indica professora ; A – indica aluno; + – indica pausa; xxx – indica trecho incompreensível na gravação).

P – Pera aí. Só vai falar quem levantar o dedo + quem tivé educação + vamu lá!

A – Comer frutas + comer bem...P –...frutas + comer bem + bem + bastante frutas + só

frutas?– Nãão! Bastante verduras...P – Espera aí. + Ã?A – fruta + verdura + (xxx) e bastante água.P – ...tomá água + e aí? Então comer fruta e água + tá

bem alimentado?AA – Nãão!A –. ..tem que comê arroz + feijão.P – Pera aí. Ã?A – Cereais + cereais.P – Verduras + cereais _ que mais?

Observe que, quando a professora está mais envolvida com o conteúdo que está trabalhando, sua linguagem apresenta-se mais monitorada. Quando intervém para organizar os turnos de fala, como no primeiro enunciado, sua fala é mais espontânea, com menos monitoração. Variações estilísticas como essas ocorrem em qualquer sala de aula e você vai se surpreender quando analisar, com seu colega, o seu próprio discurso e verificar que você varia o grau de monitoração de sua fala como um recurso espontâneo para obter um melhor relacionamento com seus alunos..

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Veja agora um segundo exemplo, recolhido por nós em uma escola rural multisseriada em Nerópolis, GO.

O professor está conduzindo um exercício de interpre-tação de texto da segunda série:

(P. vai ao quadro e começa a escrever o exercício. Os alunos copiam em silêncio; retoma a palavra quando conclui a escrita.)

P. Quem sabe fazê aqui agora? Pest’enção aqui, ó. De-pois cês copia aí, tá? Tá escrito aqui. (lendo do quadro) Responda. Com quem se parecia o ? (pára de ler) Como é o nome da leitura lá? Pega a leitura lá que cê sabe. Pega lá no livro, tá? É o quê? O palhaci-nho. Como é o nome da leitura lá? Diga aí.

A. O palhacinho.

P. O palhacinho, né? Vamu trabalhá exatamente. O tra-balho é a leitura lá. Nós vamu vê se nóis entendemos o não o que tá escrito lá. Então vamu, tá? Tá escrito aqui, ó. (Lendo) Com que se pa-recia o palhacinho? (Pára de ler.) Cê vai voltá lá naquela leitura lá. Vai olhá. O palhacinho se parecia com um negócio lá. Com quê? Com um boneco. Então cê vai dizê. Parecia com um boneco, né? (Lendo) Por que todos gostavam dele? (pára de ler) tá? Por que todos gos-tavam dele? Depois (lendo) Qual era a maior felicidade do palha-cinho? Como costumavam chamá-lo ? (Pára de ler) Tá? As crianças chamavam ele é (...) de um nome, sei lá. Um apelido lá, né? Qual era esse apelido dele, tá? (lendo) Um dia o palhacinho chorou. Por que ele chorou? (pára de ler) Tá? Aí cê vai dizê qu’ele chorou por isso, por isso, isso, isso, isso, assim, assim, tá? Isto tá escrito lá no livro. (lendo) Quantas crianças haviam mais o menos no palco? (pára de ler). Ele entrô lá pra fazê a brincadeira com as crianças. Quantas crianças ti-nha mais o menos lá, tá bom? Então cê vai respondê lá, olhanu no livro e responde, tá?

(O P. volta-se para outros alunos e inicia outra atividade.)

Nesse evento, é flagrante a mudança de estilo que o professor realiza quando alterna a leitura e a linguagem oral. Após a leitura de cada pergunta, redigida no quadro de giz com sintaxe padrão, onde aparece até mesmo uma ultracorreção (em “haviam”) 20, ele fornece uma paráfrase, isto é, uma ‘tradução’ usando, então, o dialeto local. Observe que, ao realizar um evento de letramento, o professor usa o pronome átono enclítico: como costumavam cha-má-lo ? Para em seguida ‘traduzir’ o enunciado em: As crianças cha-mavam ele é....

Nesta segunda variante temos o emprego do pronome reto ‘ele’ como objeto direto, regra que é muito comum no nosso português oral. Geralmente, só empregamos os pronomes oblí-quos átonos (o,a,os,as) na linguagem escrita e em estilos muito monitorados.

20 Chamamos hipercorreção ou ultra-correção o fenômeno que decorre de uma hipótese errada que o falante reali-za num esforço para ajustar-se à norma culta. Ao tentar ajustar-se à norma, aca-ba por cometer um erro. Por exemplo: pronunciar ‘previlégio’, imaginando que ‘privilégio’ é errado; pronunciar ‘bandei-ja’ achando que ‘bandeja’ é errado. Pro-nunciar ‘telha de aranha’ achando que ‘teia de aranha’ é errado. No exemplo de sala de aula, o professor flexionou o verbo ‘haver’ que, no sentido de ‘existir’. é impessoal. Ao escrever ‘haviam’ em vez de ‘havia’, ele estava se ultramonitoran-do e o resultado foi uma hipercorreção decorrente de uma hipótese malsucedi-da.

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Atividade

Percebemos variação em sala de aula não só na lingua-gem do professor mas também na linguagem dos alunos, à medida que eles vão aprendendo a alternar estilo monitorado com estilo não-monitorado. Veja o exemplo seguinte de variação estilística no repertório de alunos de 5ª série do Ensino Fundamental. O episódio foi gravado pela pesquisadora Ilse de Oliveira em uma escola de Goiânia.

Os alunos estão planejando oralmente o que vão es-crever em um texto coletivo e os enunciados escritos/lidos se in-tercalam com os enunciados falados. (Os enunciados lidos estão assinalados)

A1 [lendo o que escrevera] e ele deixou nós irmos rap/ e ele deixou nós irmos. Rapidamente arrumamos nossas malas e sa-ímos, e fomos.

A2 [lendo] ih: aí cê tá (xxx) e saímos e fomos. [falando] é claro que se nóis saiu nós fomos. Não [lendo ] e fomos, e fomos, rap/ e e ele deixou nós irmos rapidamente arrumamos nossas malas e fomos. [falando] apaga esse ponto aí e põe ‘e fomos’.

A3[falando] e falamos tchau e fomos.A1[falando] não, e fomos, e a história tá grande demais.A2[lendo] e nós despedimos.A1[falando] nóis num vai terminá hoje não.A2[falando] tem que escrevê muito uai, pra gente ga-

nhá nota.

Nesse exemplo, há uma radical mudança estilística na realização dos turnos que são manifestações próprias da orali-dade em relação aos turnos que constituem evento de letramento, nos quais os alunos estão escrevendo e lendo simultaneamente.

Atividade

Queremos propor a você que observe seus alunos em uma atividade como essa e verifique se eles já são capazes de al-ternar entre um estilo monitorado e um estilo mais espontâneo. Se você conseguir gravar um episódio como o que a Ilse de Oliveira registrou, transcreva-o e apresente aos seus alunos. Eles vão achar muito interessante a forma como usam a língua com competência. Deixe claro para eles que não existe forma certa ou errada de fa-lar, mas sim formas adequadas às diversas situações. Esta questão é muito importante e vai ser mais trabalhada ao longo dos fascículos de Educação e Língua Materna.

Convidamos você, mais uma vez, a retornar ao texto de Carmo Bernardes, agora para conversarmos sobre a passagem em que ele descreve sua experiência com colegas nordestinos que ele

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chamou de “filhos de baiano” O nome não é pejorativo. O termo “baiano” é usado em muitas comunidades do Centro-Oeste como um termo genérico para se referir aos brasileiros provenientes das regiões Norte e Nordeste.

O menino Carmo Bernardes percebia que seus colegas nordestinos “conversavam muito diferente do que estava escrito nos livros e mais diferente ainda da gente de sua parentalha”. Até as crianças são sensíveis a certas diferenças regionais, que podemos chamar também de diferenças dialetais. No Brasil, a variação regio-nal se manifesta mais na pronúncia de alguns sons, no ritmo, na me-lodia e em algumas palavras. O lingüísta Antenor Nascentes, depois de viajar muito pelo Brasil, propôs uma divisão dialetológica em duas grandes áreas dialetais: a Norte e a Sul, cada uma delas subdi-vidida em subáreas. Veja o mapa proposto por Antenor Nascentes:

Aqui em Brasília convivemos com brasileiros provenien-tes de todos os estados e você certamente é capaz de identificar os sotaques nordestino, gaúcho, mineiro, etc. A principal marca dos falares nordestinos são as vogais /e/ e /o/ pronunciadas aber-tas quando vêm na sílaba pretônica. Por exemplo: f[é]iz, R[ó]berto, r[é]dondo, r[é]moto, v[é]rdade, pr[ó]curar. Mas há também outras marcas nesse sotaque, como o /t/ pronunciado como uma conso-ante dental diante de /i/. A pronúncia dental do /t/ é a que realiza-mos nas palavras “tudo”, “todo”, “telha”, “táboa”, etc. No Centro Sul do país o fonema /t/ diante da vogal /i/ não tem pronúncia dental e sim uma pronúncia palatal, que podemos representar assim: [tch], como nas palavras “Tiago”, “tijolo”, “Tijuca”e “antigo”. Também no vocabulá-

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rio, vamos encontrar diferenças. Em muitas áreas do Nordeste, as pessoas dizem “tomar de conta”, enquanto no Centro-Sul se usa “tomar conta’” No léxico da culinária, há muitas diferenças. A pala-vra “canjica”, por exemplo, denota alimentos diferentes nas diversas regiões. A canjica que comemos no Centro-Sul, em alguns pontos do Nordeste é conhecida como “munguzá”. Também nos cortes de carne bovina (filé, contrafilé, patinho, picanha etc) há muita varia-ção. Você certamente conhece muitos outros exemplos de variação dialetal no léxico.

Pesquise

Procure informar-se sobre qual o percentual de residen-tes no AC que nasceram aqui e qual o percentual proveniente de cada estado brasileiro.

Atividade

1. Com os dados obtidos construa uma tabela para mos-trar aos seus alunos. Eles também poderão fazer um pequeno censo na escola indicando a origem geográfica de todos os alunos, pro-fessores e técnicos administrativos. Se os seus alunos já estudaram números percentuais, esta é uma boa oportunidade de praticar esta competência matemática, pois eles deverão apresentar os resulta-dos do censo em totais e em números percentuais.

2. Com base no mapa proposto por Antenor Nascentes, convide seus alunos para realizarem juntos a atividade de entrevis-tar pelo menos cinco pessoas provenientes de cada um dos subfa-lares, pedindo a elas que forneçam uma pequena lista de palavras e expressões que consideram típicas de sua região. Complemente a pesquisa, recolhendo exemplares de literatura representativos das diversas regiões. Com esse material, monte um painel em sala de aula reunindo os dados dialetais, gravuras, postais, mapas, artesana-tos típicos referentes às regiões. Para a inauguração do painel, su-gerimos que você e seus alunos convidem pessoas da comunidade provenientes de outras regiões do Brasil para trocarem experiências e passarem mais informações sobre sua terra natal.

Reflita

Sempre ouvimos falar que o português falado em um estado ou uma região é ‘melhor’ que o de outras regiões. Será que podemos considerar o dialeto de uma região melhor, mais bonito e mais recomendável que os dialetos de outras regiões? Será que exis-te algum estado brasileiro que use melhor a Língua Portuguesa?

Essas crenças sobre a superioridade de um dialeto ou

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falar sobre os demais é um dos mitos que se arraigaram na cultura brasileira. Todo dialeto ou falar é, antes de tudo, um instrumento identitário, isto é, um recurso que confere identidade a um grupo social. Ser nordestino, ser mineiro, ser carioca, etc. é um motivo de orgulho para quem o é e a forma de alimentar esse orgulho é usar o linguajar de sua região e praticar seus hábitos culturais. No entanto, verifica-se que alguns falares ou dialetos têm mais prestígio no Bra-sil como um todo que outros. Por que isso ocorre?

Em toda comunidade de fala onde convivem falantes de vários dialetos, como é o caso das grandes metrópoles brasilei-ras, os falantes que são detentores de maior poder e que gozam de mais prestígio transferem esse prestígio para o dialeto que falam. Assim, os dialetos falados pelos grupos de maior poder político e econômico passam a ser vistos como dialetos mais bonitos e até mais corretos. Mas esses dialetos que ganham prestígio porque são falados por grupos de maior poder nada têm de intrinsecamente superior aos demais dialetos. O prestígio que adquirem é mera-mente resultado de fatores políticos e econômicos. O dialeto falado em uma região pobre pode vir a ser considerado “um dialeto ruim”, enquanto o dialeto falado em uma região rica e poderosa passa a ser visto como “um bom dialeto”. Isso acontece em todos os países entre os quais podemos citar a Espanha, a Itália e a França. Nesse último país, por exemplo, o dialeto francês que adquiriu mais pres-tígio e que hoje tem mesmo o status de língua nacional é o falado na região de Paris, onde se estabeleceu primeiramente a Corte fran-cesa e, depois da Revolução Francesa de 1789, a sede da República. Quando um falar ou dialeto é alçado à condição de língua nacional em virtude de um processo sócio-histórico, ele adquire maior pres-tígio em detrimento dos demais. Lembre-se, porém, de que esses juízos de valor são ideologicamente motivados e geram preconcei-tos que devemos combater.

No Brasil, os falares das cidades litorâneas, que foram sendo criadas ao longo dos séculos XVI e XVII, como Salvador, Rio de Janeiro, Recife e Olinda, Fortaleza, São Luís, João Pessoa, entre ou-tras, sempre tiveram mais prestígio que os falares das comunidades interioranas. Isso se explica porque as cidades brasileiras que estão voltadas para a Europa receberam um contingente muito grande de portugueses nos dois primeiros séculos de colonização e desen-volveram falares mais próximos dos falares lusitanos. Observemos também que, até 1960, a capital do Brasil se situava no litoral, primei-ro Salvador e depois o Rio de Janeiro. É natural que a cidade sede do Governo tenha mais poder político e prestígio e esse prestígio, como vimos, acaba por se transferir ao dialeto da região. No Brasil de hoje, os falares de maior prestígio são justamente os usados nas regiões economicamente mais ricas. Estamos vendo, então, que são fatores históricos, políticos e econômicos que conferem o prestígio a certos dialetos e, conseqüentemente, alimentam rejeição e pre-conceito em relação a outros. Mas sabemos que esse preconceito é perverso, não tem fundamentos científicos e tem de ser seriamente combatido, começando na escola. Conhecemos bons professores

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provenientes da Região Nordeste e dos estados de Goiás e Mato Grosso que tiveram problemas para trabalhar em escolas particu-lares em Brasília com a alegação, por parte dos dirigentes das es-colas, de que sua fala seria ‘um mau exemplo’ para os alunos. His-tórias como essas nos deixam indignados, mas precisamos tomar conhecimento da magnitude e dos efeitos nefastos do preconceito lingüístico para podermos nos municiar de informações científicas e combatê-lo. Lembre-se de que a pluralidade cultural e a rejeição aos preconceitos lingüísticos são valores que precisam ser cultiva-dos a partir da educação infantil e do ensino fundamental.

Leia

Para entender melhor essa relação entre o prestígio dos falantes e a construção de preconceito lingüístico, leia Preconceito Lingüístico, de Marcos Bagno. (São Paulo: Edições Loyola, 1999).

A comunidade de fala brasileira

Continuando nossa reflexão sobre nossa língua mater-na e o desenvolvimento da competência comunicativa dos educan-dos, convidamos você a ler a historinha O limoeiro de Maurício de Sousa (Chico Bento, nº 354)

Legendas:

CB: Chico Bento.

L: Limoeiro

P: Pai do Chico Bento.

M: Mãe do Chico Bento.

> este símbolo indica o interlocutor

CB> L: Vixi! Como você cresceu!Inté parece qui foi onte qui prantei esse limoeiro!Agora, já ta cheio di gaio! Quase da minha artura!Como o tempo passa, né?Uns tempoatrais, ocê era este tamanho!Fiz um buraquinho i ponhei ocê inda muinha drento!Protegi os ventos, do sol, das geada......i nunca deixei fartá água!Imagina si eu ia deixá ocê passá sede!Hoje você ta desse tamanhão!Quero vê o ia im qui ocê tive mais grande qui eu!Imagina só! Cum uns gaio cumprido cheio i limão i umas foia bem larga, pra da sombrapra quem tive dibaixo!Ai, num vô percisá mais mi precupá coce, né, limoeiro?

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Pruque ai ocê vai ta bem forte!Vai sabê si protegê do vento, do sor i da geada, sozinho!I suas raiz vão ta tão cunprida qui ocê vai podê buscá água por sua conta!Ocê vai sê dono doce mermo!Sabe, limoeiro... Tava pensando...Acho qui ispois, vai sê eu qui vô percisá docê!Isso é... Quando eu ficá mais veio!Claro! Cum uns limão tão bão qui ocê tem......i a sombra qui ocê dá, pode mi protegê inté dos pingo di chuva!Ocê vai fazê isso, limoeiro?Cuidá de mim tamém?Num importa!O importante é qui eu prantei ocê!I é ansim qui eu gosto! Do jeito qui ocê é.P> M: Muié...tem reparado como nosso fio cresceu?

O personagem Chico Bento é uma criação muito feliz da equipe de Maurício de Sousa, pois permite às crianças com an-tecedentes urbanos familiarizarem-se com a cultura rural, conhe-cendo muitas expressões dessa rica cultura que, hoje em dia, tem pouco espaço na literatura e nos meios de comunicação. Chico Bento pode-se transformar em nossas salas de aula em um símbo-lo do multiculturalismo que ali deve ser cultivado. Suas historinhas são também ótimo recurso para despertarmos em nossos alunos a consciência da diversidade sociolingüística. Apesar disso, houve um momento na década de 80 em que o Conselho Nacional de Cul-tura queria proibir a publicação na revista, alegando que ela ser-via de mau exemplo às crianças brasileiras, que passariam a falar “errado” como Chico Bento. Felizmente, o bom senso prevaleceu e Chico Bento continuou sua trajetória, encantando as gerações que se seguiram.

Reflita

Essa posição do Conselho Nacional de Cultura refle-te preconceitos arraigados contra as manifestações culturais dos segmentos da população brasileira que são portadores de uma cultura predominantemente oral e têm pouco acesso à cultura de letramento escolar. Reflita sobre essa postura, juntamente com seus colegas e alunos.

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Atividade

Escreva um ‘editorial’ para o jornal (ou jornal mural) de sua escola com o seguinte título: “Por que o personagem21 Chico Bento é bem-vindo em nossa escola?” Peça aos seus alunos que também escrevam ao Chico Bento para dizer a ele por que gostam (ou não gostam) dele. As cartas poderão ser enviadas para a Editora Maurício de Sousa/Editora Globo, Rua Teodoro da Silva nº 907 – Rio de Janeiro, ou pela internet para a página http://editoraglobo.com.br

Atividade

Nos balões da historinha do Chico Bento, você encontra palavras e expressões que são características dos falares rurais. Faça, junto com seus alunos, uma lista dessas palavras, colocando ao lado a variante que você usa para escrever ou para compor seus estilos monitorados na língua oral. Faça assim:

Em nosso trabalho de Educação e Língua Materna, te-mos falado muito em variação lingüística, em variedades e dialetos, em estilos e monitoração estilística, e também temos visto muitos exemplos. Chegou a hora de sistematizarmos um pouco essas in-formações. Já vimos que, em toda comunidade de fala, há sempre variação lingüística. Isso quer dizer que qualquer comunidade, seja pequena como um distrito semi-rural pertencente a um município, ou grande, como uma capital, um estado ou um país, apresentará sempre variação lingüística, que decorre de vários fatores como:

Grupos etários

Já vimos que, no interior da família, há diferenças so-ciolingüísticas intergeracionais: os avós falam diferente dos filhos e dos netos, etc. O mesmo ocorre na sociedade como um todo.

Gênero

Também sabemos que homens e mulheres falam de maneiras distintas. As mulheres costumam usar mais diminutivos, mais partículas como “né?”, “tá?”, “tá bom?”, que são chamadas de marcadores conversacionais e que cumprem várias funções na con-versa. No caso dos marcadores que são mais usados pelas mulheres, eles têm principalmente a função de obter aquiescência e concor-dância do interlocutor. A linguagem dos homens, por outro lado, é mais marcada pelos chamados palavrões e gírias mais chulas. Mas

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não se esqueça de que essas variações entre os repertórios femini-no e masculino são relacionadas aos papéis sociais que, conforme já aprendemos, são culturalmente condicionados.

Status socioeconômico

As diferenças de status socioeconômico representam desigualdades na distribuição de bens materiais e de bens culturais, o que se reflete em diferenças sociolingüísticas. Este fator é muito relevante, considerando que, em nosso país, a distribuição de renda é excessivamente desigual.

Grau de escolarização

Os anos de escolarização de um indivíduo e a qualidade das escolas que freqüentou também têm influência em seu reper-tório sociolingüístico. Observe que esses fatores, na sociedade bra-sileira, estão intimamente ligados ao status socioeconômico.

Mercado de trabalho

As atividades profissionais que um indivíduo desempe-nha também são um fator condicionador de seu repertório sociolin-güístico. Certos profissionais, como os professores, os jornalistas, os advogados, os juízes, etc., precisam ter maior flexibilidade estilística e ser capazes de variar sua fala numa gama de estilos, dominando com segurança os estilos mais monitorados. Em outras profissões exige-se menos o domínio de estilos monitorados.

Rede social

Há um provérbio popular que diz: “Dize-me com quem andas e eu te direi quem és”. Esse adágio sintetiza um conceito so-ciológico muito importante: cada um de nós adota comportamen-tos muito semelhantes ao das pessoas com quem convivemos em nossa rede social. Por isso, sabemos que a rede social de um indiví-duo, constituída pelas pessoas com quem esse indivíduo interage nos diversos domínios sociais, também é um fator determinante das características de seu repertório sociolingüístico.

Todos esses fatores representam os atributos de um fa-lante: sua idade, sexo, seu status socioeconômico, nível de escolari-zação, etc. Podemos dizer que esses atributos são estruturais, isto é, fazem parte da própria individualidade do falante. Há outros fatores que não são estruturais, mas, sim, funcionais. Resultam da dinâmica das interações sociais. Podemos, então, dizer que a variação lingüís-tica depende de fatores socioestruturais e de fatores sociofuncio-nais. Mas não podemos nos esquecer de que aquilo que a gente é influencia aquilo que a gente faz. Então, na prática, os fatores estru-turais se inter-relacionam com os fatores funcionais na conforma-

21 Na tradição gramatical do portu-guês a palavra ‘personagem’ é um substantivo feminino (a personagem), mas o uso da língua a vem consagran-do como substantivo masculino. Vá ao dicionário e verifique qual o gênero consignado nesta palavra.

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ção dos repertórios sociolingüísticos dos falantes. Além disso, ao es-tudarmos a variação lingüística, levamos em conta, também, fatores lingüístico-estruturais, tais como o ambiente fonológico em que o segmento que está em variação ocorre, a classe da palavra, a estru-tura sintática, etc. Em suma, os fatores lingüístico-estruturais podem ser fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos e até discursivos. Você verá exemplos desses fatores ao longo de nos-sos módulos de Língua Materna e Educação.

Já deu para você ver que o estudo da variação lingüís-tica é complexo. Sua complexidade equivale à da própria ação hu-mana, por sua vez, determinada por fatores biológicos, psicológicos, sociológicos e culturais. Na próxima seção vamos estudar a variação do português do Brasil, valendo-nos de uma metodologia que faci-lita a nossa compreensão do fenômeno da variação.

Analisando o Português do Brasil

As gramáticas mais antigas, ao descrever o Português do Brasil, propõem distinção entre língua padrão, dialetos, variedades não-padrão, etc. Nós mesmos já empregamos essa terminologia em seções anteriores. Mas vamos evitá-las daqui para frente por dois motivos: primeiro porque a terminologia tradicional carrega uma forte dose de preconceito, haja vista o uso do advérbio ‘não’ como prefixo, e segundo porque ficamos com a impressão de que existem fronteiras rígidas entre essas entidades, o que não é verdade.

Para entendermos a variação no português do Brasil, vamos propor a você que imagine três linhas, a que vamos chamar de contínuos, e que são:

• Contínuo de urbanização• Contínuo de oralidade-letramento• Contínuo de monitoração estilística

Tomemos primeiro a linha imaginária “contínuo de ur-banização”. Em uma das pontas dessa linha nós imaginamos que estão situados os falares rurais mais isolados; na outra ponta estão os falares urbanos que, ao longo do processo sócio-histórico, foram sofrendo a influência de codificação lingüística, tais como a defini-ção do padrão correto de escrita, também chamado ortografia22, do padrão correto de pronúncia, também chamado ortoépia e da composição de dicionários e gramáticas. Enquanto os falares rurais ficavam muito isolados pelas dificuldades geográficas de acesso, como rios e montanhas, as comunidades urbanas sofriam a influ-ência de agências padronizadoras da língua, como a imprensa, as obras literárias e, principalmente, a escola. Nas cidades também se desenvolvia o comércio e, depois, a indústria; ali se instalavam as repartições públicas civis e militares, as organizações religiosas e outras instituições sociais que são depositárias e implementadoras da cultura de letramento. No âmbito dessas instituições são usados

22 A palavra ortografia é formada pe-los radicais gregos orto, que significa correto, padrão e grafia, que significa escrita

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preferencialmente estilos monitorados da língua tanto na modali-dade escrita quanto na oral. Conforme já vimos, há domínios sociais em que predomina uma cultura de oralidade, por exemplo, o do-mínio do lar e há outros, como o domínio da escola, dos hospitais, dos escritórios, das repartições públicas, etc., onde predomina uma cultura de letramento.

O contínuo de urbanização pode ser representado de acordo com o colocado no próximo tópico:

Variedades rurais isoladas/área rurbana/variedades urbanas

padronizadas

Em um dos pólos do contínuo, estão as variedades ru-rais usadas pelas comunidades geograficamente mais isoladas. No pólo oposto, estão as variedades urbanas que receberam a maior influência dos processos de padronização da língua, como vimos. No espaço entre eles fica uma região rurbana. São grupos rurbanos os migrantes de origem rural que preservam muito de seus antece-dentes culturais, principalmente no seu repertório lingüístico e as comunidades interioranas residentes em distritos ou núcleos semi-rurais, que estão submetidas à influência urbana, seja pela mídia, seja pela absorção de tecnologia agropecuária.

Se tomarmos o contínuo de urbanização como uma metodologia para análise, podemos situar qualquer falante do por-tuguês brasileiro em um determinado ponto do contínuo, levando em conta a região onde ele nasceu e vive. O escritor Carmo Ber-nardes, por exemplo, que nasceu e passou a infância em zona rural, estaria situado no pólo rural do contínuo. Porém, como ele viveu e trabalhou a maior parte de sua vida em área urbana, tornando-se um literato, que, por definição, é um partícipe da cultura de letra-mento, sua melhor localização no contínuo será no pólo urbano. Já o personagem Chico Bento é um representante legítimo das popu-lações que vivem no pólo rural do contínuo. E você? Em que ponto do contínuo você se localiza? E seus pais e avós? Estariam eles mais próximos do pólo rural que você? Muitos de nós, brasileiros residen-tes em áreas urbanas, temos antepassados de origem rural.

Atividade

Desenhe para seus alunos o contínuo de urbanização. Peça que eles se situem no contínuo e situem também seus pais. Discuta com eles o fenômeno da migração rural-urbana do século XX no Brasil. Em seguida, peça a eles que escrevam sua autobio-grafia focalizando a transição rural-urbana em sua própria família. Para isso, será preciso que façam pesquisa junto aos parentes mais velhos. Ao fazer a pesquisa, incentive-os a gravar histórias contadas por seus pais, tios e avós. Os trabalhos que os alunos mais aprecia-rem deverão ser divulgados na escola.

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No contínuo de urbanização não existem fronteiras rígi-das que separem os falares rurais, rurbanos ou urbanos. As frontei-ras são fluidas e há muita sobreposição entre esses tipos de falares. Por isso, em vez de considerá-los como entidades em nossa análise, vamos propor a você uma análise mais funcional, que é a seguinte: quando interagimos com brasileiros nascidos e criados na região rural ou rurbana do contínuo de urbanização, observamos muitos usos lingüísticos que são diferentes dos nossos. Vimos isso na nar-rativa de Carmo Bernardes e também na historinha do Chico Bento. Você mesmo já fez uma lista de palavras e expressões usadas pelo Chico Bento e que não aparecem com freqüência na sua linguagem. Dê uma olhada em sua lista. Alguns itens ali são típicos dos falares situados no pólo rural do contínuo e que vão desaparecendo à me-dida que nos aproximamos do pólo urbano do contínuo. Dizemos, então, que esses traços têm uma distribuição descontínua porque seu uso é “descontinuado” nas áreas urbanas. Há outros traços na nossa listinha do Chico Bento que estão presentes na fala de todos os brasileiros e, portanto, se distribuem ao longo de todo o con-tínuo. Esses traços, ao contrário dos outros, têm uma distribuição gradual. Vamos chamar os primeiros de traços descontínuos e os últimos de traços graduais. Observe que os traços descontínuos são os que recebem a maior carga de preconceito nas comunidades ur-banas. Para que essas idéias fiquem mais claras, vamos classificar os traços que identificamos na historinha do Chico Bento entre traços descontínuos e traços graduais. Pode ser que você não concorde totalmente com essa classificação. Não se preocupe com isso. Essa classificação tem ainda um caráter muito preliminar. Para uma clas-sificação mais definitiva entre traços descontínuos e graduais no português falado no Brasil, precisamos conhecer mais as caracte-rísticas do português que falamos em todo o Brasil. Vamos, então, passar ao nosso exercício.

Comentemos, agora, a classificação que demos a cada um dos itens de nossa lista.

• ‘inté’ – é uma forma arcaica da preposição ‘até’. Esse arcaísmo se conservou no pólo rural do contínuo e praticamente

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desapareceu dos falares urbanos, por isso foi considerado traço descontínuo. Observe que muitas formas encontradas hoje no pólo rural do contínuo são arcaísmos que se preservaram e podem ser encontrados em obras literárias antigas, como Os Lusíadas, poema épico escrito pelo português Luís Vaz de Camões, para celebrar as descobertas marítimas de seus patrícios e publicado em 1572.

• ‘limoero’ – o sufixo –eiro é pronunciado quase sem-pre –ero. Os ditongos ‘ei’ e ‘ai’ seguidos dos fonemas /r/, /n/, /j/ ten-dem a ser reduzidos, tornando-se vogais simples /e/ e /a/. Exem-plos: cade(i)ra, ca(i)xa, be(i)jo, ribe(i)ra, etc. Todos esses são traços graduais.

• ‘prantei’ – a troca de /l/ pelo /r/ nos grupos conso-nânticos, como em bloco/broco, problema/probrema/pobrema é encontrada em falares rurais e rurbanos e, às vezes, até em falares urbanos. Preferimos classificar ‘prantei’ como um traço descontínuo, considerando que esse fenômeno é recebido com muita estigmati-zação e preconceito na cultura urbana.

• ‘artura’ – a troca do /l/ pós vocálico por /r/, é fenô-meno típico dos falares rurais igualmente recebido com muito preconceito.

• ‘ocê’ – o pronome de tratamento ‘você’ se deriva do tratamento antigo ‘vossa mercê’, que seguiu o seguinte percurso: ‘vossa mercê’> ‘vosmecê’> ‘você’> ‘(o)cê’. As formas ‘ocê’e ‘cê’, são muito usadas em estilos não monitorados por todos os brasileiros conforme podemos ver na canção de Gilberto Gil, Estrela.

“Há de surgir uma estrela no céu cada vez que ocê sorrir Há de apagar uma estrela no céu cada vez que ocê chorar”.

Ou na música cantada por Elba Ramalho. “Faz tempo que não te vejo,Quero matar meu desejoTe mando um montão de beijoAi que saudade de ocê”.

Pesquise

Pesquise, com seus alunos, outras músicas em que apa-recem as variantes ‘ocê’ ‘cê’ do pronome de tratamento ‘você’. O em-prego de ‘cê’ e ‘ocê’ é um bom indicador de estilos não-monitorados e seus alunos poderão usá-lo para identificar o grau de formalidade de estilos, tanto nas interações face a face quanto na televisão e no rádio. Bom trabalho!

• ‘ponhei’– o verbo ‘pôr’ é irregular e no pretérito-per-feito é conjugado assim: pus, puseste, pôs, pusemos, pusestes, pu-seram. Nos falares rurais, porém, o pretérito-perfeito é formado em

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analogia com os verbos regulares (cantei/casei/falei, etc.) usando-se, como base, a forma do pretérito imperfeito (punha, punhas, etc.) A forma ‘ponhei’ é, pois, uma regularização que segue um processo de analogia. Observe que formações analógicas como essa são mui-to comuns na linguagem de crianças pequenas, que dizem coisas como : ‘eu descei’, ‘já chegui’etc. Mas a variante ‘ponhei’ é uma forma estigmatizada nas comunidades urbanas letradas e é, praticamen-te, restrita ao pólo rural do contínuo. Por isso, a catalogamos como traço descontínuo.

• ‘sor’– é variante da palavra sol em que o /l/ pós vocá-lico é realizado como /r/. É a mesma regra fonológica que vimos em ‘artura’. A flutuação entre /l/ e /r/ pós-vocálico, é própria das comuni-dades situadas no pólo rural do contínuo, onde também podemos ouvir ‘galfo’/ garfo; ‘calvão’/carvão. Você certamente conhece outros exemplos de flutuação entre esses dois fonemas. Faça uma listinha dos exemplos de que você se lembrar.

• ‘dexei’– nesta forma verbal, o primeiro ditongo /ei/ foi reduzido a /e/, como em ‘limoero’, que já vimos. Observe que em ‘dexei’, o ditongo que está na sílaba átona pretônica foi reduzido, mas o mesmo ditongo que está na sílaba tônica final se preservou. De fato, os segmentos fonológicos das sílabas tônicas tendem a ser mais resistentes a mudanças fonológicas. No entanto, ditongo /ou/ reduz-se a /o/ tanto em sílabas átonas não-finais, quanto em sílabas tônicas não-finais e finais. Veja: ‘outro’> ‘otro’; ‘outono > ‘otono’; ‘en-trou’ > ‘entrô’. Se compararmos então, o que está acontecendo com o ditongo /ei/ e com o ditongo /ou/, vamos concluir que a regra de redução do ditongo /ou/ se aplica a uma gama maior de ambientes do que a regra de redução do ditongo /ei/. Isso é um indicador para nós de que a primeira já está mais avançada no processo de evolu-ção da língua que a segunda.

• ‘tivé’- essa forma verbal ocorreu no seguinte enun-ciado: ‘quero vê o dia im qui ocê tivé mais grande qui eu’. Há mui-tos comentários a fazer sobre esta fala do Chico Bento, começando pelo ‘tivé’. Nesse contexto, a forma ‘tivé’ é variante de ‘estiver’, que é futuro do subjuntivo do verbo ‘estar’, que perdeu a sílaba inicial es- e o fonema /r/ final. A forma ‘tivé’ também pode ser variante de ‘tiver’, que é o futuro do subjuntivo do verbo ‘ter’. Vamos ver exemplos de ‘estiver’ e ‘tiver’:

Amanhã, se eu ainda estiver doente, não irei à aula.

Amanhã se eu tiver febre não irei à aula.

Classificamos ‘tivé’ como um traço gradual porque a perda – ou aférese – da sílaba inicial es- no verbo ‘estar’ é um tra-ço generalizado no português do Brasil, especialmente nos estilos não-monitorados. Igualmente a perda do /r/ final nos infinitivos ver-bais e nas formas do futuro do subjuntivo é um traço gradual.

• ‘dibaxo’– nessa variante do advérbio ‘debaixo’ apli-

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caram-se duas regras que já são nossas conhecidas: a redução da vogal pretônica /e/ > /i/ e do ditongo /ai/ > /a/. Ambas as regras têm caráter gradual.

• ‘percisá’– nessa palavra, vemos que o fonema /r/ al-terou sua posição no interior da sílaba: /precisar/ > / percisá/. Essa regra, que é conhecida como metátese, é muito comum nos falares rurais. Na evolução do português arcaico para o português moder-no, ocorreram muitos casos de metátese. Exemplos:

‘semper’ (latim) > ‘sempre’; ‘desvariar’ > ‘desvairar’.

• ‘dispois’– é uma forma arcaica de ‘depois’ que ainda se conserva nos falares rurais.

• ‘muié’– nessa variante de ‘mulher’, típica do pólo ru-ral do contínuo, temos a aplicação de duas regras: a vocalização da consoante lateral palatal /lh/ e a perda do /r/ final. A primeira regra tem caráter descontínuo e pode ser observada em /filho > fio/; /palha > paia/; /trabalha > trabaia/. A perda do /r/ final é um traço gradual. Observe que essa perda é mais freqüente nos infinitivos verbais, mas também, ocorre em substantivos como ‘mulher’, ‘colher’ ou em adjetivos como ‘maior’, ‘melhor’, etc.

• ‘dos vento’; ‘umas foia’ nesses dois casos temos sin-tagmas nominais, ou frases nominais, cujo núcleo é um substantivo ( ‘folhas’ e ‘ventos’. Os sintagmas nominais são formados de um nú-cleo nominal e de outros elementos chamados determinantes, que podem ser artigos definidos (o, a, os, as); artigos indefinidos ( um, uma, uns, umas) ou pronomes (demonstrativos, indefinidos, posses-sivos, etc). Podem ocorrer também adjetivos no sintagma nominal. No português padrão, principalmente na modalidade escrita, os determinantes e adjetivos concordam em gênero e número com o núcleo do sintagma.

Assim: ‘Todos aqueles cidadãos corruptos serão proces-sados’. Veja como o plural nesse exemplo ficou marcado de maneira redundante.

Mas no português oral, nos estilos não-monitorados, há uma tendência a evitar a redundância, flexionando-se só o primei-ro elemento do sintagma, como ocorreu nos balõezinhos do Chico Bento. Esse é um traço gradual, pois aparece no pólo rural do contí-nuo, mas também nas comunidades rurbanas e urbanas. De fato, é uma regra muito generalizada em nossa língua, sobre a qual volta-remos a falar. Por enquanto, vamos desenvolver uma atividade.

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Atividade

Faça uma gravação de sua interação em sala de aula. Peça, também, autorização para gravar um de seus colegas dando aula. Depois grave uma interação sua em casa, com seus familiares. Ouça com atenção as gravações e faça uma lista dos sintagmas no-minais cujo núcleo é (semanticamente) plural. Verifique em quantos deles houve flexão de todos os elementos flexionáveis e em quan-tos a marca de plural foi usada apenas no primeiro elemento.

Vamos treinar esse exercício, usando a linda canção Cui-telinho da cultura popular, que você pode ouvir na voz de Nara Leão ou de Milton Nascimento.23

Cheguei na bera do portoOnde [as onda] se espaia.[As garça] dá meia volta,senta na bera da praia.E o cuitelinho não gostaQue o botão da rosa caia.Quando eu vim de minha terra,Despedi da parentaia.Eu entrei em Mato Grosso,Dei em [terras paraguaia].Lá tinha revolução,Enfrentei [fortes bataia].

A tua saudade cortaComo o aço de navaia.O coração fica aflito,Bate uma e outra faia. E [os oio] se enche d’águaQue até a vista se atrapaia.

Colocamos entre colchetes os sintagmas nominais plu-rais. Em todos eles, aplicou-se a regra dos estilos não-monitorados do português brasileiro, que marca o plural nos sintagmas nominais só uma vez.

Como essa é uma regra gradual – que se encontra no re-pertório de praticamente todos os brasileiros, independentemente de seus antecedentes geográficos, requer muita de nossa atenção em sala de aula, porque é preciso que os alunos que usam a varian-te sem redundância na sua linguagem oral, espontânea, aprendam a se monitorar para usar a variante com plurais redundantes nos estilos monitorados e na linguagem escrita.

23 No livro A Língua de Eulália, de nos-so colega Marcos Bagno, publicada pela Editora Contexto, você poderá ler mais sobre a eliminação de marcas redundantes de plural e vai encontrar, na página 45, comentários sobre a letra da canção Cuitelinho. BAGNO, Marcos A Língua de Eulália - Uma novela sociolin-güistica. São Paulo: Contexto, 1997.

24 O escritor Eduardo Bueno publicou a coleção Terra Brasilis em três volumes dedicados ao descobrimento do Brasil e às primeiras décadas de colonização. Bueno, Eduardo A Viagem do Descobri-mento. Rio de Janeiro: Objetiva,1998.

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Atividade

Peça a seus alunos que tragam letras de músicas, grava-ções espontâneas e outros materiais e façam juntos uma pesquisa dos sintagmas nominais.

Em seguida, peça para que selecionem trechos de obras literárias contemporâneas e artigos de jornais e revistas. Fa-çam ‘uma caçada’ aos sintagmas nominais plurais e observem como em todos se aplica a regra dos plurais redundantes. Veja um peque-no exemplo, retirado do livro A Viagem do descobrimento, de Eduar-do Bueno24. Onde estão marcados os sintagmas nominais plurais em que se aplicou a regra da marcação redundante, isto é, todos os elementos flexionáveis dos sintagmas foram pluralizados para con-cordarem com o núcleo plural. No texto ocorrem algumas palavras que não são de uso comum no português contemporâneo. Procure o significado delas no dicionário.

Na manhã seguinte, 22 de abril, com o vento ainda soprando de leste, o vôo rasante [dos fura-buxos] levou [os homens] a repicarem [os sinos] e se apinharem [nos tombadilhos]. Ao contrário de Colombo, que “não conhecera o sono” ao longo [dos 36 dias] em que navegara pelo Atlân-tico disposto a concretizar o sonho impossível de atingir [as Índias] pelo rumo do poente, não há indícios de que Cabral não tenha dormi-do [noites impávidas] durante [os 43 dias] em que estivera no mar.

Ainda assim, e talvez por isso mesmo, enquanto o alvoroço tomava conta [dos embarcadiços], Pedr’Álvares, de 32 anos, mais um militar do que propriamente um navegador, ajoelhou-se em frente à imagem de Nossa Senhora da Esperança, que ele próprio escolhera como padro-eira da viagem e mandara entronizar num altar erguido no convés da capitânia. Era uma oração legítima: [os santos do céu] (e [os deuses do mar] ) pareciam de fato estar do seu lado. Então, a cerca de 70 quilôme-tros da costa, [nas horas] de véspera25, mais com alívio e prazer do que com surpresa ou espanto, o capitão e [seus pilotos], [os marinheiros] e [os soldados], [os sacerdotes] e [os degredados], acotovelados todos à mureta das naus, puderam vislumbrar o cume de “um grande monte mui alto e redondo” erguendo-se no horizonte longínquo. Ao entarde-cer, depois de avançar cautelosamente por mais 40 quilômetros, a frota deparou26 com [outras serras, mais baixas], esparramando-se ao sul do grande monte. Silhuetadas contra o crepúsculo, cercadas por [terras chãs], elas surgiram vestidas por um arvoredo denso que avançava quase até o limite [das águas claras], [das quais] as separava apenas uma estreita faixa de areia.

A seis léguas da costa (ou cerca de 36 quilômetros), a armada lançou âncoras. Elas mergulharam 34 metros no mar esverdeado antes de to-car o fundo arenoso.

Estava descoberto o Brasil. (BUENO, 1998).

Neste texto, como você viu, todos os sintagmas no-minais plurais seguiram a regra da marcação redundante, isto é, a marcação de plural em todos os elementos flexionáveis. Não foram marcados sintagmas cujo núcleo é semanticamente plural, mas em que não ocorrem outros elementos flexionáveis (ex, ‘seis léguas’), já que o nosso objetivo aqui é verificar o processo de marcação re-dundante do plural nos sintagmas nominais, que nossas gramáticas

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chamam de concordância nominal de número.

Voltemos agora ao enunciado de Chico Bento:

‘quero vê o dia im qui ocê tivé mais grande qui eu’.

Observe primeiro que a preposição ‘em’ foi realizada ‘im’; da mesma forma o pronome relativo ‘que’ foi realizado ‘qui’ Ambos são monossílabos átonos e, nesse ambiente, a vogal /e/ é pronun-ciada /i/ e a vogal /o/ é pronunciada /u/. Veja alguns exemplos:

‘A festa foi em [em > im] Rio Branco’.‘Fui com [com > cum] meus amigos’.‘Quem que [que > qui] vai comigo’?

Este mesmo fenômeno de redução das vogais /e/ e /o/ em monossílabos átonos é observado em sílabas pretônicas e em sílabas átonas finais. Vamos voltar brevemente a esse assunto. Por enquanto, basta observarmos que a redução27 das vogais médias /e/ e /o/ em sílabas átonas é um traço característico da pronúncia do português do Brasil presente no repertório da qualquer comuni-dade de fala, sejam rurais, rurbanas ou urbanas.

Ainda em relação à fala do Chico Bento que estamos co-mentando, você certamente observou que ele usou ‘mais grande’ em vez de ‘maior’. A forma comparativa ‘mais grande’ é mais empre-gada nas comunidades situadas no pólo rural do contínuo. No pólo urbano, em estilos monitorados usa-se mais a variante ‘maior’.

Até agora discutimos o contínuo de urbanização, e vi-mos como podemos situar qualquer falante do português do Brasil nesse contínuo. Aprendemos também que as regras fonológicas que marcam o português no Brasil podem ser classificadas como descontínuas ou graduais. Vamos passar agora para os dois outros contínuos: o de oralidade – letramento e o de monitoração estilística para, depois, usarmos todos os três em nossa análise e discussão.

Você já percebeu que, em nossa linha imaginária que chamamos de contínuo de urbanização, os domínios onde predo-mina a cultura de letramento estão situados na ponta da urbaniza-ção enquanto na outra ponta só vamos encontrar domínios onde predomina a cultura de oralidade. Usamos o contínuo de urbaniza-ção para situar os falantes de acordo com seus antecedentes e seus atributos. Vamos agora usar outra linha imaginária, outro contínuo, ao longo do qual vamos dispor os eventos de comunicação, confor-me sejam eles eventos mediados pela língua escrita, que chama-remos de eventos de letramento, ou eventos de oralidade, em que não há influência direta da língua escrita. O nosso contínuo pode ser imaginado assim:

Eventos de oralidade – Eventos de letramento

25 ‘Horas de véspera’ era uma das sete partes em que se dividiam as horas ca-nônicas. Equivaliam ao período entre 15 horas e o pôr-do-sol.

26 Observe que o verbo ‘deparar’ não foi usado como pronominal. De fato, a regência mais recomendada desse ver-bo é sem pronome.. Exemplo: ‘Eu depa-rei com um vulto na esquina’. Ou então: ‘Um vulto se me deparou na esquina’. A construção ‘Eu me deparei com um vulto na esquina’ é uma hipercorreção, que está se generalizando no Portu-guês contemporâneo. Confira isso em um dicionário de Verbos e Regimes..

27 Dizemos que a mudança do /e/ em /i/ e do /o/ em /u/ é uma redução por-que, como você já viu, as vogais /e/ e /o/ são médias e as vogais /i/ e /u/ são altas. As vogais altas são pronunciadas com a boca mais fechada, o que resulta em menor energia acústica. Por isso, a passagem de /i/ para /e/ e de /o/ para /u/ representa uma redução. Volta-remos a falar sobre isso porque essa regra tem muitas conseqüências na alfabetização e na escrita dos alunos em geral e é muito produtiva em nos-so Português.

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Como no caso do outro contínuo, não existem frontei-ras bem marcadas entre os eventos de oralidade e letramento. As fronteiras são fluidas e há muitas sobreposições. Um evento de le-tramento, como uma aula, pode ser permeado de minieventos de oralidade. Para fazermos a distinção entre eventos de letramento e oralidade, vamos nos lembrar de que nos primeiros, os interagentes se apóiam em um texto escrito, que funciona como uma pauta de uma partitura musical. Esse texto pode estar presente no ambiente da interação ou pode ter sido estudado ou lido previamente. Num ofício religioso, por exemplo, o padre, rabino ou pastor, ao proferir seu sermão, está realizando um evento de letramento, seja porque ele tem diante de si o roteiro escrito de sua fala, seja porque ele preparou previamente esse roteiro escrito, no qual introduziu pas-sagens bíblicas. Uma conversa à mesa de bar é um evento de orali-dade, mas, se um dos participantes começa a declamar um poema que ele recolheu em suas leituras, o evento passa a ter influências de letramento.

O terceiro contínuo que propomos para facilitar nossa análise do português brasileiro é o de “monitoração e estilística”. Nesse contínuo, vamos desde as interações totalmente espontâne-as até aquelas que são previamente planejadas e que exigem muita atenção do falante. Ao longo de nossas discussões de Educação e Língua Materna, temos mostrado que os falantes alternam estilos monitorados, que exigem muita atenção e planejamento e estilos não-monitorados, realizados com um mínimo de atenção à forma da língua. Nós nos engajamos em estilos monitorados quando a situação assim o exige, seja porque nosso interlocutor é poderoso ou tem ascendência sobre nós, seja porque precisamos causar uma boa impressão ou seja ainda porque o assunto requer um trata-mento muito cerimonioso. De modo geral, os fatores que nos levam a monitorar o estilo são: o ambiente, o interlocutor e o tópico da conversa. Observe que, com um mesmo interlocutor, o estilo poderá tornar-se mais ou menos monitorado em função do alinhamento que assumimos em relação ao tópico e ao próprio interlocutor. Para passar de uma “conversa séria” e uma “brincadeira”, podemos mudar nosso estilo. Quando vamos mudar de estilo passamos metamensa-gens ou pistas, que podem ser verbais ou não-verbais e que trans-mitem informações do tipo: “isto é uma brincadeira”, “estou falando sério”, “estou ralhando com você”. A variação ao longo do contínuo de monitoração estilística tem, portanto, uma função muito impor-tante de situar a interação dentro de uma moldura. As molduras servem para orientar os interagentes sobre a natureza da interação.: Se é uma “brincadeira”, uma “declaração de amor”, uma “queixa”, uma ‘”admoestação”, um ”xingamento”, uma “explicação”, uma ‘”crítica”, um “pedido de ajuda”, etc.

Agora que já sabemos bastante sobre os contínuos ima-ginários de urbanização, de oralidade/letramento e de monitoração estilística, que nos ajudam a entender melhor as características do português usado no Brasil, vamos examinar trechos de fala obtidos em diversos tipos de interação, isto é, interações com diversas mol-duras, e que foram recolhidos em várias regiões do Brasil.

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A primeira fala foi produzida por um carpinteiro, com pouca escolarização, residente na cidade de Brazlândia, no DF, e proveniente de área rural de Minas Gerais. Quando a entrevista foi feita, em 1980, ele tinha 54 anos e já residia no DF há 24 anos.

Quanto ao contínuo de urbanização, esse senhor pode ser situado na região rurbana do contínuo, uma vez que tem ante-cedentes rurais, mas radicou-se em área urbana a partir dos trin-ta anos. Observe na fala dele os traços descontínuos e os traços graduais.

Quanto ao contínuo de oralidade/letramento, situamos o evento no pólo da oralidade, porque a interação não foi mediada pela língua escrita. Quanto ao contínuo de monitoração estilística, observamos que o falante estava se monitorando porque falava com uma pessoa estranha e sua fala estava sendo gravada.

1 - De uns tempo pra cá, ninguém qué roça mais. Num certo ponto eu dô razão, eu mesmo fui um desses que saí da roça por causa disso, né? Que eu não tinha terreno de meu, morava de-pendente de oto, de fazendero. Fazenderos não dão cuié de chá mesmo, né? Tem que plantá, planta, tem que parti à meia, ota hora à terça, né?”28

O segundo episódio tem as mesmas características do primeiro, em relação aos três contínuos. A falante é uma dona-de-casa de 59 anos, mineira, de origem rural e de pouca escolarização, residente na cidade de Brazlândia desde os 37 anos de idade.

2 - O qu’eu tô comprendenu de poco tempo pra cá é negoçu de reporti. Qu’eu cumpanho nutiça, reporti de rádio e tele-visão, que agora qu’eu tô aprendenu, nunca tinha usado nem tele-visão, que a gente morava na roça, e mesmo aqui né, mesmo aqui, é de pocos tempo pra cá que os menino deu conta de comprá um rádio.”

Examinando os dois trechos, verificamos que no re-pertório de ambos os informantes ocorrem traços descontínuos, próprios da variedade rural, como, por exemplo, a vocalização da lateral palatal /lh/ (“cuié”), ou a redução do ditongo crescente átono final /ia/ (“nutiça”). Se os comparamos, porém, fica evidente que o informante do sexo masculino está situado no continuum rural-ur-bano mais próximo do pólo urbano que a informante do sexo femi-nino. Ambos têm a mesma faixa etária, são nascidos e criados em zona rural na mesma região de Minas Gerais. O carpinteiro havia mi-grado para a periferia de Brasília aos 30 anos de idade e, por ocasião da pesquisa, já residia em área urbana há 24 anos. A dona de casa veio para o Distrito Federal com 37 anos e já vivia em área urbana há 22 anos quando foi entrevistada. A história social de ambos é, pois, muito semelhante. A diferença em suas posições no continuum ru-ral-urbano se explica em função das características de suas redes de relações sociais. No caso do carpinteiro, sua rede é mais heterogê-nea e aberta. Já a dona de casa, assim como a maioria das mulheres

28 Os dois primeiros episódios foram coletados no livro: BORTONI-RICARDO; Stella Maris, The urbanization of rural dialect speakers - a sociolinguistic study in Brazil, Cambridge University Press, 1985.

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casadas daquela comunidade, mantém-se muito isolada em uma rede fechada, restrita aos familiares e à vizinhança. A diferença na estrutura das redes sociais explica porque o repertório da dona-de casa se alterou pouco depois de sua migração para uma região me-tropolitana. Como o carpinteiro está exposto a relações mais hete-rogêneas e variadas, adquiriu novos hábitos lingüísticos depois de sua mudança para o Distrito Federal. Você pôde constatar nesses dois exemplos que o gênero (sexo do falante) e, conseqüentemen-te, os papéis sociais que os falantes assumem em função do gênero e de suas redes sociais têm influência em seus hábitos lingüísticos.

Os três episódios seguintes foram gravados em um bairro proletário de Teresina, capital do Piauí, estado do Nordeste brasileiro que apresenta a menor renda per capita do país29 Nos dois primeiros episódios, temos trechos de uma reunião da asso-ciação de moradores do bairro. Os antecedentes dos interagentes são ‘rurbanos’. Como você já sabe, estamos denominando rurbanas’, valendo-nos de terminologia da antropologia social, as comunida-des urbanas de periferia, onde há forte influência rural na cultura e na língua.

Os eventos são de oralidade, porque não sofrem influ-ência de um texto escrito. O estilo é monitorado nos momentos em que o/a falante primário/a, ou seja, aquele que é detentor da pala-vra, se dirige a todo o grupo ou quando um membro do grupo se dirige, em voz alta, ao coordenador da reunião. O estilo é não-moni-torado quando os membros do grupo fazem comentários paralelos, em voz baixa e entre si.

3 – Presidente: Bem gente, tratano da distribuição das fossa, primeiro que quero avisar que nóis recebemos só cinqüenta fossa, mais vamo recebê mais. Antão, nóis tamo propono dois crite-ro pa distribuição: o primero é que só vai recebê aquelas pessoa que tá mermo precisando de u’a fossa e segundo é a orde de inscrição nessa lista que nóis fizemo. O que que vocês acha?

Associado (dirigindo-se ao Presidente): Eu só num acho justo porque eu só sube da lista há poquin’ os dia.

Associada (dirigindo-se a uma amiga): Eu num disse muié qu’eu ia sobrá?”

Presidente: Pra vocês tê toda informação é preciso par-ticipá das reunião... É muito bom a gente só recramá.

4 – Vice-Presidente: Mi’a gente, sabe porque isso acon-tece, é porque vocês do Parque Alvorada num sabe se mexê. Só vem aqui na reunião condo ouve falá que tem argu’a coisa pa ser doada. Assim num dá. Vocês só sabe criticá nóis, mais na hora de ir atrás dos binifiçu, ninguém apareceu.... Eu nunca vi gente tão incomodada cuma o povo daqui... só qué vem a nóis.

Associado 1 (dirigindo-se ao Vice-Presidente): No meu

29 Os dados foram coletados pela Pro-fessora Maria da Glória Soares Barbosa Lima, para sua dissertação de mestra-do, defendida na UFPI e posteriormen-te publicada (LIMA, Maria da Glória S. B., Os usos cotidianos de escrita e as im-plicações educacionais: uma etnografia, Teresina: EDUFPI, 1996.

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entendimento a diretoria é pa fazê isso mesmo... O negoçu é qu ‘es-ses home nem lembra de nóis, só na inleição....

Associado 2 (dirigindo-se ao Vice-Presidente ): É, Só lem-bum de nóis na hora do voto.

Presidente: As coisa num se arranja façu assim não. Ou a gente se une, trabaia e luta junto.... “

Tanto na linguagem dos líderes da comunidade — pre-sidente e vice-presidente — como na dos demais membros da as-sociação, observam-se traços descontínuos (‘critero; ‘negoçu’; ‘bi-nifiçu’ ‘façu’, etc.), próprios dos falares que se posicionam no pólo rural do contínuo de urbanização. Observam-se também traços regionais, como a vocalização da nasal palatal /ñ/ [ ‘minha’> mi’a’] [‘poquinhos’> ‘poqui’os’].

Ambos os líderes estão monitorando o seu estilo, uma vez que estão desempenhando um papel social que pressupõe um uso mais cerimonioso da língua. Seu estilo monitorado é marcado por diversas pistas: voz alta, postura corporal, léxico próprio de dis-cursos, etc.

É preciso observarmos, a esta altura, que os falantes que se posicionam no continuum rural-urbano próximos ao pólo rural, não dispõem de recursos comunicativos usados na viabilização de estilos monitorados na variedade urbana letrada. No entanto, tam-bém variam seus estilos. Quando a situação requer, usam estilos monitorados. Observe que os estilos monitorados de um falante de antecedentes rurbanos ou rurais são diferentes de estilos monito-rados de falantes de antecedentes urbanos. A questão dos recursos comunicativos que viabilizam a mudança de estilo é muito impor-tante, principalmente para nós, educadores. Ainda neste fascículo, voltaremos a refletir sobre isso.

No episódio seguinte, um falante da mesma comunida-de de Teresina emprega um estilo monitorado adequado ao even-to, um leilão. Leilões constituem eventos de fala muito especiais que exigem dos leiloeiros habilidades lingüísticas específicas. No exemplo a seguir, o leiloeiro situa-se no pólo urbano do contínuo de urbanização. Quanto ao contínuo de oralidade/letramento, clas-sificamos o evento como de oralidade. Em relação ao contínuo de monitoração estilística, já observamos que o estilo empregado pelo leiloeiro é monitorado.

5. Leiloeiro: Atenção, atenção, meus amigos! Iniciamos agora o grande leilão de São Francisco, da noitada dos casais e es-peramos contar com a participação de todos. /.../ Meus amigos, ve-jam que beleza! Um pudim! Tá uma maravilha! Quem dá mais? Cin-co reais? Sete? Sete!? Opa, sete e meio. /.../ Agora um frango assado! Parece mais um peru, olhem o tamanho !! Que maravilha! Começan-do com dez mil cruzeiros reais... onze ! Doze mil!... Treze /.../ catorze mil... Quem dá mais? Haja quem dê mais? Tô batendo e vou bater!!

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Eu grito uma! Duas! Duas e meia! E... três! E o nome do freguês. “

Não ocorre neste texto qualquer traço descontínuo. So-mente um traço gradual, que é a aférese (queda) da sílaba inicial do verbo “estar”.

No episódio 6, temos a mudança de estilo monitora-do, para o estilo não-monitorado no repertório de um falante de antecedente urbano e de alto nível de escolarização. A mudança de estilo dá-se em função da mudança de moldura, que, conforme vimos, enquadra o evento, de acordo com uma tipologia cultural-mente definida (brincadeira, conversa séria, reza, discurso, ‘cantada’, piada, etc).

O presidente de um colegiado acadêmico universitário está conduzindo uma reunião com seus pares. No decorrer de uma exposição, para obter melhor eficácia discursiva, vale-se da narrati-va de uma fábula. Ao fazê-lo, altera seu estilo. Observam-se em seu estilo não-monitorado algumas regras variáveis de caráter gradual, que não estão presentes em seu estilo monitorado.30

6. Professor: /.../ o risco muito grave é de se ferir frontal-mente o princípio de Arquimedes (+++) dois corpos (=) ou dois titu-lares ou duas pessoas não podem ocupar ah:: (+) ao mesmo tempo (=) o mesmo lugar no espaço (+) ou o mesmo cargo na administra-ção pública (=) ENTÃO (=) na verdade (+) lógico (+) ninguém tem o dom da da da ubiqüidade (+) não é? e conseqüentemente (+) em termos de aposentados isto não se aplica de FORMA NENHUMA (+) mas é como a história do macaco/ (+) até (+) o macaco tava corren-do porque até provar-se que ele não era elefante (+) ele tava liqui-dado (+) tavam degolando tudo quanto era elefante na selva (+++) ele começou a correr (+) então agarraram o macaco (+) Macaco (+) por que que cê tá correnu? (+) rapaz (+) é que tão degolando tudo quanto é elefante (+) (narrativa enunciada em ritmo acelerado) ( risos sobrepostos à fala) não (+) é verdade (+) mas (+) mas (+) (+) você não é elefante! Você é macaco (+) ah:: (+) então prove isso (+) (risos) cê tá louco! /.../ “

Nos dois episódios finais, vamos comparar a linguagem de dois pré-adolescentes. O primeiro é um menino de rua. Embora viva fisicamente na cidade, não está inserido na cultura urbana. Sua rede de relações sociais é constituída de outros meninos de rua, de marginais e policiais. Eventualmente tem contato com assistentes sociais. No continuum rural-urbano, localiza-se próximo do pólo ru-ral e sua linguagem apresenta variáveis descontínuas e graduais. É analfabeto.

O evento é de oralidade. Seu estilo é monitorado, por-que ele está conversando com uma pesquisadora e está sendo fil-mado, condições que o levam a prestar atenção à sua fala31.

7. Pesquisadora: Você quer contar como os policiais mataram o Adauto?

30 Os dados foram coletados pela Professora Cibele Brandão de Oliveira, da Universidade de Brasília, para sua dissertação de Mestrado Do discurso formal para o informal: um estudo da variação estilística no meio acadêmi-co, Universidade de Brasílial, 1997. Os símbolos usados nesta transcrição e nas seguintes foram copiados dos ori-ginais e têm as seguintes significações : /../ = trecho não transcrito; (+) = pausa; :: = alongamento do som; maiúsculas = ênfase (pronúncia mais alta e mais for-te).

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Menino: Nóis tava dormino lá na casa, às treis hora da manhã, aí os PM chegaro, deu um tiro na porta, pegô na perna do XX aí em seguida ez arrebentô a porta, aí deu oto tiro, pegô na ca-beça do Adauto, ez viro que tinha acertado o Adauto. Falaro : “vamo saí fora que certô o menino aqui”... saiu tudo correno os policiais, aí desci de cima do armário, corri na porta pa vê se eu via o número da viatura déze ma num consegui, voltei lá o Adauto já tava quaise parano o coração dele, fiz massage nele, consegui dexá ele viveno mais um poco, foi eu... foi eu e o XX buscá socorro pra ele.

Pesquisadora: E onde vocês foram?Menino: Nóis fomo nu’a casa, lá em frente, aí o home

deu sistença pra nóis.Pesquisadora: É? Levou o menino pro hospital?Menino; Levou os dois.Pesquisadora: Ah, e aí?Menino: Aí eu fui dormi lá no horto, aí no oto dia que eu

vim aqui na Catedral e contei pos povo aqui, aí fui no hospital c’a tia, aí vi o Adauto lá no CTI.”

O último episódio foi selecionado de dados recolhidos em uma entrevista sociolingüística em uma escola, com uma aluna de 11 anos, que chamaremos de Elaine (E)32.

A entrevista está discutida detalhadamente na disser-tação de Vera Freitas (1996). A entrevistadora participa do evento como representante da instituição escola e a aluna como usuária da instituição. Ela pertence a uma família de classe social desfavore-cida, filha de mãe iletrada. Freqüenta uma escola pública, localizada em uma área nobre do Distrito Federal, que atende a uma clientela de classe social mista. O pai é pedreiro e zelador do lote no qual mo-ram. Sua mãe é dona de casa. A aluna tem dois irmãos, um menino de oito anos e uma menina de seis, que estudam na mesma escola de Elaine. Moram em um barraco muito pobre, nos fundos de um lote onde está sendo construída uma casa. Sua mãe não trabalha fora, embora de vez em quando preste algum tipo de serviço na vizinhança, para ganhar um dinheiro extra e ajudar no sustento da família. (E) é muito inteligente e bastante desinibida. Gosta muito de cantar, dançar e assistir televisão. Pretende ser cantora quando crescer. Na vizinhança ela não tem amigos. Seus relacionamentos de amizade são todos na escola com o grupo de colegas. Divide seu tempo entre as atividades escolares, um pouco de lazer em casa com a família e desempenhando pequenos afazeres domésticos. Seus pais são extremamente conservadores e sua educação é muito rígi-da. Ela não tem permissão para sair de casa, senão em companhia dos pais ou de um parente mais velho, como por exemplo uma tia. A família não está ligada a nenhuma religião, portanto não freqüenta nenhuma igreja e não faz parte de nenhuma comunidade religiosa. Entretanto, a menina acredita em Deus e o vê “como alguém que possui muitas qualidades”.

Quanto ao primeiro contínuo, (E) e seus irmãos situam-

31 Os dados foram coletados pela pesquisadora Maria Avelina de Carva-lho para sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal de Goiás (CARVALHO, M.A. Tô vivu: histó-rias dos meninos de rua, Goiânia: CE-GRAF/Universidade Federal de Goiás, 1991.

32 O episódio foi retirado da disserta-ção de mestrado da professora Vera Aparecida Freitas, defendida na UnB, em 1996, com o título A variação esti-lística de alunos de 4ª série em ambiente de contato dialetal.

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se no pólo urbano; seus pais têm antecedentes rurbanos. Quanto ao segundo contínuo, identificamos o evento como de letramento, pois a menina, à medida que falava, folheava livros e cadernos. Fi-nalmente, quanto ao contínuo de monitoração estilística, seu estilo é monitorado, pois estava conversando com uma professora razoa-velmente desconhecida para ela, e a moldura que definiu o evento era a de uma entrevista que, segundo a própria entrevistadora, em alguns momentos quase se caracterizava como uma sabatina.

8. (E) - É a cadeia alimentar + né? O ciclo da vida puque cada uma vai comendo um animal ou um vegetal pra se alimentá /.../

(E) -A - Isso aqui é a vida na água + fala assim + da fotos-síntese + né como é que eles respira + como é que as plantas fabri-ca seu próprio alimento + fabricam [corrigindo] o oxigênio para os peixes respirarem. Aqui a cadeia alimentar/.../

(E) - (passando a folha do livro) Isso aqui nós vamu aprendê. Isso aqui também. Sim + esse aqui foi como a + o homem e a água + né? Como o homem + começou + né + a utilizá a água e como ele tá precisando + como ele precisa da água. Esse aqui é água vezes progresso. (continua passando as folhas). Agora esse + as plantas + o sol + né + que já é capítulo onze. Aqui é as camadas de um terreno + que o solo com a argila + a areia + húmus + ca-mada de argila. Esse aqui fala sobre o surgimento e a evolução do solo. No capítulo treze tem o home que + que ele modifica o solo + que ele coloca + assim + coisas + que ele modifica o solo. Que ele provoca erosões às vezes. Os minerais e o homem + né + que fa + fala sobre rochas...

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A variação lingüística

em sala de aula

Objetivos: refletir sobre a variação lingüística no repertório

dos professores e dos alunos de ensino fundamental.

2

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Nessa seção, vamos conversar um pouco mais sobre o episódio do ‘relógio azangado’ que Carmo Bernardes nos contou. O Mestre Frederico teve uma reação típica dos professores antigos que acreditavam ser sua obrigação coibir severamente os usos da língua que se desviassem da norma considerada culta. Até hoje, os professores não sabem muito bem como agir diante dos chamados ‘erros de português’. Estamos colocando a expressão erros de por-tuguês entre aspas porque a consideramos inadequada e precon-ceituosa. Erros de português são tão-somente diferenças entre va-riedades da língua. Com freqüência essas diferenças se apresentam entre a variedade usada no domínio do lar, onde predomina uma cultura de oralidade, em relações permeadas pelo afeto e informa-lidade, como vimos, e a cultura de letramento, que é cultivada na escola.

É no momento em que o aluno usa flagrantemente uma regra não-padrão e o professor intervém, fornecendo a varian-te padrão, que os dois dialetos se justapõem em sala de aula. Como proceder nesses momentos é uma dúvida sempre presente entre os professores. Nas últimas duas décadas, os educadores brasileiros, com destaque especial para os lingüistas, seguindo uma corrente que nasceu da polêmica entre a postura que considera o ‘erro’ uma deficiência do aluno e a postura que vê os chamados ‘erros’ como uma simples diferença entre dois dialetos ou variáveis, fizeram um trabalho importante, mostrando que é pedagogicamente incorreto usar a incidência do erro do educando como uma oportunidade para humilhá-lo. Ao contrário, uma pedagogia que é culturalmente sensível aos saberes dos educandos está atenta às diferenças entre a cultura que eles representam e a da escola e mostra ao profes-sor como encontrar formas efetivas de conscientizar os educandos sobre essas diferenças. Na prática, contudo, esse comportamento é ainda problemático para os professores, que ficam inseguros sem saber se devem corrigir ou não, que erros devem corrigir ou até mesmo se podem falar em erros.

Em pesquisas de sala de aula que conduzimos ou orien-tamos, identificamos alguns padrões principais na conduta do pro-fessor perante a realização de uma regra lingüística não-padrão pe-los alunos:

• O professor identifica “erros de leitura”, isto é, erros na decodificação do material que está sendo lido, mas não faz distin-ção entre diferenças dialetais e erros de decodificação na leitura, tratando-os todos da mesma forma.

• O professor não percebe uso de regras não-padrão. Isto se dá por duas razões: ou o professor não está atento ou o pro-fessor não identifica naquela regra uma transgressão porque ele próprio a tem em seu repertório. A regra é, pois, “invisível” para ele.

• A professora percebe o uso de regras não-padrão e prefere não intervir para não constranger o aluno.

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• O professor percebe o uso de regras não-padrão, não intervém, e apresenta, logo em seguida, o modelo da variante padrão.

O padrão de comportamento da professora em relação ao uso de regras não-padrão pelos alunos depende basicamente do tipo de evento em que estas são utilizadas. Como regra geral, observamos que quase nunca os professores intervêm para corrigir os alunos durante a realização de eventos de oralidade, que, como já vimos, são realizados sem exigência de muita monitoração.

Vejamos alguns exemplos de intervenção dos professo-res, identificando eventos de oralidade e de letramento.

1. A (aluno/a) Hoje é vinte e quatro? P. (professor/a) São vinte e cinco

Este é excepcionalmente um caso de intervenção regis-trada em evento de oralidade.

2. A. (lendo) A onça resolveu atraí-la a sua furna fazen-do corrê notícia de que tinha morrido e deitando-se no chão da ca-verna fingiu-se de cadáver. Todos ós bichos vinheru olhá a defunta contentíssamos.

P. Contentíssimos. ó, psi, depois de contentíssi-mos tem ponto, tá? Todos os animais, né, vinheru olhá a defunta contentíssimos.

Neste evento de letramento em que o aluno está lendo um texto onde ocorrem palavras pouco empregadas em eventos de oralidade, como ‘atrair’ e ‘furna’, o professor corrige a pronúncia de “contentíssimos” e a entonação, mas escapa-lhe a realização da forma verbal “vinheru”, que ele próprio reproduz.

3. A (lendo) Mas qual, se o pai sempre sempre com che-ro forte de suó, cachaça e cigarro. em casa sempre os mesmo medo, briga e as tristeza.

O professor não intervém para corrigir a concordância nos três sintagmas nominais (‘os mesmo medo’, ‘(as) brigas’, ‘as tris-teza’) mas logo em seguida corrige a acentuação tônica de uma for-ma verbal (‘sófre’, exemplo 4) e a má decodificação de uma palavra, como vemos no exemplo seguinte. Observe-se que a concordância de número é uma das regras não-padrão mais freqüentemente cor-rigidas durante eventos de leitura.

4. A (lendo) Conhecia aquele choro. Aquele aquele modo novo da mãe sófre.

P. Da mãe o quê? A. Da mãe sófre. P. sofrê, rapaiz. A (lendo) O pai também não entendeu e virou para o

filho cres crescendo sabê P. querendo

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A. querendo sabê.

5. P.... fazê um esforçozinho e continuar lendo em casa, tâ bom?

A. Zé, é pra mim lê em casa tamém? P. É, muitas veze, num é só uma veiz não.

Esse é um evento de oralidade, e o professor parece não ter percebido o uso da regra não-padrão usada pelo aluno (‘é pra mim lê em casa tamém?’)

Em 6, observamos um padrão muito freqüente nos da-dos. O professor repete a frase enunciada pelo aluno, fornecendo a variante da língua padrão. Observe que o evento é de letramento:

6. A. (lendo) Sônia ganhô três quinto de sessenta balas e Marlene ganhô treis meios de cinqüenta balas.

P. Espera aí. Vai devagar. (Escreve no quadro e fala si-multaneamente) Treis quintos de sessenta, e o outro?

A. Treis, treis meio de cinqüenta. P. Isso. Treis meios? A. De cinqüenta. P. Tem certeza que é treis meios? A. É. P. (escreve no quadro e fala simultaneamente) treis

meios de cinqüenta.

7. P. Cadê a música do senhor Mabel? A’s (ininteligível) P. Não, mas é vereador. Ceis tão confundindo. A. Professora, professora, nois sabe a música. A. O’ nóis sabe a música, vem cá, vem cá. P. Como que é a música?

Nesse episódio, as crianças ficam agitadas e querem contribuir com uma informação sobre a propaganda das eleições. O evento é de oralidade e a concordância verbo-nominal não-padrão (“nóis sabe”) passa despercebida para a professora.

O evento seguinte também de oralidade.. A professora fornece a variante padrão no caso da vocalização do fonema lateral palatal /lh/, realizado /y/, mas não intervém diante a realização tam-bém não-padrão em “deusde”.

8 P. Espera um pouquinho Agnaldo. Deixa seus colegas sentarem por favor. Gente, num escolhe a mesma leitura que o cole-ga lê não, tá?

A. Eu escuí, mai ei escueiu [xxx] P. Aí cê escolhe otro, tá? A. Não, essa aqui eu tô lenu deusde ontem P. Agnaldo, sem encostá na parede, tá? Bem bonito.

9 P. Que que você entendeu?

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A. É que que [xxx] na floresta [xxx] o amigo dele o ami-go dele foi na ar... subiu, subiu na arvri e o oto ficô, lá, é que o amigo, se fô amigo mesmo num pode [xxx] fazê essas covardia.

Nesse evento, de letramento, em que o aluno está fa-zendo a interpretação da leitura, a professora prefere valorizar o conteúdo e não intervém na correção da forma. O mesmo ocorre no exemplo que temos a seguir. Observe que o aluno realiza a variante padrão da lateral palatal /lh/ quando está lendo e as variantes pa-drão e a não-padrão /lh/ e /y/ quando está comentando a leitura.

10 A. (lendo) Chove só quando a água cai no telhado do meu galinhero escareceu a galinha. Ora que bobagem, disse o sapo de dento da lagoa. Chove quando a água da lagoa começa a borbulhar suas gotinhas. Como assim? disse a lebre. Está visto que chove quando as folhas das árvores começam a deixar cair as gotas que tem dentu. Nesse momento começou a chover. Viram [xxx] a galinha. O telhado do meu galinheiro está pingando e isso é chuva [xxx] não. Não vê que é chu- a chuva é água da da lagoa borbulha-nu? disse o sapo. Mas como assim assim? tornou a lebre. Não vê que a água cai das folhas das árvores?

P. Explica pra nós agora o que você leu. Gente, o pessoal num está prestan’atenção na leitura dos colegas, tá conver-sanu muito. Prestá mais atenção, tá?

A. Eu li sobre u’a galinha, o sapo e a lebre que eles tava contanu que muitos muitos meses num tava choveno e eles come-çaro a discuti. Só chovia quando a água da telha da galinha come-çasse a pingá. E aí o sapo dizia que só chovia quando começasse a borbulhá, e a lebre dizia que só chovia quando caísse é água das folhas da [xxx].

P. Isso, qual deles que tava co’a razão. Qual deles que tava co’a razão?

P. É todos. P. Todos? /.xxx../ P. O que é a chuva pra você?

A. Pra mim é quando cai a chuva das arvi, quando cai assim da teia da casa lá de cima.

Da perspectiva de uma pedagogia culturalmente sen-sível aos saberes dos alunos, podemos dizer que, diante da realiza-ção de uma regra não-padrão pelo aluno, a estratégia da professora deve incluir dois componentes: a identificação e a conscientização da diferença. A identificação fica prejudicada pela falta de atenção ou pelo desconhecimento que os professores tenham a respeito daquela regra. Para muitos professores, principalmente aqueles que têm antecedentes regionais e rurais, regras do português próprio

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de uma cultura predominantemente oral são “invisíveis”; o profes-sor as tem no seu repertório e não as percebe na linguagem do alu-no, especialmente em eventos de fala mais informais.

O segundo componente — a conscientização — susci-ta mais dificuldades. É preciso conscientizar o aluno quanto às dife-renças para que ele possa começar a monitorar seu próprio estilo, mas essa conscientização tem de dar-se sem prejuízo do processo de ensino/aprendizagem, isto é, sem causar interrupções inoportu-nas. Às vezes será preferível adiar uma intervenção para que uma idéia não se fragmente, ou um raciocínio não se interrompa. Mais importante ainda é observar o devido respeito às características culturais e psicológicas do aluno. A escolher entre a não-interven-ção sistemática e a intervenção desrespeitosa, ficamos, é claro, com a primeira alternativa. O trato inadequado ou até desrespeitoso das diferenças vai provocar a insegurança, como vimos no texto de Car-mo Bernardes, ou até mesmo, o desinteresse ou a revolta do aluno.

Pesquisas realizadas nos Estados Unidos, onde a tensão interétnica é muito aguda, têm mostrado que, quando os modos de falar da criança não são um campo de conflito, ela se torna mais aberta à aquisição de estilos mais monitorados.

Vejamos mais um exemplo de evento de oralidade em que a regra não-padrão usada pelo aluno passa despercebida ao professor. Essa seria uma ocasião que o professor poderia aproveitar para conscientizar os alunos quanto às diferenças sociolingüísticas e fornecer a eles a variante adequada aos estilos monitorados orais e à língua escrita. Vejamos primeiro como o episódio ocorreu e, em seguida, imaginemos o professor valendo-se da oportunidade para ensinar de forma explícita o estilo monitorado da língua:

P: Reinaldo + por que você num vei ontem?A: num deu tempo.P: num deu tempo por quê?A: tava trabaianu. P: Reinaldo + por que você num vei ontem?A: num deu tempo.P: num deu tempo por quê?A: tava trabaianu.P: O Reinaldo estava trabalhando ontem e por isso não

veio à.aula. Vejam esta palavrinha ‘trabalhando’. Ela é uma daque-las palavrinhas que podemos usar de dois jeitos. Quando falamos com nossos amigos podemos dizer ‘trabaianu’; quando falamos com pessoas que não conhecemos bem, empregamos a palavrinha como a escrevemos, assim: ‘trabalhando’. Peguem o seu caderno e vamos escrever uma frase que começa assim:

‘Ontem eu estava trabalhando...’

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Atividade

Depois de ter lido todos esses exemplos em que se jus-tapõem na interação de sala de aula regras fonológicas e morfossin-táticas de variedades não-padrão da língua e da variedade padrão, verificando a ação do (a) professor (a) em cada episódio, convida-mos você a dar outro desfecho ao episódio do “relógio azangado” do texto de Carmo Bernardes. Imagine que você é o professor ou professora que vai perguntar ao aluno por que ele chegou atrasa-do. Ele lhe responderá que se atrasou porque o relógio de sua casa está “azangado”. Crie, então, todo esse diálogo, finalizando-o com a reação/explicação do professor. Vai aqui uma dica para você. “Azan-gado” é uma forma verbal (particípio passado) que tem a função de adjetivo e é própria dos falares rurais. Distingue-se da varian-te usada no português urbano em duas dimensões: fonológica e semântica. Quanto ao aspecto fonológico, temos a variante com a prótese de um ‘a’ (azangado) versus a variante sem essa prótese (zangado).Quanto à dimensão semântica, observe que nos falares urbanos o verbo ‘zangar’ vem acompanhado de sujeito com o tra-ço semântico [ + animado], por exemplo, ‘o cachorro está zangado’, ‘meu pai zangou-se comigo’, etc. Nos falares rurais o verbo pode vir acompanhado de sujeito com o traço [ - animado], por exemplo, ‘o relógio zangou (azangou)’; ‘a ferida na perna dele zangou (azan-gou)’. No primeiro exemplo, o verbo equivale a ‘estragou’; no segun-do, a ‘piorou’; ‘inflamou’, etc. Lembre-se de que, diante de uma situ-ação como essa, o (a) professor (a) que é sensível aos antecedentes sociolingüísticos e culturais dos alunos, empenha-se em duas tare-fas: explicar o fenômeno que se apresenta em variação na língua e demonstrar a situação adequada ao uso de cada uma das variantes da regra. Agora você já está pronto (a) para compor o seu diálogo com o final feliz. Boa sorte!

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Competência comunicativa

Ao longo de nossas reflexões sobre Educação e Língua Materna, você encontrou muitas referências ao conceito de com-petência. Vamos nos deter um pouco nesse conceito. Primeiro, fa-remos a distinção entre competência lingüística e competência comunicativa.

No fascículo II, de Língua Materna, você lerá sobre o trabalho do lingüista suíço Ferdinand de Saussure. Você se lembra de que Saussure, no início do século XX, propôs uma distinção en-tre língua e fala. Para ele, língua é um sistema abstrato, partilhado por uma comunidade de falantes, que ganha realidade concreta na fala.

Muitos anos depois, em 1964, outro lingüista de grande renome, Noam Chomsky, que é professor do Massachussets Insti-tute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, retomou a distinção entre língua e fala, com pequenas alterações, propondo uma dico-tomia entre competência e desempenho (ou performance). Assim como a língua, a competência tem caráter abstrato, enquanto o de-sempenho, como a fala, tem caráter concreto.

De acordo com a teoria desenvolvida por Chomsky, co-nhecida como ‘Gramática Gerativa’, a competência consiste no co-nhecimento que o falante tem de um conjunto de regras que lhe permite produzir e compreender um número infinito de sentenças, reconhecendo aquelas que são bem formadas, de acordo com o sistema de regras da língua. Cabe aqui uma observação quanto à expressão ‘bem formadas’. Todas as sentenças produzidas pelos fa-lantes de uma língua são bem formadas, independentemente de serem próprias da chamada língua padrão ou de outras variedades. A sentença produzida por Chico Bento, na historinha que lemos: ‘Aí num vô percisá mais mi percupá cocê, né, limoero?’, que, como vi-mos, é característica dos falares situados no pólo rural, é uma sen-tença bem formada, de acordo com o conceito de competência chomskyana, porque foi produzida por um falante nativo da língua, que tem conhecimento das regras básicas da (s) variedade (s) e dos estilos da língua que compõem o seu repertório. As únicas senten-ças mal formadas seriam as produzidas por estrangeiros, ou por crianças que estão no processo de internalizar as regras do sistema, ou seja, no processo de desenvolver sua competência lingüística. Uma sentença como ‘Os homens cheguei eles com amanhã’ não é bem formada porque em sua formação não se respeitaram as re-gras morfossintáticas e semânticas que fazem parte da competên-cia dos falantes da língua.

Vamos ver se entendemos bem isso, antes de irmos em frente. Todo falante nativo de português, independentemente de sua posição no contínuo de urbanização e independentemente também do grau de monitoração estilística na produção de uma tarefa comunicativa, produz sentenças bem formadas, que estão de acordo com as regras do sistema da língua que esse falante inter-

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nalizou. Essas sentenças podem seguir as regras da chamada língua padrão ou as regras das variedades rurais ou rurbanas. Em um ou em outro caso, serão bem formadas. Não se pode confundir, pois, o conceito de sentenças bem formadas, que provém da noção de competência, com a noção de erro que as nossas gramáticas nor-mativas defendem. Na ótica prescritiva dos gramáticos normativos, toda sentença que não siga as regras da chamada língua padrão são ‘erradas’. Mas você já sabe que a linguagem usada no pólo ru-ral/rurbano do contínuo é diferente da linguagem usada no pólo urbano em estilos monitorados. Contudo, tanto uma quanto outra se constituem de sentenças bem formadas. A fala de Chico Ben-to, por exemplo, é tão bem formada quanto um texto de Macha-do de Assis, considerando-se que ambos os falantes – Chico Bento ou Machado de Assis – internalizaram as regras constitutivas das sentenças em português e ambos têm português como língua ma-terna. As diferenças entre o texto de Chico Bento e o de Machado de Assis decorrem, basicamente, de localizar-se o primeiro no pólo rural e o segundo, no pólo urbano do contínuo. Além disso, a fala de Chico Bento caracteriza em evento de oralidade não-monitorado, enquanto o texto de Machado de Assis é um exemplar de even-to de letramento que, por definição, requer muito planejamento e monitoração. Nenhum falante usa mal a sua língua materna. Mas a forma como a usa vai depender de todos os fatores que você já conhece, especialmente, a variação ao longo dos três contínuos: de urbanização, de oralidade/letramento e de monitoração estilística. Na próxima seção, vamos continuar essa reflexão, para que não res-tem dúvidas.

Acabamos de ver o conceito de competência lingüística que Chomsky opôs ao conceito de desempenho. A primeira é abs-trata e consiste no conhecimento internalizado que o falante tem das regras para a formação de sentenças na língua; o desempenho, por outro lado, consiste no uso efetivo da língua pelo falante.

Logo que Chomsky propôs essa dicotomia, muitos pes-quisadores começaram a levá-la em conta em seus estudos e al-guns deles ofereceram críticas e reformulações a ela. A principal re-formulação foi proposta pelo sociolingüista norte-americano, Dell Hymes, em 1966. Para Hymes, o maior problema com o conceito de competência lingüística reside no fato de que esse conceito não dá conta das questões da variação da língua, seja essa variação inte-rindividual - entre pessoas - ou intraindividual - no repertório de uma mesma pessoa. Hymes então propôs um novo conceito – o de competência comunicativa, que é bastante amplo para incluir não só as regras que presidem a formação das sentenças mas também as normas sociais e culturais que definem a adequação da fala. Em outras palavras, a competência comunicativa de um falante lhe per-mite saber o que falar e como falar com quaisquer interlocutores em quaisquer circunstâncias. A principal novidade na proposta de Dell Hymes foi ter incluído a noção de adequação no âmbito da competência. Quando faz uso da língua, o falante não só aplica as regras para obter sentenças bem formadas mas, também, faz uso de normas de adequação, que são definidas na sua cultura. São es-

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sas normas que lhe dizem quando e como monitorar seu estilo. Em situações que exijam mais formalidade, seja porque está diante de um interlocutor desconhecido ou que mereça grande consideração, o falante vai selecionar um estilo mais monitorado; em situações de descontração, em que seus interlocutores sejam pessoas que ama e em que confia, o falante vai sentir-se desobrigado de proceder a uma monitoração vigilante e pode usar estilos mais coloquiais. Em todos esses processos, tem sempre que se levar em conta o papel social desempenhado.

Veja, por exemplo, a conversa telefônica entre a gerente de um banco de investimentos e um cliente. Observe o momento em que ela identifica o cliente como um velho amigo e muda de papel social e, conseqüentemente, de estilo.

Gerente: Gerência do Banco XXX. Em que eu posso ajudá-lo?Cliente: Estou interessado em financiamento para compra de veículo. Gostaria de saber quais as modalidades de crédito que o banco oferece.

Gerente: Nós dispomos de várias modalidades. O Senhor é nosso cliente? Com quem eu estou falando, por favor.?

Cliente: Eu sou o Júlio César Fontoura, também sou funcioná-rio do banco.

Gerente: Julinho, é você, cara? Aqui é Helena! Cê tá em Brasí-lia? Pensei que você ainda estivesse na agência de Uberlân-dia! Passa aqui pra gente conversá com calma. E vamu vê seu financiamento

Trata-se de uma jovem universitária, que freqüenta à noite o curso de Pedagogia e trabalha, durante o dia, em um ban-co. No seu repertório lingüístico, dispõe de recursos comunicativos para desempenhar os diversos papéis sociais que lhe cabem: de bancária, de aluna universitária, de amiga, de mãe, de esposa, etc. Podemos dizer que desenvolveu bastante sua competência comu-nicativa e é capaz de adequar sua fala às mais distintas situações.

Além da adequação, outra dimensão importante que Dell Hymes incluiu no conceito de competência comunicativa é o de viabilidade. O autor associou a noção de viabilidade a fenôme-nos sensoriais e cognitivos, como a audição, a memória, etc. Nós preferimos, porém, associar o requisito de viabilidade à noção de re-cursos comunicativos. Para viabilizar um ato de fala, o falante preci-sa dispor de recursos comunicativos de diversas naturezas: recursos gramaticais, de vocabulário, de estratégias retórico-discursivas, etc. Nos exemplos que você leu, na seção anterior, havia, por exemplo, o leiloeiro, que dominava estratégias retórico-discursivas para imple-mentar o seu leilão. Já os líderes comunitários de Teresina, dispu-nham de estratégias retóricas para falar em público. As pessoas vão adquirindo recursos comunicativos à medida que vão ampliando suas experiências na comunidade onde vivem e passam a assumir diferentes papéis sociais. Mas a escola tem uma função muito im-portante no processo de aquisição de recursos comunicativos. As

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crianças, quando chegam à escola, já sabem falar bem sua língua materna, isto é, sabem compor sentenças bem formadas e comuni-car-se nas diversas situações. Mas ainda não têm uma gama muito ampla de recursos comunicativos que lhes permita realizar tarefas comunicativas complexas ou que exijam muita monitoração. É pa-pel da escola, portanto, facilitar a ampliação da competência co-municativa dos alunos, permitindo que se apropriem dos recursos comunicativos necessários para desempenharem bem, e com segu-rança, suas competências nas mais distintas tarefas lingüísticas. Eles vão precisar especialmente de recursos comunicativos bem especí-ficos para fazer uso da escrita, em gêneros textuais mais complexos e para fazer uso da língua oral em estilos monitorados.

Vamos ver se entendemos isso bem! Todo falante dispõe de suficiente competência lingüística em sua língua materna para produzir sentenças bem formadas e comunicar-se com eficiência. Ao chegar à escola, portanto, todos os alunos já são competentes em Língua Portuguesa. Temos de levar em conta, porém, que o uso da língua, assim como quaisquer outras ações do homem como ser social, é dependente das normas que determinam o que é um com-portamento socialmente aceitável. À medida que os indivíduos vão desempenhando ações sociais mais diversificadas e complexas, para além do domínio da família e da vizinhança mais próxima, têm de atender a normas vigentes nos novos domínios de interação social que passam a freqüentar. Em muitos domínios sociais, comunicam-se mais usando a escrita do que a fala e também estão submetidos a exigências de monitoração estilística. Essas exigências decorrem de normas culturais convencionadas naquele domínio. As chama-das normas de correção gramatical nada mais são que normas con-vencionais que presidem a certos tipos de interação por meio da língua escrita ou da língua oral.

Ao chegar à escola, a criança, o jovem ou o adulto já são usuários competentes de sua língua materna, mas têm de ampliar a gama de seus recursos comunicativos para poder atender às con-venções sociais, que definem o uso lingüístico adequado a cada gê-nero textual, a cada tarefa comunicativa, a cada tipo de interação. Os usos da língua são práticas sociais e muitas delas são extrema-mente especializadas, isto é, exigem vocabulário e formações sintá-ticas especializadas.

Há usos especializados da língua que constituem práti-cas sociais de letramento, mas há usos especializados que são prá-ticas da cultura de oralidade. Um exemplo dessas últimas é de um carpinteiro (não-alfabetizado) explicando a um aprendiz a técnica de construção de uma cancela de madeira ou de um mata-burro. Um exemplo de uso especializado da língua que constitui uma prá-tica social de letramento é de um comandante de um avião expli-cando o plano de vôo aos passageiros.

A escola é, por excelência, o locus – ou espaço – em que os educandos vão adquirir, de forma sistemática, recursos comuni-cativos que lhes permitam desempenhar-se competentemente em

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práticas sociais especializadas.

Quando falamos em recursos comunicativos, é bom re-cordarmos três parâmetros que estão associados à questão da am-pliação desses recursos, que são:

• grau de dependência contextual;

• grau de complexidade no tema abordado;

• familiaridade com a tarefa comunicativa;

Toda produção lingüística é dependente do contexto em que se encontra o falante e, no caso, de interação face a face dos interlocutores, mas o grau de dependência do contexto varia muito. Quando os interagentes partilham de experiências em comum, a comunicação entre eles é mais fácil e eles se valem de muitas in-formações implícitas. Dizemos que esse discurso tem um alto grau de contextualização. Veja esse diálogo hipotético entre dois irmãos que estão brincando com bloquinhos de encaixe do tipo “Lego”, ten-tando formar peças como casinha, barquinho, castelo, etc.

– Essa é minha! Você pegou a minha!

– A sua é essa outra! Essa que tá aí.

– Não é não! A minha é essa. Eu quero a minha!

– Essa eu não te dou, só te dou essa.

Para que esse evento de fala seja compreensível, é pre-ciso que cada elemento dêitico (“a minha”, “essa outra”, “essa”, etc.) re-meta claramente ao objeto a que se refere. Dêitico é um adjetivo de-rivado de “dêixis”, que é, segundo Mattoso Câmara, a faculdade que tem a linguagem de designar mostrando, ao invés de conceituar.

No diálogo entre os dois irmãozinhos, há um alto grau de dependência contextual ou contextualização do discurso. Quan-do a dependência contextual é menor, os enunciados têm de ser mais explícitos e os falantes têm de se valer de recursos comuni-cativos, como vocabulário específico, seqüenciadores e operadores lógicos, entre outros, que dão ao discurso clareza e objetividade.

O mesmo diálogo entre as duas crianças sem o recur-so à dêixis poderia ficar assim: (É claro que nesta forma o diálogo é altamente improvável, porque as crianças não adquiriram ainda recursos para construir um discurso com mínima dependência con-textual. Mas à guisa de comparação, vamos ao texto) :

– Esse triângulo azul é meu! Você o pegou do meu castelo.

– A peça que estava em seu castelo não é o triângulo. É esse paralelograma que está ao lado da sua mão direita.

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– Não é não! Eu quero o triângulo azul que você usou para fazer a proa de seu navio...

Atividade

Grave o diálogo entre dois ou mais alunos envolvidos em uma atividade manual. Transcreva, depois, o diálogo e discuta com um colega ou com sua monitora a dependência contextual desse discurso. Faça o mesmo com um diálogo gravado entre dois profes-sores igualmente envolvidos em uma tarefa manual comum. Leve a questão da dependência contextual – ou implicitude – das intera-ções face a face para discussão em seu grupo. Esta é uma questão teórica muito relevante porque a implicitude – ou indexicalidade – ou, se você preferir, o grau de contextualização é uma das princi-pais características que distinguem a linguagem oral da linguagem escrita e, também, a linguagem monitorada da não-monitorada.

O segundo parâmetro relacionado a recursos comuni-cativos é a complexidade do tema abordado. Contar uma narrativa de experiência pessoal é cognitivamente menos complexo que fa-zer o reconto de um filme assistido, por exemplo. Na sala de aula, há tarefas comunicativas com diferentes graus de complexidade cognitiva. E isso nos leva ao terceiro parâmetro mencionado acima: familiaridade com a tarefa comunicativa.

Vamos parar um pouco para pensar nisso!

Reflita

Entre as atividades de linguagem que seus alunos de-senvolvem em sala de aula, identifique aquelas que são mais praze-rosas para eles e nas quais eles são mais fluentes. Compare-as com atividades que os alunos acham difíceis. Mostre sua relação ao seu monitor e aos seus colegas e juntos procurem analisar essas tarefas com relação aos três parâmetros estudados:

• grau de dependência contextual;

• grau de complexidade no tema abordado;

• familiaridade com a tarefa comunicativa;

Quando um falante tem de desempenhar uma tarefa comunicativa para a qual não dispõe de recursos, a atividade se tor-na muito estressante e ele vai buscar formas de desincumbir-se da obrigação que lhe foi atribuída. Com freqüência, vale-se de palavras que não conhece bem mas que julga apropriadas para a ocasião. Veja o seguinte exemplo:

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Em uma entrevista feita com populares na rua, o repór-ter de TV pergunta a uma moça que vantagens um treinamento profissional lhe havia trazido. No afã de monitorar o seu estilo e como lhe faltassem recursos de morfologia verbal, a entrevistada respondeu:

–“O curso foi muito bom para que nós aprimorizásse-mos nossos conhecimentos”.

Observe que o imperfeito do subjuntivo é uma forma verbal pouca usada na fala coloquial e mais presente em certos usos especializados da língua. A entrevistada quis usar essa forma para atender às expectativas da situação – uma entrevista televisi-va. Porém, não foi capaz de produz a forma prevista na gramática normativa: “aprimorássemos”.

Vamos, então, sintetizar o que acabamos de ver sobre competência lingüística, competência comunicativa, recursos co-municativos e papel da escola.

1) Todo falante nativo de uma língua, por volta de sete,

oito anos, já internalizou as regras do sistema da língua que lhe per-mitem produzir sentenças bem formadas naquela língua, o que não acontece com um falante estrangeiro, que produz sentenças agra-maticais, isto é, que não estão de acordo com o sistema da língua estrangeira.

2) Como a língua é um fenômeno social, cujo uso é regi-do por normas culturais, além de ter domínio das regras da língua, os falantes têm de usá-la de forma adequada à situação de fala.

3) No desempenho dos papéis sociais, os indivíduos transitam por espaços sociolingüísticos em que têm de dominar certos usos especializados da língua.

4) O falante tem de dispor em seu repertório de recursos comunicativos que lhe permitam desempenhar-se com adequação e segurança nas mais diversas situações.

5) Grande parte dos recursos comunicativos que com-põem o seu repertório é adquirido espontaneamente no convívio social; mas para o desempenho de certas tarefas especializadas, especialmente as relacionadas às práticas sociais de letramento, o falante necessita desenvolver recursos comunicativos, de forma sis-temática, por meio do aprendizagem escolar.

6) A tarefa educativa da escola, em relação à língua

materna, é justamente a de criar condições para que o educando desenvolva sua competência comunicativa e possa usar, com segu-rança, os recursos comunicativos que forem necessários para de-sempenhar-se bem nos contextos sociais em que interage.

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Page 59: Educação em língua materna

Revendo a variação

lingüística no

Português do Brasil

Objetivos: sistematizar as informações sobre variáveis no

Português Brasileiro e as principais regras de variação na

fonologia e morfossintaxe

3

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Nesta seção, vamos procurar resumir e sistematizar o que temos visto sobre as características lingüísticas – inclusive os traços descontínuos e graduais que distinguem as variedades ao longo do contínuo de urbanização. Em outras palavras, queremos responder às seguintes perguntas :

1) quais a principais características da fala de um bra-sileiro com antecedentes rurais e rurbanos se comparada à fala de um brasileiro com antecedentes urbanos?

2) Quais as principais características da linguagem de um falante usando estilo monitorado se comparado aos seus estilos não-monitorados?

Vamos discutir primeiro tais características no âmbito da fonologia – pronúncia – e depois cuidaremos das características no âmbito da morfologia e da sintaxe, ou seja, morfossintaxe.

As principais regras fonológicas de variação no portu-guês do Brasil ocorrem na posição pós-vocálica na sílaba. Vamos entender bem isso. A sílaba é uma emissão de voz marcada por um ápice de abrimento articulatório e tensão muscular que, na língua portuguesa, é sempre representado por uma vogal. Dizemos então que a vogal é núcleo silábico. A vogal silábica pode ser precedida e seguida de consoantes. É justamente a consoante que segue o nú-cleo silábico, posição chamada pós-vocálica na sílaba, que está su-jeita a grande incidência de variação. Para você entender bem isto, vamos conversar um pouco mais sobre a estrutura da sílaba.

As sílabas em português podem ter a seguintes confi-gurações: (“C” significa consoante e “V” significa vogal).

• CV, exemplo: ma, lá, li, vê, na, de, vi, lu-xo, fa-la, etc. A sílaba CV é considerada canônica, porque se constitui de uma con-soante e de uma vogal. Na articulação da consoante, a corrente de ar tem de forçar sua passagem na boca, pois algum movimento ar-ticulatório lhe criam embaraço em algum ponto da cavidade. Na ar-ticulação da vogal, a corrente de ar passa livremente pela cavidade bucal, variando apenas o grau de abertura da cavidade.

•V : a, é, a - vião, ô - nibus, ú - nico, etc.

•CVC: por, mar, ver, pos - te, cas - telo, ra - paz, fá - cil, etc.

•CCV: bra - ço, pla - queta, bro - che, etc.

•CCVC: plas - ma, pres - tígio, fras - co, etc.

•CCVCC: trans - porte, etc.

•CVCC: pers - pectiva.

Nem todas as consoantes podem ocupar as posições

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de C nessas configurações. Existem restrições que você vai apren-der agora, observando os seguintes quadros: em cada quadro está marcada a posição da consoante na sílaba e abaixo dela os fonemas que podem ocorrer naquela posição.

Observe que na posição da segunda consoante só po-dem ocorrer as chamadas consoantes líquidas: /r/ e /l/. Na primeira posição consonântica, podem ocorrer todos os fonemas oclusivos e o fonemas fricativos pronunciados com a língua plana: /f/ e /v/.

Atividade

Para fixar bem essas restrições de ocorrência dos fo-nemas nas sílabas, faça uma relação de palavras que contenham sílabas na configuração CCV, como nos exemplos que você já viu. Antes de passarmos para outra configuração silábica, precisamos observar que na configuração CCV, que acabamos de discutir, uma regra variável muito produtiva nos falares rurais e rurbanos, mas que também pode ocorrer nos estilos não-monitorados de falantes de antecedentes urbanos é a troca do /l/ por /r/. Isso se explica por-que esses dois fonemas são do ponto de vista articulatório muito semelhantes. Você, certamente, já ouviu palavras como bloco >’bro-co’, problema> ‘pobrema’, claro> ‘craro’.

Na realização do /r/ e do /l/ como a segunda consoante

no padrão CCV pode ocorrer também outro fenômeno, que é a tro-ca do /r/ pelo /l/. É o que acontece na fala do Cebolinha, persona-gem de Maurício de Sousa.

Atividade Seus alunos vão gostar de pesquisar a realização das

consoantes liquidas /r/ e /l/ no padrão silábico CCV. Vocês vão des-cobrir que alguns tipos de neutralização (troca) desses dois fone-mas configuram traços descontínuos, só encontrados no pólo rural do nosso contínuo; verão também que, em certas regiões do Brasil, como no sul de Minas e em certas áreas de Goiás, essa neutralização é mais freqüente que em outras regiões. Finalmente, poderão cons-tatar que a neutralização do /r/ e /l/ nessa posição pode caracterizar

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6�

um problema articulatório, que tem de ser tratado com fonoaudió-logos. O caso do Cebolinha se enquadra nessa última categoria. Em resumo, a naturalização do /r/ e /l/ no padrão silábico CCV pode ser indicador de dialetos rurais e rurbanos, pode ser marcar regional e pode ainda ser um problema fono-articulatório. Discuta essa ques-tão com seus alunos e colegas.

Passemos agora para outro padrão silábico, o CVC:

Qualquer consoante pode iniciar este tipo de sílaba, exemplos: par, lar, mãe, com, sem, viu, vil, cós, ser-viu, for-mar, etc. Nossa atenção nesses casos se volta para a segunda consoante, a que fecha a sílaba, ou seja, a consoante de travamento da sílaba. Como já lhe adiantamos no início desta seção, são as consoantes que travam sílabas as que estão sujeitas a maior variação no por-tuguês do Brasil, pois tendem a ser suprimidas principalmente em estilos não-monitorados. Vamos discuti-las uma a uma.

• O /R/, nessa posição, pode ser foneticamente realiza-do de várias maneiras, como uma consoante posterior articulada na garganta ou como uma consoante anterior articulada com vibra-ções na ponta da língua; pode também ser articulada com língua dobrada para trás (retroflexa), o que produz o /r/ mais comum em zonas rurais de Minas Gerais, São Paulo e Goiás, que é chamado de /r/ caipira. Pode ainda se reduzir a uma simples aspiração realizada na glote ou na faringe, que se situa na parte posterior da garganta. Confira o desenho do aparelho fonador em uma enciclopédia ou na internet. No fascículo II, quando estudarmos o sistema fonológico da língua portuguesa, Você vai receber o desenho do aparelho fo-nador e mais informações sobre o que estamos discutindo agora. A forma de realizar o /r/ pós-vocálico varia de uma região para outra.

Atividade

Observe junto com seus alunos realizações diferentes de /r/ pós-vocálico comparando-as na linguagem de mineiros, pau-listas do interior, paulistanos, goianos, paranaenses e gaúchos. Vo-cês vão encontrar uma interessante variação de natureza regional.

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Além da variação no modo e no ponto de articula-ção do /r/ pós-vocálico, que é de natureza regional, esse fonema apresenta uma peculiaridade para qual nós, professores, devemos ficar muito atentos. Em todas as regiões do Brasil, o /r/ pós-vocá-lico, independentemente da forma como é pronunciado, tende a ser suprimido, especialmente nos infinitivos verbais (correr>corrê; almoçar>almoçá; desenvolver>desenvolvê; sorrir>sorri). Quando o suprimimos, alongamos e damos mais intensidade à vogal final. A regra de supressão do /r/ nos infinitivos dá origem a uma hiper-correção (fenômeno que você já conhece) que resulta em constru-ções assim: “João estar muito quieto hoje”. Esta, como qualquer ou-tra hipercorreção, decorre de uma hipótese heurística malsucedida. O usuário da língua, quando suprime um /r/ em infinitivo verbal, ao escrever, o faz porque na língua oral ele já não usa mais esse /r/. Então, ao produzir uma forma como “está”, da terceira pessoa do singular do indicativo presente, imagina que nela também haveria um /r/ que foi igualmente suprimido, e acrescenta esse suposto /r/, incorrendo numa hipercorreção.

Além dos infinitivos verbais, o /r/ pós-vocálico tam-bém tende a ser suprimido nas formas do futuro do subjuntivo: (se eu estiver>estivé; se ele quiser>quisé; se ela fizer>fizé) e nos substantivos adjetivos e advérbios polissilábicos (que têm mais de duas sílabas: melhor > melhó; maior>maió; Deusimar>Deusimá; regular>regulá, amor> amó, etc).

Nos nomes monossilábicos (de uma sílaba só) o /r/ pós-vocálico tende a preservar-se: mar, dor, par, cor, etc.

Atividade

Observe junto com seus alunos em uma gravação es-pontânea, em músicas ou poemas gravados ou em outros textos, a supressão do /r/ pós-vocálico em final de palavra. Faça quatro listas de palavras terminadas em /r/ colocando-as na coluna específica, observando se o /r/ foi ou não pronunciado. Ao final, você terá um quadro com este abaixo, com esses cabeçalhos.

Depois que você preencher o quadro, vai fazer alguns cálcu-los simples:

• some todas as ocorrências de infinitivos verbais;

• some todas as ocorrências de infinitivos verbais sem /-r/;

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• some todas as ocorrências de infinitivos verbais com /-r/;

• divida o total de ocorrências de infinitivos verbais sem /-r/ pelo total de infinitivos verbais. Assim você encontrará a freqüência de infinitivos verbais sem /-r/;

• divida o total de ocorrências de infinitivos verbais com /-r/ pelo total de infinitivos verbais. Assim você encontrará a freqüência de infinitivos verbais com /-r/;

• compare a freqüência de infinitivos verbais realiza-dos com /-r/ com a freqüência de infinitivos verbais realizados sem /-r/. Você verá que houve mais ocorrências sem /-r/ do que com /-r/;

Repita os mesmos procedimentos com as outras cate-gorias e você poderá constatar que a supressão do /r/ pós-vocálico varia em função de categorias morfológicas. Se tiver dúvidas na for-ma de fazer os cálculos, procure seus tutores da área de Educação e Língua Materna. Vamos apresentar dados fictícios e fazer juntos uma simulação para que você aprenda, com segurança, a fazer os cálculos das freqüências de uma regra variável, como a que esta-mos estudando.

Freqüência de infinitivos verbais pronunciados sem /-r/: 48/83 = 57%

Freqüência de infinitivos verbais pronunciados com /-r/: 35/83 = 42%

Faça você agora os cálculos com as demais categorias para treinar essa habilidade.

No padrão CVC, que estamos estudando, além do /r/, outro fonema que pode ocorrer na posição pós-vocálica é o /s/, esse fonema pode ser representado graficamente como s, x ou como z, exemplos: lápis, cós, extra, rapaz, capaz, feliz, mês, vez, etc. Quanto à pronúncia, o /s/ pós-vocálico soa como uma consoante surda (sem vibração das cordas vocais) diante de outra consoante surda: soa como uma consoante sonora diante de outra consoante sonora ou diante de uma vogal. Além disso, pode ser realizada como uma sibi-lante ou como uma chiante, dependendo da região.

Em Brasília e em Belo Horizonte, por exemplo, o /s/ pós-

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vocálico é mais freqüentemente realizado como uma sibilante, com a ponta língua tocando a parte superior interna dos dentes. No Rio de Janeiro, em Salvador, em Fortaleza e em outras cidades, o /s/ pós-vocálico é realizado como chiante com o dorso da língua tocando o palato ( céu da boca).

Atividades Para que você e seus alunos se lembrem bem das va-

riações regionais na pronúncia do /s/ pós-vocálico, leve para sala de aula músicas interpretadas por cantores de diversas regiões do Brasil. Ouçam as canções e façam uma relação de todas as palavras onde aparece o /s/ pós-vocálico, identificando a sua realização fo-nética. Procure ouvir a música “Festa do Interior” de Moraes Moreira, cantada por Gal Costa e observe como a cantora baiana realiza os /s/ pós-vocálicos. Em “xotes e...”, o /s/ soa como /z/, porque é seguido de uma vogal. Em “estrelas de...” o /s/ tem som chiante e sonoro por-que sofre a influência do fonema seguinte /d/, que é sonoro. Em “ex-plodia...” o /s/ pós-vocálico, representado pelo x soa como /s/ sibi-lante surda, pela influência da consoante /p/ seguinte, que é surda. No final de palavras seguidas de pausa, como “fagulhas”, “xaxados”, a cantora Gal Costa realiza os /s/ pós-vocálicos como chiantes.

Fagulhas, pontas de agulhasBrilham estrelas de São JoãoBabados, xotes e xaxadosSegura as pontas, meu coraçãoBombas na guerra magiaNinguém matavaNinguém morriaNas trincheiras da alegriaO que explodia era o amor

Ardia aquela fogueiraQue me esquentava a vida inteiraEterna noiteSempre a primeira festa do interior

Você já percebeu que a realização do /s/ pós-vocálico varia muito, tanto em função da região geográfica quanto do con-texto fonológico em que ocorre. Contexto fonológico são os sons que antecedem ou que seguem um determinado fonema. No caso do /s/ pós-vocálico, o contexto que tem influência é o segmento seguinte. Isto é, se é vogal, consoante ou pausa e, no caso de ser consoante, se surda ou sonora.

Com todas essas informações que você já recolheu,

continue a fazer a atividade com seus alunos. Escolha, por exemplo, uma música cantada por Milton Nascimento (nascido no Rio de Ja-neiro, mas criado em Três Pontas - MG) e pelo carioca Zeca Pagodi-nho. Vai ser divertido identificar as pronúncias do /s/ pós-vocálico em suas músicas. Lembre-se finalmente que esse fonema tem três representações gráficas: s, z e x.

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Para nós, que somos professores em início de escolari-zação, um fenômeno muito importante relacionado ao /s/ pós-vo-cálico é a tendência à sua supressão. Assim como /r/ pós-vocálico, que já vimos, também o /s/ nas sílabas do tipo CVC tende a ser su-primido, principalmente nos estilos não-monitorados.

Ao tratarmos desse assunto, convém fazer a distinção entre o /s/ pós-vocálico que é morfema de plural (ou seja, é o ele-mento que contém a marca de plural) e o /s/ que não é morfema de plural. Vejamos exemplos do /s/ como marca de plural:

aluno + s, lâmpada + s, coelho + s.

Vejamos agora palavras monomorfêmicas (formadas por um único morfema em que o /s/ é parte do morfema lexical:

lápis, pires, Paris, atrás, etc.

Com base na sua experiência, como falante competen-te da Língua Portuguesa na modalidade brasileira, responda à se-guinte questão: que /s/ pós-vocálico, em final de palavra, tem maior tendência para ser suprimido: o /s/ que é morfema de plural ou o /s/ em palavras monomorfêmicas?

Se você escolheu o /s/ morfema de plural, acertou!

Em muitos pontos deste fascículo, comentamos que nos sintagmas nominais há uma tendência, no PB (Português Brasileiro), de não se fazer a concordância nominal, isto é, a concordância dos determinantes com o núcleo do sintagma representado por um nome ou pronome, no plural.

Muitos lingüistas têm pesquisado esta regra variável do PB, especialmente a professora Maria Marta Pereira Scherre (da UnB e da UFRJ) e mostram que a regra de concordância nominal, conforme prevista nas gramáticas normativas, hoje em dia se aplica somente em estilos muito monitorados e na língua escrita, muito formal.

Em estilos não-monitorados tendemos a usar uma regra de concordância não-redundante, isto é, em vez de flexionarmos to-dos os elementos flexionáveis do sintagma, flexionamos apenas o primeiro. Você viu exemplos disso em vários textos neste fascículo. Lembra-se da música “O Cuitelinho”? Ali vimos os seguintes sintag-mas nominais flexionados de acordo com a regra de concordância não-redundante: “terras paraguaia”, “fortes bataia”.

Revendo esses exemplos, podemos ficar com a impres-são errônea de que a regra de concordância nominal não-redun-dante só ocorre no pólo rural/rurbano do contínuo de urbanização. Mas não é bem assim. Essa regra de concordância não-redundante ocorre ao longo de todo o contínuo, nos estilos não-monitorados,

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chegando, às vezes, até mesmo, aos estilos monitorados.Por estar tão generalizada na língua, é certo que nossos

alunos vão empregá-la em seus textos escritos que, por sua natu-reza, exigem a regra da concordância redundante prevista na gra-mática normativa. Por isso, nós, professores, temos que ficar muito atentos ao uso da regra de concordância nominal na produção de nossos alunos e na nossa própria produção.

Há duas coisas de que você não pode se esquecer quan-do lidar com esse fenômeno:

1) no PB tendemos a flexionar o primeiro elemento do sintagma nominal plural e a não marcar os demais. Esta é uma ten-dência que se explica porque geralmente dispensamos elementos redundantes na comunicação e as diversas marcas de plural no sintagma nominal plural são redundantes. Ao escrever sintagmas nominais plurais, seu aluno vai tender a flexionar somente o primei-ro elemento, que pode ser um artigo, um pronome possessivo, de-monstrativo, etc. Exemplos:

“os amigo”; “Meus brinquedo”; “aqueles homi”; “os meus tio”.

2) Quanto mais diferente for a forma do plural de um nome ou pronome da sua forma singular, mais tendemos a usar a marca de plural naquele nome ou pronome. Quando a forma de plu-ral é apenas um acréscimo de um /s/, tendemos a não empregá-la.

Baseados nessa constatação, os pesquisadores da área de sociolingüística quantitativa construíram uma escala que vai dos nomes em que a diferença entre singular plural é mínima até os nomes que formam o plural com duas marcas: o acréscimo do /s/ e a mudança da vogal. A escala ficou assim:

aluno ~ alunos; casa ~ casas; minha ~ minhas; (o plu-ral é apenas o acréscimo do /s/).

menor ~ menores; ator ~ atores (o plural é feito com acréscimo de uma sílaba).

rapaz ~ rapazes; vez ~ vezes (o plural também é feito com acréscimo de uma sílaba, mas a forma singular se confunde com a forma de plural porque termina em fonema sibilante).

hotel ~ hotéis; cão ~ cães; caminhão ~ caminhões (esses são os chamados plurais irregulares porque acarretam uma mudança maior na sílaba final).

ovo ~ ovos; novo ~ novos (o plural é marcado pelo /s/ e pela mudança na vogal, que é conhecida como metafonia).

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Atividade

Você poderá aumentar a lista de exemplos em cada ca-tegoria, sempre observando a diferença entre a forma de singular e a de plural.

É bom também que você verifique se esta escala se con-firma na produção de seus alunos. Isto é, se eles estão flexionando com mais freqüência palavras como hotéis, carretéis, anões, sóis, etc, do que palavras como amigos, irmãos, casinhas, etc.

Há um aspecto muito interessante que convém men-cionarmos. Sempre aprendemos que devíamos dar ênfase na es-cola aos plurais irregulares, mas estamos vendo que são os plurais regulares que exigem nossa maior atenção porque são esses que têm maior probabilidade de não serem flexionados. Vejamos o que diz a este propósito a professora Maria Cecília Mollica, no livro que você já conhece: Influência da fala na alfabetização (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998/2000).

“Proponho que /…/ uma metodologia pedagógica que dê conta de todos os fenômenos variáveis (ou aparentemente va-riáveis), que até então foram objeto de descrições sociolingüísticas eminentemente acadêmicas e que já exibem resultados consolida-dos, terá que nortear-se em princípios mais gerais /…/, a saber:

(1) Ir do discurso para a sentença (ou para o vocábulo, ou para segmentos menores como sílabas e fonemas): essa máxi-ma serve como guia para muitos fenômenos variáveis que são con-textualizados por fatores discursivos, como status informacional do referente, cadeia tópica, paralelismo formal, figura/fundo, ou até mesmo para a presença de pausa em intervalos sintagmáticos com reflexos na pontuação.

(2) Ir do mais freqüente para o menos freqüente: em se tratando de trabalho em sala de aula, há que se ter bom senso de se “atacar” problemas priorizando inicialmente os que mais ocorrem: assim, recomenda-se que o trabalho com desvio da variante stan-dard de menor incidência deva ser postergado, em geral.

(3) Ir do mais provável para o menos provável: quase sempre os problemas mais freqüentes coincidem com os que, por meio de estudos dos fatores que favorecem o seu uso, sabemos que têm maiores probabilidades de ocorrerem.

Insisto que devem ser selecionadas prioritariamente as variáveis que mais atuam para a emergência do erro, na escrita. Por exemplo, sintagmas nominais com dupla marca de número plural na fala, como em ovo ~ ovos não costumam oferecer problemas para o usuário do ponto de vista da concordância. No entanto, os sintagmas verbais e nominais cujo plural é regular e menos saliente

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fonicamente, como ele fala ~ eles falam ou casa ~ casas constituem o subgrupo mais problemático para o falante, que costuma marcar geralmente o plural nas formas mais marcadas fonicamente apenas no primeiro elemento, nos casos de sintagma nominal “ (MOLLICA, 2000, pág. 35-60).

Este texto foi transcrito com algumas adaptações. Reco-mendamos que você vá ao original e leia todo a capítulo de onde ele foi tirado. A autora faz referência à concordância nominal e à verbal. Você já sabe bastante sobre a regra variável de concordân-cia nominal. Quanto à regra variável de concordância verbal, vamos discuti-la nos próximos parágrafos. Mas, antes, registre bem a ativi-dade que estamos sugerindo que você faça:

Atividade

Reúna um conjunto de trabalhos escritos de seus alu-nos. Identifique nesse corpus todos os sintagmas nominais que são semanticamente plurais, mesmo que não apresentem todas as mar-cas de plural. Verifique se seus alunos tendem a flexionar com mais freqüência os plurais irregulares do que os regulares. Faça um pe-queno cálculo das freqüências, do seguinte modo:

Some o total de sintagmas nominais plurais (T).

Some o total de sintagmas nominais cujo núcleo é um substantivo de plural regular que tenha sido flexionado (TR).

Some o total de sintagmas nominais cujo núcleo é um substantivo de plural irregular que tenha sido flexionado (TI).

Dividindo TR por T, você encontrará a freqüência de fle-xão nos nomes regulares.

Dividindo TI por T, você encontrará a freqüência de fle-xão nos nomes irregulares.

Fácil, não? Ao final, basta comparar as duas freqüências. Se você ajuntar o seu corpus, com os de seus colegas de grupo, vai obter resultados ainda mais confiáveis, porque estará trabalhando com uma base de dados maior. É interessante verificar se os resulta-dos que vocês vão obter confirmam as hipóteses trabalhadas pelos pesquisadores da área de Sociolingüística Quantitativa ou Variacio-nista, nas quais a pesquisadora Maria Cecília Mollica se baseou para postular os três princípios que você leu.

Estamos trabalhando com o padrão silábico CVC. Já vi-

mos que no PB há uma forte tendência à queda da segunda con-soante quando a sílaba CVC ocorre no final de palavra. São seis as consoantes que podem ocorrer nessa posição. São elas /R/, /S/, /N/, /L/, / U/ /I/. Vamos refletir sobre cada uma delas.

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• /R/ - pode ser pronunciado na parte anterior da boca, como uma vibrante alveolar, ou com a língua retroflexa, mas, na maior parte das variedades regionais brasileiras, é pronunciado como uma consoante posterior. Já sabemos que o /R/ final que tem mais probabilidade de ser suprimido na pronúncia é o dos infini-tivos verbais e das formas do futuro do subjuntivo. Os nomes mo-nossilábicos, como ‘dois’, ‘cor, ‘mar’, etc, tendem à conservação do /R/, enquanto os polissilábicos tendem à supressão dessa consoante final. É preciso observar também que em sílabas átonas finais, como em “revólver”, o /R/ tende mais a ser suprimido que em sílabas finais tônicas, como em “malmequer”.

• /S/ é representado graficamente pelas letras (ou gra-femas) “s”, “z” e “x”. Já sabemos que o /s/ que é morfema de plural tende mais a ser suprimido que o /s/ que ocorre ao final de palavras monomorfêmicas. É preciso observar, ainda, que o /s/ que ocorre no morfema {-mos} (pronunciado /-mus/) da primeira pessoa do plural dos verbos também apresenta alta incidência de supressão. Este é, de fato, um traço gradual:

nós fazemos > nós fazemunós viemos > nós viemu

Atividade

Pegue as gravações que você já fez e peça aos seus alu-nos que tragam outras: de novelas, programas de rádio, entrevis-tas, etc, e observem a freqüência da regra de supressão do /s/ no morfema {-mos}. Para calcular a freqüência da regra no seu corpus gravado, conte o número (T) de ocorrências do morfema {-mos}, realizado como /-mus/ ou como /-mu/. Conte depois o número de ocorrências da variante com supressão do /s/ (TU). Depois divida TU por T (TU/T) e você encontrará a freqüência da supressão do /s/ final no morfema {-mos} em seus dados.

Vamos a uma simulação. Supondo que em seus dados haja 38 ocorrências do

morfema, que incluem tanto a variante {-mus} quanto a variante {-mu}. Há no corpus 22 ocorrências da variante {-mu}. Dividindo 22 por 38, temos:

22/38 = 0.57

Dizemos, então, que a freqüência da variante {-mu} (com supressão do /s/ final) é de 57% no corpus estudado.

Voltemos, agora, às outras consoantes que ocorrem em

posição pós-vocálica:• L• I• U

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71

• N

O /L/ na posição pós-vocálica final em PB pode ser realizado como uma consoante lateral /l/ ou como a vogal /u/. No Sul do Brasil, ainda encontramos a variante /l/, mas a variante /u/ está generalizada no Português Brasileiro contemporâneo.

Atividade

Observe a pronúncia de palavras como ‘Brasil’, ‘anel’, ‘ca-nal’ e confira se o /l/ está sendo pronunciado como consoante late-ral ou como vogal posterior.

Ainda com relação ao /L/ na sílaba CVC, temos que fazer duas observações. A primeira é que o segmento /l/ tende a ser mais suprimido em sílabas átonas que em tônicas. Compare os dois con-

juntos de palavras:

No primeiro, a sílaba final CVC final é tônica; no segundo, é átona. No primeiro conjunto, observamos a realização do segmen-to final, seja como /l/ ou como /u/. Somente no pólo rural/rurbano do contínuo de urbanização, dá-se a supressão do /l/ final em pala-vras oxítonas. Por exemplo:

carnaval > carnavá

Pode ocorrer também a troca do /l/ pelo /r/ nos falares rurais:

carnaval > carnavar

Esses dois casos constituem traços descontínuos, carac-terísticos dos falares rurais. Você certamente vai encontrá-los na fala de Chico Bento.

Nas palavras paroxítonas terminadas em /l/, como as do segundo conjunto, a perda do segmento final não está restrita ao pólo rural do contínuo. Pode ocorrer nos estilos não-monitorados, mesmo no repertório de falantes com antecedentes urbanos, prin-cipalmente quando estão falando depressa.

Para nós, professores, o principal problema a atentar no caso do /l/ pós-vocálico é a neutralização entre o /l/ e o /u/ nes-ta posição, pois nossos alunos, ao aprenderem a escrever, têm de

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aprender a usar a letra ‘u’ em palavras como ‘berimbau’, ‘pau’, ‘cha-péu’, etc, a letra ‘o’, em palavras como ‘arrepio’, ‘macio’, ‘vazio’ e ‘tio’ etc, e, finalmente, a letra ‘l’ em palavras como ‘avental’, ‘lençol’ ‘ automó-vel’, ‘anzol’ etc. O segmento final, pós-vocálico, em todas elas, é pro-nunciado /u/.

Atividade

Discuta essa questão com seus colegas de grupo. Verifi-que que estratégias são usadas por eles, em sala de aula, para lidar com a neutralização entre o /l/ e o /u/ na consoante pós-vocálica, nas sílabas finais CVC.

Passemos, agora, às sílabas CVC travadas com as semi-vogais /i/ e /u/. Esses são os casos dos ditongos decrescentes.

A semivogal que ocupa o lugar da segunda consoante nas sílabas CVC, travando-a, também está sujeita à supressão, como as consoantes que já vimos. A perda da semivogal nos ditongos resulta em um processo denominado monotongação. No ditongo /ou/, a monotongação é um processo muito antigo na língua, desde a evolução do latim para o português. Veja os exemplos:

alterum >outro > outroaurum > ouro > oro

Na transição do latim para o português, a vogal /a/ transformou-se em /o/ por um processo de assimilação, isto é, por influência do segmento seguinte /l/ e /u/, que são posteriores, a vo-gal /a/ foi-se posteriorizando, tornando-se /o/, que é uma vogal pos-terior (produzida na cavidade posterior da boca). A passagem de /ou/ para /o/ - que é a própria monotongação – deve ter se iniciado ainda em Portugal, no século XVIII. No Brasil, a regra continuou sua deriva – seu desenvolvimento. O fator que mais a favorece é tam-bém a assimilação, ou seja, a influência articulatória do segmento seguinte.

A regra está tão avançada que, praticamente, não pro-nunciamos o ditongo /ou/. Até em sílabas tônicas finais, que são mais resistentes à mudança, reduzimos este ditongo.

Veja: estou > estô sou > sô jogou > jogô

Em sílabas internas, tônicas ou átonas, ele também é reduzido:

besouro > besoro tesouro > tesoro louco > loco

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doutor > dotô roupa > ropa

Quando há monotongação desse ditongo no radical dos verbos, há a tendência a abrir a vogal, que passa a /Ó/ (vogal aberta) na língua oral. Exemplo:

rouba > roba > róbapoupa > popa > pópa Dado que a regra de monotongação do /ou/ está gene-

ralizada na língua oral, inclusive nos estilos monitorados, é preciso dedicarmos muita atenção em sala de aula à produção escrita desse ditongo, desde o início do processo de alfabetização.

Já os ditongos /ei/ e /ai/ também se reduzem, mas a regra de monotongação desses casos está menos avançada, apli-cando-se somente em alguns contextos fonológicos. Observe as palavras seguintes e marque com (X) as que você pronunciou redu-

zindo o ditongo.

Você, com certeza, observou que nas palavras ‘Almeida’, ‘peito’, ‘Paiva’, ‘seiva’, ‘raiva’, e ‘beiço’, não houve monotongação. A re-dução do /ei/ e do /ai/ é condicionada pelo segmento consonântico seguinte. Os segmentos /j/, como em ‘beijo’ e o segmento //, como em caixa, são fonemas pronunciados na região alta da boca, o pala-to, assim como a vogal /i/. Dizemos, então, que essas consoantes e a vogal /i/ são sons homorgânicos (quanto ao ponto de articulação). As consoantes homorgânicas ao /i/ são as que mais favorecem a monotongação. Mas a regra já se expandiu para outros ambientes: antes de /r/ e /n/. As oclusivas /t/ (‘peito’) e /d/ (‘Almeida’), as fricati-vas /v/ (‘raiva’) e /s/ (‘beiço’) desfavorecem a aplicação da regra. Te-mos de observar, porém que em ‘manteiga’ o ditongo é seguido da oclusiva velar /g/ e já se reduz. Observamos, também, que a redu-ção do ditongo /ei/ diante das oclusivas /t/ e /d/ varia regionalmen-te. No estado da Paraíba, por exemplo, ocorre a redução no nome próprio “Almeida’. Está aí uma boa questão para você e seus alunos pesquisarem juntos a pessoas provenientes de diferentes regiões e

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estados brasileiros.

Ainda que a regra de monotongação dos ditongos com a semivogal /i/ esteja menos avançada na língua que a regra de monotongação do ditongo /ou/, ela requer também muita atenção em sala de aula, principalmente em palavras muito usadas como ‘dinheiro’, ‘cozinheiro’, ‘inteiro’, ‘cabeleireiro’, ‘beijo’, etc.

Temos de atentar também para os casos de hipercor-reção (realização de ditongo /ei/ em palavras com /e/, como por exemplo:

bandeja > bandeija caranguejo > carangueijo

Para concluir nossa reflexão sobre a supressão da con-soante (ou semivogal) de travamento nas sílabas de padrão CVC, vejamos o caso do travamento da sílaba por segmento nasal, que estamos representando por /N/. Chamamos de travamento nasal a ocorrência do traço [+ nasal] nas vogais. No português há sete vo-gais orais e cinco vogais nasais. Você vai voltar a ver isso, com calma, no próximo fascículo. No caso das vogais nasais /ã/, /e/, / i /, / õ/ e /u / e dos ditongos nasais /ãi/, / ei /, /õi /, / ui / e /ãw/ considera-mos que a sílaba com vogal ou ditongo nasal tem a estrutura CVC, sendo a segunda consoante o travamento nasal.

Na escrita, esse travamento nasal é representado pelo til /~/ ou pelas consoantes nasais. Confira:

ontem, cantarão, irmã, puseram, montanha, ruim, etc.

Como há várias formas convencionadas de se represen-tar o travamento nasal, este é um dos componentes mais difíceis para o alfabetizando. Não vamos nos ocupar aqui do uso das con-soantes nasais em posição pré-silábica, mas somente do travamen-to nasal, porque, como as demais consoantes (e semivogais) que travam sílaba, o travamento nasal também tende a ser suprimido. Observe as palavras:

virgem, homem, fizeram

Em todas elas a sílaba final é átona e o travamento nasal tende a ser suprimido:

/virj/ > /vij/ /ó > / ó/ /fizé > /fizé/

Chamamos essa regra de desnasalização. Ela só incide em sílabas finais átonas. Em sílabas tônicas, com travamento nasal, não há desnasalização.

Veja:

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caminhão, armazém, estarão, reunião, irmã

A regra de desnasalização aplica-se, principalmente, nos ditongos nasais e átonos finais, como vimos em ‘virgem’ e ‘estavam’. Nas formas verbais de terceira pessoa do plural, a desnasalização resulta em formas como ‘ (eles) fizeru’, ‘(eles) andaru’, etc.

Assim como no caso da concordância nominal, a regra de concordância verbal tem sido muito estudada pelos pesquisa-dores da área de Sociolingüística Variacionista.

O professor Anthony Naro, da UFRJ, e seus colabora-dores, desde o final dos anos 70 já haviam constatado que quanto mais fonologicamente saliente for a marca de plural nas formas ver-bais, mais os falantes tenderão a empregá-los. Em outras palavras, quando a forma de terceira pessoa do plural for muito distinta da forma de terceira pessoa do singular, há mais probabilidade de os falantes fazerem a flexão.

Levando em conta este princípio da saliência fônica, os pesquisadores postularam uma escala semelhante à que você já co-nhece para a regra de concordância nominal.

A escala ficou assim:

1. come/comem: marca de plural é apenas a nasaliza-ção com a conseqüente ditongação;

2. fala/falam: marca de plural é a ditongação nasal;

3. fazem/fazem: a marca de plural é uma sílaba extra;

4. dá/dão/vai/vão: são formas monossilábicas marca-das no plural pelo ditongo nasal;

5. comeu/comeram: no plural há o acréscimo do mor-fema { - ram} ao radical do verbo;

6. falou/falaram/foi/foram: no plural, a vogal do tema verbal se altera de /o/ para /a/ e há o acréscimo do morfema { - ram}.

Segundo os estudos de sociolingüística, nas três primei-ras classes de verbos, há menos probabilidade de ocorrer a flexão do que nas três últimas, cuja forma plural é fonologicamente mais saliente,

Isso tem explicação para nós, professores de séries ini-ciais. Nossos alunos tenderão a usar menos a flexão de terceira pes-soa de plural em formas como:

estavam, querem, sabem, fazem,

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do que em formas como:

foram, fizeram, jogaram.

Também temos que ficar alertas para a possibilidade de transportarem para a escrita a regra de desnasalização, realizando essas formas como:

foru, fizeru, jogaru.

Atividade

Nos corpura de textos escritos de seus alunos (corpora é o plural da palavra latina corpus) que você já reuniu, verifique se eles tendem a flexionar, com menos freqüência as formas do tipo ‘come/comem’; ‘fala/falam’ e ‘faz/fazem’ do que as demais. Discuta sua constatação com seus colegas de grupo para ver se os resulta-dos a que chegaram confirmam os seus.

Levando em conta o que as pesquisas têm mostrado com relação à influência da saliência fônica na flexão das formas verbais de terceira pessoa do plural, conforme nos explicou a pro-fessora Maria Cecília Mollica, você deverá dedicar mais atenção às formas em que a saliência é mínima (como ‘fala/falam’, ‘escreve/es-crevem’) do que às formas em que a saliência é maior (como ‘jogou/jogaram’; ‘vai/vão’; ‘esteve/estiveram’).

Para completarmos este assunto, você precisa de mais esta informação: existe maior probabilidade de ocorrer a flexão na forma verbal quando o sujeito é anteposto, isto é, vem antes do ver-bo. Quando é posposto (vem depois do verbo) tendemos a não fle-xionar o verbo. Veja os exemplos seguintes e comece a reparar na influência desse condicionante de natureza sintática na sua própria produção lingüística oral e escrita.

Os jornais chegaram./ Já chegou os jornais?

Os deputados de oposição rejeitaram a medida provisó-ria./ Votou contra a medida provisória os deputados da oposição.

Os recursos para educação foram cortados./ Foi cortado muitas verbas destinadas à educação.

Concluindo, podemos dizer que há dois tipos de con-

dicionamento na regra variável de concordância verbal no PB: o primeiro é de natureza fonológica e está relacionado ao grau de saliência fônica nas formas de plural; o segundo é de natureza sintá-tica e depende da posição do sujeito em relação ao verbo. Quanto a este último, é preciso observar ainda que, em casos de sujeito ocul-to (ou implícito), tendemos a flexionar o verbo, pois a informação quanto à pessoa verbal só é transmitida pela flexão, já que o sujeito não está explícito na oração.

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Vimos, com bastantes detalhes, a tendência de supres-são da consoante de travamento nas sílabas de padrão silábico CVC. Veremos agora outras tendências do PB: a da redução das proparo-xítonas e da assimilação das consoantes homorgânicas.

Estamos dando tanta ênfase ao estudo das tendências da própria deriva da língua para criarmos com firmeza a convicção de que:

- os chamados “erros” que nossos alunos cometem têm explicação no próprio sistema e processo evolutivo da língua. Por-tanto, podem ser previstos e trabalhados com uma abordagem sistêmica.

- A pronúncia do PB favorece as paroxítonas e desfavo-rece as proparoxítonas.

Por quê? No Português de Portugal, as sílabas pretônicas são

reduzidas.

Assim: fevereiro > fev’reirotelevisão > t’levisãoparadeiro > p’radeiroembelezar > emb’lezar

Ao reduzir as sílabas pretônicas, o falante tem mais ener-gia articulatória para chegar ao final da palavra.

No Brasil, as sílabas pretônicas têm quase a mesma du-ração da tônica. Resulta daí que há menos energia para a articulação dos finais das palavras. No caso das proparoxítonas, especialmente, temos uma tendência a reduzi-las, na fala rápida, reduzindo assim o esforço articulatório.

Veja os exemplos: ( i) chácara > chacraárvore > arvri ~ arvixícara > xicra Neste conjunto, foi suprimida a vogal da primeira sílaba

pós-tônica.

( ii) depósito > deposufósforo > fosfuválvula > valva

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quilômetro > quilomu

No conjunto (ii) há supressão de uma sílaba pós-tônica completa

(iii)número > numrubêbado > bebdulâmpada > lãpda

No conjunto (iii), a supressão da vogal da primeira síla-ba pós-tônica resultou em seqüência fonológica estranha à língua, como /mr/, /bd/ e /pd/.

Para resolver este outro impasse, os falantes reduzem mais as palavras. Assim:

(iv)numeru > numuru > numru > nurubêbado > bebdu > bebolâmpada > lampda > lampa

A redução das proparoxítonas no grupo (i) é um traço gradual no PB. Nos demais, a redução configura um traço descontí-nuo, próprio do pólo rural/rurbano.

Atividade

Verifique como os seus alunos lidam com as palavras proparoxítonas na fala e na escrita. Se você só tem alunos de ante-cedentes urbanos, é provável que só encontre os casos do conjunto (i); se seus alunos têm antecedentes rurbanos ou rurais, é provável que encontre as demais ocorrências.

Faça este diagnóstico cuidadosamente porque isso vai ajudar você a prever os “erros” de seus alunos e a definir as priorida-des no ensino da língua escrita e da língua oral monitorada.

Seus colegas de grupo vão gostar de saber o resultado de seu diagnóstico.

Ainda falando das tendências naturais da língua e suas conseqüências no ensino da língua escrita, temos de nos lembrar de dois casos de assimilação. Dizemos que há assimilação quando numa seqüência de sons homorgânicos ou parecidos, um deles as-simila o outro, que então desaparece.

É o que acontece nas seqüências /nd / e /mb/. A primei-ra /nd/ é formada por duas consoantes alveolares e ocorre princi-palmente nos gerúndios:

falando > falanuvindo > vinu

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estando > estanu

Mas pode ocorrer assimilação em outras classes de pa-lavras, como em

quando > quanu

A seqüência /mb/ é formada por suas consoantes bila-biais e ocorre em

também > tamém

Atividade

Ambos os casos configuram regras graduais muito pro-dutivas no PB. Por isso, nós, professores de ensino fundamental, nos confrontamos muito freqüentemente com “erros” que são a trans-posição dessas regras fonológicas para a escrita. Você certamente terá muitos exemplos desses casos retirados do texto escrito de seus alunos. Faça uma listinha deles para mostrar ao seu monitor.

Leia

Para que todas essas informações fiquem bem assimi-ladas, recomendamos a você que leia os seguintes livros (você po-derá fazer uma leitura de reconhecimento e selecionar os capítulos que considerar mais úteis à sua formação):

1 - BAGNO, Marcos. A língua de Eulália - novela sociolin-güística. São Paulo: Contexto, 1997.

2 - MOLLICA, Maria Cecília. A influência da fala na alfabe-

tização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. Para concluir este primeiro fascículo de língua Materna

e Educação, vamos fazer um exercício. Escolha um texto produzido por um aluno seu, assinale os “erros” de linguagem e, em seguida, examine cada um deles, levando em conta as tendências da Lín-gua Portuguesa no Brasil que discutimos aqui. Começamos juntos e você continuará depois.

Observe, para começar este texto corrigido e comenta-do e depois faça o mesmo com os textos que você selecionou. Leve os textos corrigidos e comentados para a reunião de seu grupo.

O texto seguinte foi produzido por um menino de doze anos. Há dois anos chegou do Piauí onde vivia em área rural. Não estava alfabetizado. Vem freqüentando escola no Distrito Federal desde que chegou a Brasília. No ano de 2000 concluiu a terceira sé-rie com aprovação. O texto que você vai ler foi escrito por esse aluno no dia 9 de fevereiro de 2000 e é parte de um exercício de Ciências.

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As perguntas ou comandos foram copiados do quadro e as respos-tas produzidas por ele.

1- Responda

Na superfície terrestre existe mais terra ou água?

– Água.

2 - Complete:

– A água ocupa 3/4 da superfície da terrestre, já a parte não submersa ocupa (incompreensível) da superfície terrestre.

3 - Como são formados os oceano?

– Os oceanos são formado por grandes massas de água salgada e se localizam entre os continentes.

– Os mares? – Os mares são massas de água de menor profundidade

menos salgada.

4 - Que tipos de recursos podemos obter dos oceanos?

– Goufim tubarão carangeijo camarão tubarão martelo.

5. Que plantas marinhas são utilizada na nossa alimentação?

– Gelatina.

No sintagma nominal “os oceano”, o aluno flexionou o primeiro elemento: o determinante “os”; o núcleo “oceano” forma o plural com o simples acréscimo de “s” ; na escala de saliência fônica está no primeiro nível, de saliência mínima. Mesmo sendo uma có-pia, esse núcleo não foi flexionado pelo aluno.

Em “formado”, o aluno igualmente não usou flexão de plural. Esta palavra também está no grupo de saliência mínima.

O adjetivo “salgado” deveria ser flexionado para con-cordar com “massas” de água. A palavra também está na classe de saliência mínima. Trata-se de adjunto adnominal que está longe do nome que qualifica.

O aluno provavelmente não conhecia a palavra “golfi-nho” e a escreveu como a ouviu. O /l/ que trava a primeira sílaba ( CVC) neutraliza-se com o /U/. No morfema {- inho} o aluno usou a variante {-im}, que faz parte de seu dialeto regional (Veja-se padri-nho > padim).

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Em “carangeijo” vemos que o aluno ainda não apren-deu a usar o dígrafo “gu” e também incorreu em uma hipercorreção muito freqüente: cria um ditongo na palavra, que não existe na sua forma dicionarizada.

Em “utilizada” novamente temos uma forma nominal de verbo na função de predicativo. O aluno não a flexiona para fazer a concordância com “plantas marinhas”. Na escala de saliência fônica, “utilizada” está no grupo de saliência mínima e, ademais, não ocorre contígua ao sintagma a que se refere.

Considerando este texto, o professor poderá fazer o se-guinte diagnóstico sobre a competência lingüística e comunicativa do aluno na modalidade escrita da língua.

1 - Na classe de nomes cujo plural é minimamente sa-liente, o aluno tenderá a não usar o morfema { - s} de plural.

2 - Nos sintagmas nominais plurais que não ocorrem contíguos ao antecedente a que se referem no discurso, o aluno tenderá a não usar a flexão de plural.

3 - O aluno ainda não domina o emprego do dígrafo “gu” e provavelmente também não o do dígrafo “qu”.

4 - O aluno tem em seu repertório a variante {-im} do sufixo diminutivo {-inho}, que é muito produtiva na região em que nasceu e viveu até os dez anos.

5 - O aluno ainda não conhece a convenção do uso de vírgula em enumeração.

Bem, agora é sua vez.

Escolha os textos e os analise. Mostre seu trabalho ao mediador e leve-o para discussão no grupo.

Você está terminando este primeiro fascículo. Parabéns.

Faça uma avaliação dele para apresentar à(s) tutora(s) de Língua Materna e Educação de seu Curso.

Até breve.

Foi muito bom trabalharmos juntos!

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