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AP RAGMÁTICA DA COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL Jair Antonio de Oliveira RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir em/sobre alguns procedimentos necessários aos professores e gestores da área da Comunicação para “lidar” com a Pragmática no âmbito das organizações (sala de aula e empresas). A tarefa inicial é definir um conceito e um referencial teórico para a Pragmática que tenha como pressuposto o fato de que os indivíduos sempre usam a linguagem de modo relacional e a partir de certas perspectivas. Posteriormente, é preciso configurar uma metodologia de trabalho que não seja reducionista para ser empregada pelos usuários da linguagem conforme o contexto, as circunstân- cias comunicacionais, o conjunto de crenças e as práticas de cada comunidade. Finalmente, é preciso ressaltar que apesar desses esforços “classificatórios” nenhuma teoria ou análise/descrição será sufici- ente para restringir o caráter performativo da linguagem presente no uso linguístico; fato que exige do professor/gestor uma constante ressignificação dos critérios que adotar a fim de perceber as diferenças epistemológicas existentes nas práticas “linguageiras” intra e interculturais e o compromisso de assumir o caráter político desses atos. PALAVRAS- CHAVE: pragmática; comunicação; organização. ABSTRACT: The purpose of this article is to reflect in / on some procedures necessary for teachers and managers in the area of communication to "deal"with the Pragmatic within organizations (classroom and companies). The initial task is to define a concept and a theoretical framework for pragmatics that has as premise the fact that individuals often use the language of relational mode and from certain perspectives. Subsequently, you need to configure a working methodology that is not reductionist to be employed by users of language as the context, circumstances communicational, the set of beliefs and practices of each community. Finally, we must emphasize that despite these efforts "qualifying"no theory or analysis / des- cription will be sufficient to restrict the performative character of language in this linguistic usage; fact that requires the teacher / manager a constant redefinition of the criteria to adopt in order to realize epis- temological differences existing intra and intercultural practices and commitment to take on the political character of these acts. KEY WORDS: pragmatic; communication; organization. Índice 1 Qual Metodologia? ........... 6 2 Afinal, quando sai o manual? ...... 9 3 Referências ............... 10 A PALAVRA “Pragmática” vem ganhando noto- riedade e espaço nas reflexões sobre a Co- municação organizacional nos últimos anos. Parti- cularmente, associada aos chamados Estudos Crí- ticos do discurso. Apesar dessa difusão, a Prag- mática ainda não é bem compreendida ou ainda é olhada com certo “desdém” por alguns teóricos que a consideram uma espécie de “estranho no ni- nho”. O fato é que se aceitarmos a proposta feita por Jacob Mey (1993, p.35): “(...) a Pragmática está interessada no processo de produção da lin- guagem e seus produtores e não apenas no produto final, a linguagem” e a argumentação de Rajago- palan (2009, p. 335) de que a Pragmática saiu de uma fase em que era apenas um componente da c 2017, Jair Antonio de Oliveira. c 2017, Universidade da Beira Interior. O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquer forma de reprodução, distribuição, comunicação pública ou transforma- ção da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa auto- rização do editor e do(s) seu(s) autor(es). O artigo, bem como a autorização de publicação das imagens, são da exclusiva respon- sabilidade do(s) autor(es).

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A PRAGMÁTICA DA COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL

Jair Antonio de Oliveira

RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir em/sobre alguns procedimentos necessários aos professorese gestores da área da Comunicação para “lidar” com a Pragmática no âmbito das organizações (sala deaula e empresas). A tarefa inicial é definir um conceito e um referencial teórico para a Pragmática quetenha como pressuposto o fato de que os indivíduos sempre usam a linguagem de modo relacional e apartir de certas perspectivas. Posteriormente, é preciso configurar uma metodologia de trabalho que nãoseja reducionista para ser empregada pelos usuários da linguagem conforme o contexto, as circunstân-cias comunicacionais, o conjunto de crenças e as práticas de cada comunidade. Finalmente, é precisoressaltar que apesar desses esforços “classificatórios” nenhuma teoria ou análise/descrição será sufici-ente para restringir o caráter performativo da linguagem presente no uso linguístico; fato que exige doprofessor/gestor uma constante ressignificação dos critérios que adotar a fim de perceber as diferençasepistemológicas existentes nas práticas “linguageiras” intra e interculturais e o compromisso de assumiro caráter político desses atos.PALAVRAS-CHAVE: pragmática; comunicação; organização.

ABSTRACT: The purpose of this article is to reflect in / on some procedures necessary for teachers andmanagers in the area of communication to "deal"with the Pragmatic within organizations (classroom andcompanies). The initial task is to define a concept and a theoretical framework for pragmatics that has aspremise the fact that individuals often use the language of relational mode and from certain perspectives.Subsequently, you need to configure a working methodology that is not reductionist to be employed byusers of language as the context, circumstances communicational, the set of beliefs and practices of eachcommunity. Finally, we must emphasize that despite these efforts "qualifying"no theory or analysis / des-cription will be sufficient to restrict the performative character of language in this linguistic usage; factthat requires the teacher / manager a constant redefinition of the criteria to adopt in order to realize epis-temological differences existing intra and intercultural practices and commitment to take on the politicalcharacter of these acts.KEY WORDS: pragmatic; communication; organization.

Índice1 Qual Metodologia? . . . . . . . . . . . 62 Afinal, quando sai o manual? . . . . . . 93 Referências . . . . . . . . . . . . . . . 10

APALAVRA “Pragmática” vem ganhando noto-riedade e espaço nas reflexões sobre a Co-

municação organizacional nos últimos anos. Parti-cularmente, associada aos chamados Estudos Crí-ticos do discurso. Apesar dessa difusão, a Prag-

mática ainda não é bem compreendida ou aindaé olhada com certo “desdém” por alguns teóricosque a consideram uma espécie de “estranho no ni-nho”. O fato é que se aceitarmos a proposta feitapor Jacob Mey (1993, p.35): “(...) a Pragmáticaestá interessada no processo de produção da lin-guagem e seus produtores e não apenas no produtofinal, a linguagem” e a argumentação de Rajago-palan (2009, p. 335) de que a Pragmática saiu deuma fase em que era apenas um componente da

c© 2017, Jair Antonio de Oliveira.c© 2017, Universidade da Beira Interior.

O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquer formade reprodução, distribuição, comunicação pública ou transforma-

ção da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa auto-rização do editor e do(s) seu(s) autor(es). O artigo, bem como aautorização de publicação das imagens, são da exclusiva respon-sabilidade do(s) autor(es).

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Jair Antonio de Oliveira

Linguística para se transformar em uma perspec-tiva sobre o uso da linguagem e, inclusive, em umaperspectiva sobre a própria linguística; temos umdirecionamento para explicar de forma adequadaa interrelação que existe entre o uso e a situaçãocomunicativa em que a linguagem é tipicamenteempregada nos ambientes organizacionais.

Com esses pressupostos e com a consciênciade que usar a linguagem é realizar uma ação (umaperformance somática, linguística ou imagética)que possui, simultaneamente, um caráter conven-cional e performativo, é possível estabelecer umagenealogia para a Pragmática que estamos defen-dendo aqui, com o objetivo de “clarear” o terrenopermeado por metáforas que parecem convergirpara uma mesma direção; mas na realidade po-dem ser até contraditórias. Por exemplo, no quadroevolutivo da Pragmática proposto por Armengaud(2006) há uma lacuna que é preciso preencher paraelucidar melhor esta questão. Assim, em uma li-nha de tempo que tem início no positivismo lógicode Frege e Russel, depois Wittgenstein, seguindopara a Teoria dos Atos de Fala e o Performativode Austin, posteriormente o Princípio de Coopera-ção e as Implicaturas Conversacionais de Grice ea taxonomia de John Searle sobre os atos de fala,é preciso incluir a tendência que iremos chamarde “Escola de Odense”. Trata- se de uma refe-rência ao lugar em que o pesquisador Jacob Meytrabalhou, escreveu seus principais livros e artigose fundou o Jornal of Pragmatics, a mais impor-tante e conhecida publicação nessa área de estu-dos. Mey ressalta o aspecto de que abordar a lin-guagem é sempre intervir politicamente sobre/narealidade: “(...) nós não podemos descrever a lin-guagem e seus usuários fora do contexto de uso, ouseja: da sociedade em que a linguagem é usada”(Mey, 1985, p.11) e, de modo bastante claro, sali-enta: “(...) outro perigo repousa no modo em quenós fomos ensinados a pensar sobre a comunica-ção entre as pessoas”, pois um dos pontos centraisde seu livro “De Quem é a Língua” (1985) é: “(...)se, e em que medida, a ciência pode ser útil nocontexto social” (ib. p.16).

Mey foi um pioneiro em exortar os lin-guistas para serem socialmente responsá-veis e colocar as suas pesquisas a serviçoda sociedade como um todo. (...) A in-vestigação futura irá apenas confirmar anossa intuição, hoje, que a pragmática éuma forma politicamente consciente de seenvolver com a linguagem (Rajagopalan,2009, p. 340).

A teoria Pragmática que almejamos está inte-ressada na imensa complexidade do uso da lingua-gem em contextos sociais. Neste aspecto, não sepode ignorar o campo da fonética, sintaxe, semân-tica, morfologia, as regras para a ação (crenças) ea história individual e coletiva das pessoas envol-vidas nas interações. No entanto, quando falamosem uso da linguagem, é preciso notar que a pers-pectiva Pragmática não tem a ver com o empregocorriqueiro da linguagem, pois o seu real interesseé o “como” e “por que” os enunciados são produzi-dos. Dito de outra forma, a perspectiva Pragmáticaestá interessada no “enquadramento” e na “angula-ção” que os indivíduos estabelecem para produziros dados (fatos) no mundo!

(...) a questão em torno do que é ordinárioou cotidiano envolve mais do que apenasquais dados selecionamos; depende cruci-almente de como os enquadramos e ana-lisamos. Ao nos afastamos de elos inde-xais para atingir parâmetros sociais, polí-ticos e históricos mais complexos, pode-mos dar até mesmo aos discursos histori-camente mais coercitivos a aparência e asensação do mundano (Brigss apud Raja-gopalan, s/d, p. 16).

Não estamos falando de aspectos cognitivos in-ternos, mas do modo como os indivíduos cons-troem socialmente e politicamente as representa-ções (narrativas) do universo em que estão inse-ridos; ou, ainda, como e porque a narrativa (gê-nero que a ciência convencional repudia) constituia forma mais interessante e proveitosa para con-duzir as nossas pesquisas; pois permite aprendermais com os exemplos do que com a teorizaçãoa qualquer custo. A narrativa é subjetiva, assiste-mática e circunstancial; portanto, é a forma-relatopreferencial da Pragmática que rejeita a noção delinguagem como um sistema em favor de uma no-ção de linguagem como ação. A narrativa quenós construímos de uma organização, por exem-plo, é o resultado da nossa interpretação desse lu-gar. Olhando para a fig. 1 abaixo nós podemosconsiderar a atividade de limpador de esgotos emCalcutá na Índia como um dos piores empregos domundo. No entanto, ao especular sobre o sentidodos lugares e das práticas linguísticas nós neces-sitados indagar como os indivíduos constroem o“local” por meio do que fazem e dizem. Comodisse Pennycook (2010, p. 5): “todos os pontos devista sobre as línguas estão localizadas em certashistórias e articulados a partir de algumas perspec-tivas”.

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A Pragmática da Comunicação Organizacional

Figura 1. Limpador de esgoto em Calcutá – Índia

A “resignação” dos indivíduos ao seu papel so-cial está fortemente ligada à noção de prática “(...)uma maneira rotineira em que os corpos são mo-vidos, os objetos são manuseados, os indivíduossão tratados, as coisas são descritas e mundo écompreendido” (Reckwitz, 2002, p.250). No en-tanto, não é a forma de linguagem que governaos falantes e sim os falantes que articulam quala forma de linguagem desejam para empregar emseus propósitos. O caráter performativo da lingua-gem ressaltado pela Pragmática permite aos indi-víduos desconstruir e estabelecer uma ruptura comas condições prévias existentes sem a necessidadede o sujeito estar ligado a centros de poder esta-belecidos na sociedade. A mudança na situaçãodos “dalits” (intocáveis) na Índia é um exemplo; eum caso emblemático para a nossa sociedade é ode Rosa Parks, uma desconhecida costureira queem 1 de dezembro de 1955, no Estado do Ala-bama (EUA), no auge da política segregacionista,recusou-se a ceder o seu lugar em um ônibus parauma passageira branca, desafiando as abomináveisleis que excluíam os negros da vida social ame-ricana. A fala espontânea, não-prevista de Parks,foi uma forma de fazer política que não era espe-rada pelos interlocutores e a principal intenção foia de instaurar uma “política de desconforto” res-ponsável por gerar incerteza e instabilidade sobreas convenções, leis e práticas das circunstâncias.

Com essa digressão entramos no cerne do pen-samento do filósofo John Austin (1990), que jáhavia observado que todas as constatações são narealidade performativos disfarçados e, deste modonão há enunciados “inocentes”.

(...) as afirmações dos cientistas nada têmde ontológico ou de epistemológico. Elassão (todas elas) enunciados revestidos demodalidade deôntica. São expressões dedesejo ao invés de constatações factuais,passíveis de averiguação em termos veri-tativos (Rajagopalan, texto s/d, p. 3).

Em outras palavras, nós estamos apontandopara a questão teórica por excelência da Pragmá-tica, “Dizer é Fazer”! E colocando os atos per-formativos como entidades êmicas, cuja análise éindissociavelmente cultural, compreensível unica-mente segundo a lógica e a coerência com que seapresentam internamente aos grupos e sociedades.

1) Quero um pibão grandão.

O ato de fala da Presidenta Dilma (resposta aum repórter que perguntou o que ela gostaria deganhar no natal) não descreve ou informa, mas re-aliza uma ação por meio do próprio processo desua enunciação (o que Austin chamou de Ato Ilo-cucionário). O enunciado (1) não é logicamente“verdadeiro” ou “falso”, termos caros a uma con-cepção de linguagem constatativa; e por isso Aus-tin introduz o termo “felicidade” ou “infelicidade”para identificar o sucesso ou o insucesso dos efei-tos sobre os interlocutores. Os efeitos (Ato Per-locucionário) não são percebidos do mesmo modopelos diferentes interlocutores:

a) o Ministro Mantega e o seu staff podem en-tender que o enunciado é uma ordem paraque alterem os rumos da economia do Bra-sil;

b) a oposição no Congresso Federal pode en-tender que a Presidenta apenas está se de-fendendo em virtude do “pibinho” de 2012;

c) a população que se beneficia com os progra-mas sociais do governo pode entender comoum aviso de que as coisas serão ainda me-lhores em 2013;

d) os empresários brasileiros que sofreram como “dumping” das empresas chinesas e fecha-ram centenas de filiais no país nos últimosanos podem achar que se trata de um pedidode desculpas;

e) eu entendi como uma promessa.

Como na teoria Pragmática “dizer é fazer”, umentendimento dos atos de fala performativos só es-tará completo a partir de uma leitura do contextomais amplo em que os enunciados são produzi-dos e, por isso, torna-se imperioso iniciar uma in-vestigação do modo como os performativos “Pro-messa” e “Ameaça” tornam-se os atos constituti-vos das organizações, permeiam os atos de falaem seu interior e moldam o entorno desses agru-pamentos unicamente pelo/no uso da linguagem:

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Jair Antonio de Oliveira

(...) como expressão de um agrupamentoplanejado de pessoas que desempenhamfunções e trabalham conjuntamente paraatingir objetivos comuns. (...) O termo or-ganizações já se tornou comum para deno-tar as mais diversas modalidades de agru-pamentos de pessoas que se associam in-tencionalmente para trabalhar, desempe-nhar funções e atingir objetivos comuns,com vistas em satisfazer alguma necessi-dade da sociedade (Kunsch, 2003, p.23-25).

a) Promessa: comprometer-se intencional-mente em fazer alguma coisa para alguém;

b) Ameaça: comprometer-se intencionalmenteem fazer alguma coisa contra alguém.

Obviamente, os sentidos envolvidos em umato de fala prometer e/ou ameaçar podem não seriguais; mas a força ilocucionária é a mesma: ocompromisso. “(...) é no interior da categoria ilo-cucionária do compromisso que tanto a divisão e aoposição são produzidos” (Felman, 2003, p.13). Apromessa não só dá origem ao conflito como estru-tura o processo agonístico em todos os empreendi-mentos humanos moldados intencionalmente paraatingir determinados objetivos, sejam essas organi-zações complexas, paradoxais ou, ainda, estranhasa nossa lógica; por ser o resultado de uma narra-tiva circunstancial e idiossincrática que ainda nãoassimilamos ou codificamos em nossos hábitos co-tidianos.

É interessante repetir que a condição performa-tiva da linguagem está sempre promovendo rup-turas com os esquemas sociais prévios; o que al-guém pode identificar como “criatividade” ou “in-teligência” dos seres humanos nada mais é do queuma condição constitutiva da própria linguagem enão algo que se acrescenta a ela. Essa condiçãonunca esteve restrita a grupos de poder, que poresta ou aquela razão assumiram uma posição decomando na sociedade; e, apesar de todos os gran-des tratados filosóficos, teorias, sistemas e taxono-mias, algo de singular, inusitado e não redutível anenhuma dessas idéias está sempre surgindo pormeio de pequenas narrativas e vocabulários quesão criados devido às novas maneiras de se agir lin-guisticamente em sociedade. Os modos como osindivíduos na atualidade escolhem/inventam sig-nos (verbais e não verbais) nas mais estranhas pla-taformas para criar linguagens é uma atualizaçãodas palavras de Heráclito: “Ninguém se banhaduas vezes no mesmo rio, porque este nunca é o

mesmo em dois instantes sucessivos”. E, segura-mente, é uma forma de desligitimação da concep-ção de linguagem estática e homogênea desejadapor Ferdinand de Saussure.

A desligitimação (Lyotard, 1993, p.69) de sa-beres constituídos tem se tornado constante agorae uma grande incredulidade toma conta de todosnós. No entanto, isso não deve solapar a nossacrença nos avanços que a humanidade conseguiu.Sim, favorecer o modo como poderemos sociali-zar os benefícios advindos do avanço tecnológico,das novas ciências e das diferentes formas de orga-nização; que a “bem da verdade” sempre operamsegundo a lógica da promessa e da ameaça a fimde obter a cooperação dos indivíduos. Em outraspalavras, não é possível esquecer:

(...) o universo dinâmico sociossemióticoonde as interações acontecem num per-manente conflito de posições valorativas.A sociedade, incluindo, evidentemente,o ambiente organizacional, constitui umaespécie de arena axiológica onde os indi-víduos estão produzindo textos ininterrup-tamente; não há início nem fim para osenunciados, mas diferentes jogos de lin-guagem, cada um concretizando diferen-tes atitudes e posições sociais (Oliveira,2009, p. 190).

Onde a “felicidade” ou “infelicidade” (Austin,1990) ou sucesso e fracasso é concretizado unica-mente por meios de uma linguagem de sedução: euprometo! A promessa dos indivíduos em assumircompromissos relevantes socialmente no processode institucionalização da organização. A promessaem seguir fielmente ao longo do tempo os obje-tivos escolhidos para a sociedade e mercado. “APragmática da língua diz respeito à intenção comque se visa o ouvinte – a forma como quem falaou escreve deseja que sua enunciação seja inter-pretada” (Olson, 1997, p. 135).

Nós, representantes do povo brasileiro,reunidos em Assembléia Nacional Cons-tituinte para instituir um Estado Democrá-tico, destinado a assegurar o exercício dosdireitos sociais e individuais, a liberdade,a segurança, o bem-estar, o desenvolvi-mento, a igualdade e a justiça como valo-res supremos de uma sociedade fraterna,pluralista e sem preconceitos, fundada naharmonia social e comprometida, na or-dem interna e internacional, com a solu-ção pacífica das controvérsias, promulga-

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mos, sob a proteção de Deus, a seguinteCONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDE-RATIVA DO BRASIL.

Os nobres representantes do povo brasileiroque promulgaram a Constituição Federal em 1988fizeram uma promessa sob a proteção de Deus(p.1). No entanto, trata-se de uma promessa semuma real consideração às condições sociais, polí-ticas e econômicas do país: “Não há promessashistoricamente limpas: cada promessa depende deuma série de fatores que, juntos, compõem sua his-tória” (Schlieben, 1975, p.85 apud Mey, 1987, p.292).

Uma condição necessária (Searle, 1984) nãofoi obedecida nesse caso de promessa: a since-ridade. Searle acredita que a sinceridade é ine-rente a todos os atos de fala e manifesta-se deforma diferenciada para cada ato locutório. Nessaperspectiva, a sinceridade é uma das principaisnormas para a interação verbal e os interlocuto-res irão pressupor a sua existência até percebersinais que indiquem o contrário. A classificaçãoproposta por Searle é restritiva e não reflete o en-torno ético/político e, particularmente, a presençadesconstrutiva do humor da filosofia de Austin.Mesmo assim, vamos mencioná-la a fim de esta-belecer uma correspondência entre a noção de co-operação e a sinceridade. Por exemplo:

a) no caso de uma afirmação a sinceridade édefinida em termos da crença do falante deque a proposição expressa um estado verda-deiro de coisas;

b) no caso de uma promessa a sinceridade é de-finida em termos da intenção do falante pararealizar o ato que ele se compromete a fazerem benefício do ouvinte;

c) no caso de uma solicitação (impositiva ounão) a sinceridade é definida em termos dodesejo do falante de que o seu interlocutorexecute o ato especificado pela proposição.

Conforme observou Oliveira (2003, p.6-8), osparticipantes de uma conversação reconhecem quetêm a obrigação de ser sinceros e que isto integrao contrato social que regula as relações interpes-soais. No entanto, é necessário ir além dos fatoresindividuais e dos interesses de grupos específicospara verificar como as normas vão sendo “renego-ciadas” ao longo das conversações para ajustar-seaos interesses políticos prevalentes. Isto não signi-fica que a performatividade está ausente, pois todo

uso da linguagem é performativo. O problema aquié axiológico, ou seja: do universo de valores. Essadimensão irá limitar as opções de escolha em al-gumas circunstâncias e interesses, embora não eli-mine as discordâncias oriundas de outros conjun-tos de crenças; mas torna muito mais relevante aobediência às normas de polidez que a manuten-ção da própria sinceridade.

Na realidade, não são palavras o que pro-nunciamos ou escutamos, mas verdade oumentiras, coisas boas ou más, importan-tes ou triviais, agradáveis ou desagradá-veis etc. A palavra está sempre carregadade um conteúdo ou de um sentido ideoló-gico ou vivencial. É assim que compre-endemos as palavras e somente reagimosàquelas que despertam em nós ressonân-cias ideológicas ou concernentes à vida(Bakhtin, 1988, p. 95).

A temporalidade da promessa no âmbito orga-nizacional precisa ser mantida a qualquer custo e adistinção proposta por Austin entre os atos de falafelizes e infelizes mostra um caminho: a dimensãodo prazer (Lat. Placere: ser aprovado, aceito, que-rido) como uma instância permanente para os atoscomunicacionais nas organizações. Na perspectivaPragmática, quando se usa a linguagem, realiza-seuma ação (ordenada por regras) dentro de contex-tos sociais com determinados objetivos: “(...) o fa-lante sabe o que está acontecendo quando participade um evento discursivo e tem, ao participar dele,intenções que busca tornar conhecidas e objetivosque busca concretizar” (Possenti, 1996, p.78). Noentanto, é preciso lidar com o potencial subversivode cada ato performativo e o risco (ameaça) de in-felicidade (falha) é grande. Dito de outra forma:é preciso garantir a “pressão de promessas” comouma condição para a coesão e preservação das or-ganizações e uma das estratégias centrais para queisso ocorra é o emprego de atos de fala felizes.Austin (1990) alerta que a falha não é uma con-dição técnica, externa ou acidental, mas inerenteao performativo. Isso pode ser entendido pela na-tureza única de cada ação, isto é: cada performa-tivo é realizado uma única vez; jamais é o mesmoquando é repetido e nunca funciona como uma re-presentação do contexto: cria o contexto pela forçado movimento. Com isso, cada promessa contémem si o potencial de sua própria inércia: ou/nãoserão realizadas ou mantidas.

2) Mantega prevê PIB de 4% para 2013 e diz

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que juros de bancos públicos cairão mais(G1 – 27/12/2012).

O enunciado atribuído ao Ministro Mantegacarrega em si mesmo a impossibilidade de umapromessa ser cumprida. Seja pela análise do con-texto mais amplo em que o ato foi produzido: “Aparalisia que toma conta do governo, em especialno setor de investimentos na área de infraestrutura,fará com que o Brasil tenha mais uma vez um cres-cimento econômico vergonhoso em 2013” (Fonte:http://ucho.info, 07/01/2013). Seja porque ao pro-ferir uma locução (Austin chamou de Ato Locu-cionário) com certo sentido convencional, algumaoutra coisa é feita, alguma outra coisa é dita alémdo próprio ato de prometer. Há sempre um “ex-cesso de sentidos” na força do enunciado. O per-formativo não representa a realidade, ele permiteao sujeito criar outras representações da realidadeexatamente pelo exagero de sentidos possíveis emcada uso da linguagem. Não há como restringir osnovos resíduos que surgem a cada leitura de umanarrativa; mas, então, como eu sei o que o Minis-tro realmente quer dizer? “A possibilidade se dáporque a interação acontece dentro de um discursodeterminado social e historicamente, e institucio-nalizado, que circunscreve a polissemia” (Grigo-letto, 1992, p. 33).

Naturalmente há um problema: é que as san-ções previstas socialmente para o não cumpri-mento de promessas são mais rígidas na esfera in-dividual; mitigadas ou ausentes quando se fala emuma instância “oficial”. Quanto menor for o poderque o indivíduo possui na organização, maior seráa penalidade que receberá pela promessa não cum-prida. Pragmaticamente falando, o esforço do Mi-nistro em produzir o enunciado (2) não se esgotana promessa oficial destinada a garantir estabili-dade para a instituição governo ou a tranquilizar apopulação sobre os rumos da economia. Segue umroteiro de uso de práticas afetivas na comunicaçãoque estão alterando substancialmente a esfera doque chamamos de “política”. Como um “fazer” oenunciado (2) é trivial, mas toda prática é assim: oque as transforma em potenciais subversões é algoque ainda não sabemos lidar plenamente. Não falode uma performance, mas da performatividade, eda condição vital que os contextos possuem para aconstituição dessa força.

1 Qual Metodologia?Quando Ferdinand de Saussure propôs as bases daLinguística no século XIX estabeleceu várias dis-

tinções que tiveram impacto ao longo dos anos nomodo como as pessoas passaram a compreender oque é a língua. Uma dessas dicotomias é a quesepara a Língua da Fala. Segundo Saussure, a Lín-gua é um sistema abstrato, homogêneo, previsível,sistemático, um fato social geral. A Fala é a re-alização concreta da língua, individual, não sis-temática, circunstancial e heterogênea. Segundoos parâmetros ideológicos da época, uma Ciênciade verdade não deveria/poderia lidar com aspectosidiossincráticos e imprevisíveis; então, Saussureexclui a fala do campo da Linguística, em outraspalavras, excluiu o “uso” para fora do escopo dessaciência. Essa exclusão tem raízes consolidadas atémesmo na Pragmática, intitulada por Mey (1993)de a “Teoria do Usuário”; pois muitos pesquisado-res têm como único objetivo estabelecer um con-junto de regras determinísticas, catalogar e pro-por taxonomias para os atos de fala (um exemploé John Searle) ao invés de descrever, explicar oupromover uma intervenção na realidade por meioda reflexão teórica sobre os usos da linguagem. “APragmática discursiva é uma abordagem diferenteà linguagem; a forma da sua apresentação tambémpede para ser diferente (...)” (Cook, 1990, p.21).

O dilema é como ser diferente e ao mesmotempo não cair na tentação classificatória e reduci-onista ao pensar em uma metodologia para a Prag-mática. Como diz Rajagopalan (2002, p. 32):”Muitos entendem que o modelo de explicaçãotem de ser idêntico ao que tem prestígio nas ci-ências exatas ou biológicas, onde explicar signi-fica prever futuras ocorrências do fenômeno em es-tudo”. No afã de teorizar a qualquer custo no âm-bito da Comunicação os exemplos da física quân-tica, biologia, matemática e estatística são usadosem profusão nos diversos esquemas, gráficos, clas-sificações e tipologias com o objetivo de asseverar(afirmar com certeza, com segurança) questões deprática linguística (uso da linguagem) que se dis-tingue “(...) pelos tropeços, acasos, imprevisibi-lidade e singularidades – atributos que desafiam opróprio desejo de domar, domesticar, de, enfim, te-orizar o objeto de estudo, no caso, a práxis” (ib.p.24). Aliás, é do próprio campo das ciências exa-tas que veio a maior contribuição para desfazero discurso de verdade dessa área: O Teorema daIncompletude de Gödel: “Qualquer coisa em quevocê pode desenhar um círculo ao redor não podeser explicada por si mesma sem se referir a algofora do círculo – algo que você tem que assumirmas não pode provar.”

O fato de questionar certas metodologias nãosignifica um “vale qualquer coisa” e nem indica

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A Pragmática da Comunicação Organizacional

a ausência de procedimentos indispensáveis parainstaurar uma reflexão seguida de ação. Na obra“Contra o Método” (Fayerabend, 1989) defende aideia de que não há regras metodológicas que de-vem ser sempre seguidas e que, geralmente, tais re-gras não contribuem para o sucesso do empreendi-mento. Ainda assim, não podemos viver sem elase a questão central é decidir quais regras iremosempregar! “Se não fosse a lei, como saberia o queé o pecado?” (Paulo: Romanos, 3.20). Um pro-cedimento inicial é estabelecer maneiras de agirsem cair no velho sonho platônico e atualizado porFrege (1848-1925) de mostrar que a lógica sub-jaz à linguagem; pois isso pressupõe que o uso“correto” da linguagem implica no uso da lógicae que qualquer uso da linguagem que não esteja deacordo com as leis da lógica é ruim (errado). Nessalinha de pensamento a lógica é superior à lingua-gem e defende-se a hipótese de que a linguagemdo cotidiano é uma degeneração e uma variaçãoilegítima da “pura linguagem da lógica” conformese encontra materializada na matemática, nos sím-bolos formais etc.

Vejamos o exemplo citado por Levinson (1983,p. 35. De acordo com as regras lógicas, quandoduas proposições estão ligadas (chamaremos estasproposições de p e q) e estão simbolizadas em suaconjunção pela fórmula p & q, não importa a or-dem em que os constituintes da fórmula apareça,isto é: p & q é logicamente equivalente a q & p.Agora, vejamos o seguinte:

3) Casar e ter um filho é melhor do que ter umfilho e casar.

P & q

4) Ter um filho e casar é melhor do que casar eter um filho.

q & p

Embora as duas sentenças tenham a mesma“condição de verdade” (o que equivale a dizer quesão logicamente equivalentes) não têm o mesmosentido na vida social e no uso linguístico cotidi-ano. A linguagem da lógica, adotada pelo sabercientífico, exclui todos os jogos de linguagem comexceção do denotativo; adota o “tratado” como ogênero-mor para a ciência e exclui a narrativa, tí-pica da literatura, que por sua vez é considerada“não séria”. No entanto, para uma Teoria do Usoda Linguagem o gênero-mor é a narração! A nar-rativa não se iguala ao tratado porque o discurso

da ciência “finge” eliminar os resquícios de sub-jetividade e de temporalidade. Assim, a perspec-tiva Pragmática emprega o estilo de uma narra-tiva pessoal quando investiga a interrelação queexiste entre a linguagem e a situação comunicativaem que esta é tipicamente empregada nas organi-zações. Metodologicamente, uma explicação oudescrição dos usos da linguagem nesses ambientesdeve levar em conta a multiplicidade das crençase intenções individuais e permitir interrogações dotipo: com que fins? Como? Por quê? A intenci-onalidade, por sua vez, está inscrita na linguagem,é aquilo que é visado. Não existe ação não inten-cional. Todo evento mental, por ser intencional,é um evento dirigido para alguma coisa. Dessemodo, perguntar pelo sentido de uma palavra oufrase no ambiente organizacional significa inves-tigar como os signos estão sendo usados; e comoas escolhas/perspectivas empregadas também sãoresponsáveis pela construção do tempo e contextoem que os discursos estão inseridos.

Diante da ideia de que os usos da linguagemvisam finalidades e os organismos humanos sãoredes de crenças, nós entendemos melhor a pre-sença da promessa e da ameaça no âmbito orga-nizacional; e como essas duas instâncias levam osindivíduos a cooperar. Como disse Rorty (1994, p.19): “é uma questão de redescrever pormenoriza-damente como são as pessoas que não nos são fa-miliares e de nos redescrevermos a nós próprios”.A redescrição é uma prática em que criamos esti-los/modos tão diferentes para os nossos discursose identidades que muitas vezes esses mesmo pro-cedimentos serão incomensuráveis aos olhos dosoutros. Com o tempo, entretanto, as metáforas queempregarmos serão entendidas e adotadas para,novamente, serem superadas por outras inusitadaselaborações. Por isso não é possível fazer Pragmá-tica esquecendo o uso efetivo da linguagem, a rea-lidade histórica, as práticas usuais neste ou naqueleambiente; quais são as condições/valores e, prin-cipalmente, os motivos individuais em cada per-formance. Obviamente, “(...) isto não implica nosurgimento de uma descrição que seja uma repre-sentação correta do mundo, pois a realidade é emgrande medida indiferente às descrições que delafazemos” (ib. p.24); mas esse mundo pode ser me-nos austero; feliz como desejava Austin, que optouem “fazer” humor dentro do discurso filosófico ecom isso “detonar” a divisão entre o discurso “sé-rio” e o “não sério”.

Marshall Mcluhan, autor de uma das obrasmais celebradas no âmbito da Comunicação, “Ga-láxia de Gutemberg” (1972), mostra que Shakes-

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Jair Antonio de Oliveira

peare anunciou pelo discurso não sério da poesiatoda a angústia do que era sentir-se viver ao longoda mudança do tempo e espaço medievais para oda Renascença:

Rei Lear é uma parábola, uma espécie dedemonstração indutiva da loucura e dasatribuições da nova vida de ação da Re-nascença. Shakespeare explica minucio-samente que o próprio princípio de açãoconsiste no parcelamento das operaçõessociais e da vida sensorial individual emsegmentos especializados, daí resultandouma busca frenética por uma nova inte-ração global das forças operantes, a qual,por sua vez, leva a furiosa ativação de to-dos os elementos e pessoas afetadas pelanova tensão (McLuhan, 1972, p.39).

E Graciliano Ramos transforma o relatório desua gestão frente à prefeitura de Palmeira dos Ín-dios (1928) em uma peça literária:

(...) Leis Municipais:

Em janeiro do ano passado não achei noMunicípio nada que se parecesse com lei,fora as que havia na tradição oral, anacrô-nicas, do tempo das candeias de azeite.

Constava a existência de um código muni-cipal, coisa inatingível e obscura. Procu-rei, rebusquei, esquadrinhei, estive quasea recorrer ao espiritismo, convenci-me deque o código era uma espécie de lobiso-mem.

Afinal, em fevereiro, o secretáriodescobriu-o entre papéis do império. Eraum delgado volume impresso em 1865,encardido e dilacerado, de folhas soltas,com a aparência de primeiro livro de lei-tura de Abílio Borges. Um furo. Encon-trei no folheto algumas leis, aliás bemredigidas, e muito sebo.

Com elas e com outras que nos dá a DivinaProvidência consegui aguentar-me até queo Conselho, em agosto, votou o códigoatual (Ramos apud Sodré, M.; Ferrari, M.1987, p.15).

Como as redes de crenças e intenções indivi-duais são altamente complexas, a sua descriçãoé praticamente inesgotável. Ao transcender o ní-vel dos fatos, a tarefa que se impõe ao sujeito que

adota uma perspectiva pragmática deve ter um ca-ráter pessoal, ou seja: de acordo com o seu co-nhecimento implícito e explícito das crenças e dosusuários e com as expectativas que decorrem desteconhecimento. De certa maneira, a tarefa do in-vestigador aqui é semelhante à ação do Bricoleur,literalmente, um adepto do faça você mesmo:

O bricoleur, diz Lévi-Strauss, é aqueleque utiliza a ‘prata da casa’, quer di-zer, os instrumentos que ele encontra emtorno de si, que já lhe preexistem, quenão foram especialmente concebidos emvista da operação para a qual os utilizae na qual tenta às apalpadelas adaptá-los,não hesitando em substituí-los sempre quelhe pareça necessário, ou tentar vários aomesmo tempo, mesmo se a sua origeme forma são heterogêneas etc (Derrida,1968, p. 111 apud Oliveira, 1999, p. 188).

No entanto, ao contrário do bricoleur (que pre-tende apreender a realidade em pequenos peda-ços), a perspectiva metodológica da Pragmáticanão pode isolar a realidade para lidar com efeitosespecíficos, como faz, por exemplo, a Análise daConversação, de conteúdo etc. Há uma sucessãode motivos nas ações e a fragmentação desse con-tinuum é impossível por que jamais vamos conse-guir colocar uma redoma sobre o excesso de senti-dos que estão em jogo. O que as abordagens tradi-cionais tentam fazer: negar, suprimir, congelar, co-locar uma camisa de força nos usos da linguagempor meio de regras determinísticas, pela primaziada forma, da lógica etc está em plena derrocada di-ante da emergência de outros paradigmas que têmno movimento, na performatividade, o seu motivocondutor:

(...) este texto, colocado no papel elido por outra pessoa, inclusive por mimmesma, em outro momento, será umanova escritura; a primeira trama, já des-feita, será tecida novamente, mas for-mando outros desenhos, novas formas, ejunto com ela tecendo-se, a cada vez, a ilu-são de se prender o signo na nova malha(Grigoleto, ib. p.32)

Como observou Oliveira (1999 e 2010), con-vergimos para uma situação em que não é possí-vel garantir o célebre axioma proposto por Watz-lavick (1967), “é impossível não comunicar”. Noentanto, a possibilidade da “não comunicação” nãosignifica simplesmente “incomunicabilidade”. O

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que se pretende ressaltar é que os atos pragmáti-cos apontam para o outro lado do axioma, ou seja,a possibilidade de “não comunicação” como regraassim definida (ib. 2010, p.58-59):

a. Não compreender a “mesma coisa” nas inte-rações;

b. Não dizer a “mesma coisa” nas interações;

c. Não se fazer compreender da “mesma ma-neira”.

Situações que na comunicação podem resultarem efeitos “infelizes”, embora essa seja a reali-dade dos atos de fala organizacionais: promessase ameaças, sucesso e falha; caminhando juntos edependendo do acordo interpessoal sobre o uso eo sentido dos diversos signos. Em outras palavras,dependendo sempre da cooperação; que não signi-fica comunicação mas pode levar a ela (desde quenão seja tratada de uma forma idealizada).

2 Afinal, quando sai o manual?Não é possível elaborar um manual nos moldes tra-dicionais contendo as metodologias para a Prag-mática na Comunicação organizacional. Nenhumamatriz daria conta de uma perspectiva que não de-pende de objetos duradouros ou locais fixos paracriar representações do mundo. Há questões éticase políticas na teorização a qualquer custo, em espe-cial o limite para organizações que usam as teoriascomo método instrumental sem se importar com oefeito que as ideias têm sobre as pessoas. As metá-foras que a Pragmática emprega devem ter impactona vida e nas organizações no sentido de transfor-mar, educar para uma concepção de mundo nãodeterminístico. Por exemplo: diante do “espectroda ambiguidade” (Mey, 2003, p. 333) que exauretempo e energia das pessoas, a questão não é seguirKant ou Grice entre outros (que elaboraram máxi-mas para a conversação: seja claro, seja comedido,seja relevante, seja sincero), mas:

(...) olhar para a ambiguidade, não comoum dado estrutural, mas como algo queos usuários da linguagem propositalmenteexploram para determinados fins comuni-cativos. Contrariamente ao que os teóri-cos da implicatura e da relevância imagi-nam (Grice e Sperber & Wilson, minhaobservação) as pessoas que participam deconversas, nem sempre buscam racionali-dade e relevância, nem sempre cobiçam

palavras com um significado único comoforma de desambiguizar palavras polissê-micas a serem automaticamente contextu-alizadas (Nerlich & Clark, 2001, p. 1 apudRajagopalan, 2010).

Ou, por exemplo, quando a Pragmática consi-dera o ato performativo como entidade êmica, cujaanálise é indissociável das práticas locais, umaanálise das interações interculturais entre as pes-soas e organizações vai nos mostrar que os dife-rentes comportamentos demonstrados pelos falan-tes estrangeiros não é “indelicado” ou “distante”,mas apenas expõe a lógica de seu grupo. Oli-veira (2012) descreve o jeitinho brasileiro comoum comportamento onde a polidez e violência sãoas duas faces de uma mesma estratégia comuni-cativa nos usos diários da linguagem. Para umapessoa de fora do Brasil, certas atitudes e com-portamentos linguísticos do nosso povo são con-siderados “rudes” ou “invasivos”, mas essas per-formances precisam ser compreendidas a partir doentorno local.

Também, por exemplo, diante do humor, queé algo mais do que um adorno usado para o en-tretenimento ou para aparecer em campanhas pu-blicitárias, house-organs e em outras ferramentasde comunicação com os públicos da organização.O humor – celebrado pela Pragmática como umaforma de fazer – é um exemplo de que o discurso“sério” é um simulacro que tenta ganhar credibi-lidade em cima de critérios insustentáveis (objeti-vidade, racionalidade, relevância, homogeneidadeetc). O performativo é expulso da comunicaçãoadministrativa e de outros gêneros “cristalizados”nas organizações, pois um livro contábil não podeser engraçado. Graciliano Ramos e Austin provamo contrário! Oring (2003, p. 2) define o humorcomo uma “incongruência apropriada” e as situ-ações em que as incompatibilidades ou inconve-niências aparecem nas organizações são freqüen-tes, embora recebam outras designações para nãomacular a seriedade do ambiente. Quando a De-claração da Independência dos EUA afirmou que“Todos os homens são criados iguais” certamentenão considerou a existência de negros e índios, ge-rando uma afirmação incompatível (embora acei-tável) com a realidade da época. No entanto, dizerque a Declaração americana é uma “piada” podeser considerado antipatriótico. Orwell (1985, p.128), no clássico “Revolução dos Bichos” usou anarrativa literária para construir uma representaçãomais plausível: “Todos os animais são iguais masalguns animais são mais iguais do que os outros”.

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Enfim, não dá para esquecer que os atos de falasão ações e não comunicação. Isto é: nós pode-mos usar a linguagem até para comunicar, emborahaja implicações éticas e políticas profundas emtorno dessa ideia. Assim, mesmo que fosse pos-sível elaborar um “manual” contendo procedimen-tos padrões para que os gestores e professores em-preguem os atos performativos dentro e fora dasorganizações, é muito mais salutar que os indi-víduos realizem constantemente uma reflexivaçãosobre os seus próprios comportamentos e possamcanalizar os efeitos dessa forma de pensar para aelaboração de um capital afetivo nas organizações.XXX.

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