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Fenomenologias do Cinema Paulo Filipe Monteiro * “Há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas” Álvaro de Campos Índice 1 Ontologia e experiência 1 2 Cinema e realidade 2 3 A experiência do espectador 24 4 Como a cebola 28 5 Merleau-Ponty e Husserl 30 6 O cinema como medo 32 7 A filosofia do cinema segundo Ian Jar- vie 35 8 Bibliografia 42 1 Ontologia e experiência O cinema, nos seus jovens cem anos, ao constituir-se em “sétima arte” tornou-se um campo privilegiado de reformulação do pró- prio conceito geral de arte, e, por isso, de toda a estética: é esta uma questão a me- recer discussão aprofundada noutro texto e contexto. Por agora, e procurando respon- der tão directamente quanto possível à ques- tão ontológica formulada neste número da * Universidade Nova de Lisboa 0 Artigo publicado em Revista de Comunicação e Linguagens 23, O que é o cinema?, 1996, Edições Cosmos, Lisboa, pgs 61-112. revista, “O que é o cinema?”, gostaria de dis- cutir como o cinema veio reformular o con- texto mais vasto da cultura e as implicações filosóficas que esse movimento acarretou. Já no início dos anos 90, J. Hoberman [1991:2] escreve: “se a invenção da foto- grafia obrigou a uma nova definição da arte, o cinema reinventou a cultura”. E Wilhelm Wurzer [1990:xiii-xiv, 23 e 98-104] argu- menta: “subitamente, a filosofia terá acor- dado num sítio radicalmente diferente atra- vés do medium do cinema”, com “uma nova consciência do fim da filosofia”. O cinema “delicia-se a imaginar imagens para clarifi- car o caminho para uma nova literatura do juízo (Ur-teil). Florescendo na luta do juízo longe do caminho próprio para o velho edifí- cio da filosofia, filmar percorre diferentes lu- gares para o pensamento, mesmo, e especial- mente, nos filmes.” “Filmar trilha o carreiro esquecido da imaginação de volta à caverna de Platão”: “pondo em dificuldade a herme- nêutica, a ironia do prazer de filmar reside no facto de o juízo se libertar do olhar sin- gular e exclusivo do logos”, libertação em relação à qual o pensamento de Heidegger já tinha procurado abrir “uma saída ‘ontoló- gica’ para fora da modernidade logocêntrica da cultura ocidental.” Para compreendermos melhor o que aqui está em causa, e que Ian Jarvie desenvolverá, temos de antes explo- rar o terreno em que ocorre a primeira liga-

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Fenomenologias do Cinema

Paulo Filipe Monteiro∗

“Há Platão e Virgílio dentro das máquinas edas luzes eléctricas”

Álvaro de Campos

Índice

1 Ontologia e experiência 12 Cinema e realidade 23 A experiência do espectador 244 Como a cebola 285 Merleau-Ponty e Husserl 306 O cinema como medo 327 A filosofia do cinema segundo Ian Jar-

vie 358 Bibliografia 42

1 Ontologia e experiência

O cinema, nos seus jovens cem anos, aoconstituir-se em “sétima arte” tornou-se umcampo privilegiado de reformulação do pró-prio conceito geral de arte, e, por isso, detoda a estética: é esta uma questão a me-recer discussão aprofundada noutro texto econtexto. Por agora, e procurando respon-der tão directamente quanto possível à ques-tão ontológica formulada neste número da

∗Universidade Nova de Lisboa0Artigo publicado emRevista de Comunicação e

Linguagens23, O que é o cinema?, 1996, EdiçõesCosmos, Lisboa, pgs 61-112.

revista, “O que é o cinema?”, gostaria de dis-cutir como o cinema veio reformular o con-texto mais vasto da cultura e as implicaçõesfilosóficas que esse movimento acarretou.

Já no início dos anos 90, J. Hoberman[1991:2] escreve: “se a invenção da foto-grafia obrigou a uma nova definição da arte,o cinema reinventou a cultura”. E WilhelmWurzer [1990:xiii-xiv, 23 e 98-104] argu-menta: “subitamente, a filosofia terá acor-dado num sítio radicalmente diferente atra-vés do medium do cinema”, com “uma novaconsciência do fim da filosofia”. O cinema“delicia-se a imaginar imagens para clarifi-car o caminho para uma nova literatura dojuízo (Ur-teil). Florescendo na luta do juízolonge do caminho próprio para o velho edifí-cio da filosofia, filmar percorre diferentes lu-gares para o pensamento, mesmo, e especial-mente, nos filmes.” “Filmar trilha o carreiroesquecido da imaginação de volta à cavernade Platão”: “pondo em dificuldade a herme-nêutica, a ironia do prazer de filmar resideno facto de o juízo se libertar do olhar sin-gular e exclusivo do logos”, libertação emrelação à qual o pensamento de Heideggerjá tinha procurado abrir “uma saída ‘ontoló-gica’ para fora da modernidade logocêntricada cultura ocidental.” Para compreendermosmelhor o que aqui está em causa, e que IanJarvie desenvolverá, temos de antes explo-rar o terreno em que ocorre a primeira liga-

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ção do pensamento filosófico ao cinema. –ele a fenomenologia, e duplamente: quando,como veremos, defende ou procura uma liga-ção privilegiada do filme com o real, presta-se a uma ontologia; quando encara o cinemacomo um lugar de organização de novos estí-mulos sensoriais, de choques e de gozo, pedeuma reflexão sobre a experiência do especta-dor. Uma privilegia a realidade prévia queo cinema regista; a outra, a nova realidadeque ele cria no espectador. Como veremos,em ambos os casos a fenomenologia do ci-nema (que ganhou recentemente um grandeimpulso) retoma e reformula as mais antigasideias sobre o cinema.

2 Cinema e realidade

Comecemos pela primeira destas questões, ada relação do cinema com o real. Georg Sim-mel [1912:202] chamava à “realidade” “umacategoria metafísica”, e já teremos muitasoportunidades de lhe dar razão.

Poderia esperar-se que, como nas outrasartes ficcionais, houvesse no cinema uma di-visão entre os que decidem levar, naturalisti-camente, a ilusão da realidade o mais longepossível, num jogo convencional em que oespectador esquece que está perante o logrode uma ilusão (e paga, justamente, para serenganado), e, por outro lado, aqueles que,para não abrirem mão das potencialidades ar-tísticas ou políticas do seu trabalho, recusamesse ilusionismo naturalista, procurando quenão se perca de vista que o cinema é umaconstrução e uma arte. – dentro desses parâ-metros que Andrei Tarkovski1. faz uma di-

1Citado no catálogo da Homenagem a Andrei Tar-kovski, Cinema Quarteto, 25-27 de Outubro de 1994,que faz uma pequena antologia de excertos de entre-vistas do cineasta a várias revistas de cinema

cotomia, quando diz que “há duas categoriasbásicas de cineastas: uma compreende aque-les que procuram imitar o mundo que os ro-deia; a outra integra os que procuram criar oseu próprio mundo. A segunda categoria é ados poetas do cinema”.

O que torna, porém, esta questão do natu-ralismo ou anti-naturalismo mais complexano interior do cinema é o facto de, sobretudoa partir dos anos 50, as características de re-gisto que este medium possui levarem os quemais defendem o cinema enquanto arte – os“poetas do cinema”, se retomarmos a termi-nologia de Tarkovski – a reivindicarem umarelação privilegiada com o real, mais verda-deira ou mais intensa do que a do cinema na-turalista – o que vem a colocar o cinema, nodizer de Marina Zancan2, “entre verdadeiro ebelo, documento e arte”. A realidade pareceinscrever-se no cinema por via da técnica,por obra de uma película que é impressio-nada pelo real, onde, ao contrário das outrasartes, o objecto deixa as suas marcas com (al-guma) autonomia em relação ao artista.

Arnold Hauser escreve em 1958 [p. 402]:“o carácter essencialmente fotográfico do ci-nema impõe que deva conservar por alteraralguns pedaços da realidade e permitir que a‘voz da natureza’ seja ouvida mais directa-mente do que no caso das outras artes. Poispor ‘naturalistas’ que estas possam ser na suaescolha de meios, nunca podem fazer maisdo que imitar objectos naturais, e nunca po-dem usá-los num estado bruto e original inal-terado. (. . . ) O cinema é a única forma dearte que toma posse de consideráveis frag-mentos inalterados da realidade; interpreta-

2Marina Zancan, 1990. – certo que o texto deZancan se insere numa reflexão sobre o neo-realismo:mas não será precisamente esse o contexto das teoriasde Bazin?

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os, evidentemente, mas a interpretação per-manece fotográfica. Uma paisagem fotogra-fada, ou uma rua, uma frase ou gesto foto-grafados permanecem muito do que são emsi próprios.” Esta incorporação do que é re-gistado, independentemente da intenção ar-tística que presidiu ao registo, acarreta evi-dentemente o problema do excesso ou imper-tinência do registado, que tem sido referidona teoria do cinema como o problema da “vi-sibilidade total”: “o facto de que a câmarapode sem intenção registar pormenores nãorequeridos pelo desenvolvimento dramáticodo filme, em contraste com o romance, ondeapenas aqueles pormenores que o romancistaquer incluir encontram lugar na página im-pressa”3.

Mas, para alguns autores que referirei,como Bazin, é justamente esse excesso doregistado que constitui a maior virtude do ci-nema: o facto de a câmara, mesmo contra avontade de quem a manipula, captar sempre,em bloco, um pedaço integral de realidade,e manter essa integridade, significaria a im-possibilidade de falsificação na sétima arte.

Essa relação com um real que a técnica,ao mesmo tempo que parece conseguir deforma inédita captar, afecta inevitável e ime-diatamente de artifício, não deixa de inqui-etar a reflexão sobre o cinema até aos nos-sos dias. – o problema daquilo a que Kra-cauer4 chamou “a redenção da realidade fí-

3Winston, 1973:61, que acrescenta: “no entanto,esta chamada visibilidade total do cinema não é umalimitação intrínseca e pode ser controlada”.

4Siegfried Kracauer, Theory of Film: the redemp-tion of physical reality, de 1965, republicado, em1971, com o significativo nome The nature of Film(sem subtítulo e sem qualquer outra modificação, nemsequer na paginação). Sobre o tema, veja-se ainda Mi-chel Marie, “Impression de réalité”, 1980, pp. 125-136.

sica” pelo cinema. – que, por um lado, comoescreve Christian Metz [1968:108], “a ma-nipulação fílmica transforma num discurso oque poderia ter sido apenas o decalque visualda realidade”; pode acrescentar-se, por outrolado, que, ao fazê-lo, transporta mais do queaquilo que pertence à ordem desse discurso,isto é, há elementos no filme que não sãocriados pelo próprio filme, que lhe preexis-tiam. Mas como essa incorporação do realé feita numa linguagem, quase todos aque-les que lhe dão crédito ou até preponderânciateórica reconhecem que se trata de uma in-corporação ambígua e complexa. Não é fácillidar com o fascínio e as armadilhas da rea-lidade no cinema. O que é importante aquisublinhar é que, nos anos 50 e 60 (recupe-rando algumas reacções dos primeiros tem-pos do cinema), a inscrição do real foi eri-gida em princípio máximo e exclusivo, emprejuízo dessa ambiguidade e complexidadedo cinema, e os efeitos dessa atitude sentem-se ainda hoje.

Estas questões estão muito inteligente-mente colocadas e discutidas no livro do bra-sileiro Ismail Xavier, O Discurso Cinemato-gráfico (de 1977, revisto em 1984 e com-plementado por uma antologia de 1983), oqual, segundo o próprio Xavier [1977:9], seestrutura, justamente, em torno da “concep-ção assumida por diferentes autores e esco-las quanto ao estatuto da imagem/som do ci-nema frente à realidade (dentro das concep-ções conflituantes que se tem desta)”. Emrelação a uma concepção do cinema comomero registo do real, a que chama “ingé-nua”, Xavier [1997:12] lembra que, “se jáé um facto tradicional a celebração do ‘re-alismo’ da imagem fotográfica, tal celebra-ção é muito mais intensa no caso do cinema,dado o desenvolvimento temporal da ima-

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gem, capaz de reproduzir, não só mais umapropriedade do mundo visível, mas justa-mente uma propriedade essencial à sua natu-reza – o movimento”, daqui resultando uma“multiplicação enorme do poder de ilusão.”Já em 1932, Rudolf Arnheim reconhecia quea fotografia, à qual falta o tempo e o vo-lume, produz uma impressão de realidademuito mais fraca do que o cinema, o qual dis-põe por seu lado da dimensão temporal, bemcomo de um equivalente aceitável do relevo(obtido nomeadamente pelo jogo dos movi-mentos). Ou seja, comenta Metz [1965:24],na fotografia, “esse material tão semelhanteainda o não era suficientemente: faltava-lheo tempo, faltava-lhe dar conta do volume deum modo aceitável, faltava-lhe a sensação demovimento, comunmente sentida como sinó-nimo de vida.”

No cinema, escreve Morin [1958], “a con-junção da realidade do movimento e da apa-rência das formas leva ao sentimento da vidaconcreta e à percepção da realidade objec-tiva.” Ideia que, diz Metz [1966:17-19, 21],tinha já sido desenvolvida por A. Michottevan den Berck, em 1948. Para este autor, “omovimento contribui para a impressão de re-alidade de modo indirecto (dando corpo aosobjectos), mas contribui também de mododirecto, na medida em que aparece, ele pró-prio, como um movimento real. Com efeito,é uma lei geral da psicologia que o movi-mento, a partir do momento em que é per-cebido, é na maior parte das vezes perce-bido como real, contrariamente a muitas ou-tras estruturas visuais como, por exemplo, ovolume, o qual pode muito bem ser perce-bido como irreal mesmo quando é percebido(é o que acontece com os desenhos em pers-pectiva). (. . . ) O movimento é ‘imaterial’,oferece-se à vista, nunca ao toque. – por isso

que não admitiria dois graus de realidade fe-nomenal, o ‘verdadeiro’ e a cópia. – muitasvezes por referência implícita ao sentido tác-til, supremo árbitro da ‘realidade’ – o ‘real’ éirresistivelmente confundido com o tangível– que sentimos como reproduções as repre-sentações dos objectos”. Fugindo por defini-ção a essa prova da materialidade do tacto,todo o movimento é percebido como verda-deiro e, assim, “os objectos e personagensque o filme nos dá a ver só ali parecem emefígie, mas o movimento de que estão ani-mados não é uma efígie do movimento, eleaparece realmente”.5 Ou seja, “no cinema,a impressão de realidade é também a reali-dade da impressão, a presença real do movi-mento.”

Não admira então, lembra Xavier[1977:12, 58], o modo como o cinema foirecebido quando surgiu. “Nos primeirostempos, são numerosas as crónicas quenos falam de reacções de pânico ou deentusiasmo provocadas pela confusão entreimagem do acontecimento e realidade doacontecimento visto na tela. Os primeirosteóricos fizeram deste poder ilusório ummotivo de elogio (ao cinema) e de crítica(aos exploradores do cinema), que lhesconsumiu boa parte de suas elaborações”.Foi o caso de grandes críticos do cinemamudo, como Louis Delluc, com os seuselogios “às revelações profundas do instan-tâneo fotográfico e de sua defesa da ‘poesiadas ruas’, cuja riqueza e espessura humanaclama pela representação cinematográfica”.

Mas aquilo que rapidamente caracterizou

5“Amputado, evidentemente, de uma das três di-mensões espaciais nas quais ele normalmente se de-senvolve. Mas trata-se aqui do seu carácter fenomenalde realidade, não da sua riqueza ou da sua variedade”.Nota de Metz.

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a maior parte da prática e da teoria que vemdo cinema mudo foi, pelo contrário, a pos-sibilidade de manipulação que existe no ci-nema, e não a sua captação do real. – certoque um realizador como Stroheim, ao fil-mar Greed (1924), insistiu em ter décors na-turais, dizendo: “Formei-me na escola deD. W. Griffith e tencionava fazer um poucomais do que o Mestre, no sentido do rea-lismo fílmico. Filmar em verdadeiras ci-dades e não em praças desenhadas por Ce-dric Gibbons ou Richard Days, em alamedasreais, com eléctricos, autocarros e automó-veis reais, andando em reais avenidas ven-tosas, com poeira e sujidade reais, em ca-sebres ou em castelos e palácios verdadei-ros (. . . ). Ia povoar as minhas cenas comhomens, mulheres e crianças reais, comoos que encontramos todos os dias na vidareal” [cit. in Grilo, 1993:111]. João MárioGrilo [1993:122] destaca em Greed um de-sejo de “aproximar o cinema do seu funda-mento ontológico”; e cita declarações feitaspor Stroheim em 1924: “o público tem quesaber que tudo o que von Stroheim produz éfeito com a maior honestidade e é tão fiávelcomo o National Geographic ou a Enciclo-pédia Britânica. (. . . ) Porque cada coisa quepõe diante dos olhos do público tem de ser aprópria coisa – a coisa real.”

Mas, mesmo na obra do próprio Stroheim,esse caso de rodagem inteiramente fora doestúdio foi excepcional, e o certo é que,ainda nos anos 50, graças a teorias que vêmdesde Eisenstein até Malraux, o cinema eravisto sob a perspectiva privilegiada da mon-tagem. Para Eisenstein, é graças à montagemque o cinema se afasta do seu lado mecânicoou técnico e começa a ser arte. Como es-creve Brian Henderson [1971:79], “para Ei-senstein, como para Pudovkin e Malraux, os

fragmentos de um filme por montar não sãomais do que reproduções mecânicas da reali-dade; como tal não podem ser consideradosarte. Só quando os fragmentos são devida-mente articulados em padrões de montagemé que o filme se torna arte.” – que, comentaEduardo Geada [1985:12], “o que está im-plícito nas teorias eisensteinianas da monta-gem é uma vontade inabalável de controlaro pensamento do espectador através de cho-ques emocionais que não se prendam ape-nas com o nível temático do drama, do realrepresentado, mas dependam radicalmenteda formalização abstracta de uma hipotéticacine-língua.” Daí “que no ensaio dedicadoaos métodos de montagem Eisenstein insistatanto na analogia do cinema com a música,visto que a música é uma das raras práticasartísticas não legitimada pela representaçãodo real capaz de desencadear fortes estadosemocionais a partir da sua matéria pura”.

–, pois, se não uma novidade absoluta,pelo menos uma ruptura radical aquela quese dá quando, a partir sobretudo dos finaisdos anos 40, a técnica de reprodução que éconstituinte do cinema começa a ser vista porvários autores, de variadas tendências, comoaquilo que faz o cinema tornar-se arte, gra-ças a uma relação privilegiada com a reali-dade, e já não pela composição formal dosseus fragmentos. Como escreve Henderson[1971: 78 e 94], são “dois tipos de teoria dofilme”. “As principais teorias fílmicas exis-tentes são de dois tipos: teorias da relação daparte com o todo e teorias da relação com oreal. Como exemplos das primeiras, temosas de Eisenstein e as de Pudovkin, que tra-tam das relações entre as partes e os conjun-tos cinematográficos; como exemplo das se-gundas temos as de Bazin e as de Kracauer,que tratam da relação da realidade com o ci-

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nema.” “Estas teorias-tipo não são nem no-vas nem únicas no cinema. As teorias darelação da parte com o todo e as teorias darelação com o real (por vezes chamadas te-orias da imitação) têm tido uma longa vidana história do pensamento estético em ge-ral. Durante o século dezoito eram as princi-pais abordagens e as mais largamente defen-didas.” Leia-se Monroe C. Beardsley, “quesugere que, devido ao atraso da teoria fíl-mica, elas são ainda as abordagens principaisneste campo.”

Noël Carroll [1988a:7-8], por seu lado,pensa estes dois tipos de teoria com os con-ceitos de “paradigma do cinema mudo” e“paradigma do cinema sonoro”: “ApresentoArnheim como o maior representante do quepode ser (livremente) pensado como o ‘para-digma do cinema mudo’ no pensamento so-bre o cinema.” Arnheim defende a especi-ficidade deste medium, e um dos capítulosde Film as Art chama-se mesmo “Um novoLaoconte: compósitos artísticos e o cinemasonoro”. “A tendência dos teóricos do ci-nema mudo – incluindo, além de Arnheim,S. M. Eisenstein, Lev Kuleshov, V. I. Pu-dovkin, Hugo Munsterberg, Bela Balázs e osimpressionistas franceses – é considerar quea característica esteticamente mais significa-tiva do medium cinema é a sua capacidadede manipular a realidade, isto é, de rearranjare assim reconstituir o acontecimento profíl-mico (o acontecimento que transpira dianteda câmara).”

André Bazin é o maior representante daoutra tendência, o paradigma do cinema so-noro, em que a defesa do cinema se funda noseu estatuto ontológico. Por isso Carrol podedizer que “os teóricos do cinema sonoro –incluindo Kracauer e Cavell tanto como Ba-zin – celebram o que os teóricos do cinema

mudo reprimem.” – sob a influência da fe-nomenologia sartriana que Bazin, para quemtoda a técnica remete para uma metafísica,vem defender a ideia de que a especificidadedo cinema não reside na capacidade de ma-nipulação da montagem mas no seu oposto,ou seja, no ajustamento plástico da imagemcinematográfica ao sentido da realidade [cf.Geada, 1985 c:12]. Esta perspectiva ontoló-gica passou, já nos anos 50, a marcar a teoriae a prática do cinema, afectando muito forte-mente, por exemplo, o arranque da NouvelleVague francesa e o Cinema Novo português.

Note-se que algo dessa valorização onto-lógica do cinema se encontra já naquilo aque Xavier [1977:54] chama o “realismo crí-tico”, de tipo marxista, apesar do seu pen-dor ideológico, na medida em que ele pro-cura devolver o real à nossa atenção: nãojá por técnicas microscópicas, como se pen-sava no início do cinema, mas fazendo-nosconhecer a realidade de todos os dias, tor-nando visível e audível o que na percepçãoquotidiana passa despercebido. – certo quese trata de uma realismo “apto a colocar osfactos narrados em perspectiva e capaz de or-ganizar suas relações de modo a que se pro-duza um efeito específico: a imagem e o somnão se combinam com o objectivo de mostraralgo mas com o objectivo de significar algo”,“em nome de uma compreensão do seu sig-nificado histórico. O que está admitido aí éque tal significado existe objectivamente nopróprio real, sendo papel do reflexo artísticojustamente a explicitação de tal significadoatravés de instrumentos específicos de repre-sentação.”

O ponto de viragem situa-se quando co-meça a ser considerado menos importantemarcar o significado das coisas do que deixá-las falar por si próprias. Encontramo-lo, so-

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bretudo, no neo-realismo italiano do fim dosanos 40, que já não procurava a manipula-ção politicamente correcta das imagens, por-que criticava a própria ideia de manipulação:“comparando, pode dizer-se que, enquantoa crítica do realismo crítico à montagem docinema clássico visava a natureza das rela-ções aí representadas, a crítica de Rossellinivisa o carácter manipulatório dessa monta-gem. (. . . ) A montagem é o lugar da in-tervenção que pode destruir a revelação doessencial (aquilo que emana de cada ima-gem)”. E assim essa “‘ideologia da imagemnão-ideológica’ inverte uma antiga oposição:de um esquema em que a imagem é tomadacomo lugar da ilusão e o pensamento arti-culado em palavras como lugar do discursoracional e dos conceitos verdadeiros, passa-se a um esquema em que a imagem torna-se lugar da revelação verdadeira e a lingua-gem articulada torna-se obstáculo, conven-ção, ideologia.” “A estratégia neo-realista,tendo como ponto de partida o facto banal,estabelece que “a observação essencial destepequeno facto será captada pela observaçãoexaustiva, pelo olhar paciente e insistente” eque “cada fragmento representa o todo; o ex-pressa” [Xavier, 1977: 60, 61, 63].

Duas figuras importa destacar na teoria doneo-realismo italiano: Zavattini e Rossellini.“Para Zavattini, a imaginação é lugar da su-perposição de fórmulas mortas a factos soci-ais vivos, de negação daquilo que a própriarealidade já tem de espectacular e maravi-lhoso”; ele propõe uma radical “redução doespaço que separa a coisa da sua descrição”,num cinema em que, “não somente posso medeter na observação de qualquer fragmento,como devo detalhar o máximo possível talmergulho no fragmento” [Xavier, 1977:60].E devo evitar a montagem: no limite, pode

dizer-se que Zavattini sonha com um filmenum único plano.

No mesmo sentido, Rossellini escreve, emAbril de 1959, nos Cahiers du Cinéma: “Amontagem já não é essencial. As coisas es-tão aí (. . . ). Porquê manipulá-las?” O neo-realismo critica a découpage clássica por sermanipuladora e por criar “um mundo ima-ginário que aliena o espectador de sua rea-lidade”; se a découpage clássica põe o falsoa parecer real, “o neo-realismo propõe-se asubstituir tal artifício pelo trabalho de obten-ção da imagem que, além de parecer, pro-cura ‘ser real’. Há uma ética da ‘confiançana realidade’ e da sinceridade”, nota Xavier[1977:61], que sublinha ainda como se co-meça a valorizar a ambiguidade dos filmes ea criar finais inconclusivos, como fidelidadeà abertura e ambiguidade do real. Repare-seque, em geral, toda a arte modernista cami-nhou no sentido da assunção e defesa da am-biguidade [cf. Monteiro, 1996:39-48], mas,como bem nota Xavier [1977:61, 79], “umacoisa é dizer: a arte é ambígua. Outra é dizer:a arte deve ser ambígua porque a realidade éambígua.” Umberto Eco, no seu famoso li-vro A Obra Aberta, de 1962, oscila entre fi-car pela primeira afirmação e caminhar emdirecção à segunda. Na mesma época (quasenos mesmos anos), “o que vemos em Ba-zin ou Mitry é uma admissão que vai maisadiante: a ambiguidade não é o traço ex-clusivo definidor do objecto artístico; ela éum elemento definidor da própria realidade.”E nisso parecem-me mais próximos de cer-tas posições heideggerianas sobre a necessi-dade de nos voltarmos para “o Aberto”, dedeixarmos respeitosamente espaço à emer-gência do ser, de permitirmos que ele brilhee ressoe no seu silêncio e mortalidade (em-bora Heidegger soubesse que isso só podia

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ser feito na linguagem, casa do ser, e esti-vesse preocupado tanto com o afastamentocomo com a proximidade excessiva em rela-ção ao mistério – cf. Monteiro, 1996:passim,sobretudo p. 287).

Entretanto, em 1951, surgiram os famososCahiers du Cinéma, de que um dos funda-dores, e primeiro impulsionador, foi AndréBazin, que já desde 1945 defendia, para o ci-nema, o respeito pela “integridade fenome-nológica” dos factos. Na sua obra mais mar-cante, Qu’est-ce que le cinéma?, publicadaem quatro volumes entre 1958 e 1962, Ba-zin escreverá, sobre os neo-realistas: “elesnão esquecem que, antes de ser condenável,o mundo, simplesmente, é”. Bazin vai sis-tematizar a perspectiva ontológica não ape-nas como uma possibilidade do cinema, mascomo a essência a que o cinema deve manter-se fiel. – que no cinema, ao contrário dasoutras artes, não existe uma separação domundo, uma heterogeneidade em relação àphysis: o cinema é o “estado estético da ma-téria”, escreve Bazin. Por isso, segundo estetipo de concepção, “no cinema, há um ilu-sionismo legítimo que constitui base para overdadeiro realismo, tanto mais verdadeiroquanto mais a realidade vista (ou que se su-põe vista) através da janela cinematográficapermanecer integral, respeitada, intocável,porque a sua simples presença é reveladora– o que legitima, redime a ilusão (pecado)original” [Xavier, 1977: 70].

Nesta perspectiva, a inscrição técnica, fo-tográfica, da realidade no filme permite abrirpara um conceito de cinema em que o realdeixa de ser pensado na sua acepção físicapara adquirir uma dimensão propriamenteontológica, quando não meta-física. ParaRossellini, há que procurar “rever as coisastal como elas são, não em matéria plástica,

mas em matéria real. Então talvez possa-mos começar a orientar-nos.” – essa pas-sagem, ambígua, pouco transparente, da re-alidade física à realidade metafísica ou on-tológica, que constitui o centro da obra deAndré Bazin. Como nota Henderson [1971:95], “Bazin procura provar que a fotografiae o cinema são descobertas que, pelas suaspróprias características técnicas, satisfazema obsessão humana do realismo, libertando apintura dessa tarefa”. (O nosso Almada Ne-greiros, como se pode ver na recensão quefaço no fim desta revista, argumentava nomesmo sentido.)

Em Qu’est-ce que le cinéma? [1958:43],Bazin escreve: “só a objectiva fotográficanos dá do objecto uma imagem capaz de des-pertar do fundo do nosso inconsciente estanecessidade de substituir o objecto por algomelhor do que um decalque aproximado:o próprio objecto, liberto das contingênciastemporais.” Mas, de necessidade ou voca-ção do cinema, essa inscrição do real no ci-nema passa, para Bazin, a ser um facto con-sumado (e vie-versa): “a imagem pode sernebulosa, deformada, desfocada, sem cor,sem valor documental, mas ela provém, atra-vés da sua génese, da ontologia do modelo;ela é o modelo.” Por isso, no dizer de Ba-zin, no cinema o objecto não é “represen-tado”, mas sim, “na verdade, reapresentado,ou seja, tornado presente no tempo e no es-paço. A fotografia beneficia de uma trans-ferência de realidade da coisa para a sua re-produção.” Isto deve-se à própria “ontologiada imagem fotográfica” (título de um dos en-saios de Qu’est-ce que le cinéma?,6 que pela

6Este ensaio já saíra em 1945, no volume de váriosautores Problèmes de la peinture. Ou seja, o essencialda argumentação de Bazin já vem dessa data.

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sua natureza pode participar do real: “a fo-tografia e o objecto em si próprio partilhamde uma existência comum”. “A existênciado objecto fotografado participa da existên-cia do modelo como de uma impressão digi-tal”, porque opera “uma espécie de decalqueou transferência”, como “o Santo Sudário deTurim”: “a moldagem das máscaras mor-tuárias apresenta também um certo automa-tismo na reprodução. Neste sentido, podiaconsiderar-se a fotografia como uma molda-gem, um registo das impressões do objectopor intermédio da luz.” Se juntarmos a essaontologia da imagem fotográfica” a “reali-dade suplementar” do som, temos que, paraBazin, o cinema toca a realidade, tira algumacoisa dela, opera uma “descamação” no real.

Neste sentido, para Bazin, todos os gran-des filmes, mesmo ficcionais, são um re-tomar da arte do documentário.7 Mas, se“Deus é o autor dos documentários” (comoHitchcock diz a Truffaut), a sua marca sobrea face das coisas deve, para Bazin, permane-cer um mistério. Na concepção de Bazin, re-tomada e criticada por Bonitzer [1982:128],o filme é, assim, “uma abertura sobre o mis-tério das coisas. Tudo se passa como se amise en scène devesse descer em direcção aessa humildade, despossuir-se dos seus po-deres manipuladores para se tornar, por suavez, humilde espectadora das coisas”.

Bazin compara “os realizadores que acre-ditam na imagem” com “aqueles que acredi-tam na realidade”: defendendo uma “auto-anulação perante a realidade”, “os realiza-

7Louisette Fareignaux [1991: 109-118] procuraver a própria personagem de cinema como algo que aomesmo tempo que é ficcional transporta uma parte dedocumental. Christian Zimmer [1984] também pro-cura assentar num presumido realismo do cinema aprópria questão do “regresso da ficção”.

dores preferidos de Bazin são os que sabempreservar os princípios estético e psicológicodo axioma da objectividade, recusando a tru-cagem e alinhando tanto quanto possível oolhar da câmara pelo olhar do homem. Da-qui a valorização sistemática das objectivasque não deformam a perspectiva, da profun-didade de campo que permite a liberdade dacirculação do olhar do espectador e o efeitode montagem no interior do plano, do plano-sequência que regista fielmente o tempo realda filmagem, do respeito pela unidade doespaço cénico entendida como o garante daverdade na relação da câmara com os actorese com o real”; “Bazin toma o partido da re-alidade porque o cinema ideal não fará maisdo que conservar, pela escolha paciente e in-teligente do cineasta, o espaço e o tempo queas coisas habitam” [Geada, 1985c:12-13].

Daí também a defesa do plano-sequência,em que a câmara se mantém fixa a registaro que vê, e a condenação dos filmes e sériesque fazem a montagem com raccord no eixo,isto é, a montagem naturalista que quer fa-zer crer na realidade e continuidade de umacontecimento, quando de facto está a co-lar diversos planos. “Bazin quer um cinemaque só conheça a imanência (. . . ); uma pas-sividade no olhar, cuja isenção lhe torna ca-paz de ‘receber’ o que emana dos seres e domundo. O mergulho radical na aparência ficasendo a condição para a acumulação de da-dos sensíveis capaz de provocar a ascensão(desencavação) das ideias justas – não ide-ológicas” [Xavier, 1977: 75]. E parece-lheque a tendência do cinema, depois do rei-nado da montagem (tanto no vanguardismocomo na découpage naturalista clássica), ca-minha justamente no sentido do respeito pelamatéria e o tempo; Bazin cita em seu apoionão só o neo-realismo, como as obras de Or-

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son Welles, Jean Renoir e William Wyler,isto é, de todos os que, à multiplicidade dosplanos cortados e montados, preferiam a pro-fundidade de campo e o que ele baptizou deplano-sequência.

Repare-se que, apesar de ser contra a re-organização dos fragmentos num todo ideo-lógico ou dramático que lhes dê um sentidodeterminado, Bazin não se opõe à narraçãoficcional – embora goste que ela seja do tipo“objectivo” e “de reportagem” como em cer-tos escritores americanos (Hemingway, Johndos Passos). Pode mesmo dizer-se, comoXavier [1977:71], que “Bazin é um apolo-geta da narração ficcional e sua estética nãopoderia desembocar na proposição exclusivade um cinema documentário, um cinema ver-dade”, embora incluísse tal proposta. – que“há manipulações e manipulações; seu jul-gamento depende do nível em que elas se si-tuam.” Bazin aceita e defende a constituiçãode mundos ficcionais, sejam eles criados emprimeira mão pelo cinema, ou adaptados daliteratura; o que ele exige é que eles sejamfilmados com o respeito por esses mundos,sem manipulações, como se eles fossem re-ais; é aquilo a que ele chama “documentárioimaginário”, como se a câmara estivesse atornar visível, e por isso aparentemente real,a imaginação. “Deste modo, em princípio ar-bitrário, ele considera legítima a manipula-ção que salva a inocência do cinema – o quese passa diante da câmara não pertenceriaainda propriamente a ele – e condena a ma-nipulação especificamente cinematográfica –a montagem (esta mexe na santa imagem ob-tida pelo processo cinematográfico). As ra-zões para tal tratamento diferencial vêm dofacto de que nem Hollywood levou tão a sé-rio como Bazin a necessidade de se man-ter, para além das deduções da razão que

não acredita, uma fé irracional na verdadeda imagem, uma fé que viria do fundo dopsiquismo do espectador” e “que se mante-ria no cinema desde que se garantisse a nãointervenção da montagem (. . . ). Garantidoisto, Bazin nos diz que, devido a esta cre-dibilidade, o poder fundamental da imagemcinematográfica está em projectar um ‘valorde realidade’ sobre a representação, sobre amentira ou seja lá o que for que se passe di-ante da câmara”.

Ou seja, de facto, o grande inimigo, paraBazin, é a montagem, e nisso inverte “afórmula dos teóricos russos: a montagemseria o lugar da ruptura com o específicocinematográfico, mostrando-se um procedi-mento literário, porque instituiria um relatocomposto de imagens (fragmentos de factosou de coisas), não a reprodução efectiva dofacto na sua integridade. Somente esta re-produção atingiria o específico cinematográ-fico, ou seja, a atribuição do ‘valor de reali-dade’ aos factos apresentados”. São de doisgrandes tipos as traições ontológicas que, se-gundo Bazin, existem na montagem. Por umlado, ao seleccionar e ordenar os aconteci-mentos, impondo que vejamos primeiro umacoisa e depois outra, a montagem opõe-se“essencialmente e por natureza à expressãoda ambiguidade”: ela é a “criação de umsentido que as imagens não contêm objec-tivamente e que provém tão-só de seu rela-cionamento”. Por outro lado, “ela impossi-bilita a captação do que seria uma propri-edade essencial das coisas e dos factos: asua duração concreta; (. . . ) quando, no ci-nema, a duração concreta não está expressana imagem, só tenho uma ideia intelectual dotempo transcorrido. Na montagem, os frag-mentos combinados são capazes de ‘signifi-car’ um espaço, assim como de sugerir, sig-

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nificar um tempo. Mas, isto não substituia sua percepção efectiva”, a experiência dotempo como duração (“aqui Bazin inspira-se totalmente em Henri Bergson”). Essa sóserá garantida quando, contra a montagem,for assegurado o “reinado da continuidade,tomada em seu sentido mais absoluto: nãoapenas no nível lógico (consistência no de-senvolvimento das acções), mas também nonível da percepção visual (desenvolvimentocontínuo da imagem sem cortes).” A décou-page clássica “é eficiente do ponto de vistanarrativo, mas não do ponto de vista da fi-delidade à percepção natural.” Bazin parte“sempre da hipótese de que nossa experiên-cia natural corresponde à percepção contínuade uma realidade também contínua e sem la-cunas. Esta hipótese é decisiva no seu es-quema, uma vez que toda a sua perspectivaestética pode ser sintetizada numa regra fun-damental que define as condições necessá-rias e suficientes para o realismo no cinema:um espaço ‘à imagem do real’ (tridimensio-nal, contínuo, lugar de factos aparentementenaturais) é ‘captado’ pela câmara de modo aque se respeite a sua integridade e de modo aque a imagem projectada na tela forneça umaexperiência deste espaço que é equivalente àexperiência sensível que temos diante da re-alidade bruta. Esta equivalência será obtidaquando os meios especificamente cinemato-gráficos estiverem mobilizados, não apenaspara reproduzir uma certa lógica ‘natural’,mas para reproduzir ‘certos dados psicológi-cos ou mentais da percepção natural”’ [Xa-vier, 1977: 72-73].

Perante a evidência de ninguém fazer umfilme inteiro num só plano, Bazin é forçado aadmitir que a montagem tem de continuar aexistir, mas apenas residualmente, sem ins-tituir nenhuma relação essencial, nenhuma

significação. Isto significa, porém, que assuas posições já não podem reclamar umestatuto ontológico ou epistemológico; são,isso sim, uma aspiração estética e ética, umaestilística, que seria mais legítima se se apre-sentasse como tal. O que desde logo põe emcausa esta fundamentação ontológica do ci-nema num registo fotográfico é que apenaspodemos recorrer mais ou menos aos planos-sequência, mais ou menos longos; mas ofilme, no seu conjunto, terá sempre de re-correr à montagem de vários desses planos.De modo que, como já nos anos 20 defen-dia Eisenstein [cit. in Henderson, 1971: 82,86], ainda que os fragmentos do filme se fun-dam com a realidade, sejam “fragmentos derealidade”, a identidade dos fragmentos dofilme com a realidade é inviável: este vínculoé “dissolvido quando o fragmento se com-bina com outros fragmentos nas sequênciasde montagem”, dando-se uma alteração qua-litativa do fragmento: “o resultado distingue-se qualitativamente de cada elemento com-ponente visto em separado”. Essa altera-ção qualitativa, evidentemente, não preocu-pava Eisenstein, que via nela, precisamente,a possibilidade de o cinema ser Arte, pelamontagem: “definir desta forma a arte ci-nematográfica implica a rejeição dos frag-mentos não montados do filme, aquilo a quepoderíamos chamar plano-sequência, comonão sendo arte; é precisamente o que faz Ei-senstein”, que considera o plano-sequênciacomo pertencente “ao período préhistóriconos filmes” e um “conceito totalmente anti-fílmico” [Henderson, 1971: 80].

Querendo defender uma posição contrá-ria, mas sem poder assentar numa análise,que invalidaria a carga ontológica que pre-tende dar aos seus argumentos e o obrigariaa apresentá-los como uma outra estilística,

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um outro jogo de linguagem, Bazin conse-gue defender as suas posições com veemên-cia e interesse, mas com muitas fragilidadese inconsistências: em muitos aspectos, a suaobra é mais um exorcismo do que uma teoria.Como nota Xavier [1977: 73-77], “em vezde se dirigir ao exame da percepção comoactividade e ao exame das condições e impli-cações presentes nesta actividade – o que le-varia Bazin na direcção de uma autêntica fe-nomenologia –, ele pressupõe razoavelmenteconhecida sua natureza (dentro do modelo dacontemplação) e concentra seus esforços naexpulsão de qualquer actividade estranha aela.” Enquanto Arnheim, por exemplo, logoem 1932 tinha feito “uma descrição de cer-tas diferenças de imediato dadas na configu-ração da imagem projectada na tela (superfí-cie plana, os limites do quadro, a escolha doponto de vista, a descontinuidade instituídapela montagem)”, “a estética realista de Ba-zin julga-se auto-definida sem que haja mai-ores explicitações sobre o elemento chavepor onde começam as discussões neste ter-reno: a noção de realidade. As coisas ‘estãoaí’, disponíveis para a nossa percepção; elasduram e sua existência tem seus mistérios”,e basta. Nesse sentido, o seu “realismo es-tético não é a expressão de um pensamento,mas um exercício do olhar. (. . . ) O que im-porta é a manifestação de um estilo de câ-mara, de uma nova narração”, seja em Wel-les, em Wyler ou nos neo-realistas.

Os pressupostos físicos em que a teoriade Bazin assenta são muito mais discutíveisdo que aquilo que ele está disposto a dis-cutir. Desde a ideia da percepção naturalcontínua que existiria no quotidiano, comose percebessemos o mundo sem montagem,como fragmentos que não remetem para re-lações e significados, até à ideia absoluta-

mente literal da reprodução que seria feitapela imagem fotográfica, como se não exis-tisse, por exemplo, uma lente na captação etoda uma parte de técnica, e uma parte deconvenção, nessa reprodução. Já em 1936 [p.31], Walter Benjamin tinha analisado commuito mais atenção a complexidade dessa re-produção: “a aparelhagem, no estúdio, pene-trou tão profundamente a própria realidadeque, para lhe restituir a pureza, para a despo-jar desse corpo estranho que a aparelhagemconstitui, é preciso recorrer a um conjunto deprocedimentos específicos: variação dos ân-gulos de filmagem, montagem que reúna vá-rias sequências de imagens do mesmo tipo.Despojada de tudo o que a aparelhagem lheacrescentou, a realidade torna-se aqui a maisartificial de todas, e, no mundo da técnica, acaptação imediata da realidade enquanto talnão passa de uma ingenuidade”.8

Aliás, como lembra Bonitzer [1982: 121,124], o que torna ainda mais inviável a po-sição de tipo baziniano é que, mesmo noplano-sequência, há sempre montagem, por-que “o lugar da própria câmara no campo,uma vez que recorta de modo interessado umpedaço do espaço visual, é já uma monta-gem” – tal como a profundidade de campo éjá uma organização dos planos na rodagem.Por isso, diz Bonitzer, na fórmula de Ros-sellini “há toda uma batota histérica: a miseen scène esforçando-se por mimar o espectá-

8Ingenuidade que faz lembrar aquela história emque um cliente protestava com Picasso porque o qua-dro da sua mulher, que este pintara, não se pareciacom ela. Picasso perguntou então como era realmentea mulher do senhor, e este imediatamente tirou a car-teira do bolso e mostrou furiosamente uma fotogra-fia da mulher; ao que Picasso retorquiu: “ah, não melembrava que era assim tão pequenina. . . ”

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culo passivo, aplicando-se gentilmente à re-alidade nua.” O próprio Bazin não podia dei-xar de conhecer os múltiplos aspectos do ar-tifício cinematográfico; ele queria era fundaruma ontologia que, em vez de partir dessesaspectos, os ignorasse. Nas suas próprias pa-lavras [1960: 124], “é preciso, para a plenarealização estética do empreendimento, quepossamos acreditar na realidade dos aconte-cimentos, embora saibamos que são truca-dos”. Da mesma maneira, Bazin [1960:128]estava consciente de que, ao contrário da pin-tura, que é “centrípeta”, a imagem do cinemaé “centrífuga”, isto é, os seus fragmentos vi-vem de uma relação extrínseca com um es-paço exterior, off (aspecto que Noel Burch[1969] irá desenvolver), que não é fotografi-camente reproduzido. Não é por acaso que,como vimos, Bazin acaba por centrar muitada sua argumentação nas vantagens de op-tar, tanto quanto possível, pelo respeito pelotempo concreto das acções filmadas: é que,ao contrário do que queria fazer querer a pro-fissão de fé na imagem (em que claramenteassenta esta ontologia fotográfica), o espaçodo ecrã de cinema, evidentemente, nunca re-produz o espaço real; só o tempo pode serrespeitado, e mesmo assim apenas em partesdo filme, mais ou menos longas.

Em 1965, escassos anos depois da obramagna de Bazin, surge Theory of Film,de Siegfried Kracauer, um alemão exiladonos Estados Unidos, que também pugna porum cinema aideológico e não naturalista, aque Xavier [1977:55-59] chama “empirista”.Mas Kracauer parte de um novo argumento:o fim das ideologias. “A primeira de suas hi-póteses, de nível mais geral, é fornecida pelasua visão da sociedade e da cultura contem-porâneas, a seu ver, dominadas pelo que elechama de ‘desintegração ideológica’. (. . . )

A queda dos antigos credos é apontada porele como correlata à expansão da ciência,cuja legitimidade reconhece e aplaude” masque coloca grandes desafios, “concentradosem torno de duas questões básicas: a da im-possibilidade de uma visão integrada do uni-verso (. . . ) e a da crescente abstracção que oconhecimento científico acarreta (. . . ) ParaKracauer, imerso num oceano de instrumen-tos sofisticados e representações generaliza-das, o homem teria se desengajado da rea-lidade concreta. – como instância privilegi-ada da resposta a estes desafios que o cinemaserá abordado. Em princípio, será funçãonão só do cinema mas da arte em geral, pro-duzir experiências aptas a fornecer o retornoao mundo concreto, a provocar a reactivaçãoda percepção directa e vivida dos eventos.(. . . ) No caso específico do cinema, esta mis-são fundamental adquire importância maiorem função das próprias características desteveículo. Aqui, entra em cena a admissão da‘essência realista’ do processo cinematográ-fico como técnica de reprodução.”

Xavier sublinha a necessidade de anali-sar que tipo de realismo qualifica esta pers-pectiva ontológica: o que permite, no casode Kracauer, “qualificar seu realismo de em-pirista são três aspectos articulados, que sedestacam em sua formação:

– (1) a revelação cinematográfica corres-ponde a uma leitura do ‘livro da natureza’; arealidade penetrada é, em princípio, o tecidodos fenómenos físicos, inclusive nos domí-nios inacessíveis ao olho natural (. . . )

– (2) este nível, natureza física, consti-tui o nível substancial do mundo que noscerca: ele não simbolizaria nenhuma reali-dade transcendente. Em relação ao seu co-nhecimento, os homens estariam agora numaposição privilegiada, pois a desintegração

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das ideologias e a ausência de preconceitosoriundos destas ideologias estaria abrindoespaço para um corpo a corpo directo coma natureza (. . . ).

Combinando (1) e (2), emerge um cinemaredentor: ‘O cinema torna visível aquilo quenão víamos – e talvez nem pudéssemos ver –antes do seu advento. Ele efectivamente nosajuda na descoberta do mundo material comsuas correspondências psicofísicas. Literal-mente, redimimos este mundo da sua inér-cia, de sua virtual não existência, quandologramos experimentá-lo através da câmara.E estamos livres para experimentá-lo porqueestamos fragmentados. O cinema pode serdefinido como o meio particularmente equi-pado para promover a redenção da realidadefísica.”’

– (3) “a noção de experiência – básicana sua própria concepção do papel da artenum mundo dominado pela ciência – reapa-rece como núcleo e limite da verdade hu-mana a ser revelada pelo testemunho do ci-nema. (. . . ) Dentro do fluxo da vida, emseus horizontes indeterminados, o apreensí-vel é a experiência do momento singular edo ‘pequeno facto’, a observação directa dasacções elementares que definem o homemem sua relação com o ambiente. (. . . ) Nãosurpreende que Kracauer seja categórico naafirmação da incompatibilidade radical entrea tragédia (no sentido clássico) e aquilo queele chama de abordagem cinematográfica darealidade. A concepções de um cosmo orde-nado e finito, de uma realidade plena de sen-tido, que emerge da representação clássica,não teria lugar na tela, pois o filme constituium fluxo de acontecimentos aleatórios queenvolvem homens e objectos, captando umamodalidade de existência imersa num uni-verso infinito e contingente. No limite, a pro-

posta de Kracauer implica na extensão de talincompatibilidade a qualquer representaçãodo mundo como totalidade organizada.”

“Dentro desta moldura ideológica de Kra-cauer”, continua Xavier, “as regras gerais dobom cinema estarão bastante afinadas como sistema da montagem invisível e da re-presentação natural que caracteriza a decu-pagem clássica. No seu esquema, a mon-tagem não é nada além do que uma ‘rotade passagem’ (. . . ). Seus pontos de atritocom Hollywood serão o aparato convencio-nal e a manipulação que caracteriza a produ-ção industrial. Em oposição à realidade fa-bricada”, Kracauer prefere “a afinidade comos espaços abertos e não compostos, a afi-nidade com o não encenado, com o fortuito,com o sem fim, com o indeterminado” (comoBazin, que no entanto estendia a sua críticaà découpage clássica). Neste aspecto, é pos-sível aproximar Kracauer e o neo-realismo,que ele elogiava “como um dos modelos dobom cinema em oposição a propostas não re-alistas de vanguarda e a certos géneros con-vencionais típicos a Hollywood.” Mas note-se que, no caso do neo-realismo, nomeada-mente no contexto do pós-guerra italiano,não se tratava apenas da redenção da reali-dade física, mas sim da realidade humana,fosse esse humanismo de pendor mais mar-xista ou mais cristão; era uma denúncia domundo industrial capitalista que, embora nãoesteja fora do horizonte teórico de outros tex-tos de Kracauer, amigo de Adorno, já nãosurge quando ele, no exílio americano, es-creve Theory of Film: tal como em Bazin,“a concepção que Kracauer tem da fotogra-fia estabelece uma camisa de força a envol-ver o seu olhar dirigido aos filmes e não ve-mos aqui o crítico da cultura mais lúcido eaberto”; “sua aceitação enfática da ‘verdade’

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inerente à técnica o enreda no ‘ilusionismo’num momento em que a discussão teórica jáatingira maior complexidade, seja na refle-xão sobre a ‘impressão de realidade’ feita pe-los fenomenólogos franceses, seja na críticaao naturalismo feita por diferentes cineastas,notadamente Eisenstein.”

Além disso, a perspectiva de Kracauer,como aliás a de Bazin, cinge-se às questõesda reprodução do real, sem considerar a cri-ação de real que é feita no filme – sobre-tudo, mas não exclusivamente, no filme aque explicitamente se chama de ficção. Ouseja, falta nesta discussão aquilo a que, logono início dos anos 70, se começou a cha-mar a diferença entre o efeito de realidadee o efeito de real. “Tomando por base atradição da pintura figurativa ocidental e osseus códigos de representação,9 Jean Pierre-Oudart [1971: 19-26] fez a distinção entreefeito de realidade, como produto de umatecnologia e da utilização dos seus códigospictóricos específicos (a perspectiva artifici-alis, por exemplo) e efeito de real, que per-mite a transformação da representação emficção, pela inscrição, na própria economiafigurativa da representação, de um lugar des-tinado a ser ocupado pelo espectador. No pri-meiro caso, o que está em causa é, principal-mente, a natureza geométrica da imagem, nosegundo, a sua eficácia cénica e dramática”[Grilo, 1993: 34]. Esta diferença já estava,aliás, muito bem tratada (embora sem utili-zar as expressões efeito de realidade e efeitode real, era da passagem de uma à outra que

9E na sequência, aliás, do trabalho de Michel Fou-cault sobre “As meninas”, de Velasquez, como tam-bém lembra João Mário Grilo em “As imagens deMorel”, Revista de Comunicação e Linguagens, n.o

4, Dezembro de 1986, pp. 77-80.

se tratava) num artigo de 1965 em que Ch-ristian Metz [pp. 22-23] sublinhou a impor-tância de distinguir “entre dois problemas di-ferentes: de um lado, a impressão de reali-dade provocada pela diegese, pelo universoficional, pelo ‘representado’ próprio de cadaarte; e, de outro lado, a realidade do mate-rial empregue em cada arte para os fins darepresentação; de um lado, é a impressão derealidade, do outro a percepção da realidade,isto é, todo o problemas dos índices de reali-dade incluídos no material de que cada umadas artes da representação dispõe. (. . . ) Naverdade, a questão é mais que há um pontoóptimo, representado pelo cinema, aquém oualém do qual a impressão de realidade pro-duzida pela ficção tem tendência a decrescer.Além, temos o teatro, em que um materialdemasiado real faz fugir a ficção; aquém, te-mos a fotografia e a pintura realista, em queum material demasiado pobre em chamadasà realidade acaba por já não ter força sufici-ente para sustentar e constituir um universodiegético. (. . . ) Entre esses dois escolhos, ocinema encontra um equilíbrio precioso: trazconsigo suficientes elementos de realidade –respeito textual dos contornos gráficos e so-bretudo presença real do movimento – paranos dar sobre o universo da diegese uma in-formação rica e variada, que o material da fo-tografia ou o da pintura não autorizam; mas,tal como a fotografia e como a pintura, elepermanece feito de imagens: a percepção doespectador trata-o como tal e nunca o con-funde com um espectáculo real”. Assim, “aporção de realidade que está disponível paraa ficção é mais forte no cinema do que no te-atro. Em suma, o segredo do cinema é con-seguir meter muitos índices de realidade nasimagens, as quais, assim enriquecidas, conti-nuam no entanto a ser percebidas como ima-

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gens. Imagens pobres não alimentam sufi-cientemente o imaginário para que ele ganherealidade. Inversamente, a simulação de umafábula por meios tão ricos como o real, por-que reais – é o caso do teatro – arrisca-sesempre a surgir como a simulação demasi-ado real de um imaginário sem realidade.”

Entretanto, entre a publicação de Bazin ea de Kracauer, já Jean Mitry dera à estampaEstética e Psicologia do Cinema, de que em1963 saiu o primeiro volume e, em 1965, osegundo. Aí, como sintetiza Xavier [1977:77-78], “num primeiro momento de seu dis-curso, emerge uma crítica radical às cren-ças de Bazin. Mitry quer repor a fenome-nologia em seu devido lugar.” “Buscandosuas bases nas fenomenologias de Husserl,Merleau-Ponty ou Sartre, ou na filosofia da‘duração’ de Henri Bergson, ou nas formula-ções mais modernas no campo da lógica, Mi-try reúne ecleticamente tudo o que é possívelpara, no fundo, esboçar uma nova filosofia.(. . . ) E esta se traduz numa idéia do cinemaque fica a meio caminho entre o realismo re-velatório de Bazin (cinema amarrado ao realque ele duplica) e o cinema-discurso do se-miólogo (cinema francamente irreal porquediscurso inscrito nas convenções das váriaslinguagens nele presentes). A fórmula deMitry será: no cinema o real se organiza emdiscurso.” E, nessa transformação, inevita-velmente, “algo se acrescenta (uma intenci-onalidade) e algo se perde” (do real não me-diado).

Assim, com uma perspectiva mais com-plexa, que não renega a linguagem, Mitryinflecte o pensamento de Bazin no sentidodos neo-realistas ou, mesmo, no do rea-lismo crítico, juntando a materialidade resul-tante do registo cinematográfico com o re-conhecimento e defesa da produção de no-

vos significados no discurso fílmico. No di-zer de Xavier [1995: 78-79], “a imagem deMitry carrega consigo a presença das coi-sas e tem como missão fundamental mos-trar um ‘aspecto do mundo’, tornar presen-tes os objectos como produto de um ‘olhar’que define um ‘campo’ e uma ‘intenciona-lidade’. A realidade da tela é, à diferençado mundo real, orientada (tendente a realizaruma finalidade). Nela, a presença das coi-sas marca uma certa necessidade e o frag-mento do mundo natural apresentado é ins-crito num novo espaço-tempo”: “a monta-gem, justamente com as características pró-prias do enquadramento (ponto de vista, li-mites do quadro), é responsável por aquiloque Mitry chama reforma dos elementos re-ais dados. (. . . ) Mitry dirá que, no cinema,o real torna-se elemento da sua própria afa-bulação. ‘O tempo do romance é construídocom palavras. No cinema, é construído comfactos. O romance suscita um mundo, en-quanto que o filme coloca-nos em presençade um mundo que ele organiza conformeuma certa continuidade. O romance é umanarração que se organiza em mundo, o filmeé um mundo que se organiza em narração”’.

Repare-se que Mitry “continua a usar a ex-pressão ‘cinema = arte do real’, admitindoa presença de uma ponte essencial que ligatal imaginário à realidade. Daí a utilizaçãoda ideia de reforma e não da ideia de cons-trução: o imaginário é composto por vários‘tijolos’ extraídos do real, e estes, na novaordem, não perdem o seu peso de ‘coisi-dade’. Tal ponte com o real fica mais evi-dente quando Mitry, enfaticamente, promoveum ataque a qualquer construção franca-mente artificial apta a denunciar a não natu-ralidade do material visado pela câmara. Elevai combater o expressionismo (preestiliza-

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ção dos cenários e uso ostensivo de pinturas),Eisenstein (metáforas impostas ao mundo di-egético, o uso simbólico de objectos, monta-gem intelectual seguindo uma ideia e não osfactos) e Bergman (cujos símbolos artificiaisse misturam arbitrariamnete aos factos).”

Outras vezes, Mitry admite a existênciade dois cinemas (sendo clara qual a suapreferência, embora nunca assumida comomera preferência entre dois cinemas possí-veis, tal o essencialismo que tem caracteri-zado grande parte da teoria do cinema):“umcinema realista fiel à imanência, às coisasque existem, aberto, captando o mundo con-tingente – o aqui e agora –, o ser situado quevive diante da câmara. E um cinema irre-alista, em busca de essências, que procuralibertar-se do contingente e procurar verda-des atemporais. Este último seria o lugar daobra fechada, cuja harmonia e perfeição esta-riam vinculadas à constituição de um espaçodramático semelhante ao teatral. O cinemarealista seria, tal como o cinema contempo-râneo (em torno de 60), o lugar da desdra-matização, da perda de perfeição e o lugarda informidade. Um cinema capaz de se sur-preender com as coisas, onde o acaso se insi-nua e o desenvolvimento lógico e coerente éabandonado em nome de uma maior ‘auten-ticidade’ e de um maior ‘realismo’ ao mos-trar o instante, o momento vivido” [Xavier,1995: 78-79].

O facto de, já em 1963, a ideia de re-alidade no cinema ser integrada por Mitrynuma complexa concepção de cinema comoconstrução e linguagem não significa quedeixem de surgir esforços de recuperação dasteorias em que o cinema só pode ser visto, demodo essencialista, a partir da relação privi-legiada com o real. – o caso bem recente daobra do australiano Gregory Currie [1995],

que não hesita em recuperar obsessivamenteas ideias de objectividade e de real, ao arre-pio do melhor pensamento contemporâneo,dentro e fora do cinema: “a teoria corrente,– escreve Currie, – baseia-se numa séria in-compreensão do medium cinema e dos seusefeitos em quem vê. As raízes dessa incom-preensão remontam aos primeiros escritorescomo Munsterberg, que pensaram que o ci-nema era preeminentemente um medium desubjectividade. Esse erro está hoje tão for-temente entrincheirado na teoria do cinemacomo em qualquer outra época. Podia tersido de outra maneira; a obra de Bazin con-tinha em si as sementes de uma perspectivamelhor. Mas o ‘realismo’ de Bazin era exa-gerado, e a reacção a ele era inevitável.” Cur-rie propõe-se regressar a ele, com mais nu-ances e sobretudo com novos fundamentos.Declara [1995: xxiii-xxiv, xvi, 283] devermuito, “pelo menos em espírito, à linguísticade Chomsky, e nada à de Saussure; muito àfilosofia contemporânea da mente e à ciênciacognitiva, e muito pouco a Freud e aos seusseguidores. Mas a influência mais forte nestetrabalho é essa preocupação quase obsessivacom o realismo que tanto distingue o melhorda filosofia australiana.”

Tal obsessão leva-o a eleger dois grandesinimigos que, ao conceberem o cinema comoconstrução simbólica, se afastam da objecti-vidade: a filosofia da linguagem e a psica-nálise. Defendendo aquilo a que chama um“realismo perceptivo”, Currie insiste “que osfilmes em geral, e as imagens cinematográfi-cas em particular, são em aspectos significa-tivos como as coisas que representam” (ape-sar de não serem iguais a essas coisas, comoquer a “transparência”, caso particular das“teses da apresentação”, que no entanto Cur-rie combate muito menos do que as ideias

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de “ilusão”). Currie rejeita que exista “algode fundamental em comum entre as imagense a linguagem”, e propõe o regresso à pers-pectiva “fora de moda de que, enquanto aspalavras operam por convenção, as imagensoperam por semelhança. Na perspectiva se-miótica, todas as representações são conven-cionais, e a ideia de que as imagens possamnalgum sentido ser como as coisas que re-presentam é parte de uma obscurantista ide-ologia do realismo. Esta suposição (. . . ) temlargo apoio na comunidade intelectual. Umaversão dela foi defendida por Nelson Good-man, e há pistas dela no trabalho do histo-riador de arte Ernst Gombrich e no psicó-logo perceptivo Richard Gregory, cujas pers-pectivas se relacionam com a ideia de KarlPopper de que as percepções são ‘hipóte-ses’.” Preferindo ignorar que se trata de maisdo que pistas soltas, quer na teoria das ar-tes (visuais ou não visuais), quer na própriateoria das ciências (conforme procurei sin-tetizar em 1996: 28-29, 69-81 e 179-193),Currie [1995: xvi, 281, 282] lamenta a ca-pacidade que a “suposição semiótica” temtido para “persistir, particularmente nos estu-dos cinematográficos”. E procura contrapor-lhe uma alternativa, adequada pelo menosao caso do cinema (que ele precisa, para oefeito, de conceber como medium predomi-nantemente visual e pictórico): defende queas imagens do cinema “são tipicamente ima-gens realistas: imagens que são, de modossignificativos, como as coisas que represen-tam. E é em parte em virtude da sua seme-lhança com essas coisas que nós podemos re-conhecer o conteúdo descritivo dessas ima-gens. Por essa razão o cinema não é um me-dium linguístico, nem é, em qualquer sentidointeressante, como um medium linguístico.”

O próprio Currie acrescenta logo algumas

reservas à sua posição: “é importante não secriar aqui uma falsa dicotomia entre aque-les que pensam que os trabalhos nos mediapictóricos podem ser inteiramente compre-endidos em termos de aptidões perceptivasuniversais em toda a humanidade e aquelesque pensam que as imagens requerem umacto de interpretação que de modo algum ga-rante o mesmo resultado para todas as pes-soas. Se as imagens fazem apelo a aptidõesperceptivas básicas que são vastamente par-tilhadas nas comunidades e, segundo creio,até certo ponto são partilhadas por váriasespécies, há ainda assim uma boa quanti-dade de trabalho interpretativo para ser feitoquando as aptidões perceptivas são desen-volvidas”; pelo que existem “alguns aspec-tos comuns e fundamentais entre a interpre-tação de obras linguisticamente codificadase a interpretação do cinema ou de outros me-dia pictóricos, apesar da existência do golfonatureza/convenção que os divide” – mas, aoreiterar esse golfo, remete tal reserva para ainsignificância e coloca claramente o cinemado lado da. . . natureza!

A partir daqui, Currie [1995: xiv-xv] pro-cura também encontrar uma alternativa ob-jectivante para a psicanálise: “os teóricos docinema compreenderam mal a relação entreas ordens simbólica e pictórica, e não conse-guiram produzir uma psicologia plausível daexperiência do cinema.” “E quando a ênfaseda teoria do cinema se deslocou da linguís-tica pura e dura para a psicanálise, o ímpetopara este movimento parece não ter vindo deuma rejeição do modelo linguístico, mas simda ideia de que os modelos psicanalíticos sãoeles próprios como a linguagem” (aqui a bêtenoire é Lacan e a sua ideia do inconsciente“estruturado como uma linguagem”). Currierejeita “que a psicanálise, ou alguma versão

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dela, seja correcta, e que seja capaz de ilu-minar a nossa experiência do cinema. Acon-tece que eu não acredito nisso, porque acre-dito que a psicanálise é falsa, não apenas nosentido de ter umas quantas coisas erradas,como a teoria da relatividade provavelmentetem, mas no sentido de ser selvatica, pro-funda e irrecuperavelmente falsa, como é afísica de Aristóteles. (. . . ) – claro que a ex-periência do cinema, como qualquer outra,é assunto para a investigação psicológica, enão pode ser entendida em termos filosófi-cos a priori. Mas a psicologia de que preci-samos não é a psicanálise – sobretudo não éa versão de Lacan (. . . ). A psicologia empí-rica contemporânea e os filósofos da lingua-gem e da mente encontraram um modo deconjugar os seus recursos no projecto cha-mado ciência cognitiva. O objectivo é cons-truir modelos plausíveis da mente e das suasfunções, mais pormenorizados e específicosdo que os filósofos por si sós poderiam con-ceber, e mais flexíveis e abstractos do que aneuropsicologia por si só poderia gerar. Emcontraste com o programa psicanalítico, a ci-ência cognitiva combina uma argumentaçãoclara e rigorosa e um compromisso com ospadrões mais exigentes de testabilidade em-pírica que podemos conceber”. Não creio,porém, que exista na própria psicologia cog-nitivista contemporânea qualquer possibili-dade de sustentar um objectivismo como ode Currie: pelo contrário, os modernos cog-nitivistas dedicam-se a factores que o “rea-lista australiano” proibiria como subjectivos,tais como a construção, a narrativa, a metá-fora, o inconsciente. . .10

10Há mesmo quem defenda que esse era o objec-tivo inicial da revolução cognitiva. Jerome Bruner[1990: 2] define a viragem cognitiva de final dos anos50 como um “esforço para instalar o sentido como

Há mais de 20 anos, o cineasta Ro-bert Bresson [1975: 139], nalguns aspectospróximo da concepção baziniana, estava jámuito mais consciente do que se perde dereal ao captá-lo com as máquinas e organizá-lo em discurso, e do que é preciso ganhar emestrutura cinematográfica; por isso advertepara a necessidade de “ser escrupuloso. Re-jeitar tudo aquilo que do real não se tornaverdadeiro. (A horrível realidade do falso).”Bresson enuncia assim o dilema: “Fazer vero que tu vês por intermédio de uma máquinaque não vê como tu vês. E fazer ouvir oque tu ouves por intermédio de outra má-quina que não ouve como tu ouves.” Em con-sequência, Bresson distingue entre “duas es-pécies de real: 1.o) O real bruto registado talqual pela câmara; 2.o) O que nós chamamosreal e que vemos deformado pela nossa me-mória e os falsos cálculos.” Bresson prefereo primeiro: “o teu génio não está na contra-facção da natureza (actores, cenários), masna tua maneira pessoal de escolher e coorde-nar os pedaços a ela tomados directamentepelas máquinas.” Tem, no entanto, consciên-cia de que esse real é difícil de preservar ede fazer funcionar cinematograficamente: “oreal chegado ao espírito já não é o real. Onosso olhar é demasiado pensativo, demasi-ado inteligente.”

conceito central da psicologia – não estímulos e res-postas, não o comportamento abertamente observá-vel, não as pulsões biológicas e a sua transformação,mas o sentido. Não era uma revolução contra o beha-viorismo com o objectivo de o transformar num modomelhor de fazer psicologia pela adição, ao behavio-rismo, de um pouco de mentalismo. (. . . ) Era umarevolução absolutamente mais profunda do que isso.(. . . ) O seu objectivo era levar a psicologia a juntarforças com as suas irmãs, as disciplinas interpretati-vas nas humanidades e nas questões sociais”.

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Assim, o que podemos é apenas ir vercomo os cineastas se situam nessa tensãoproblemática, trabalhando mais sobre a mon-tagem ou mais sobre os planos-sequênciae, consequentemente, como resolvem (ouacentuam) os problemas levantados pelo quetem sido chamado a sutura dos vários ele-mentos, entendida, por autores como Oudartou Dayan, enquanto processo simbólico demontagem dos fragmentos de modo a as-segurar ao discurso uma continuidade, cujaclássica eficácia, lembra Metz, consiste pre-cisamente em apagar as marcas da enunci-ação e disfarçar-se em história.11 Não sepense, porém, que maior montagem implicasempre maior sutura, porque esta pretende-se imperceptível e a montagem pode ser as-sumida: justamente, “ao cinema da sutura,que desde Griffith se foi impondo como ocódigo matriz do cinema espectáculo, opôsEisenstein o cinema da ruptura fundado nadescontinuidade dos cortes de montagem, nacolisão entre os planos, na heterogeneidadeespacio-temporal” [Geada, 1985:13]. A pla-nificação clássica, pelo contrário, procura ra-surar incessantemente as pegadas dos seuspróprios passos, da montagem que efectuou;por isso alguns disseram que a narração clás-sica de Hollywood tem um estilo transpa-rente e ilusionista; No‘l Burch chamou-lhe“o estilo de grau zero do acto de filmar”.Bordwell, Staiger e Thompson [1985, sobre-tudo pp. 24-41 e 174-193] chamam a aten-

11A partir de Benveniste, Christian Metz [1977]distingue entre o modo histórico, em que o filme nãonos olha, e o modo discursivo, quando nos olha. TantoBordwell [1985: 21-26] como Carroll [1988b: 152]criticam essa apropriação-distorção das categorias deBenveniste, feita por Metz e, de maneiras muito di-versas, por outros autores.

ção para o perigo de a pensar como “narra-ção invisível”, e preferem falar em “narraçãomodesta”, porque essa invisibilidade é cons-truída, como muito bem mostram, através deprocedimentos como a causalidade e a moti-vação através das personagens, como se fos-sem os impulsos e acções das personagensque encadeassem a narração sem interven-ção de um narrador, que só aparece, com al-gum grau de auto-referencialidade e omnis-ciência, no início e no final do filme – ou en-tão, mais sistematicamente, em certos géne-ros específicos, como o filme de mistério.

Todos estes desenvolvimentos da teoria docinema obrigam a colocar de outra forma osproblemas pensados pelas perspectivas on-tológicas, ainda que se reconheça pertinên-cia, não digo à necessidade, mas à possibi-lidade de defender um tipo de cinema quequeira aproveitar a relação ambígua que estemedium tem com a captação do real e queprocure potenciá-la através, por exemplo, deuma coincidência entre o tempo fílmico e otempo real, sabendo embora que isso só podeser feito na duração de um plano. A questãodo real tal como Bazin a coloca é, porém,sem solução: quando muito, a manipulaçãofeita pelo cinema pode tornar-se mais visívelou mais invisível – mas, ainda assim, haverásempre uma parte de visível na manipulaçãoque se queira invisível, e uma parte de invisí-vel na manipulação que pretende ser visí-vel.A manutenção de uma fundamentação onto-lógica global de tipo baziniano, como argu-menta Henderson [1971: 90 e 94], manteria“o cinema num estado de infância” (o pró-prio Bazin defende que o plano-sequência“serve para manter o cinema numa espéciede infância ou adolescência, sempre depen-dente do real, ou seja, de uma outra ordemque não a sua”); ora, argumenta Henderson,

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“já não relacionamos uma pintura de Picassocom os objectos que ele usava como modelosnem mesmo uma pintura de Constable com asua paisagem original. Por que razão é que aarte do cinema é diferente?”

E o facto é que, conclui Bonitzer[1982:130-132], “todo o cinema parece ter-se voltado, em 1968, para a questão da pro-dução das imagens. Ë fórmula de Rosse-lini responde a de Godard: ce n’est pas uneimage juste, c’est juste une image. Tudose passa então como se as coisas, a reali-dade, e a crença que elas implicam, fossemsubitamente evacuadas em proveito de umainterrogação sobre a imagem, sobre as ‘re-lações de produção’ da imagem. A ima-gem godardiana já não é (se é que algumavez o foi) transparente em relação às coi-sas, ela opacifica-se e simplifica-se perigo-samente para já só se significar a si própria.”(O mesmo se podia, aliás, dizer em relaçãoao som, de que Bonitzer não trata.) E istonão aconteceu por acaso. Em grande parte, oque se passou foi que se percebeu ao que po-dia conduzir o realismo nos filmes televisi-vos ou seus aparentados. Creio também quea introdução da cor foi importante: é muitocurioso como o realismo ontológico, emboraassente no mimetismo fotográfico, pareciaser defensável enquanto esse mimetismo nãoera completo, isto é, quando a imagem estili-zava a realidade num preto-e-branco, mas setornou suspeito de não artístico nem ontoló-gico quando se conseguiu reproduzir a cor.

Assim, e regressando a Bonitzer, “a Nou-velle Vague começou por definir-se pelo rea-lismo dos seus temas e da sua linguagem, emoposição ao artifício dos mots d’auteur, dasintrigas, do jogo e da realização afectadosda ‘qualidade francesa’. Mas rapidamente, egraças sobretudo a Godard” (e em boa parte

por se perceber ao que podia conduzir o re-alismo nos filmes televisivos ou seus apa-rentados), “essa reivindicação de um cinemapreferencialmente em relação directa com avida (e por isso mais realista) transformou-se numa reivindicação da liberdade da es-crita, da libertação da mise en scène relativa-mente ao tema, ao guião, à própria realidade.Godard fez muito rapidamente esta viragem,desde o seu terceiro filme (A bout de soufflee Le petit soldat ainda continuam muito pró-ximos de um thriller clássico). O jogo das‘citações’ nos filmes da Nouvelle Vague im-plicava já, pelo menos virtualmente, um re-torno do cinema sobre si próprio, um assumirque o objecto já não era apenas a representa-ção da realidade, mas também a do própriocinema”.

Como escreve Hoberman [1991: 4],“vindo da Cinemateca francesa no fim dosanos 50, Jean-Luc Godard foi dos primeirosa compreender que o período do cinema clás-sico tinha terminado, ou – dizendo de outramaneira – a ler a história do cinema comoum texto. Esta perspectiva era comum no co-meço dos anos 60, particularmente nas gran-des cidades americanas, onde a televisão ofe-recia um quadro, colocando uma cinematecaem miniatura em cada sala de estar.” As-sim, diz ainda Bonitzer [1982: 131], o ci-nema depois de 1968, reagindo contra “o re-alismo nas suas formas cada vez mais trivi-ais, cada vez mais baixas” dos filmes e te-lefilmes naturalistas, “caracteriza-se por umperda de confiança nas virtudes do realismo,ou por uma constatação do seu esgotamento.Tudo se passa, no período recente, como se,ao contrário do que queria Bazin, o cinemamoderno caminhasse no sentido de um irrea-lismo cada vez mais patente, como se a ima-gem, desde Godard, se afirmasse resoluta-

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mente falsa.” O mesmo Godard que afirmaraser o cinema “a verdade vinte e quatro vezespor segundo” desenvolve rapidamente essaconcepção de verdade para longe do “rea-lismo” baziniano, a favor de um trabalho deinvestigação que não parte da verdade, masprocura chegar a ela através da provocaçãodo real e da linguagem.

As mais recentes aquisições da tecnologiado cinema vêm tornar ainda mais relativo orealismo que Bazin absolutizava: Wim Wen-ders, por exemplo, lembra em 1995 que, coma digitalização das imagens, a noção de “ver-dade” deixa de poder estar associada a umaimagem, e confessa que, enquanto no iníciodos anos oitenta ainda lhe era possível acre-ditar que o essencial do cinema era a ima-gem, hoje “já a imagem bela não é prova ougarantia seja do que for”.

Assim, para Yvette Biro [1982:15-17],“enquanto o primeiro período do cinemaera expansionista e procurava integrar novosmeios de expressão (som, cor, cinemascó-pio), o período de maturidade é caracterizadopor uma violência de síntese. Estes meiosde expressão já não servem para controlarse o filme é capaz de acolher novos fenó-menos da vida, se está suficientemente pertoda physis. O que está em jogo é mais im-portante: trata-se de saber se o cinema é su-ficientemente maduro para construir, a par-tir dos elementos de que dispõe, uma estru-tura orgânica e coerente, criando assim o seupróprio modo de expressão autónoma. En-quanto mediadora pura, a técnica cumpriua sua missão. Já não nos interrogamos so-bre a sua fiabilidade, nem sobre os seus su-cessos a transmitir os pormenores. Conhe-cemos a sua precisão e a sua omnipresença.Mas, nesta fase de evolução, o desejo de au-tenticidade, o desejo de ver o cinema reflec-

tir a vida, vê-se suplantado pelo acento tó-nico posto na diferença. A mimésis tinhadurado demais. Ora, como falar de autono-mia intelectual sem prestar nenhuma aten-ção a esta organização imanente? O inte-resse acrescido pela linguagem fílmica, pelasua estrutura, explica-se por esta pretensãoa uma independência interna. Alimenta-seda consciência que o cinema possui da suaautonomia, a qual rejeita tanto a tirania donaturalismo como a influência benéfica dasoutras artes. Neste sentido, podemos falarde uma segunda revolução do cinema” (Biroemprega esta expressão “por analogia coma segunda revolução industrial”, e consideracomo primeira revolução do cinema a desco-berta da técnica cinematográfica): “a partirde agora, a força expressiva da sua lingua-gem já não se realiza em certos pormenorestécnicos, mas no conjunto da estrutura, na or-dem das proporções e das relações internas.”“Este processo libertador coloca a interven-ção humana, a presença do realizador, acimade todos os outros factores da criação cine-matográfica. No mesmo movimento, a dú-vida e o questionamento obtiveram direito decidadania. Com efeito, o filme contemporâ-neo não é apenas uma visão pessoal; é tam-bém uma auto-reflexão, uma reflexão sobresi próprio, no decurso da qual a consciênciaque conhece examina as suas relações com oobjecto do conhecimento.”

De algum modo, como nota Hauser[1958:398-399], esta auto-reflexividade eperda de transparência é inerente ao desen-volvimento de qualquer arte. “Só uma artebastante nova poderá ser geralmente inteligí-vel sem ser necessariamente superficial; umaforma de arte mais altamente desenvolvidarequer para sua compreensão uma familiari-dade com fases anteriores que, embora subs-

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tituídas, deixaram os seus vestígios.” Assim,não admira que também no cinema se tenhadesenvolvido “um formalismo no qual as an-teriores unidades de forma e conteúdo, modoe objectivo de representação, meios visuaise tema narrativo, se perderam.” De algummodo, excepcional foi o primeiro período dasua história, em que, lembra Hauser, a lin-guagem do cinema pôde ser imediatamenteapreendida, mesmo pela geração mais idosa,“sem a mínima educação ou a mínima di-ficuldade. E é ainda, digamos, propriedadeintelectual comum, embora os modos de ex-pressão “fílmicos” – especialmente desde ainvenção do cinema sonoro e da sua apropri-ação indiscriminada das técnicas do palco –estejam gradualmente a decair e a ser restrin-gidos a determinados fins especiais, chama-dos “artísticos”. A próxima geração dificil-mente compreenderá todos os meios de ex-pressão que foram criados na época heróicado cinema, e a clivagem que em outros ramosda arte divide connaisseurs de leigos, serátambém evidente nos públicos do cinema.”

Aquilo a que pelo menos a parte do ci-nema que se continua a reivindicar como arteprocura aceder, como aliás é característicoda arte modernista e neo-modernista, é a umalinguagem que, mais do que sobre o “real”,toma como objecto de procura a sua pró-pria essência (dela, linguagem), – aceder àideia de cinema, como à de romance ou depintura12 – e a essência do “tempo”. Tar-

12“O que o vanguardismo trouxe de novo foi a ilu-são de que era possível aceder directamente à ideia de“pintura”, ou à ideia da “escrita”, ou à ideia da “mú-sica”, o que não admira, pois isso resultou de uma crí-tica radical de todos os motivos, de modo que o des-carnamento abstracto dologosestético ficou à mostra,e ele mesmo se esgaçou no enormismo vanguardista”– Bragança de Miranda, 1986: 27.

kovsky, por exemplo, afirma: “procuro se-guir o fluir do tempo no plano. . . A monta-gem junta, liga planos cheios de tempo e nãode noções.” Segundo Deleuze [1983 e 1985],o cinema passou da exploração do movi-mento para um trabalho sobre o tempo: nãoporque a imagem-tempo suprima a imagem-movimento, mas porque “inverte a relação desubordinação. Em vez de o tempo ser o nú-mero ou a medida do movimento, isto é, umarepresentação indirecta, o movimento não émais do que a consequência de uma apresen-tação directa do tempo”.

Justamente, a ideia de montagem, que,como mostrou Damisch a propósito dascomposições de Mondrian, remete aomesmo tempo para uma lógica aparente-mente decisional, dependente do sujeito,mas, paradoxalmente, não pode distinguir-sedo automatismo maquínico e combinatóriodos próprios materiais [cf. Miranda, 1986:26-27], e que no cinema vimos inicial-mente erigir-se em princípio estruturantevisando alcançar o choque revelador e oestatuto de arte, essa ideia de montagemvai complexificar-se e ligar-se à ideia detempo, mais do que à de real. Assim,escreve Bragança de Miranda [1986:28],“como mostra Adorno, a montagem apontapara uma resistência ao real não-belo,anunciando a sua superação, mas, parado-xalmente, pois ‘o princípio da montagem,enquanto acção contra a unidade orgânicaobtida subrepticiamente, estava fundado nochoque. Depois deste se ter suavizado, asmontagens tornam-se de novo uma matériaindiferente; o procedimento já não bastapara operar por contacto a comunicaçãoentre o estético e o extraestético, o inte-resse neutraliza-se em interesse históricocultural’ (Adorno, 1970: 178). Nem uma

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mera técnica, nem um transcendental daarte: o princípio da ‘montagem’ torna-seexplícito nas artes modernas, na pintura,mas também no cinema, ou na literatura.Mas segundo lógicas diferentes, pois elaprópria se divide intrinsecamente, podendoser uma agregação (arte moderna) ou umdispositivo (vanguarda), se é que não ébase mesmo da obra de arte, enquantocondensação pura (arte ‘pós-vanguardista’).Só neste último caso a composição se tornaelemento interno da obra. – o que mostraGilles Deleuze em relação ao cinema, masa sua ambição é muito maior: ‘le montage,c’est la composition, l’agencement desimages-mouvement comme constituant uneimage indirecte du temps’ (Deleuze, 1983:47); mas essa constituição é o resultadoimaterial da lógica composicional, umadeterminação do todo da obra de arte quepressupondo o todo onde se articulam asimagens, posicionam essa pressuposição notempo, mas apenas indirectamente, comoum produto. Se há ‘montagem’, isto nãoinvalida que ‘la seule généralité du montage,c’est qu’il met l’image cinematographiqueen rapport avec le temps conçu commel’ouvert’ (Deleuze, 1983: 82).”

O entrechoque destas várias questões eperspectivas no curto espaço da vida do ci-nema e da sua teoria, bem como a ascen-são e declínio da fundamentação do cinemano real, estão, evidentemente, bem paten-tes na ideia de documentário (e mesmo comuma certa antecipação cronológica em rela-ção às teorias do cinema). Leia-se a estepropósito o historial feito por José ManuelCosta no número 9 desta Revista [1989: 97-101]; aí se sublinha que o documentário nãodeve “ser identificado com o primeiro im-pulso do cinema, ou com o seu mais auto-

mático e inocente exercício. O documentá-rio foi uma invenção, e foi justamente umainvenção que reagiu aos extremos de mani-pulação em que o cinema caiu quando embusca da sua autonomia. O documentário-projecto nasceu quando o termo foi agarradopelos autores da língua inglesa em plena dé-cada de 20 face ao percurso da ficção e daarte para os terrenos mais fechados da mon-tagem. Quando nasceu, foi o contrário dainocência (já então impossível), foi o veículode um olhar, ou de um poder, que dirige acâmara sob regras próprias.” “O documen-tário teve um segundo e último momentumatravés do que, normalmente, se designa porcinema-verdade, ou cinema-directo, cujo ad-vento assentou na incorporação de nova tec-nologia – as câmaras e gravadores de somportáteis – a partir de 1958/60.” E tambémaqui se vai encontrar, como na ficção, umaevolução no sentido de um trabalho sobre otempo. “Na verdade, se há algo que me pa-rece essencialmente distinto entre a primeirae a segunda épocas fortes do documentário,esse algo, derivando embora directamente daincorporação do som síncrono, pode ser en-contrado na própria imagem e é a relaçãodesta com o tempo.”

3 A experiência do espectador

A segunda vertente da fenomenologia do ci-nema, isto é, a questão da experiência do es-pectador, surge, de algum modo, como alter-nativa e refutação da primeira; ou, mesmoquando, frequentemente, parte da incorpora-ção da realidade, transforma-a num efeito deilusão que leva o conceito de cinema paraum território completamente diferente. – as-sim que a encontramos, por exemplo, emBalázs, para quem o cinema “pode apresen-

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tar a realidade mas não tem nenhuma cone-xão imediata com ela. Precisamente porqueele a representa, está separado dela, não po-dendo ser a sua ‘continuação’. A conclu-são a que Balázs procura chegar é que a ja-nela cinematográfica, abrindo também paraum mundo, tende a subverter tal segregação(física), dados os recursos poderosos que ocinema apresenta para carregar o espectadorpara dentro da tela” [Xavier, 1977:16]. Umaargumentação como a de Bazin não tem emconta “o núcleo do problema: o mecanismode identificação. Este tem justamente seuprincipal reforço na manipulação dos pontosde vista própria à decupagem clássica. (. . . )A ‘impressão de realidade’ não é um pro-cesso simples e linear que vai da fidelidadeda imagem à fé do espectador, mas um pro-cesso complexo onde a disposição emocio-nal deste contribui decisivamente para a pro-dução do ilusionismo, retroagindo, portanto,na sua credibilidade” [idem: 72].

Basta pensar, como lembra Metz [1966:30], que “a percepção da narração como real– isto é, como sendo realmente uma narra-ção – tem como consequência imediata irre-alizar a coisa contada.” Mas nessa própriairrealidade outra coisa nasce. – que, escreveainda Metz [1965: 15-16], na fotografia, “aparte de realidade deve ser procurada do ladoda anterioridade temporal: o que a fotografianos mostra foi realmente assim, um dia, di-ante da objectiva”. Mas, justamente, “a foto-grafia é muito diferente do cinema, arte ficci-onal e narrativa, de que conhecemos o consi-derável poder projectivo; o espectador de ci-nema não visa um ter-estado-lá, visa um vivoestar-lá.” E o estatuto desse espectador queo cinema cria não é meramente passivo. Es-tas questões da identificação e da projecçãoafectiva do espectador constituem, porém, os

aspectos que perspectivas como a de Bazin(ou, mais recentemente, Currie) se recusama aceitar, porque é o real, e não a ilusão, apedra de toque da sua teoria e a razão da sualuta. Indiquemos então, agora, essas ques-tões.

Em “Uma nota sobre o filme” [apêndicea 1953: 427-431], Susanne Langer fala da“poderosa ilusão que o filme realiza, não decoisas que estão acontecendo, mas da dimen-são em que elas acontecem – uma imagina-ção criativa virtual; pois parece nossa própriacriação e experiência visionária directa, uma‘realidade sonhada’.” “O facto de um filmenão ser uma obra plástica, mas uma apresen-tação poética, explica o seu poder de assimi-lar os materiais mais diversos e transformá-los em elementos não-pictóricos. Como osonho, ele cativa e mistura todos os senti-dos; a sua abstracção básica – aparecimentodirecto – é feita não só por meios visuais,embora estes sejam de suprema importância,mas por palavras, que pontuam a visão, epor música, que sustenta a unidade de seu‘mundo’ mutante.”

A partir daqui, Langer poderia ter partidopara uma interpretação psicanalítica, que foiuma das primeiras leituras do fenómeno ci-nematográfico – o cinema como máquina desonhos. A autora prefere, porém, nos seusbreves comentários, tratar a interacção queexiste entre autor (ou autores) e espectadorna constituição daquilo a que podemos cha-mar a experiência do filme. Como é sabido,“a característica formal do sonho mais dignade nota é que o sonhador está sempre no cen-tro do sonho.” Langer cita, a este respeito,Eisenstein, que escreveu: “o espectador éatraído para um acto criativo em que a suaindividualidade não está subordinada à indi-vidualidade do actor, mas que é explorada

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através do processo de fusão com a inten-ção do autor, da mesma forma em que a in-dividualidade de um grande actor é fundidacom a individualidade de um grande drama-turgo na criação de uma imagem cénica clás-sica. De facto, cada espectador (. . . ) criauma imagem de acordo com a orientação re-presentativa, sugerida pelo autor, que o levaa compreender e experimentar o tema do au-tor. Essa é a mesma imagem que foi plane-ada e criada pelo autor, mas essa imagem é,ao mesmo tempo, criada também pelo pró-prio espectador.”

Muito mais recentemente, também Fran-çois Jost [1992] argumenta que, “se as ima-gens nos retêm, se somos capazes de discu-tir por causa delas à saída do cinema ou aovermos televisão, é que, longe de as tomar-mos por imitação ou duplicação do mundofilmado, não paramos de fazer delas ummundo à nossa imagem. Um mundo sub-metido às narrações que temos na nossa ca-beça, onde compreendemos as personagensconfrontando o seu ambiente cognitivo como nosso, um mundo, sobretudo, que interpre-tamos em função das intenções que atribuí-mos ao responsável da comunicação narra-tiva”.13

13Com esta perspectiva, Jost procura combater nãoapenas as teorias da obra como reflexo, que excluema actividade do receptor, mas também a semiologia,na medida em que Jost reclama que o filme não é umobjecto neutro nem uma coisa. A sua intenção, queé também a sua dificuldade, consiste em articular estaabordagem dos efeitos no espectador, que remete parauma teoria da recepção, com a sua defesa da ideia doautor, a que pretende devolver o lugar a que considerater direito na teoria da narrativa. Por seu lado, Gre-gory Currie [1995:xv, 284], preocupado como está emrejeitar todas as concepções do cinema como ilusão eidentificação, nega que o ponto de vista da câmara re-presente “um agente perceptivo – uma personagem,um suposto narrador ou o espectador, que se presume

Neste sentido, podemos afirmar, comAdriano Duarte Rodrigues [1991: 31], que,“ao contrário da pretensão de Walter Ben-jamin, a irreprodutibilidade da arte não énecessariamente anulada pelo facto de umaobra original poder dar origem à multipli-cação técnica de réplicas. Tem antes a vercom o facto de cada uma das suas réplicasse abrir para uma experiência estética origi-nal”, de cada vez que um receptor dela seapropria. Aliás, o próprio conceito de cho-que, que é tão decisivo no conceito de arteem Eisenstein e Benjamin como em Heideg-ger, abre para a consideração da experiência[cf. Monteiro, 1996: 108-110, 204, 270-283]. Como sublinha Vattimo [1989: 80],o choque “antes de mais, não passa, funda-mentalmente, de uma mobilidade e uma hi-persensibilidade do sistema nervoso típicosdo homem das grandes cidades. A esta exci-tabilidade e a esta hipersensibilidade corres-ponde uma arte centrada já não sobre a obramas sobre a experiência, pensada no entantoem termos de variações mínimas e contínuas(segundo o exemplo da percepção cinemato-gráfica).”

Pode dizer-se que o cinema tem especialatenção a essa experiência activa da recep-ção: em primeiro lugar, por ser ao mesmotempo arte e indústria, e portanto se preocu-par com as receitas provenientes do númerode espectadores. Basta lembrar o sistemaamericano da preview retake que, como es-creve João Mário Grilo [1993: 85-86], “con-frontava a última montagem com uma plateiatípica do mercado em que o filme ia funci-

ocupar a posição da câmara por um processo de iden-tificação”. Mas acaba por admitir um “intenciona-lismo implícito do autor: que a interpretação narrativarequer que descubramos as intenções narrativas do au-tor implícito da obra”, diferente do seu autor real.

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onar, submetendo-o depois – e consoante areacção do público a essa projecção – a uma,ou a várias outras montagens e, até, à refil-magem de certas cenas que, ou não ‘funci-onavam’ simplesmente, ou eram considera-das ‘subaproveitadas’ no quadro da econo-mia narrativa-espectacular do filme em ques-tão. Em rigor, o sistema de previews re-monta, pelo menos, a 1914, quando a Mu-tual organizava projecções de controlo juntodo público antes de dar luz verde à tira-gem de cópias para distribuição. Tornou-se, a partir dessa altura, numa prática bas-tante usual dentro da indústria, abrangendouma grande variedade de filmes e realizado-res (de Griffith a Harold Lloyd, de Chaplin aStroheim). Eileen Bowser conta como Grif-fith assistia à estreia de Intolerance nas prin-cipais cidades, cortando as cópias nas pró-prias cabinas de projecção, consoante as re-acções do público: “o resultado era que a có-pia mostrada em Boston não era necessaria-mente igual à cópia mostrada em Nova Ior-que, nem nenhuma delas igual à montagemfeita no negativo original”. A este respeito,Koszarski escreve que ‘Griffith via os seusfilmes como obras abertas e, por essa razão,o copyright do negativo era feito fotogramaa fotograma’. Antecipando muitas das práti-cas modernas e correntes, Harold Lloyd che-gava a fazer gráficos das reacções do público,de forma a articulá-las melhor com os dife-rentes momentos do filme.” Mas será IrvingThalberg “o primeiro produtor a estabelecera preview como um passo essencial, e obri-gatório, da pós-produção (. . . ) ‘Filmávamossempre com a ideia de que teríamos de refa-zer pelo menos vinte e cinco por cento dofilme. Para eles um filme rodado e mon-tado não estava acabado. Era apenas um pri-meiro esboço’, referiu Clarence Brown, um

dos mais respeitados (e respeitadores) reali-zadores da MGM”.

Independentemente, porém, desta dimen-são industrial/comercial, o cinema, mesmoenquanto arte, tem particularmente incorpo-rada uma atenção às reacções dos especta-dores em cada momento do filme, vivendoem grande medida daquilo a que, a partir deHitchcock, se tem chamado a “direcção deespectadores”, tanto ou mais do que da “di-recção de actores” [cf. Casetti, 1990]. Vi-mos que já nas teorias de Eisenstein se en-contra um forte interesse pelos “efeitos emo-cionais” do cinema (da montagem) no espec-tador: por vezes eles parecem mesmo ser “acategoria central da estética de Eisenstein”[Henderson, 1971: 88]. Também Fassbinderafirmava: “o realismo que tenho em mentee que quero conseguir é o que se passa nacabeça do espectador e não o que se encon-tra no ecrã – esse não me interessa absolu-tamente nada, é o que as pessoas conhecemtodos os dias.” – que, enquanto herdeiro dosistema de representação da figuração oci-dental, com a distinção que vimos entre umefeito material de realidade e um efeito fic-cional de real criado em função do especta-dor, o cinema “intensifica (pela découpagee a montagem) os procedimentos de sutu-ração, isto é, de fechamento do enunciadocinematográfico sobre um sujeito-espectadorinterpelado como sujeito da representação(como personagem, ainda que como um per-sonagem especial, que Oudart nomeia, nasequência de Jean-Claude Milner, como Au-sente” [Grilo, 1993: 34].

Por isso Jean Louis Schefer [1979: 6 e1980: 14-15] pode interrogar-se: “será queo cinema como dispositivo se faz em rela-ção a um espectador ideal que recebe os efei-tos, que é o lugar do cálculo dos efeitos,

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que é a realização retardada dos registos doreal?. . . Não será que o espectador é a má-quina, de uma certa maneira? (. . . ) Não seráque a questão reside inteiramente aí, tendoem conta a criação de um dispositivo com-plexo de que o espectador faz parte?” Essaexperiência do espectador é real: o cinema“não compõe e não ordena uma qualquer es-trutura de alienação: trata-se de uma estru-tura de realização e de apropriação de umreal, não de um possível. O real de quese trata é aquele que vive já e momentane-amente como espectador. Não dessa vidamomentânea e suspensa, mas dessa memó-ria misturada de imagens e de afectos expe-rimentais”. Grilo [1993: 53] comenta: “nainvenção do cinema, o que interessa, sobre-tudo, Schefer, não é a invenção maquínica deum dispositivo de ‘ilusões’; é a invenção deum novo sujeito, de um novo homem (de umhomem imaginado) e a sua inscrição numaarqueologia do corpo e numa história das ci-vilizações”. Ou seja, é um “homem vulgardo cinema que é necessário opôr ao domínioexercido, na antropologia do cinema, pelafigura de um hipotético homem imaginário(Morin).”

André Helbo [1984:98] escreve: “Quandotentamos definir o discurso espectacular, di-ficilmente escapamos à categoria do para-doxo. Uma primeira aproximação abordariao processo teatral em termos de delegação desaber por um autor a um meio cénico que sedirige ao espectador. Uma segunda hipóteseinverteria o movimento do mandato: o es-pectador transmite à instância cénica (e aoautor) um poder especular, o de lhe comuni-car a imagem do seu próprio desejo. Em am-bos os casos se perpetua o duplo constrangi-mento de uma interacção lógica”.

4 Como a cebola

A partir desta especial importância do espec-tador no fenómeno do cinema, vão articular-se uma série de concepções que importa dis-cutir. Comecemos pela ideia de que o cinemaatinge o espectador de uma forma emocio-nal, mais brutal e preponderante do que nasoutras artes. Já Thomas Mann [cit. in Biro,1982: 11] se queixava: “como é possível queno cinema se esteja sempre pronto a chorar,a carpir como uma criadinha? Esta matériabruta que não sofreu nenhuma transforma-ção, que vive ‘em primeira mão’, é quentee atinge-nos no coração, como a cebola”.Mann fala em choro, mas note-se, com Bo-nitzer [1982: 138-144], que no cinema a“conquista das lágrimas” (de uma tradiçãomelodramática) foi muito mais tardia e com-plexa do que a “conquista do riso”; no inícioo cinema era quente devido sobretudo às gar-galhadas.14 Seja para rir ou seja para chorar,o que aqui importa é que, como diz EdgarMorin [1956: 105], “o que há de mais sub-jectivo – o sentimento – infiltrou-se no quede mais objectivo há: uma imagem fotográ-fica, uma máquina”: “o cinema, ao mesmotempo que é mágico, é estético e, ao mesmotempo que é estético, é afectivo. Cada umdesses termos pressupõe o outro. Metamor-fose mecânica do espectáculo de sombra eluz, surge o cinema no decurso de um pro-cesso milenário de interiorização da velha

14Nos primeiros tempos do cinema, José Régio[1927: 248], por exemplo, escrevia: “aos grandes có-micos do cinema se deve a mais completa realizaçãodo maravilhoso moderno. (. . . ) São eles quem me-lhor nos ostentam o homem moderno: o homem com-pleto e omnipotente: o homem com asas, com moto-res, com bexiga natatória, às vezes com quatro pés: ohomem-Deus, o homem futurista.”

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magia das origens.”

Note-se que, com um essencialismo prati-camente simétrico ao de Bazin, Edgar Mo-rin tinha assente no processo de identifica-ção/projecção o seu livro O Cinema ou o Ho-mem Imaginário, de 1956, onde argumen-tava que, se o cinematógrafo primitivo erauma simples técnica de duplicação e projec-ção da imagem em movimento, o cinema,esse, é “a constituição do mundo imaginárioque vem transformar-se no lugar por exce-lência de manifestação dos desejos, sonhose mitos do homem, graças à convergênciaentre as características da imagem cinema-tográfica e determinadas estruturas mentaisde base. Dentro da literatura sobre cinema,Morin corresponde a um exemplo extremoda vinculação essencial entre o fenómeno daidentificação e o próprio cinema como insti-tuição humana e social. Para ele, a identifi-cação constitui a ‘alma do cinema’. A parti-cipação afectiva deve ser considerada ‘comoestado genético e como fundamento estrutu-ral do cinema’ (. . . ). Dada sua perspectiva,vinculada a uma certa antropologia, Morinnão parte para a defesa ou ataque de tal fe-nómeno, do ponto de vista ideológico ou es-tético (a sua própria definição do estético vaipassar pela noção de participação afectiva).Ele está convicto de que esta relação, queum cinema particular num momento parti-cular estabeleceu com o o espectador, é im-perativa, fazendo parte da essência do novoveículo. Em 1966, a posição de Metz ébasicamente a mesma”, mas na década se-guinte já questiona as fissuras e desvantagensdessa identificação [Xavier, 1977: 16-17].Este problema da identificação no cinematem continuado a ser tão debatido que me-

rece um tratamento à parte, noutro texto.15

Não deixa de ser curioso notar como, ape-sar de o cinema fazer exclusivamente apeloà visão e à audição, que Hegel16 situavano campo dos sentidos intelectualizantes,quando se pensa o cinema como arte dos sen-tidos e sensações se faça rapidamente umaassociação às emoções, ao coração, mesmoàs tripas, como se ele vivesse da sensibili-dade material, dos “sentidos inferiores”. Oque apenas me parece explicar-se pelo factode o cinema ter começado por ser concebidoem comparação com outros géneros de fic-ção, de tipo literário. Bergman [cit. in Wins-ton, 1973: 60] argumenta: “a palavra escritaé lida e assimilada por um acto consciente davontade em aliança com o intelecto; pouco apouco afecta a imaginação e as emoções. Oprocesso é diferente com um filme. Quandotemos a experiência de um filme, dispomo-nos conscientemente para a ilusão. Pondo delado a vontade e o intelecto, abrimos espaçopara ele na nossa imaginação. A sequênciade imagens actua directamente nos nossossentimentos.” E Pasolini [1965: 55] comparatambém: “enquanto os instrumentos da co-municação poética ou filosófica estão já ex-tremamente aperfeiçoados, formando verda-deiramente um sistema historicamente com-plexo, que alcançou a maturidade, os da co-

15Veja-se, para além dos trabalhos já clássicos deMetz e Baudry, o recente livro de Murray Smith[1995], que procura conciliar a abordagem neoforma-lista e as questões da personagem e da resposta emo-cional a ela. Smith procura construir uma interessantealternativa ao modelo da identificação global, seja elearistotélico ou brechtiano, com um “modelo de en-volvimento com as personagens” que se desdobra emcategorias e níveis diferenciados de identificação.

16Cfr. Estética, vol. II, secção I: “Da forma simbó-lica da arte”.

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municação visual, que estão na base da lin-guagem cinematográfica, esses, são comple-tamente brutos, instintivos. (. . . ) O instru-mento linguístico sobre o qual se funda o ci-nema é por isso de tipo irracional. Isto ex-plica a natureza profundamente onírica docinema, assim como a sua natureza absolutae inevitavelmente concreta, digamos o seuestatuto de objecto.”

Além disso, o cinema tem uma recepçãoque é colectiva, ao contrário do romance ouda poesia, e contínua. Winston [1973: 57]lembra que quem lê tem com a obra um con-tacto descontínuo, intermitente, ao longo dedias, semanas ou mesmo meses, ao passoque “o contacto emocional de quem vai aocinema é contínuo, o que torna mais fácilao realizador manipular a resposta emocio-nal do seu público” (mas, por outro lado, “opúblico de um filme geralmente não conse-gue digerir e absorver tanto como o leitor deum romance, que pode voltar atrás a algumaparte que esteja a ler e ajustar a sua veloci-dade de leitura à dificuldade das passagens.”)Por último, o cinema acrescenta à ficção umamaior corporização do que o romance (masnão maior do que no teatro. . . ). Por exem-plo, Bela Balázs,17 “desde os seus primeirostextos, publicados nos anos vinte, defende aideia de que durante séculos a imprensa tor-nou ilegível a face dos homens. Com o ci-nema, o corpo e o rosto do homem podemtraduzir uma experiência espiritual visuali-zada sem a medição da palavra – o indizível

17Está traduzido em português o ensaio, de 1945,“A face do homem”, in Geada, 1985. Esse textoencontra-se também, juntamente com outros de Ba-lázs, Munsterberg, Puvodkin, Vertov, Eisenstein, Ba-zin, Metz, etc., na antologia organizada por IsmaelXavier [1983].

torna-se visível” [Geada, 1985: 10].

5 Merleau-Ponty e Husserl

Não surpreende, assim, que surjam tentivasde aplicação ao cinema da fenomenologiade Merleau-Ponty.18 Foi o que fez recen-temente Vivian Sobchack [1992:xii-xvii, 25e 290], defendendo “uma “incorporação” daexperiência subjectiva na teoria do cinema”.Quando, nos anos 80, se pretendeu dinami-zar o estruturalismo (que tinha mudado osestudos de cinema nos anos 70), reconhe-cendo a importância da linguagem e do dis-curso “na constituição da economia ‘libidi-nal’ do ‘eu’ e do ‘inconsciente’ político daformação social”, incorporou-se tanto o mar-xismo como a psicanálise numa análise pós-estruturalista. Mas, comenta Sobchack, “apsicanálise neo-freudiana não esgotou a mi-nha experiência, apesar de ter muitas vezesesgotado a minha paciência”, e o marxismo“tendeu a negligenciar a experiência corpo-ral [embodied] que vivo como ‘minha”’, ig-norando ou destruindo a subjectividade, ouentão veio “dissecar, abstractizar e fetichi-zar certas partes do corpo como se elas tives-sem vida própria”, em vez de dar conta da“integridade, mutabilidade e materializaçãosensual do corpo-vivido”. Por isso Sobchackvai procurar na fenomenologia existencial deMerleau-Ponty e na “sua semiótica radicaldo corpo-vivido um método prático para des-

18Em relação ao conceito de cinema do próprioMerleau-Ponty, que adiante referirei, ele encontra-setratada por Xavier [1977: 75-76], que o considera umantecessor de Mitry (e não de Bazin) e que, na an-tologia de 1983 [pp. 101-117], publica a conferênciaque Merleau-Ponty proferiu em 1945, com o título “Ocinema e a nova psicologia”.

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crever a estrutura existencial da visão cine-mática”, que permita “desenvolver uma se-miótica e hermenêutica radicais, de funda-mento existencial”. O objectivo é “conside-rar a natureza corporal da visão, a contribui-ção radical do corpo para a constituição daexperiência do cinema”, tendo em conside-ração “não apenas a visão tal como apareceaos outros na sua modalidade objectiva en-quanto visível, mas também a visão tal comoaparece na sua modalidade subjectiva: invi-sível aos outros que não são o seu sujeito.”

A chamada de atenção assim feita porSobchack é pertinente e útil: os proble-mas que se lhe colocam pertencem às objec-ções gerais que se levantam à fenomenologia(nomeadamente aos trabalhos de Merleau-Ponty) [cf. Monteiro, 1996: 245-270 e Mi-randa, 1994: 28-30, 54]. Bastará sublinharque a sua concepção de corpo remete parauma concepção muito forte de sujeito e paraum referente natural (a natureza da relaçãode percepção do corpo), ambos muito discu-tíveis e discutidos; ainda por cima, acaba porcair nos erros que apontava ao marxismo, aofetichizar a visão como parte do corpo comvida própria e, dir-se-ia, absoluta. A este res-peito, a ironia de naturalizar e fetichizar avisão é tanto maior no cinema quanto estese funda, não propriamente sobre a capaci-dade da visão humana, mas sobre o defeitoda vista conhecido como “persistência da vi-são”, que leva a ver como um contínuo oque, de facto, são fotografias separadas. . . Oresultado do trabalho de Sobchack é, alémdo mais, como muitas vezes acontece na fe-nomenologia, exclusivamente programático,esgotando o seu esforço a anunciar uma ma-neira de colocar as questões, sem nunca che-gar a pôr-se à prova.

No campo de um outro tipo de fenome-

nologia, a transcendental, podemos situarHenri Agel [1957, 1961, 1973] e o já citadoBazin de Qu’est-ce que le cinéma?. Já nosanos 90, Allan Casebier (nunca citando Agele pouco usando Bazin) procura regressar aHusserl para construir uma teoria realistaque afaste a grelha “idealista/nominalista”dominante nos estudos sobre cinema. “Umapedra angular do tratamento realista queHusserl faz da representação artística é a ca-pacidade de quem percebe de transcender osseus actos perceptivos ao reconhecer o queum objecto de arte como a gravura de DŸ-rer retrata”, isto é, um cavaleiro de carnee osso, e não as linhas pretas que o dese-nham. A mesma coisa pretende estabelecerCasebier em relação ao cinema, recusandoas análises generalizadas que lhe sublinhamos signos e códigos, sem atender ao que érepresentado. Para isso recorre à distinção,que também era usada por Husserl e pelomeio filosófico em que escreveu, entre “aper-cepção” e percepção: apercepção (appercep-tion), que vem de aperceber, “é um modo deapreensão diferente da percepção mas inti-mamente ligada a ela. Quando alguém quepercebe apercebe, ele ou ela ‘vive através’ ou‘passa através’ dos sentidos (ou outros objec-tos) sem fazer deles objectos de percepção.”– o que se passa, por exemplo, quando vemosatravés de óculos, mesmo que estejam sujos,sem nos determos nas lentes; “de modo se-melhante, ao seguir uma conferência, possocentrar a minha atenção no som da voz doorador (. . . ) ou simplesmente viver atravésdela, experimentá-la aperceptivamente, e fa-zer do significado do que está a ser dito oobjecto da minha acção.”

Esta concepção dos procedimentos per-ceptivos incorre noutro dos grandes riscosda fenomenologia: já não é o de se esgo-

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tar na chamada de atenção para os mecanis-mos da consciência, mas é o problema quaseoposto de pretender aceder aos fenómenospassando por cima de qualquer reflexão so-bre o funcionamento da consciência ou dalinguagem. Dir-se-ia que essa concepção docinema acredita a tal ponto na identificaçãocriada pelo filme que a erige em princípio ex-clusivo, fazendo esquecer todos os outros, talcomo nos esquecemos das lentes dos óculosatravés das quais olhamos; e assim não chegaa reflectir sobre ela.

Karlheinz Stierle, em 1975, pensou estaquestão (em relação à literatura, mas seriaútil começarmos a aplicar as suas ideias aopensarmos o cinema) de uma forma mais crí-tica, e por isso mais fértil, “criando uma anti-nomia fundamental: aquela que separa a re-cepção dos textos pragmáticos da recepçãodos textos ficcionais. Os textos pragmáti-cos são centrífugos: a sua meta encontra-sealém deles, no campo da acção onde eles de-sembocam. Os textos ficcionais são centrí-petos: nada existe para além deles próprios.Não significa isso, segundo Stierle, que elesexistam fora de uma situação de comunica-ção; acontece que a ficção tem uma situa-ção comunicacional implícita que parte daprópria ficção. Uma das originalidades deStierle consiste em considerar a hipótese deuma recepção quase pragmática do texto fic-cional, quando a obra é ultrapassada em di-recção a um campo de acção que é mera ilu-são despertada no leitor pela própria acçãodo texto. Todas as modalidades ‘primárias’de recepção do texto se situam neste plano.Tudo aquilo que é designado como literaturade consumo consiste nesta fusão da ficçãocom a ilusão, criando um espaço extratex-tual, exterior à obra, ilusório, mas que nãodeixa de ser vivido na sua verdade como ilu-

são efectiva. Tal processo de recepção eli-mina o funcionamento dos vazios analisadopor Iser, na medida em que, ocupando osvazios, produz um sentimento de continui-dade plena equivalente ao próprio real. O lei-tor deixa-se fascinar por este real que o ab-sorve, a recepção acaba por suprimir o papelque ele, leitor, desempenha na construção daobra, e estabelece-se um efeito de verosimi-lhança sem falhas. A recepção competenteultrapassa este estádio primário da recepção.Mas isto não significa que certas formas deliteratura (a maior parte dos romances, porexemplo) não exijam uma recepção préviaquase pragmática. Daí a importância que Sti-erle atribui à segunda leitura, que é aquelaque, indo além das ilusões da linearidade econtinuidade, permite apreender o texto naespessura das suas estruturas sobrepostas, econvertê-lo, pelo trabalho da leitura, em vo-lume e espaço textual” [Eduardo Prado Coe-lho, 1987: 487].

6 O cinema como medo

Muitas das ramificações mais desenvolvi-das destas perspectivas dos efeitos sensori-ais, emocionais e identificatórios do cinematêm convergido na análise dos mecanismosde medo ou horror gerados pelo filme – umasvezes apenas nomeando esse fenómeno, ou-tras tentando reflectir sobre as suas razões.No cinema parecem juntar-se os medos cor-respondentes às artes dramáticas com os me-dos associados às imagens, tudo isso no qua-dro novo e específico que é o seu. Em re-lação ao drama, vários autores, como Mi-chael Goldman [1981:50], consideraram que“o teatro surge dos jogos que fazemos com omedo e com a perda. Toda a arte é assim,mas o teatro está mais perto da raiz (. . . ).

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Não porque os temas do drama sejam ine-vitavelmente desagradáveis, ou que as mai-ores peças contenham os maiores horrores.Mas a fonte da excitação teatral reside muitopróximo da nossa mais primitiva percepçãodo medo; a vitalidade do artista dramáticovem da natureza inerentemente ameaçadorados materiais com que lida. Tanto no pro-cesso de personificação como na sua relaçãocom o público, a arte do actor nunca cessade lidar – com uma imediaticidade sem pa-ralelo – com a volatibilidade do espectro deum mundo ameaçador” – mesmo que seja oamor.

Por sua vez, em relação às imagens, já Lu-crécio falava do terror que elas podem gerar[cf. Wurzer, 1990:xiii]. Ora, no cinema, oregime em que são apresentadas as imagensvai permitir potenciar esse terror. Por duasrazões, argumenta Bonitzer [1982:115-116].“Sabemos desde André Bazin que o ecrã decinema não funciona como a moldura de umquadro, mas como “um cache que só mos-tra uma parte do acontecimento”. O espaçodo quadro é centrípeto, o do ecrã é centrí-fugo. (Desde André Bazin, é certo, o espaçodo quadro sofreu ele próprio modificações,sob a influência manifesta do cinema, e cer-tos pintores, Schlosser, Cremonini, os hiper-realistas, simulam nas suas composições aexistência de um espaço off.) O campo vi-sual desdobra-se sempre num campo cego”,que potencia por um lado o erotismo e poroutro lado o horror, tanto maior quanto, e éessa a segunda razão, a esse horror se junta,“no que respeita aos espectadores, uma vi-são bloqueada, correspondendo ao disposi-tivo do ecrã e da projecção”: a câmara é livre“mas o espectador, esse, só tem um direito, ode manter os olhos fixos no ecrã ou sair” (en-quanto que, diante da televisão, “pode sem-

pre baixar o som, aumentar a cor ou mudarde canal”). “O espectador de cinema nãoé tanto o herói da caverna de Platão comoo doente da Janela Indiscreta ou o herói daLaranja Mecânica, amarrado ao seu lugar econstrangido a manter os olhos abertos di-ante de um ecrã de cinema onde desfilamabominações.” “Se o cinema tem uma rela-ção privilegiada com o erotismo por causa davisão parcial (voyeurismo e fetichismo), temuma relação privilegiada com o horror porcausa da visão bloqueada”.

Jean-Louis Schefer vai procurar reflectirsobre o medo provocado pelo cinema ultra-passando a discussão do dispositivo a favorde uma abordagem que se reivindica da fe-nomenologia. “Houve há dez anos uma re-flexão por parte dos Cahiers, de Cinéthique,sobre o dispositivo, que me parece proce-der de uma ilusão tecnicista, completamenteligada a toda a reflexão de vanguarda, istoé, ao um poder de manipulação eficaz dossignos, a uma ciência da linguagem, quenunca seria uma ciência ligada à espécie,como lugar mesmo do terror que esta ci-ência nunca conhece.” “Pergunto-me se aresposta que podemos esboçar a tais ques-tões não consistirá em tomar o fenómeno docinema não como um fenómeno técnico li-gado aos seus aparelhos, aos seus dispositi-vos, mas sim ao seu efeito geral de sidera-ção, e ao facto muito preciso de que é a pri-meira máquina no mundo, muito mais do quea tragédia grega, que impregna a humani-dade de guiões, de forma indelével e em mo-vimento.” “Mesmo o que encontramos nasprimeiras imagens imóveis de que fala Ben-jamin: há já um efeito de sideração que co-manda a posição do modelo”. “Sob todas asformas possíveis de denegação, é certo quese vai ao cinema – toda a gente – para simu-

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lações mais ou menos terríveis, e de maneiranenhuma para participar num sonho. Parauma participação no terror, no desconhecido,para coisas assim. . . E de uma certa maneira,o efeito de educação impossível, o efeito deanamorfose que é trazido pelo cinema sobreo espectador e que é real (provam-no as cri-anças que saem do cinema e ficam cowboysdurante três horas): os comportamentos co-mandados, joga ainda assim com um des-locamento de qualquer coisa que ainda estápor determinar no homem e que faz com queele não seja um sujeito estruturado, precisa-mente. A força do cinema reside aí, também,creio. Ou seja, no limite, uma sala de cinemaé um matadouro. As pessoas vão ao mata-douro. Não para ver as imagens cair uma de-pois da outra, mas qualquer coisa nelas caie é uma estrutura adquirida de outro modo,possível de outro modo, dolorosa de outromodo, que talvez só esteja ligada a uma pro-dução de sentido e de linguagem”. Por issoo cinema “não é uma arte como as outras. Eisso é uma coisa que a mim me prende muitono seu poder. Eu sei que a escrita já nãopode, ou nunca mais poderá, produzir efeitosde educação ou de anti-educação tão fortes.E não é de todo porque isto trabalhe mais oinconsciente, não é de todo porque há ima-gens que podem voltar sobre a sua metáforacomo imagens de sonho, é porque isto traba-lha exactamente indivíduos na sua solidão,ou seja, ali onde uma tal solidão não podefalar” [Schefer, 1979:7].

Nesta argumentação de Schefer misturam-se muitos elementos diferentes, a maior partedos quais não pode, como pretendido, distin-guir o cinema das outras artes: porque soli-dão, também a literatura a produz. Que essasolidão não possa falar, é o que tambémacontece, pelo menos, na música. Também

as outras artes fazem vacilar alguma coisaem nós, e a criança que leu um romance ficaa viver segundo o que leu, porventura todaa vida, e não apenas três horas (não pode-mos reduzir a discussão a efeitos imediata-mente miméticos). Resta o argumento de ocinema ter hoje efeitos mais fortes, ser maisactual. . . Mas isto era precisamente o que setratava de provar ou compreender.

O próprio Schefer se encarregará de de-senvolver o seu ponto de vista. Até aqui es-távamos a citar uma sua entrevista, de 1979.No ano seguinte, Schefer publica um livro,L’homme ordinaire du cinéma, que se apre-senta como leitura fenomenológica da expe-riência de ir ao cinema (mas, se em Bache-lard tínhamos a fenomenologia como “lei-tura feliz”, em Schefer ela é dada como lei-tura infeliz, mesmo terrífica ). Em grandemedida, trata-se de uma leitura tão pessoa-lizada dessa experiência que é quase intrans-missível, levando a fenomenologia a um graude solipsismo que está sempre no seu hori-zonte mas que ela raras vezes atingiu. Cite-se [1980: 96, 12]: “vi os meus primeiros fil-mes depois de ter estado mergulhado nas ce-nas de guerra (os abrigos nocturnos, os bom-bardeamentos (. . . ), viagem de noite sozinhonum camião no inverno, quatro anos. . . )”.“A catástrofe não tinha podido avançar umúnico passo mesmo através dos escombros,mesmo através de um luto até ao dia em queme levaram ao cinema. Sciuscia: todo omedo da guerra e quatro anos de terror e deobjectos quebrados e de caras desaparecidasfixaram-se num instante nessa sala, sobre aimagem do primeiro filme. Aqui começoua primeira doença de que ele foi culpado epunido. A primeira doença de nervos, isto éa primeira identidade incerta e criminal queuma criança encontrara no medo (na sua pri-

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meira verdadeira solidão). (. . . ) Foi assimque o mundo começou, isto é, se tornou in-descritível.” “Não contesto que haja nissoum prazer”; “é o fundo do que se acredita seruma ‘participação imaginária’ nas acções fil-madas: é um gozo do ser moral e é por isso,em minha opinião, que está tão próximo doseu extremo que é o medo (este é o cúmulode uma simulação de realização dos afectosvivendo uma privação de objecto). A reali-dade desses sentimentos é uma sujeição a ummundo que não é outra coisa senão a derrisãodeles.”

– possível, ainda assim, encontrar, dis-persos na obra de Schefer, alguns elemen-tos analíticos sobre os mecanismos que nocinema geram o terror. Por um lado, sãode ordem física: alguns deles já os tínha-mos encontrado em Bonitzer, e afinal Sche-fer parece não se distanciar de uma reflexãosobre o dispositivo técnico, que antes recu-sara. – uma experiência física (porque “asignificação é aqui um corpo”): “experiên-cia desta noite experimental na qual algumacoisa vem mexer, animar-se e falar diantede nós”. Essa experiência parece desdobrar-se em várias características: entramos nestemundo “cegamente, por esse ponto de luza tremer”; experimentamos a desproporçãoporque estamos perante “um corpo infinita-mente maior do que o nosso”, “invariavel-mente situado por trás do nosso, por trás danossa cabeça” (é “uma mudança de propor-ção do visível de que serei sem dúvida o úl-timo juiz mas o corpo, mas a consciência ex-perimental”); “uma máquina gira, representaacções simultâneas à imobilidade do nossocorpo”; “a perturbação da voz humana (e tal-vez apenas a suspeita de que ela pode signifi-car) junta-se à imagem” – apenas não temoso odor [Schefer, 1980: 102, 10, 21, 103].

Por outro lado, essa ordem física está ligadaa uma ordem, ou desordem, psicológica, eé aqui que o contributo de Schefer pode sermaior: “esta experiência, esta memória, é so-litária, escondida, secretamente individual”.O cinema cria afectos “sem destino, ou sejasem mundo (não há mundo prévio a essa cordos afectos)”. “O sentido vem a seguir, sóchega depois desta instabilidade dos afec-tos”. Não existe “ancoragem de sentimentosno filme”. “Somos rejeitados para fora delepelos sentimentos ou os afectos que ele faznascer em nós; só os faz nascer estimulando-os sobre personagens, “bocados de homens”que devem por isso morrer para assumir essaperenidade fora de si próprios.” “– esse, ameu ver, o laço imprescritível entre o ci-nema e o medo – um aumento da afasia desentimentos no ser social”: há uma “supres-são da humanidade em nós próprios”; é-seremetido para “a espécie desconhecida, na-quele que está a ver o filme” [Schefer, 1980:11,18,35,17,12,101].

7 A filosofia do cinema segundoIan Jarvie

Esta questão do medo servir-nos-á ainda parapassarmos a outro nível, a meu ver maiscomplexo e rico, das relações entre o cinemae a fenomenologia, tal como é elaborado porIan Jarvie em Philosophy of the Film, de1987 [sobretudo nas pp. 127-130, 134-137,121-125]. Jarvie propõe que, por momen-tos, consideremos o seguinte: “assistindo aum filme assustador nós, o público, temosmedo. No mundo exterior, nós, o público,por vezes temos medo. No entanto, no ci-nema, nós, o público, não corremos qualquerperigo: o nosso medo é imaginário. (. . . ) A

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questão é se o nosso medo no cinema é umfenómeno de medo ou é um fenómeno de idaao cinema que podemos distinguir fenome-nologicamente do medo propriamente dito.Por medo propriamente dito podemos sig-nificar a emoção experimentada por alguémque está em perigo real no mundo vivido,como oposto a observar o perigo na ilusãodo cinema.” A questão que interessa a Jarviedestacar é a seguinte: “e se se provar ser difí-cil distinguir o medo num filme do medo nomundo real? E se os filmes fornecerem simu-lacros tão poderosos da experiência imediataque a reflexão e a intuição não conseguemabrir uma fenda fenomenológica entre eles?Claramente, isso seria um desastre. Coloca-ria a fenomenologia numa posição idealista,incapaz de distinguir o mundo imaginado domundo real. Aqui podemos começar e en-tender por que razão Bazin e o seu seguidorCavell estão tão preocupados em forjar umarelação forte entre o mundo real e o mundono filme. O mecanismo sem condutor, ouautomatismo, é a sua garantia de que o queestá no filme é contínuo com o mundo real,ou uma extensão dele. (. . . ) – esse o argu-mento de Bazin a favor do plano longo con-tra a montagem. Sabemos então que o queestamos a ver é parte do mundo ou, para sermais preciso, quando foi filmado era parte domundo real.”

Ora, essa concepção do cinema como re-gisto do real é, como vimos, ingénua. “Infe-lizmente para Bazin e Cavell, o mundo dosfilmes inclui animação e abstracção, cenasfilmadas em tempo real e outras não filma-das de todo. Alguns realizadores usam pla-nos longos, outros a montagem; e muito ju-diciosamente misturam ambos conforme asnecessidades da exposição. Mas todos cor-tam, e uma vez que há corte, independen-

temente da frequência, o espírito cria ummundo que não está presente em sítio ne-nhum nem nunca esteve. Sesonske colocaassim a questão no seu argumento reductiosobre Jules et Jim: “Spade e Archer nuncapartilharam um escritório em São Francisco;Jules e Jim nunca partilharam uma raparigano Paris de antes da guerra. . . Mas suponha-mos que eu era um experimentado viajanteno tempo e queria testemunhar realmenteesse breve momento do mundo projectadoem que Jules observa Catarina e Jim sairemda ponte arruínada. Para onde me deveria di-rigir, e para quando? Para Paris em 1933?Não os encontraria ali. Então, para Paris em1961. Poderia de facto encontrar Oskar Wer-ner e Henri Serre, mas Jules e Jim? E se euobservasse na terça de manhã, digamos, to-dos os 17 takes de Oscar Werner junto ao rio,de onde três breves planos de Jules a obser-var serão usados no filme?” Claro que a res-posta a estas perguntas retóricas é que nãoos vou encontrar ali. Não apenas porque acâmara, a película, os químicos, os cenários,o guião, o projector, o cinema são artefactosfeitos pelo homem. Acima de tudo, o mundoaparente projectado no ecrã é um artefactohumano, um artefacto da mente, ainda quefortemente assistido por muitos recursos ma-teriais. – um mundo que tem fronteiras noenquadramento, no corte, nos genéricos ini-cial e final. (. . . ) Tal como temos a impres-são de profundidade onde não há profundi-dade, temos a impressão de um mundo ondenão há mundo.”

A questão tem pois de ser deslocada parafora do terreno fechado dessa impressão ilu-sória de um mundo real, embora não deva-mos deixar de pensar essa complexa identi-ficação, nomeadamente pela constituição demundos imaginários, como parte essencial

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da experiência do cinema.19 George Linden[1970] escreve: “o filme pode dirigir-se di-rectamente e registar as nossas formas-de-estar-no-mundo, e por isso está mais preo-cupado connosco como seres do que comopersonae. O filme não nos fornece uma mera‘libertação da realidade física’: fornece-nosoutras vozes, outros mundos nos quais es-tar. Não é antes de mais uma representação,mas uma apresentação.” “O que Linden pa-rece estar a dizer”, comenta Jarvie, “é queos filmes não estão amarrados a uma reali-dade única, antes abrem diante de nós mui-tos mundos possíveis que se nos apresentamtão vivamente que temos a sensação do queé estar neles. Isto distingue Linden de Ca-vell, que usa o artigo definido e por isso pa-rece ver ‘o’ mundo (fílmico) visto e o mundoreal vivido como continuações um do outro.Cria no entanto dificuldades dentro da feno-menologia: se temos uma sensação tão in-tensa de estarmos nos mundos possíveis dosfilmes, como havemos de os pôr entre parên-tesis em relação ao mundo real em que vive-mos?”, isto é, “diferenciar não apenas o realdas aparências, em geral, mas também, den-tro dos filmes, o ficcional do factual? Vendoesse problema avultar, Linden escapa por umcaminho que é um dos preferidos dos irraci-onalistas dos últimos cem anos: sugere que oproblema é criado pelas palavras (em vez deformulado nas palavras). De alguma forma,a linguagem torna-se suspeita. E na me-dida em que a linguagem incorpora o pensa-mento, esta suspeita pode provir de uma des-confiança em relação ao pensamento ou ten-

19Helbo [1984: 99] sublinha a “ambivalência fun-dadora da ilusão”: é que “a simulação, o iniciar dojogo só são possíveis graças ao espectador instigadordo prazer. Perversidade de um olhar que aceita o en-gano com a condição de ser ele próprio a vítima.”

der para ela. E como os filmes contêm pen-samento e linguagem, segue-se, ou que nãodevemos ter confiança neles, ou que devemser louvados na medida em que não utilizemlinguagem”.

Diz Linden: “um filme não é pensado,é percebido. . . . Os filmes não são litera-tura. São quando muito escrita-por-imagens(image-writing). O crítico de cinema literá-rio tem um conceito onde devia ter o cora-ção. . . ” “As palavras nos filmes deviam serlimitadas ao mínimo, expressivas e concre-tas. As crianças mostram e contam (showand tell). Os realizadores, como os poe-tas, deviam mostrar.” Ou seja, comenta Jar-vie, “Linden contrasta o pensamento e a per-cepção, aparentemente alheado da possibi-lidade de a percepção não ser mais do queum modo de pensar, nomeadamente pensarsobre aquilo a que chamamos o mundo ex-terno. Como hipótese, imagino que a suaideia é que a percepção é um processo cau-sal, que os estímulos no mundo apenas têmimpacto nos nossos sentidos, que então espe-lham ou reflectem esses estímulos. Mesmosem uma educação filosófica, podemos re-correr a Munsterberg para explicar cuidado-samente como esta visão do receptor pas-sivo não serve, como a imposição da ordemno manancial indiferenciado da experiênciaé levada a cabo pela mente, pelo pensamento.Não podemos ver filmes sem pensar sobreeles.”

O que torna interessante esta perspectivade Jarvie é que dá conta dos aspectos senso-riais e emocionais que provocam a identifi-cação com o filme mas recusa as armadilhasde acreditar numa identificação completa: oque ele destaca no cinema, como sua especi-ficidade e sua força, é justamente esse jogoconstante, inerente ao medium, entre estar

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dentro e saber que se está fora, entre aparên-cia e realidade. E nisso inspira-se em Hus-serl (que adiante, como já veremos, critica),para quem “a fundação segura para tudo oque sabemos reside na experiência imediata.Ela não é sensação, ou seja, empírica; não élógica, ou seja, analítica; é um tertium quid,fenomenológico. A tarefa de fenomenologiaé descrever a essência dos fenómenos comoeles se apresentam à consciência.” Ora, “osfilmes são, obviamente, um bom cereal parao moinho do fenomenólogo, porque forne-cem uma caso ready-made em que a exis-tência é posta entre parêntesis [bracketed].Isto é, as coisas no filme não existem aquie agora tal como parecem existir. E no en-tanto podem fornecer-nos dados suficientespara a reflexão fenomenológica, parecendo-se muito com aquela reflexão que empreen-deríamos se confrontados pelo Lebenswelt.”

A aristotélica suspensão voluntária da des-crença tem no filme um suporte muito maisilusionista do que as antigas narrativas, emesmo do que o teatro (e, acrescente-se aJarvie, as novas realidades virtuais vêm re-lembrar estas questões: somos de novo cri-anças enganadas pela realidade das imagense sons, estendemos o braço para os pássa-ros que parecem voar para nós e que aindanão aprendemos a perceber como ilusão). Aquestão é que, “ao mesmo tempo, parecemapresentar adivinhas. Vamos querer saberqual é a essência dos filmes e distingui-lacom bastante clareza da essência de estar-no-mundo. – claro, assistir a um filme éuma forma de estar-no-mundo, mas tambémenvolve um fenómeno a que podemos cha-mar estar-no-filme.” Neste aspecto, Lindenviu bem o problema, já que “caracteriza anatureza da experiência fílmica como ‘diá-dica’, consistindo na “interdependência, co-

existência e síntese de objectivo/subjectivo,mundo exterior/mundo interior, relações uni-versais/particulares (. . . ). A participação doespectador é descrita como uma experiênciade ‘excarnação ou bi-associação’.”

“Em termos simples, experimentamos omundo como se estivéssemos fora dos nos-sos corpos, e no entanto fazemos isso experi-mentando com os nossos corpos.” – por issomesmo, diz Jarvie, que o cinema abala seri-amente os problemas do conhecimento e doser. “No campo do conhecimento cria sériasdificuldades a qualquer teoria do conheci-mento directamente perceptiva. Estimulandofortemente dois dos sentidos, confronta-noscom o problema, de início quase insuperável,de demarcar este mundo fílmico do mundoreal. Mais do que isso, deleita-nos com o co-nhecimento de que esse mundo fímico e nósestarmos a vê-lo é também, num certo sen-tido, parte daquilo a que chamamos o mundoreal. Se Munsterberg tem razão, confronta-nos com os nossos próprios processos men-tais e no entanto torna-nos menos susceptí-veis, e não mais susceptíveis, à ilusão e àalucinação.”

“Repare-se como a descrição cartesianado Eu corresponde à ida ao cinema: o pontode consciência individual olhando desde oseu interior para fora, para um mundo que édado e separado, contendo objectos que nospermitem vê-los e manipulá-los na sua se-paração uns dos outros e de nós. Não ad-mira que Linden queira que nos encaminhe-mos para uma união afectiva com as imagensno ecrã: se ali nos mergulharmos, podemosaprender a entregar-nos aos outros, a tornar-nos permeáveis e a quebrar o nosso isola-mento. Só que isso não é possível; é umafantasia comparável à daqueles romancistasque sonham com a nossa entrada para dentro

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do ecrã. A nossa condição epistemológicaé exactamente paralela às condições em queestamos no cinema; somos espectadores quenão se podem tornar participantes. Estamosnuma permanente condição de bracketing, onosso Lebenswelt significa que estamos defora e nos reflectimos”.

O facto de essa condição ser permanenteé o que separa Jarvie de Husserl: porque,para este, “quando conseguimos o contactocom a essência dos fenómenos, podemos ti-rar os parêntesis e retomar o contacto com omundo, ultrapassar a alienação. Ao nosso es-tado chamou Husserl ‘atitude natural’, algocom que obviamente rompemos pelo brac-keting. O problema intrigante é: como have-mos de voltar à atitude natural? Suspender aatitude natural não é um caminho para forado nosso dilema: é a perda de toda a possi-bilidade de estar na atitude natural que cons-titui o nosso dilema (Gellner). Somos serescartesianos para sempre. A consciência donosso dilema, como a auto-consciência in-duzida na criança, é um estado irreversível.Como A. J. Ayer disse uma vez, é perversofazer um tragédia do que não podia ser de ou-tro modo.” “O mundo inteiro estar treinadona fenomenologia (o sonho de Husserl) nãomudará isso, tal como o mundo inteiro serpsicanalizado (o sonho de Freud) não resul-tará no fim das neuroses e da infelicidade.”Aliás, nos seus últimos escritos, Freud acei-tou a ideia de que a nossa condição nos é ine-rente e tentou explicá-la.

Assim, diz ainda Jarvie, “os filmes sãouma metáfora ready-made para a inocên-cia perdida.” De facto, “os filmes preser-vam no âmbar da experiência a noção deum sujeito que vê e de um objecto experi-mentado, interagindo, é certo, mas não deum modo que possa abolir a distinção su-

jeito/objecto.” Pode mesmo dizer-se que ofilme é hoje a grande escola de aprendizageme treino dessa distinção, mesmo para o “ho-mem vulgar do cinema” de que fala Sche-fer. “Em termos de desenvolvimento, come-çamos como crianças que vão espreitar atrásda televisão à procura das pessoas pequenas,ou tentam enfiar braços pelo ecrã. Um tal re-alismo naf evolui gradualmente para uma fí-sica mais sofisticada – na prática, não na teo-ria, porque muito poucas são as crianças queacabam por saber suficiente física para expli-car o que acontece na televisão. Mais madu-ros, um filme convida-nos a que o tomemoscomo real, seja ele uma ficção, um documen-tário, um registo científico ou um desenhoanimado. Este convite é feito e aceite, sa-bendo que a realidade consiste de facto emsentar-se num quarto escuro com poderosasfontes de luz e som que nos encharcam. Nós,como público dos filmes, avaliamos a reali-dade putativa que nos oferecem da mesmaforma que avaliamos as teorias. Um requi-sito mínimo é que sejam internamente con-sistentes – o que por vezes é um assuntomuito subtil, que envolve exactamente queimagens devem suceder-se umas às outraspara manter o sentido consistente do espaçono ecrã. Depois, requeremos que sejam con-sistentes com outras teorias que possuímos,ou, se forem inconsistentes, como quandoo Superhomem voa, que o sejam minima-mente. Em terceiro lugar, devem ser con-sistentes com a sua própria prova. Quandoum documentário nos mostra, como o SanPietro de John Huston, um soldado a atiraruma granada seguido por um grande planoda granada a explodir, somos alertados parao pensamento preocupante de que a superfí-cie severa e realista deste filme pode escon-der uma grande quantidade de manipulação

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de artefactos.”De modo que, sempre que nos damos

conta de que esse artifício está presentemesmo no filme (e no género) que mais nosparecia real, estamos a praticar a arte da con-tínua oscilação entre aparência e realidade.Desta maneira, à medida que vamos “apren-dendo a organizar a interacção das nossasmentes e sentidos de forma a conseguirmosdar sentido aos filmes, aprendemos tambémcomo distinguir os filmes no nosso meiocomo não reais. Assim, todos nos torna-mos como os filósofos de Platão: aprende-mos com naturalidade a mapear, ajustar ejogar com a fronteira entre a aparência e arealidade. Tão completa é a nossa mestriaque podemos reflectir sobre ela”. “Os filmes,portanto, trazem de volta o problema da apa-rência e da realidade, desde a atmosfera ra-refeita da disputa filosófica, devolvem-no àspessoas, que o reconhecem como uma preo-cupação básica e que aprendem a resolvê-lonuma base de rotina e de jogo. Concretizadoe desmistificado, envolve uma função mentalbásica, a da cognição, e embora os filmes nãonos mostrem como a cumprimos, mostram-nos que podemos cumpri-la e de facto a cum-primos.” Neste sentido, “um dos maiores re-cursos do privilégio social – um maior dis-cernimento intelectual – é desafiado na suabase pelo cinema.”

– neste sentido que podemos dizer queJarvie retoma algumas das ideias formula-das por Merleau-Ponty na sua conferênciade 1945 [p. 117], em que o fenomenólogofrancês defendia a notável convergência, namesma época, entre o cinema e a nova fi-losofia: esta “não se constitui no encadea-mento de conceitos e, sim, no descrever a fu-são da consistência com o universo, seu com-promisso dentro de um corpo, sua consistên-

cia com as outras. E este assunto é cinema-tográfico por excelência. (. . . ) Se, então, afilosofia e o cinema estão de acordo, se a re-flexão e o trabalho crítico correm no mesmosentido, é porque o filósofo e o cinema têmem comum um certo modo de ser, uma de-terminada visão do mundo que é aquela deuma geração. Uma ocasião ainda de cons-tatar que o pensamento e a técnica se cor-respondem e que, segundo Goethe, ‘o queestá no interior, também está no exterior’.”O filme, comenta Xavier [1977: 76], é alivisto como um “‘objecto de percepção’ ca-paz de, pelas suas próprias características,tornar explícitas certas estruturas que orga-nizam o nosso comércio com o mundo: aimagem cinematográfica apresenta uma fi-gura do comportamento dos homens capazde expressar a contingência como condiçãohumana (o estar-em-situação, inserido den-tro de condições determinadas).” Mas, maisdo que Jarvie, Merleau-Ponty destaca, no ci-nema, “a união entre mente e corpo, mente emundo, e a expressão de um no outro. Nele,trata-se de tornar manifesta a falência da di-cotomia interior/exterior e mostrar que o sen-tido é aderente ao comportamento.” Ou seja,o seu conceito de cinema “vincula-se à crí-tica de Merleau-Ponty à concepção clássicada percepção – aquela que promove a sepa-ração entre a sensação (desorganizada) e ainteligência organizadora. Como a nova psi-cologia (Gestalt) o mostra e a fenomenologiada percepção o interpreta, a percepção é umaactividade e marca uma relação corporal como mundo, uma decifração estruturada, ante-rior à inteligência.”

O desenvolvimento da linguagem fílmicatem até permitido tornar cada vez mais cons-ciente e explícito esse jogo que todos joga-mos entre a aparência e a realidade. Para

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Jarvie, essa é uma prova do poder e flexi-bilidade do medium “o facto de, a princí-pio ludicamente e depois cada vez mais se-riamente, o filme, sem quebrar as suas con-venções, se tornar capaz de retratar o pro-cesso da sua própria experiência. As perso-nagens falam para o público, puxam os bor-dos do enquadramento para si, empurram otítulo ‘Fim’ de forma a terem mais tempo; aspersonagens dos desenhos animados saltampara fora do tinteiro e desafiam a mão que asdesenha; recusando-se a ser espartilhadas, aspersonagens aludem conscientemente a ou-tros filmes, e até saltam entre filmes; e as-sim por diante. Os filmes mostram-nos comoviver com o bracketing”, e parecem ser umespaço privilegiado para jogar com as ope-rações que nele estão envolvidas, e mesmoexplicitá-las. Robert Stam [1985] (apoiando-se, entre outros, em Bakhtine, Metz e Ge-nette) chama “tradição reflexiva”, tanto nocinema como na literatura, a esta colocaçãoem evidência das construções ficcionais atra-vés de interrupções, fracturas ou desconti-nuidades, como quando a narrativa realistaé interrompida para realçar os mecanismosartísticos: os protagonistas saem da persona-gem para se dirigirem ao leitor, ou a câmararecua para mostrar um microfone em frenteda cara de um actor (Stam estuda essa refle-xividade em romancistas como Cervantes eNabokov, dramaturgos como Brecht e Jarry,realizadores como Hitchcock, Bu–uel, Fel-lini, Godard, Wenders e Woody Allen).

David Boyd [1989: 195-197] analisou re-centemente um conjunto de seis filmes, mos-trando que “cada filme representa, de umaforma ou de outra, mais uma variação so-bre o tema familiar do círculo hermenêu-tico”. Isto far-nos-ia já deslocar das ques-tões, digamos fenomenológicas, da cognição

e da consciência para as questões, no entantoaparentadas, da interpretação e da consciên-cia do seu perspectivismo: o filme aparecetambém como lugar privilegiado de consci-ência do trabalho interpretativo. Possivel-mente, diz Boyd, “a semelhança mais signi-ficativa entre os filmes que discutimos aquicomo “ficções de interpretação” é simples-mente a frequência com que os seus váriosdramas interpretativos acabam em fracasso”,são crónicas de fracasso: mas isto não sig-nifica “que as conclusões dos próprios fil-mes sejam uniformemente niilistas” (bastaver Rashomon ou 8 e 1/2); significa apenasque assumem como central a problemáticado incessante questionamento interpretativo,a que não é possível fugir.

Robert Scholes [1976], considerando quea narratividade pedida a quem vê o filme éespecialmente “categorial e abstracta”, es-creve: “um filme bem feito requer interpre-tação, enquanto que um romance bem feitopode apenas requerer compreensão”. Con-clusão que me parece demasiado esquemá-tica, apenas possível na comparação entrefilmes que requerem do espectador um es-pecial trabalho de interpretação e romancesque deixam poucos “vazios” para serem pre-enchidos. O mesmo tipo de comparação éfeito por Peter Ruppert [1980: 63], que com-para dois filmes de Wenders e Fassbinder queadaptam romances, concluindo que “ambosos filmes procuram um maior nível de refle-xão em quem vê do que as obras [literárias]em que se baseiam”. Por sua vez, Currie[1995: 282] vê assim as semelhanças e di-ferenças de interpretação na literatura e nocinema: “Apesar do facto de o cinema seressencialmente um medium não linguístico,é possível desenvolver uma teoria geral dainterpretação que dê conta tanto da literatura

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como do cinema. Segundo essa teoria, a in-terpretação é explicação – explicação por re-ferência a causas intencionais. Com um ro-mance ou um filme, a tarefa do intérprete éformular hipóteses plausíveis sobre as inten-ções narrativas que produzem a obra. No en-tanto, a literatura e o cinema oferecem tiposde possibilidades narrativas bastante diferen-tes, e, em particular, o papel dos narradoresem quem não se pode confiar é mais redu-zido no cinema do que na literatura. O ci-nema mostra a necessidade de uma catego-ria de narrativas em que não se pode confiarmas que não têm narrador.” Não podemos,aliás, esquecer que a visibilidade e corporei-dade que o filme dá às personagens e situ-ações restringe o leque de possíveis que te-ríamos na simples leitura. Leia-se tambémDavid Bordwell [1989], em volta das ques-tões da interpretação dos filmes, incluindo oestudo da “retórica em acção” em sete inter-pretações diferentes do filme Psycho, de Hit-chcock.

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