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Psicologia Ciência e Profissão ISSN: 1414-9893 [email protected] Conselho Federal de Psicologia Brasil Marcondes Machado, Adriana Exercer a Postura Crítica: Desafios no Estágio em Psicologia Escolar Psicologia Ciência e Profissão, vol. 34, núm. 3, julio-septiembre, 2014, pp. 761-773 Conselho Federal de Psicologia Brasília, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=282033510016 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Psicologia Ciência e Profissão

ISSN: 1414-9893

[email protected]

Conselho Federal de Psicologia

Brasil

Marcondes Machado, Adriana

Exercer a Postura Crítica: Desafios no Estágio em Psicologia Escolar

Psicologia Ciência e Profissão, vol. 34, núm. 3, julio-septiembre, 2014, pp. 761-773

Conselho Federal de Psicologia

Brasília, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=282033510016

Como citar este artigo

Número completo

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Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal

Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Exercer a Postura Crítica:Desafios no Estágio em

Psicologia Escolar

Exercising Critical Stance: Challenges in a SchoolPsychology Internship

Ejercer la Postura Crítica: Desafíos en el Contrato dePrácticas en Psicología Escolar

Adriana Marcondes MachadoUniversidade de São Paulo

Artigo

http://dx.doi.org/10.1590 / 1982 – 3703001112013

Resumo: Os estudantes de graduação do curso de Psicologia do Instituto de Psicologia da Uni-versidade de São Paulo, ao cursarem as disciplinas relacionadas à área da Psicologia Escolar,realizam estágios em instituições educativas. Imbuídos de uma postura crítica, os estagiáriosentram em contato com demandas de tratamento, prevenção e adaptação e compreendem aprodução histórica destas. Todavia, em muitos momentos, os estagiários julgam essas demandascomo se fossem equivocadas e, dessa forma, não conseguem perceber a multiplicidade deelementos que as constituem e as formas para agir em sua produção. O objetivo deste artigo éapresentar um percurso de trabalho enfatizando as estratégias criadas para dar conta de um dosdesafios que se apresentam no grupo de supervisão: intervir nesse momento no qual osestagiários consideram o funcionamento da escola como algo exterior a eles. As estratégiascriadas indicam que a desconstrução necessária na formação dos estudantes de Psicologia paraque aprendam a intervir nos processos institucionais vividos durante os estágios requer,também, a desconstrução de uma forma de pensar que cria um suposto sujeito fora dodiagrama de forças em que o processo do estágio faz parte.Palavras-chave: Formação do psicólogo. Psicologia Escolar. Estudantes universitários (Psicologia).Relatórios.

Abstract: Undergraduate students of the Psychology Course at the Institute of Psychology of theUniversity of São Paulo, perform internships in educational institutions when attending thedisciplines related to the area of School Psychology. Imbued with a critical stance interns facedemands for treatment, prevention and adaptation, and they comprehend the historicalproduction of these demands. But in many cases, interns believe these claims are wrong, andthus fail to realize the multiplicity of elements that constitutes them and the forms and to act inits production. The objective of this paper is to present a course of study emphasizing thestrategies developed to work with one of the challenges that present themselves during the su-pervision: to intervene at that point in which interns consider the school as something foreign tothemselves. The strategies developed indicate that the deconstruction needed in the training ofpsychology students to learn to intervene in institutional processes experienced during theinternships also requires the deconstruction of a way of thinking that creates a pretendedsubject who is outside the force diagram in which the intern process is.Keywords: Training Psychologist. School Psychology. College students (Psychology). Reports.

Resumen: Los estudiantes de pregrado del Curso de Psicología del Instituto de Psicología de laUniversidad de São Paulo al asistir a los cursos relacionados al área de Psicología Escolarrealizan prácticas pre-profesionales en instituciones educativas. Imbuidos de una postura críticalos practicantes entran en contacto con demandas de tratamiento, prevención y adaptación, ycomprenden su producción histórica. Sin embargo, en muchos momentos los practicantesjuzgan esas demandas como si fueran equivocadas y, por tanto, no consiguen percibir lamultiplicidad de elementos que las constituyen y las formas de actuar en su producción. Elobjetivo de este artículo es presentar el recorrido de un trabajo que enfatiza las estrategiascreadas para atender a uno de los retos que se presentan en el grupo de supervisión: realizar in-tervención en el momento en el que los practicantes consideran el funcionamiento de laescuela como algo exterior a ellos. Las estrategias creadas señalan que la desconstrucciónnecesaria en la formación de los estudiantes de psicología para que aprendan a intervenir enprocesos institucionales vividos durante las prácticas requiere también la desconstrucción deuna forma de pensar que crea un supuesto sujeto fuera del diagrama de fuerzas en el que elproceso de prácticas participa.Palabras-clave: Formación del psicólogo. Psicología-escolar. Estudiantes universitarios(Psicología). Informes.

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O problema: como exercer apostura crítica

Quando os estudantes do curso de graduaçãoem Psicologia do Instituto de Psicologia daUniversidade de São Paulo (IPUSP) iniciamos estágios das disciplinas da área da PsicologiaEscolar, contam-nos que sabem o que não épara fazer, sabem que existem práticas quediscriminam e rotulam, sabem que existemações que reduzem os sujeitos a índices enúmeros, sabem sobre o perigo de interpre-tações totalitárias, sabem que a Psicologia eos psicólogos reproduzem relações de desi-gualdade de poder, sabem do perigo presentenos encaminhamentos de alunos das escolaspara avaliação psicológica quando estes isen-tam o funcionamento social e institucionalda responsabilidade pela produção de fracassoescolar, e perguntam: como agir diferente-mente disso? Como exercer a postura crítica?Até esse momento do curso, os alunos dePsicologia estudaram a relação entre o fun-cionamento do sistema capitalista e as pro-duções do fracasso escolar e da intensa de-sigualdade em nosso país (Patto, 1984, 1990;Chauí, 1980; Tanamachi, Proença & Rocha,2000; Machado, 2003). Esses estudantescursam o 7º semestre do curso de Psicologia(a graduação em Psicologia tem 10 semestres)e suas indagações revelam que teria sidomuito importante que as atividades de ex-tensão pudessem estar mais presentes desdeo início da graduação.

Ao chegarem às escolas públicas, onde algunsdos estágios são realizados, estão abertos,disponíveis e curiosos para entender os acon-tecimentos que lá acontecem. As primeirasidas à instituição escolar são, normalmente,impactantes. Experimentam situações difíceise uma das reações é crerem que deveriahaver mudança de atitude por parte dosprofessores que trabalham nas escolas. Muitasvezes defendem que os professores poderiamagir de uma maneira mais crítica se não in-dividualizassem as causas da produção dofracasso escolar dos alunos com os quais sepreocupam. Nas primeiras supervisões doestágio, uma das hipóteses que os estudantesde Psicologia formulam é de que seria ne-cessário apresentar aos professores das escolas

considerações que os ajudassem a percebera responsabilidade deles na produção daquiloque é tomado como problema. Com isso, osestagiários têm esperança de que os profes-sores mudem suas atitudes.

Essa situação nos mostra uma questão quese revela fundamental para ser trabalhadadurante o estágio: uma posição dos estudantesde Psicologia segundo a qual o outro é con-siderado equivocado (como se o problemaestivesse na ação do professor). Pensandodessa forma, os estagiários sugerem que de-veriam explicitar ao professor aquilo queestá acontecendo e que não está sendo per-cebido para, assim, produzir mudanças nosgestos. Essa posição dos estudantes de Psi-cologia é um dos desafios para a supervisão,pois eles tratam os professores das escolaspúblicas de uma maneira muito parecidacom a que, muitas vezes, os professoresdessas escolas tratam seus alunos.

O objetivo deste artigo é apresentar um per-curso de trabalho enfatizando a busca deestratégias para dar conta de um dos desafiosque se apresentam nos grupos de supervisão:intervir nesse momento no qual os estagiáriosconsideram o funcionamento da escola comoalgo exterior a eles. Portanto, esse trabalhofaz parte de uma investigação sobre os pro-blemas e desafios que se operam na formaçãode alunos do curso de Psicologia. Para isso,discutiremos a forma como os estagiários dePsicologia têm analisado os problemas pro-duzidos no espaço escolar e apresentaremosas estratégias criadas para problematizar essasanálises utilizando relatórios escritos pelosestagiários durante a experiência de estágioe reflexões realizadas nas supervisões.

Essa busca de estratégias requer o entendi-mento de que a intervenção e a investigaçãocaminham juntas. Para isso, temos comosubsídio os aportes teóricos da pesquisa-in-tervenção (Aguiar & Rocha, 2007; Altoé,2004), em que o profissional está envolvidono próprio diagrama de forças que investiga,buscando formas de agir naquilo que seconstitui nesse campo. Para apresentarmoso desafio nesse momento da formação dosestudantes de Psicologia, focalizaremos oformato do trabalho e os diferentes tempos

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vividos em estágios realizados durante osanos de 2009, 2010 e 2011 em Escolas Pú-blicas Municipais da cidade de São Paulo.

Formato do trabalho: entrea universidade e o campo deestágio

No curso de Psicologia do IPUSP, temos trêsdisciplinas que se articulam formando umasequência de discussões da área de Psicolo-gia Escolar. Duas são obrigatórias, teóricas, eministradas no quinto e sexto semestres docurso. A terceira disciplina é optativa e mi-nistrada no sétimo semestre. Os estágios sãorealizados nessa disciplina optativa, na qualtrabalham uma docente e três psicólogas doServiço de Psicologia Escolar. As psicólogasestabelecem as relações com as escolas pú-blicas e outras instituições de caráter educa-tivo para organização dos estágios. Os estu-dantes de Psicologia que se inscrevem nessadisciplina optativa são divididos em grupos– seis a oito estudantes por grupo de super-visão, que trabalharão em duplas. Cadagrupo cumprirá duas horas semanais de su-pervisão, duas horas semanais de estágio nainstituição, duas horas semanais de aula teó-rica e tempo para escrita de relatórios sema-nais com descrição e análise dos aconteci-mentos vividos no estágio.

Cada uma das três psicólogas do Serviço dePsicologia Escolar do IPUSP tem a responsa-bilidade de supervisionar os estágios de in-tervenção desses grupos de estagiários. Essainformação é fundamental, pois entendemosque as estratégias que desenvolvemos foramfruto da possibilidade de um contrato detrabalho (como psicólogo do IPUSP) no quala função de extensão da Universidade épriorizada e aprimorada. Sabemos que amaioria das instituições de ensino superiornão tem equipes de trabalho (docentes epsicólogos) para formularem e organizaremos estágios dos alunos. As estratégias investi-gadas e experimentadas durante o trabalhode supervisão a serem aqui apresentadasvêm sendo gestadas há tempos e a organiza-ção atual é fruto de muitos movimentos(Machado, 2003; Machado & Souza, 1997).

Muitos estágios são realizados em escolasmunicipais de ensino infantil e de ensinofundamental. As dificuldades são narradaspelos estagiários com muita angústia. Quandovamos às escolas públicas, os professoresnos pedem que ajudemos em situaçõesmuito difíceis, urgentes, que precisam de in-tervenções imediatas. Fomos aprendendo ademarcar diferentes tempos vividos no estágioe a intensificar formas de trabalhar essestempos com os estagiários de Psicologia.Durante os quatro meses de trabalho, os es-tagiários vão, em média, 15 vezes às escolase, como descrevemos acima, têm supervisõessemanais. Tudo muito intenso e rápido.

Cada dupla de estagiários se compromete aestar na escola duas horas por semana e éresponsável por trabalhar com uma situaçãoescolar durante o estágio que, como veremos,nos remete a vários temas que atravessam ocotidiano escolar. Muitas vezes, essas situaçõesque farão parte do trabalho de estágio foramdefinidas antes de ele se iniciar, nos encontrosque o psicólogo supervisor teve com os pro-fissionais que trabalham na escola. Comu-mente, essas situações estão relacionadas ahistórias singulares: uma certa aluna tem com-prometimentos orgânicos, está no 6º ano (an-tiga 5ª série, isto é, primeiro ano do EnsinoFundamental II) e tem apresentado muitasatitudes agressivas que não eram comuns noano anterior quando ainda frequentava o En-sino Fundamental I; um outro aluno apresentadificuldades intensas e se recusa a fazer ascoisas que lhe pedem; uma sala de aula do3º ano vive muitas cenas de indisciplina. Assituações começam a aparecer dessa forma,por aquilo que inquieta, que preocupa, quetensiona. Sabemos que esses acontecimentos(como todo acontecimento) são efeitos derelações que precisarão ser habitadas e co-nhecidas para que o trabalho se realize.

Relatos semanais: entre o campode estágio e a supervisão

Os estagiários escrevem, semanalmente,para a supervisão, relatos sobre o que ocor-reu no estágio, contendo fatos e análises.Esses escritos são denominados “relatos se-

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manais” e são lidos pelo supervisor (e, sepossível, pelos outros estagiários do grupo)antes da supervisão. Pedimos que os estagiá-rios os enviem mesmo se o estágio for reali-zado um dia antes da supervisão. Porexemplo, uma dupla que realizava o estágiona segunda-feira e a supervisão era na terça-feira de manhã, enviava os relatos semanaisaté segunda-feira, às 21 horas, para que fos-sem lidos no dia seguinte bem cedo. Enfati-zamos esse procedimento, pois tem sidoimportante para aproveitarmos o tempo dasupervisão, termos acesso a esse material es-crito antes que os estagiários nos contemsobre os acontecimentos no estágio. Écomum que situações muito mobilizadorasdemandem tempo da supervisão para seremnarradas e pensadas. Sabemos da importân-cia dessas narrativas, mas ao termos as infor-mações escritas nos relatos semanais,agilizamos a ampliação do campo de análisedaquilo que está sendo apresentado pelo es-tagiário, sem ficarmos aprisionados nas sen-sações e opiniões. Por exemplo, um dia umaestagiária havia escrito em seu relato semanaluma situação bastante tensa que havia ocor-rido entre a professora do 3º ano e os alunos.Havia sumido os estojos de duas alunas e aprofessora avisou que, se os estojos não fos-sem devolvidos, todos seriam revistadosantes de irem para casa. Os alunos forampara o recreio e, durante esse tempo, a pro-fessora e o coordenador tiveram uma con-versa da qual a estagiária também participoue, nela, decidiram que haveria outro proce-dimento, e os alunos não seriam revistados.No relato semanal, a estagiária havia narradomudanças na postura da professora após essaconversa, mas ao contar sobre esse fato nasupervisão, ela se deteve bastante tempo nacena em que a professora havia feito aameaça, pois tinha ficado muito aflita quantoà possibilidade de inspeção. Sabendo dasmudanças ocorridas na postura da profes-sora, foi possível ouvir a indignação da esta-giária, considerando que ela estava narrandouma situação com movimento: a professorabuscou o coordenador para conversar du-rante o recreio e mudou de ideia, conver-sando com seus alunos de outra forma. Apossibilidade de ter um coordenador paraconversar naquele momento nos indica queo gesto da professora está articulado a um

campo complexo e que faz diferença umaescola em que há tempo e pessoas para pen-sarem as situações do dia a dia. A conversacom o coordenador foi fundamental paraanalisar melhor a situação. Portanto, pensarque os alunos deveriam ser revistados ouque seria importante outro tipo de interven-ção, dependerá de um campo de relações,de uma multiplicidade de acontecimentos efuncionamentos institucionais.

As sensações e interpretações dos estagiáriosnos servem como alavanca para conhecer-mos o campo de relações. A supervisão tam-bém faz parte desse campo, isto é, o que serelata, como se relata e o que se analisa nãosão fatos apenas exteriores à supervisão, mastambém produzidos nela. O julgamento ne-gativo feito pela estagiária perante o gestoinicial da professora revela indignação e in-terpreta a atitude da professora como equi-vocada. Insistimos nessa diferença:indignar-se e interpretar o outro como equi-vocado são direções diferentes. Podemosdiscordar do gesto da professora, ficarmos in-dignados, mas ele é constituído historica-mente, assim como nossos pensamentos.Não é um equívoco. Concluir a análise deum acontecimento com julgamentos negati-vos em relação aos gestos dos outros é umpensamento reducionista que nos dá a ilusãode estarmos fora do campo de relações,como se não estivéssemos produzindoaquilo que analisamos, como se sempre hou-vesse algo anterior às relações. No entanto,cada acontecimento é efeito de um com-plexo campo de forças, e nossas ideias nãoapenas falam desse campo, elas o consti-tuem, são forças. Essa potência de criação,de constituir força, precisará ser intensificada(Passos, Kastrup, & Escóssia, 2009), agen-ciada, durante o estágio.

Portanto, o relato semanal serve de apoiopara a supervisão. Fomos percebendo queesses relatos semanais não apenas informavamo percurso e os movimentos no estágio, mastambém a forma como os estagiários pensa-vam os acontecimentos. Apresentaremos, aseguir, os diferentes momentos do estágio:primeira visita, definição de um territóriodisparador, cartas-relatórios, ampliação docampo de análise, tempos de fechamento.

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A primeira ida dos estagiários àinstituição: entre o contrato e orecontrato do trabalho

No primeiro dia de supervisão, são apresen-tadas informações aos estagiários sobre a re-lação estabelecida com a escola e trazidosalguns temas que foram indicados pelos pro-fessores. Em algumas experiências, essestemas são definidos em uma reunião naescola em que os estagiários também estãopresentes. Logo na primeira supervisão, osupervisor organiza uma tabela com os ho-rários de estágio de cada dupla na instituiçãoe, também, horários extras em comum pordupla, caso sejam necessários. Essa tabela éfundamental para que todos saibam dos ho-rários das duplas, pois o que acontece comuma dupla de estagiários terá efeitos no tra-balho das outras duplas.

Definidos o dia e o horário em que cadadupla de estagiário estará na escola, essaquestão (cumprir tempos e ocupar espaços)será fundamental. Entregamos para a escolauma planilha com o nome de todos os esta-giários e os horários em que estarão naescola e, depois, acrescentamos os temascom que irão trabalhar. Também entregamos,por escrito, nosso objetivo com o estágio.

É importante que os estagiários comecem otrabalho nas instituições rapidamente. Logodepois da primeira supervisão, eles vão à es-cola. Às vezes, o supervisor acompanha ogrupo de estagiários na visita inicial, mas, namaioria das vezes, eles vão para a escolasem o supervisor, apresentam-se para aequipe de coordenação da escola e procuramo professor com o qual trabalharão algumasituação. Até esse momento, tudo dependeumuito da relação entre o supervisor e ogrupo de professores da escola. Quando osestagiários vão à escola e se apresentam aosprofessores com os quais vão trabalhar, ocor-rem mudanças na forma de as questõesserem colocadas. É comum os professoresrelatarem para os estagiários, de outras ma-neiras, com outras intensidades, aquilo quehaviam narrado na reunião de professores.Por exemplo, a professora que havia contado

sobre uma sala do 3º ano muito indisciplinadacomentou com os estagiários o incômodoque ela sentia naquela escola, pois gostavado trabalho que exercia na escola em quetrabalhava anteriormente, mas, como tinhaum contrato de trabalho precário, perdeusua vaga para outra professora que era efetivana Secretaria de Educação. Entendemos que,a partir das relações que os estagiários esta-belecem com os profissionais da instituição,ocorre um recontrato do trabalho. Recontratono sentido de que, agora, os estagiários e aprofessora com quem trabalharão definirãopreocupações, temas e ações (que anteseram definidos entre o supervisor e os edu-cadores). Os estagiários aprenderão a criarum campo comum de trabalho com as pro-fessoras, precisarão conhecer as expectativase as preocupações das pessoas com as quaistrabalharão.

Logo no início, os estagiários percebem queo fato de serem da área da Psicologia inten-sifica a produção de queixas e a busca porexplicações individualizadas. Também háprofessores que parecem se desculpar aosestagiários todas as vezes em que precisamser firmes com os alunos. A professora do 3ºano repreendeu um aluno e logo disse paraa estagiária que sabia que psicólogos nãoeram a favor de broncas, mas que era ne-cessário agir dessa forma. Portanto, logo noprimeiro dia de estágio, essa professora nosindicou uma questão bastante importante:o cuidado que temos que ter devido a esta-belecermos relações nas quais parece quenós, psicólogos, somos detentores da boaforma de agir.

Em uma primeira conversa, essa professorahavia comentado sobre sala de aula comoum todo e, quando os estagiários perguntarampara quais questões e situações seria impor-tante eles estarem atentos, ela falou de trêsalunos em relação aos quais tinha muita di-ficuldade para ensinar. Os nomes desses alu-nos não haviam sido citados até então. Outraprofessora, que trabalhava com alunos comdeficiências em salas de aula específicas (elesestudavam durante a manhã em salas regularese, durante a tarde, eram divididos em pe-quenos grupos para terem aula com uma

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professora contratada para ensinar alunosvinculados à educação inclusiva), ressaltoupara os estagiários a importância de elesparticiparem das salas regulares para teremacesso a como esses alunos estavam se de-senvolvendo nessas salas.

As informações e os pedidos que os profes-sores fazem aos estagiários são fundamentaise nos dão pistas de como nossos corpos ha-bitam e constituem o campo de forças e re-lações. Esse aprendizado – perceber-se pro-duzindo aquilo que acontece e criar formasde derivar – é um dos objetivos do estágio.

Território disparador: informa-ções, pedidos, aproximações

Definidos tempos, espaços e temas, cadadupla de estagiário ocupará um territórioque chamaremos de território disparadore, também, começará uma relação comalgum profissional da escola. Esse territóriodisparador é, na maioria das vezes, a sala deaula (quando o estágio ocorre em CasasAbrigo, é a sala, a cozinha ou o quintal). Osestagiários frequentarão esse território durantetrês ou quatro semanas. Uma palavra serepete bastante nas primeiras semanas desupervisão: aliança.

Criar aliança com os professores implica algomais do que entender a história que constituicerto tipo de demanda. Implica percebermosisso – a produção da demanda – se operandona relação que estabelecemos com os edu-cadores. Quando um grupo de professoresem uma escola recusa algum tipo de trabalhoque os psicólogos estão oferecendo, temosque concordar com o fato de que aquilo quefoi ofertado não estabeleceu nada em comumcom os professores. Isto é, eles entenderamque aquilo que explicitaram como necessidadenão foi escutado. Uma professora nos contougraves problemas familiares pelos quais passavaum aluno seu, com muitas dificuldades paraaprender. A forma de relatar, bastante indig-nada, culpabilizava a família por muitas ques-tões e foi sugerido que, durante o estágio,entrássemos em contato com a família. Se,para um professor, é importante que tenhamos

contato com a família, é necessário conside-rarmos que o pedido nos indica uma aberturaa várias questões: para que serviria essecontato com a família, como realizar um bomencontro, o que já foi vivido em relação aessa família? Um exemplo relacionado a essetema: a coordenadora de uma escola deensino infantil trouxe a necessidade de falarmoscom a mãe de um aluno porque ele tinhaapresentado dificuldades na fala que poderiamser trabalhadas por um(a) fonoaudiólogo(a),mas a mãe não levava o filho ao especialista.Segunda a coordenadora, isso estava dificul-tando o processo de alfabetização desse aluno.Havia uma indisposição com relação a essamãe devido a situações anteriores. Conversa-mos muito sobre qual seria o objetivo desseencontro. Havia a ideia de que, por sermospsicólogos, poderíamos ter mais condiçõesde desmontar o que a fazia resistir e conven-cê-la de alguma maneira. Convencer? A ques-tão que se colocava é que nem essa mãe afe-tava a forma como as professoras entendiame sentiam os fatos, nem as professoras afetavamo que essa mãe vivia. Depois de definidoque seria interessante entender melhor comoa mãe estava pensando, a conversa foi reali-zada. Participaram dela: a coordenadora pe-dagógica, uma das estagiárias de Psicologia ea mãe do aluno. Nessa conversa, a coorde-nadora contou, novamente, sobre algumasdificuldades que estavam acontecendo naescola e a mãe falou dos entraves que invia-bilizavam o atendimento fonoaudiológico (al-guns deles conhecemos muito bem: problemasde tempo e vaga para ser atendido, custo detransporte e outros). Conhecer, indagar epensar promovem direções diferentes do queorientar e cobrar. Surgiram as dificuldadesem se priorizar esse atendimento em umavida na qual tantas dores não estão podendoser atendidas. A coordenadora precisaria in-tervir nos encaminhamentos de alunos que aescola fazia para a Unidade Básica de Saúde.Isso demandava telefonemas, encontros, con-versas, criação de redes e discussões. Nadafácil. A sensação dos educadores de que essamãe, em especial, não se esforçava por con-seguir o que era necessário para o filho erapresente. Nossa preocupação era com arápida conexão que se fazia entre essa sensaçãoe a ideia de que essa mãe era, em suaessência, alguém displicente.

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Aceitar ou recusar uma demanda impedeque ela sirva para analisar a situação e, comisso, torna-se difícil desconstruir e dar visibi-lidade ao campo de forças no qual foi cons-tituída. A demanda permite a imersão nocampo, abre o campo. Ela é formulada aosestagiários de Psicologia e, ao mesmo tempo,a Psicologia se constitui, historicamente, naexistência dessas demandas.

Portanto, criar alianças e perguntas para co-nhecer as situações com as quais trabalharão,já estará acontecendo no primeiro dia deestágio. As informações precisam ser regis-tradas nos relatos semanais, por exemplo: oincômodo da professora em relação à escolaatual (Quais diferenças entre a escola atuale a anterior? Como tem sido processada adiscussão sobre atribuição de salas para pro-fessores?); o fato de uma certa professoraachar que psicólogos não gostam de broncas(Quando são necessárias? Quando não fun-cionam?); a necessidade de acompanhar osalunos com deficiências nas salas regulares(Quais hipóteses temos para esse pedido?Quais são as preocupações da professora daeducação inclusiva?). Essas são algumas per-guntas que surgiram logo no primeiro diade estágio. Durante algumas poucas semanas– cerca de três –, os estagiários frequentamesses territórios disparadores e as dúvidasformuladas servirão de norte para suas ações.

Escrita ato: as cartas-relatórios

Os estagiários ficam indignados, tristes, algunschoram na supervisão. É difícil conviver comtantas histórias de abandono, medo, perdas,humilhação. Entram em contato com situaçõesde vida muito difíceis e percebem a com-plexidade e a precariedade do funcionamentoinstitucional.

Os relatos semanais, como dissemos, sãoentregues para o supervisor e para o grupode supervisão, mas percebemos que elescriavam uma ilusão: parecia que aquilo queestava escrito seria uma descrição, uma ex-plicação exterior que não estaria criandoaquilo que estava sendo descrito e explicado.Escreviam sobre alguns acontecimentos naescola sem se colocarem nas disputas e

tensões em que estes se constituem. Dareicomo exemplo um trecho escrito em umdos relatos semanais: “O coordenador daescola se mostra muito indisponível parapensar sobre o processo de aprendizado deFelipe defendendo que a função da escolaé, nesses casos, apenas socializar. Dessaforma, a escola não tem ensinado aquiloque ele poderia aprender”. Esse texto defendiaque Felipe teria maior capacidade paraaprender do que era desenvolvido e que ocoordenador estava tendo menos disponibi-lidade do que deveria ter. Uma escrita es-tagnada, que define a vida por um estado etotaliza as existências.

Percebemos que havia um problema naconstrução da escrita do relato semanal eque, para intervir nisso, seria necessário criaroutro tipo de prática. Nos relatos semanais,os estagiários registram acontecimentos, aná-lises e informações para o supervisor e sobrea escola. Passamos a pedir para que escre-vessem cartas-relatórios, que são, desde oinício, direcionadas aos profissionais das ins-tituições em que estagiam e, portanto, sãopara os envolvidos nas situações do estágio.Elas serão entregues aos professores ao finaldo estágio e, até lá, terão muitas variaçõesantes da versão final, pois, a cada dia de es-tágio, as análises mudam.

As perguntas que inspiram esses escritos são:Qual a função do estágio de Psicologia naescola (objetivo)? Quais situações vivenciaram(cenas)? O que pensam sobre essas situações(reflexões)? O que propõem (pensamentose ações)? Cada dupla de estagiários funcionade forma diferente em relação a esse escrito:algumas escrevem juntas, outras duplas optampor um escrever primeiro e depois o outrofazer sugestões; às vezes, escrevem um poucosobre cada pergunta, outras vezes, desen-volvem muito uma das perguntas e deixamas outras para um momento posterior.

As cartas-relatórios têm sido um exercícioimportante para os estagiários se perceberemno interior dos fatos: por serem palavrasque visam a afetar um campo relacional, aescolha destas exige reflexões sobre os efeitosque produzem. No início, ocorrem muitasgeneralizações, definições que fecham a

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existência ao colocar as pessoas como sujeitosdas frases, sujeitando-as aos acontecimentos(“os professores não têm disposição”, “osalunos não prestam atenção”, “a mãe nãofoi ouvida”). A escolha de palavras e frasesque tragam a multiplicidade presente emuma situação exige tempo. Os estagiáriosrelatam as dificuldades para realizar essasescolhas, pois vão percebendo que nenhumapalavra é suficiente. Eles têm de pensar nasequência de frases, no que pretendem dizerantes e depois, na forma como vão desen-volver uma linha argumentativa.

Nesses escritos, acompanhamos as transfor-mações na forma de pensar dos estagiários.No início, ao escreverem sobre a necessidadede os professores mudarem a forma de en-tender seus alunos, revelam uma forma decompreender o mundo que impede criaremcampos comuns, afetarem as existências: aosupervisor, reclamam dos professores (por-tanto, queixam-se), escrevem que estes de-veriam mudar (portanto, orientam), todavia,durante o estágio, vão conseguindo transfor-mar a forma de escrever e a maneira de agir.Vejamos isso em um exemplo.

Um aluno com deficiência, do 6º ano doEnsino Fundamental, ficava parado, semfazer nada na sala de aula regular. A professoratinha receio de pedir atividades mais com-plexas a ele, achava que era constrangedorporque esse aluno apresentava muitas difi-culdades. Por isso, pedia tarefas muito simples:pintar um desenho já feito, copiar uma letraetc. A estagiária, percebendo que o alunoestava desanimado (afinal, ele podia mais) eque a professora estava receosa (porque des-conhecia as forças dessa criança), perguntoupara a professora se haveria algum livroinfantil pelo qual esse aluno poderia se inte-ressar. A professora citou alguns livros de li-teratura infantil que havia na biblioteca eque esse aluno teria, inclusive, condições dever sozinho, pois eram histórias com imagens,sem escrita. O foco, em uma situação comoessa, não é criar estratégias de alfabetizaçãoe de interesse, mas intervir naquilo que im-pede a professora de se aproximar dessealuno (ela nunca havia tido uma experiênciade ensinar alunos que requerem mudançasna proposta curricular). A ideia do livro

surgiu porque essa estagiária estava à espreita,atenta às possibilidades que ocorriam: umdia ela havia reparado que esse aluno pegouum livro de um colega para folhear. Ficar àespreita, esse é mais um dos aprendizadosdo estágio. Na carta-relatório, a estagiáriaescreveu: “Um dia, estava na sala de aulaatenta ao que Claudinei fazia. Percebi queele demonstrou interesse por um livro. Eu ti-nha receio de, ao comentar sobre o livro,desanimá-lo, pois era comum ele se afastardaquilo que gerasse expectativa nos outros.Cheguei perto dele e, ao invés de perguntarse ele gostaria que eu lesse o livro para ele,perguntei se eu poderia ler junto dele (talvezisso nem fizesse diferença). Ele aceitou, vimosas figuras juntos e fomos apontando coisasinteressantes, um para o outro”. Nesse trecho,a estagiária explicita seus receios e suas apos-tas. Reconhece que o interesse de Claudineiem relação ao livro está interligado às ex-pectativas que se criam nas relações. Entende,portanto, que a relação que tem com Clau-dinei pode gerar efeitos diversos. E ela con-segue escrever de uma maneira que passaisso ao leitor (a necessidade de cuidado, denão invadir, de insistir) sem orientações equeixas.

Ampliação do campo de análise:surgem possíveis conexões

Entre o segundo e terceiro mês de estágio,muitas ações são delimitadas: conversar sobrecerto tema com uma professora; visitar a Uni-dade Básica de Saúde na qual alguns alunossão atendidos (e um, em especial, estava fal-tando muito na escola); participar da reuniãode professores do Ensino Fundamental II paradiscutir a presença de alunos com deficiên-cias; problematizar sobre como foram escolhi-das as crianças que representariam a escolaem um evento literário; marcar encontros comas professoras de alguns alunos em relação aosquais os estagiários têm se aproximado; buscara inspetora de alunos que é vizinha de umaluno que tem faltado etc. Muitas iniciativas econversas a serem realizadas. Durante essetempo, é comum que, como supervisoras dosestágios, participemos sistematicamente (quin-zenalmente ou a cada três semanas) de reu-

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niões de professores. Em um dos trabalhos emque eu era a supervisora, participava quinze-nalmente de reuniões dos professores do pe-ríodo da manhã – Ensino Fundamental I. Emoutra escola, eu ia duas vezes por mês nasreuniões, sendo uma na hora do almoço (comprofessores do Ensino Fundamental I do pe-ríodo da manhã) e outra no final da tarde(com professores do Ensino Fundamental II doperíodo da tarde). Nesses encontros com osprofessores, discutimos sobre algumas refle-xões formuladas durante os estágios. Foi assimque, em uma dessas reuniões, surgiu o assuntodos critérios utilizados na escolha de 10 alu-nos que poderiam participar de um evento li-terário. Os estagiários estavam próximos deum aluno que havia dito: “eu nem queromesmo participar disso aí”. Disso o quê? Deque falava? Os melhores alunos (por nota ecomportamento) eram indicados pelos profes-sores. Pudemos trazer, nessa reunião, as ten-sões presentes em decisões como essa,enfatizando que a questão não é apenas pen-sar a melhor forma de escolher (também é, elaengendra processos de subjetivação), mas,além disso, perceber que a revolta da maioriados alunos por não poder ir ao evento tem re-lação com o fato de não haver transporte paraque todos os alunos de uma certa série pudes-sem ir. A reação “eu nem queria ir mesmo”exige que consideremos todos esses elemen-tos, pois, do contrário, não entenderemos doque esse menino se defende.

Nesse terceiro mês de estágio, os estagiáriosjá trazem situações para serem discutidas, di-ferentemente do início, quando pedem orien-tação sobre o que fazer. Percebem mais cla-ramente as relações de forças que habitam,percebem que são forças nessas relações deforças e que, quanto mais avançam nas inter-pretações, mais chegam a uma região emque o próprio intérprete desaparece, em quea interpretação e a compreensão produzemaquilo que interpretam e compreendem,como se a interpretação precedesse o símboloa ser interpretado (Foucault, 1987, 1980/2006).

Os estagiários sabem que podem produzirinflexões importantes conforme o funciona-mento desse campo de forças e circulam,falam com pessoas, investigam. Contudo,penso que a maior conquista nesse tempo é

a capacidade que desenvolvem de afetar eserem afetados pelos acontecimentos. Vãopercebendo estratégias que potencializamaquilo que se apresenta cristalizado. Mas,vejam bem, não é que desenvolvem formasde potencializar os outros, como se faltassemcoisas aos outros, mas desenvolvem a capaci-dade de potencializar as relações que habitam.

Se uma visita a uma Unidade Básica deSaúde torna-se algo importante a ser feitopara discussão de uma história singular, issonão pode advir como uma orientação ousugestão para a escola. A questão não émostrar ou apontar aos profissionais da escolaa importância dessa ação. Criar sentido éuma ação totalmente diferente de verbalizara necessidade de que algo aconteça. Contagiaré uma ação diferente de orientar. Não queessas ações não carreguem forças em comum,mas não podemos tomar umas pelas outras.

Tempos de fechamento

As cartas-relatórios prontas têm cerca dequatro páginas. Como dissemos, os estagiáriosescrevem sobre o objetivo do estágio, ascenas vividas, as reflexões e ações. Muitasvezes, inserem trechos dos relatos semanaise retomam anotações em que pensavam di-ferentemente do que pensam ao final dotrabalho. Buscam escrever movimentos dopensamento. Apresento um exemplo de umtrecho de uma carta-relatório sobre o trabalhocom um menino de oito anos que, às vezes,ficava nervoso a ponto de bater em quemestivesse perto dele: “Eu não sabia comome aproximar de Diego. Ele tinha acabadode ter uma daquelas crises em que querbater em todo mundo e estava muito bravo.O inspetor de alunos havia ajudado, impe-dindo-o de bater nos colegas. Resolvi pegarduas raquetes de pingue-pongue e convidá-lo a jogar. Sabia que ele gostava desse jogo.Fomos jogar. Depois do jogo perguntei a elese poderíamos conversar sobre o que tinhaacontecido”.

Escrever “eu não sabia como me aproximarde Diego. Ele tinha acabado de ter uma da-quelas crises em que quer bater em todo

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mundo e estava muito bravo” invoca a ne-cessidade de inventar formas de aproximaçãoe, portanto, as dificuldades e desafios paraque a aproximação se desse. Em uma dasprimeiras versões dessa carta-relatório estavaescrito “era difícil se aproximar de Diego,pois ele tinha tido uma crise e estava bravo”.Essa forma ressaltava a dificuldade de Diego.

As cartas-relatórios são lidas com as professorase, dependendo da situação, com o aluno ecom os pais. Nessa leitura com as professoras,pedimos que nos indiquem questões queprecisam de mudanças na forma de escrever.Não é raro que as professoras apontemtrechos em que parece que o estagiário estáem uma posição de avaliador sobre o queacontece na escola. Em uma das vezes emque isso aconteceu, no final da carta-relatórioestava escrito: “Ficamos muito satisfeitoscom as mudanças que puderam se operarna relação entre a professora da sala vinculadaà educação inclusiva e a professora da salaregular”. A professora nos apontou que essafrase ressaltava a satisfação dos estagiários enão os problemas referentes à concepção eimplementação da política de educação in-clusiva e as dificuldades enfrentadas no diaa dia para que essas mudanças tivessemocorrido, como se a satisfação dos estagiáriosfosse o mais importante.

As cartas-relatórios exigem um trabalho bas-tante intenso por parte do supervisor e dogrupo de alunos e têm substituído, emalgumas situações, o relatório final sobre oestágio. Entendemos que os relatos semanaisentregues para a supervisão já têm, demaneira suficiente, as informações sobre osfatos e algumas análises sobre o que foifeito. Em vez de sistematizar as informaçõesem um relatório final para o supervisor, com-preendemos que essa sistematização devedialogar com o campo em que o estágio foirealizado, não apenas informando o que foifeito, mas possibilitando que o sentido das

ações possa advir, na medida em que os es-tagiários já conheceram o diagrama de forçase se reconhecem nele. As cartas-relatóriosrompem com uma escrita dominada pelarepresentação - uma escrita sobre o outro -e força os estagiários a criarem pensamentose palavras escritas com capacidade conectiva,de contato, de fazer derivar - a escrita parao outro, outro que se constitui, também,com aquilo que se escolhe escrever.

Este trabalho visa a combater uma pesadaherança que nos impregna: a filosofia da re-presentação inaugurada por Platão (Fuganti,2008), que busca a universalidade, o bommodelo, a ideia imutável, a realidade acabada.As interpretações conclusivas dos estudantesde Psicologia no início do estágio revelamessa herança. O desafio explicitado no iníciodo artigo – exercer a crítica – reconheceque a desconstrução necessária na formaçãodos estudantes de Psicologia para que apren-dam a intervir nos processos institucionaisvividos durante os estágios requer, também,a desconstrução de uma forma de pensarque cria um suposto sujeito fora do diagramade forças, que falaria do outro. Os estagiáriospodem transformar as situações que habitam,ampliando as conexões que possibilitem criardiferenciação em processos cristalizados. Apalavra conexão é importante, pois permitevisualizar aquilo que Deleuze e Guattari(1972/2010) afirmaram como sendo o desejo– ele é o fluxo, o próprio agenciamento,energia conectiva – e dar relevo à necessidadede criar derivações em situações que enten-demos estarem aprisionando a existência. Amotivação crítica pretende transformar ocampo social e isso se faz no campo relacionaldas forças, o que exige aberturas e disposiçõespara criar novas conexões de sentido, deafeto e de maneiras de pensar, pois a posturacrítica exige criarmos formas de acessar ocampo produtor daquilo que analisamospara agenciar mudanças de sentidos no pró-prio processo de produção.

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Adriana Marcondes MachadoProfessora doutora, docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São PauloEmail [email protected]

Endereço para envio de correspondência: Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia daAprendizagem do Desenvolvimento da Personalidade. Av. Prof. Mello Moraes 1721Bloco A Cidade Universitária. CEP: 05508900. São Paulo - SP. Brasil

Recebido 02/03/2013, 1ª Reformulação 07/09/2013, Aprovado 16/10/2013.

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Referências