a percepÇÃo de tÉcnicos e indivÍduos sem abrigo

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Slvia Maria Monteiro Quintas A PERCEPO DE TCNICOS E INDIVDUOS SEM-ABRIGO: Histrias ocultas de uma realidade no Porto

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Universidade do Porto Faculdade de Psicologia e de Cincias da Educao

A PERCEPO DE TCNICOS E INDIVDUOS SEM-ABRIGO: Histrias ocultas de uma realidade no Porto

Slvia Maria Monteiro Quintas

Maro 2010

Dissertao apresentada no Mestrado em Temas de Psicologia, rea de Especializao Psicologia da Sade, Faculdade de Psicologia e de Cincias da Educao da Universidade do Porto, orientada pela Professora Doutora Cristina Queirs (F.P.C.E.U.P.).

I

Em nome dos que pedem em segredo A esmola que os humilha e os destri E devoram as lgrimas e o medo Quando a fome lhes di

Em nome dos que dormem ao relento Numa cama de chuva com lenis de vento O sono da misria, terrvel e profundo

(Ary dos Santos, Kyrie, 1994, p.101)

II

RESUMO O fenmeno dos sem-abrigo, associado a uma nova pobreza emergente no sculo XXI, encontra-se em ntido crescimento nos grandes centros urbanos, com profundas implicaes psicolgicas para quem vive nesta condio e alvo de estigma. A investigao neste domnio ainda bastante escassa e torna-se premente estudar e compreender melhor esta realidade to complexa. O nosso objectivo caracterizar uma amostra de sem-abrigo na rea urbana do Porto e saber qual o seu nvel de satisfao com os servios, comparando a percepo dos sem-abrigo e a percepo dos tcnicos das instituies acerca desta mesma realidade. O trabalho constitudo por um enquadramento terico e um estudo emprico sobre os sem-abrigo e as instituies de apoio a esta populao na cidade do Porto. Na parte terica reflectimos acerca da pluridimensionalidade do fenmeno e da influncia recproca entre causas e consequncias desta condio de vida. No estudo emprico caracterizamos uma amostra de 85 sujeitos semabrigo da cidade do Porto e averiguamos a sua satisfao com os servios de apoio disponveis. Tentamos tambm conhecer a percepo de tcnicos de 12 instituies de auxlio a esta populao. Para todos os inquiridos efectuamos entrevistas semi-estruturadas. Conclumos que possvel definir vrias trajectrias de vida e diferentes perfis, evidenciandose empiricamente as noes de ser e estar sem-abrigo. Constatamos que cerca de metade da amostra se encontra satisfeita com a ajuda recebida por parte das instituies, apresentando estas uma perspectiva ora de assistencialismo, ora de reinsero psicossocial, apesar do reconhecimento geral da insuficincia na articulao dos servios, na reintegrao familiar, social e profissional dos utentes, e no tratamento da patologia mental nos indivduos semabrigo.

III

ABSTRACT

The phenomenon of homelessness increases in urban centers, with profound psychological implications for those who live in this condition, especially because of the stigma they suffer. Research about this domain is little and more studies are needed. Our goal is to characterize a sample of homeless in the urban area of Porto and determine their level of satisfaction with services, comparing the perception of homeless people with the perception of technicians from institutions who deals with this persons. The study has a theoretical framework and an empirical study of homeless people and institutions that support this population in the city of Porto. In the theoretical part we reflect about the multidimensionality of the phenomenon and the relationship between causes and consequences of this condition of life. In the empirical study we characterized a sample of 85 homeless people of Oporto and try to know the satisfaction with support services available. We also try to know the perception of technicians from 12 institutions that aids this population. For all respondents we used semi-structured interviews. We found different life experiences and different profiles, demonstrating empirically the concepts of being and staying homeless. We found that half of the sample is satisfied with the support received from the institutions. The institutions have a perspective of giving care, despite the general recognition of the failure of some services such as social and professional reintegration of users, and treatment of mental pathology in individuals homeless.

IV

RESUM

Le phnomne de ltinerance est en train daugmenter dans les grands centres urbains, avec de profondes implications psychologiques pour ceux qui vivent dans cet tat. Les sujets souffrent de la stigmatisation et on trouve peu dtudes sur ce thme. Notre objectif est de caractriser un chantillon de sans-abri dans la zone urbaine de Porto et de dterminer leur niveau de satisfaction face aux services, en comparant la perception des personnes sans abri et la perception des professionnels des institutions qui travaillent dans ce domaine. Le travail a un cadre thorique et une tude empirique. Dans la partie thorique nous rflchissons sur le caractre multidimensionnel du phnomne et linteraction entre les causes et les consquences de cette condition de vie. Dans ltude empirique on a caractris un chantillon de 85 sujets sans-abri dans la ville de Porto et essayer de vrifier leur satisfaction des services disponibles. Nous essayons aussi de connatre la perception des professionnels de 12 institutions qui aident cette population. Pour tous les rpondants ont a us des entrevues semi-structurs. Nous avons trouv diffrentes expriences de vie et des profils diffrents, dmontrant empiriquement les concepts de ltre et le devenir sans-abri. Nous avons constat que la moiti de lchantillon sont satisfaits du soutien reu par les institutions. Celles-ci donne des soins dassistance, malgr la reconnaissance lchec des services sur la rinsertion sociale et professionnelle des utilisateurs et le traitement de la pathologie mentale des personnes sans-abri.

V

AGRADECIMENTOS

Um trabalho desta natureza, com um cunho relacional to intenso e profundo, no possvel sem a ajuda e o apoio de outras pessoas. Apesar dos inevitveis momentos de solido, todas as contribuies, ainda que em graus diferentes, imprimiram a este estudo um significado partilhado, permitindo o nimo que o levou a bom porto. Agradeo a todas e todos os que contriburam para tornar este projecto realidade. Assim, os meus agradecimentos vo para todas as Instituies que me receberam gentilmente e me abriram as portas, com um destaque muito especial para o Abrigo Nocturno da AMI (Assistncia Mdica Internacional), na figura do Dr. Victor Correia e da Dra. Ana Torres e para a AANP (Associao de Albergues Nocturnos do Porto), nas pessoas do Director Dr. Costa Mendes e da equipa tcnica, Dr. Miguel Neves, Dra. Daniela Silva e Dra. Mara, por me terem possibilitado a realizao das entrevistas e pela receptividade, amabilidade e disponibilidade sempre demonstradas. Saliento tambm os meus agradecimentos especiais. Professora Cristina Queirs, pela sabedoria e sentido de oportunidade com que orientou o meu trabalho, pela acessibilidade e presena constantes, pela fora e incentivo que imprimiu em todo o processo, fazendo-me sentir sempre acompanhada neste caminho. Sem a sua valiosa contribuio este trabalho no teria sido possvel. A todas as pessoas que habitam as ruas e a cada uma delas em especial, pela generosidade com que partilharam as suas histrias, pela confiana depositada e por terem contribudo decisivamente para este estudo, o meu sincero agradecimento. Aos meus pais pelo apoio incondicional e pelo amor incomensurvel. queles que reclamaram a minha presena, que ouviram os meus desabafos e que me devolveram sempre uma palavra de alento, de coragem e de afecto. A todas e todos, muito obrigado.

VI

NDICE

INTRODUO

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CAPTULO I ENQUADRAMENTO TERICO 1. Os Sem-Abrigo 1.1. Delimitao do conceito e estimativas 1.2. Causa ou consequncia? 2. Os Sem-Abrigo e a Sade 2.1. Alimentao 2.2. Sade Fsica 2.3. Sade Mental 2.4. O papel da Psicologia 2.5. Perspectivas de interveno 3. Estudos Empricos 3.1. Estudos internacionais 3.2. Estudos nacionais 3.3. O Porto Sem-Abrigo

3 4 6 8 11 12 13 14 15 17 18 18 20 23

CAPTULO II ESTUDO EMPRICO 1. Metodologia 1.1. Instrumentos 1.2. Procedimentos 1.3. Caracterizao da amostra 2. Apresentao dos resultados 3. Discusso dos resultados

26 27 28 29 31 32 50

CONCLUSES

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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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VII

INTRODUO Este trabalho de investigao tenta efectuar a explorao e compreenso do fenmeno dos sem-abrigo na cidade do Porto, atendendo pluralidade e complexidade dos seus contornos, ainda pouco estudados e definidos. O ponto de partida para este estudo foi o contacto in loco com os sem-abrigo, no mbito de uma aco de voluntariado no Projecto Carrinha Comunitria da Delegao do Porto da Cruz Vermelha Portuguesa, consubstanciado na distribuio de alimentos e roupas, entregues semanalmente aos semabrigo durante a ronda nocturna realizada pelas ruas da cidade. Esta nossa incurso sistemtica e intensiva no terreno, enquanto observadores participantes, levantou-nos um conjunto de interrogaes acerca de quem so estas pessoas, como sobrevivem diariamente, que mecanismos de adaptao encontraram para fazer face sua condio, qual o seu nvel de satisfao relativamente aos apoios que lhes so disponibilizados pelas Instituies e qual foi o seu percurso de vida at situao actual em que se encontram. semelhana de Thelen (2006), consideramos que uma parte da realidade vivida pelos sem-abrigo s pode ser apreendida no contacto directo e contnuo com eles, no seu contexto real de vida, que a rua. Como tal, esta perspectiva intrnseca do fenmeno revelou-se fundamental, sendo a responsvel pelo incio de uma anlise mais estruturada e com carcter cientfico, que culminou no presente trabalho. O fenmeno dos sem-abrigo , actualmente, uma realidade social em acentuado crescimento nos grandes centros urbanos, cujas implicaes psicolgicas so inquestionveis e merecedoras de especial ateno pela Psicologia. Contudo, a investigao cientfica acerca das populaes sem-abrigo revela-se ainda bastante escassa, justificando-se por isso todos os estudos que possam aprofundar esta temtica. Assim, pretendemos contribuir para um conhecimento mais extensivo e abrangente da condio de vida sem-abrigo, a fim de encontrarmos pistas orientadoras e linhas de aco que possibilitem uma interveno mais sustentada junto da populao itinerante que habita as ruas do Porto. Desejamos dar voz queles que se encontram na situao mais extrema de excluso social, na convico de que os seus testemunhos e experincias vividas possam contribuir para a desocultao das suas reais necessidades e aspiraes. O estudo tem como objectivo principal caracterizar a realidade dos sem-abrigo no Porto e conhecer o seu grau de satisfao relativamente aos servios que lhes so disponibilizados. Pretende-se identificar percursos de vida e encontrar, eventualmente, regularidades ou padres de comportamento nas suas trajectrias, que nos permitam compreender como se chega derradeira desumanizao da vida na rua e que potencial de reinsero ainda poder subsistir perante tal adversidade. Propomo-nos, tambm, como1

objectivo secundrio, identificar e caracterizar as Instituies de apoio aos sem-abrigo da cidade do Porto quanto ao tipo de servios prestados e conhecer a percepo dos tcnicos face a esta populao e s respostas que institucionalmente lhe so oferecidas. Este segundo propsito, apesar do seu carcter acessrio, revela-se, contudo, importante, no sentido de nos permitir compreender a realidade efectiva dos sem-abrigo e o seu entorno social, o qual condicionar, certamente, os seus hbitos e rotinas, a sua sobrevivncia diria, assim como as suas estratgias de adaptao ao mundo da rua. Os dados obtidos permitiro contrapor as percepes de ambas as faces de uma mesma realidade, percebendo at que ponto convergente a forma como tcnicos e pessoas sem-abrigo apreendem esta forma de ser ou estar sem-abrigo. Atravs desta conjugao de perspectivas, tentaremos explorar o caminho a seguir para uma reabilitao efectiva e consistente daqueles que no possuem um lugar a que possam chamar casa, restituindo-lhes sentido de vida, dignidade e autonomia. Para atingirmos os objectivos propostos, estruturamos o trabalho em dois grandes momentos: enquadramento terico e estudo emprico. O enquadramento terico inicia-se com algumas consideraes sobre o fenmeno dos sem-abrigo e da sua pertinncia enquanto tema de estudo, seguindo-se a delimitao terica do conceito e a apresentao de algumas estimativas da sua abrangncia a nvel internacional e nacional. Reflectimos, ainda, sobre as possveis causas ou consequncias de estar sem-abrigo ou de ser sem-abrigo, distino essencialmente relacionada com o carcter transitrio ou permanente das vivncias associadas ausncia de um tecto fsico e de um abrigo afectivo e emocional. So abordados como pontos-chave na compreenso dos percursos de vida dos sem-abrigo, o desemprego e a precariedade econmica, as rupturas familiares e conjugais, as implicaes na sade fsica e a afeco da sade mental, ao nvel das psicopatologias e das toxicodependncias. Analisamos tambm o desabrigo sob um ngulo psicolgico, tendo por base alguns modelos tericos sobre este fenmeno, para numa fase final perspectivarmos a interveno de um ponto de vista holstico, integrando todos os contributos que viabilizem uma reintegrao biopsicossocial. Apresentamos ainda alguns estudos empricos internacionais e nacionais e tentamos explorar as particularidades da situao dos sem-abrigo na rea urbana do Porto. O estudo emprico foi efectuado junto de uma amostra de 85 pessoas sem-abrigo na cidade do Porto e de uma amostra de tcnicos de 12 Instituies que prestam servios a esta populao na mesma cidade, todos alvo de entrevistas annimas e semi-estruturadas, realizadas separadamente a cada um deles, de acordo com o termo de consentimento informado. Terminamos o trabalho com a apresentao de algumas concluses e da bibliografia consultada, que se encontra apresentada por ordem alfabtica, independentemente de se tratar de artigos cientficos ou artigos de jornais e revistas, por uma questo de facilidade de consulta.2

CAPTULO I ENQUADRAMENTO TERICO

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Neste captulo comeamos por tecer algumas consideraes gerais sobre o fenmeno dos sem-abrigo, para depois reflectirmos sobre as suas implicaes na sade fsica e mental dos indivduos e possveis perspectivas de interveno. Seguidamente, apresentamos alguns estudos empricos, cujo contributo se revelou importante no conhecimento da realidade dos sem abrigo e das instituies que lhes prestam auxlio, terminando com uma breve reflexo acerca dos factores envolvidos nesta condio de vida e das alternativas existentes ao nvel da reabilitao psicossocial.

1. Os Sem-Abrigo Importa, antes de mais, salientar que no por falta de proteco jurdica e de enquadramento legal que existem pessoas sem-abrigo. O direito a uma habitao condigna, ao trabalho, ao acesso sade e a um tratamento igual perante a lei universalmente proclamado, como podemos constatar, nomeadamente, pela Declarao Universal dos Direitos Humanos e pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, estando tambm defendido na Constituio da Repblica Portuguesa e nos diversos Decretos-Lei que adoptaram as medidas internacionalmente propostas. Contudo, a prtica afasta-se diametralmente da teoria e a resoluo total e definitiva do problema dos sem-abrigo certamente uma utopia e uma saga social que nenhum Governo jamais ir levar a bom termo. Assim, numa viso realista, a misso da sociedade em geral e, dos tcnicos de reabilitao em particular, ser reintegrar o maior nmero possvel de pessoas nesta situao, encontrando para isso respostas sociais eficazes e teraputicas adequadas. No difcil perceber o porqu do aumento constante de pessoas sem-abrigo, j que vivemos actualmente em sociedades cada vez mais individualistas e competitivas, em contextos sociais e culturais potencialmente psicticos pelas suas constantes exigncias e solicitaes, onde o encontro, o toque e a espontaneidade dos afectos deram lugar ao tecnicismo, massificao e virtualidade, retirando ao homem as suas ligaes ao concreto e desvirtuando-o da sua verdadeira condio humana. Encerrados em texturas urbanas que nos abafam (...) sentimos dia a dia cada vez mais dificuldade em nos reencontrarmos, em falarmos, em estabelecermos relaes (Laplantine, 1978, p.131). Neste sentido, no sero os sem-abrigo os inevitveis vencidos desta corrida quotidiana tantas vezes desleal? Os que desistiram de jogar de acordo com as regras mais ou menos definidas social e culturalmente, pela sua escassez de recursos aos mais variados nveis? Os que se cansaram de disfarar essa imensa angstia e de contrariar persistentemente a sua vontade, num contnuo esforo de adequao normativa? Aqueles que encontraram no desvio e na transgresso mecanismos de4

defesa e de libertao face a um conjunto de fontes de stress geradoras de conflito interno? Aqueles que se abandonaram s contingncias de uma condio de vida, mais inevitvel do que escolhida e, muitas vezes, expressa como o ltimo reduto de uma trajectria j longa de mltiplas rupturas nas mais variadas esferas da existncia humana? tambm neste contexto que se encontra generalizada a atitude tantas vezes indiferente e defensiva com que tentamos a todo o custo passar literalmente ao lado desta evidncia incmoda, evitando o nosso sofrimento ao ignorar o alheio. As pessoas que habitam permanentemente em espaos pblicos sem qualquer privacidade, os no lugares desumanizados e destitudos de significado, so imbudas de sentimentos constantes de desrealizao e despersonalizao. Estes so acentuados, ainda, pela exposio sistemtica a perigos vrios e aos olhares desconfiados e displicentes de quem as v como no iguais e at mesmo como no humanas. No olhar do outro, na sua atitude de repdio ou de tmida caridade, que disfara muitas vezes um paternalismo escondido, o desabrigado v reflectida a sua prpria imagem e esta estigmatizao social vai afectando em golpes profundos e dolorosos o seu amor-prprio. A reafiliao aos outros, que partilham com ele a mesma condio, o seu grupo de pares, afigura-se como uma tentativa desesperada de encontrar uma identificao a algo ou algum, que lhe permita satisfazer o seu instinto gregrio de pertena, j que todos os outros vnculos sociais e afectivos foram progressivamente quebrados na sua trajectria de vida. O objectivo no ser a recuperao de uma identidade perdida mas, pelo menos, o afastamento de um sentimento extremo de no identidade ou de exlio de si prprio, que no limite conduz a uma total insensibilidade emocional e ao desaparecimento completo de qualquer forma de sociabilidade (Thelen, 2006). No entanto, esta ligao com os iguais, conduz com frequncia adopo de mecanismos de adaptao vida na rua e sua perpetuao. Inicialmente, o que poder ter contornos pontuais ou temporrios, no sentido daquilo a que chamamos estar sem-abrigo, passar posteriormente a uma fase de permanncia ou cronicidade, no sentido daquilo que podemos designar como ser semabrigo, comprometendo seriamente a capacidade de autonomizao futura. Estes indivduos experimentam a solido e o desespero profundos, nos locais onde paradoxalmente menos se esperaria: os territrios repletos de gente, que escondem um sofrimento tantas vezes silencioso e at silenciado. A desumanizao aqui expressa confere a esta solido uma dimenso que no fsica nem objectiva mas construda por ns, reportando-se a um plano relacional e comunicacional, caracterizado pela ausncia de vnculos e por mltiplos vazios afectivos e existenciais. Os sem abrigo sero talvez o estado limite e mais marcante desta caracterstica do sculo XXI: o estar s no meio da multido, que neste caso traduz literalmente a realidade daqueles que habitam as ruas.5

Ento, quem so, afinal, os sem-abrigo? A pergunta reitera-se. Se lhe conseguirmos responder de uma forma relativamente concreta, aproximamo-nos conceptualmente da complexidade deste fenmeno, enraizado e entrelaado na convergncia de aspectos de mbito macro e microssistmico, que ao atingirem uma determinada dimenso, afectam globalmente o ser humano na sua unidade biopsicossocial. Esta desorganizao interna brutal tem a sua face mais visvel na excluso social, na marginalizao e na ausncia de um alojamento, porm, acarreta tambm repercusses drsticas a nvel psicolgico, que merecem um olhar atento. Quando falamos de sem-abrigo referimo-nos a pessoas destitudas de tudo aquilo que essencial para a vida de um ser humano: comida, alojamento, cuidados de sade, educao, trabalho e generosas doses de afecto. Compreende-se, assim, que a psicologia aplicada a esta problemtica possa assumir um papel crucial na desocultao dos seus mecanismos de instalao, manuteno e recuperao, olhando de longe para ver de perto. este trajecto dedutivo que iremos percorrer num duplo sentido, no decurso do enquadramento terico. Por um lado, analisaremos o fenmeno dos sem-abrigo numa viso social e conjuntural, para depois, de um ponto de vista mais microscpico, nos intrometermos nas suas implicaes individuais internas e subjectivas. Por outro lado, apresentaremos, inicialmente, uma perspectiva geral da abrangncia e caracterizao do desabrigo a nvel internacional, evidenciando, em seguida, a realidade portuguesa e mais concretamente a rea urbana do Porto. Passaremos, ento, de seguida delimitao terica do conceito de sem-abrigo, que num primeiro momento consideramos fundamental ao nvel da conceptualizao desta realidade, assim como se revelar essencial em termos operativos no estudo emprico posteriormente apresentado no segundo captulo.

1.1. Delimitao do conceito e estimativas A abordagem do fenmeno dos sem-abrigo complexa, dada a diversidade de perspectivas de anlise possveis, dificultando a convergncia de opinies e o consenso em torno de um conceito claramente operacionalizvel. Efectivamente, difcil fechar a noo de sem-abrigo numa definio estanque. Poderamos caracterizar os sem-abrigo ao nvel das causas que os conduzem a essa situao, sejam elas acidentais, estruturais, econmicas ou sociais (Pereira, Barreto & Fernandes, 2000). Seria exequvel, tambm, definir os sem-abrigo tendo em conta o tempo de permanncia na rua e o consequente grau de vulnerabilidade, distinguindo quatro formas de sem-abrigo: o crnico, associado ao alcoolismo e toxicodependncia, que passa grande parte da sua vida na rua e contacta principalmente com outras pessoas na mesma situao; o peridico, que tem casa mas que a deixa quando a6

presso se torna intensa, mantendo-se, contudo, a casa acessvel quando as tenses acalmam (incluem-se aqui, entre outros, os que partem procura de trabalho sazonal ou mulheres vtimas de violncia domstica); o temporrio, mais limitado no tempo, est numa situao de sem-abrigo devido a um acontecimento inesperado (desemprego sbito, doena grave, etc); por ltimo o total, considerado o mais catastrfico de todos, traumatizado devido ao facto de no ter casa nem manter relaes com a comunidade, pernoitando por vezes em albergues, com poucas ou nenhumas perspectivas futuras de recuperao (Rivlin, 1986, cit in Pereira, Barreto & Fernandes, 2000). O Conselho da Europa (1992) definiu os sem-abrigo como pessoas ou famlias que esto socialmente excludas de ocupar permanentemente um domiclio adequado e pessoal. A definio mais corrente assenta, de facto, na conceptualizao dos sem-abrigo a partir da situao habitacional em que se encontram ou do tipo de local onde pernoitam (Rossi, 1989). Nesta linha de conceptualizao, a definio adoptada pela FEANTSA (Federao Europeia de Organizaes Nacionais que Trabalham com os Sem-Abrigo) inclui no conceito de semabrigo todas as pessoas, que por falta de meios ou outro motivo, so incapazes de aceder a um alojamento pessoal adequado por si prprias ou com a ajuda dos servios sociais. Podemos considerar, ento, que os indivduos sem-abrigo so abrangidos pelas seguintes situaes: aqueles que vivem na rua; aqueles que ocupam legal ou ilegalmente casas abandonadas ou barracas; aqueles que se encontram alojados em refgios ou centros de acolhimento para semabrigo (pblicos ou privados) ou que vivem em camaratas ou penses; aqueles que residem em instituies, estabelecimentos de cuidados infantis, hospitais, prises e hospitais psiquitricos e que no tm domiclio ao sair destas instituies e, finalmente, aqueles que possuem uma casa que no se pode considerar adequada ou socialmente aceitvel, convertendo-se em pessoas ou famlias mal alojadas (Muoz & Vazquez, 1998). Ser esta noo de sem-abrigo, encarada como um processo e que permite traduzir a sua situao habitacional, que adoptaremos no nosso estudo emprico, ao nvel da delimitao do objecto de estudo. Perante esta panplia de situaes a considerar, parece evidente o porqu de encontrarmos dados to dspares relativamente contagem e caracterizao destas pessoas. Em toda a Europa o fenmeno dos sem-abrigo reconhecido como um grave problema social, o que se traduz em algumas tentativas de lhe dar uma dimenso estatstica, ultrapassando as noes do senso comum. O Conselho Europeu de Nice (2000) definiu objectivos especficos para erradicar a pobreza, tendo sido estabelecido que as polticas na luta contra a excluso devem basear-se num Mtodo Aberto de Coordenao (MAC), que combine os planos nacionais de aco e um programa da Comisso Europeia para fomentar a7

cooperao transnacional. A nvel europeu e segundo dados da FEANTSA (2000), o nmero de indivduos sem-abrigo tem sofrido um constante aumento. Estima-se em dezoito milhes de europeus (1 em cada 20 pessoas) nos 15 pases da Unio Europeia, o nmero de pessoas que esto impedidas de aceder a uma habitao condigna. Trs milhes esto efectivamente sem tecto e 15 milhes vivem em casas superlotadas e sem condies de habitabilidade. Este fenmeno assume diferentes propores em cada pas, sendo difcil um registo preciso devido falta de dados estatsticos, j que, por um lado, se tornam mais facilmente quantificveis aqueles que entram em contacto com os servios em algum momento da sua vida, o que no acontece com todos e tambm, por outro lado, devido falta de uma definio consensual do conceito de sem-abrigo. Em relao ao panorama nacional, deparamo-nos com a inexistncia de estatsticas fiveis pelas mesmas razes apontadas. Encontramos dados bastante dspares relativamente contagem destas pessoas e desconhecemos o tipo de definio terica adoptada em cada uma das situaes. Se falarmos em termos de caracterizao da populao sem-abrigo, os obstculos multiplicam-se, nomeadamente, pela grande disperso dos sujeitos por um vasto nmero de servios, tornando difcil a articulao dos dados, assim como pela mobilidade territorial que lhes caracterstica. No entanto, um estudo levado a cabo pelo ISS (Instituto de Segurana Social) em Portugal Continental, entre 2004 e 2005, apontava para 2717 sem-abrigo, com o seguinte retrato robot: sexo masculino, solteiro, entre os 30 e os 59 anos e 75% de nacionalidade portuguesa, salientando-se uma territorializao das problemticas: em Lisboa predominavam os indivduos com mais de 50 anos e problemas de alcoolismo, no Porto, porm, a maioria teria menos de 39 anos com problemtica de toxicodependncia associada. Aspectos que veremos mais detalhadamente ao longo deste trabalho. Depois de delimitarmos conceptualmente o conceito de sem-abrigo e de conhecermos a sua dimenso, importa agora, no intuito de uma compreenso mais abrangente deste fenmeno, reflectir um pouco relativamente ao decurso dos acontecimentos de vida e das vicissitudes, que podero conduzir algum a uma situao de sem-abrigo e de ruptura com o seu meio social e familiar.

1.2. Causa ou consequncia? Os processos que levam algum a tornar-se sem-abrigo e que explicam a entrada nessa espiral descendente de ataque severo dignidade humana so geralmente processos multifactoriais, num somatrio de perdas consecutivas que finalmente conduzem o indivduo situao de pobreza mais extrema (Costa et al., 2008). Nas sociedades modernas, a pobreza no corresponde somente a uma carncia de recursos econmicos, mas igualmente a um8

estatuto social especfico, inferior, humilhante e desvalorizado. Actualmente, a pobreza conceptualizada como ausncia de poder para influenciar outros ou para moldar o seu futuro, sendo vivida com um grande sentimento de inutilidade, que recalca profundamente a identidade dos mais desfavorecidos, os quais no pertencem a nenhuma classe nem possuem qualquer estatuto social. O indivduo que, inicialmente, se poderia encontrar numa situao de integrao social e de estabilidade profissional, passaria de seguida para uma situao de vulnerabilidade social e de precariedade laboral, at se encontrar por fim isolado socialmente, numa condio evidente de marginalidade e excluso (Castel, 1991). Os sem-abrigo de hoje j no so os vagabundos ou mendigos de outrora. No fundo, podem ser qualquer um de ns, pelas graves situaes de instabilidade e vulnerabilidade social em que vivemos actualmente e que se comearam a acentuar nas grandes cidades a partir dos anos 80. Por um lado, com o fenmeno da ps-industrializao e, por outro, com a fragilidade crescente das redes de suporte familiar e social. Trata-se de uma nova pobreza, apontando para vrias evolues simultneas, como a degradao do mercado de trabalho, a multiplicao de empregos instveis e precrios, o forte crescimento do desemprego de longa durao, assim como o enfraquecimento dos laos sociais, cujos principais sintomas se manifestam no aumento das rupturas conjugais e no declnio das solidariedades de classe e de proximidade (Paugam, 2003). Os sem-abrigo, cujo aparecimento se acentua com a globalizao econmica, associam-se tambm a fenmenos de imigrao clandestina e a uma marginalidade urbana difusa, sendo talvez a figura que melhor descreve a crise do Estado Social. Apesar de podermos encontrar causas comuns, estruturais e conjunturais, como o desemprego, as carncias econmicas e habitacionais, reveladoras da necessidade de mudanas e intervenes a nvel poltico e social na resoluo do problema dos sem-abrigo (Costa et al., 2008), no devemos, todavia, menosprezar a especificidade e originalidade de cada percurso de vida. Nos factores individuais relacionados com esta problemtica podemos incluir, as doenas fsicas e mentais, os consumos de lcool e drogas e as perdas de valores (Main, 1998). A estas caractersticas pessoais, que colocam os indivduos em situao de maior fragilidade ou s consequncias desta condio de vida (coloca-se a dificuldade em discernir claramente que aspecto precede os restantes, sendo mais prudente apontar para uma diversidade de factores que mutuamente se potencializam) acrescentaramos, sublinhando, a instabilidade emocional, o isolamento e a solido, como pedras basilares da realidade psquica dos sem-abrigo. Nas suas deambulaes sociolgicas, Pais (2006, p.39) descreve com particular realismo este fosso emocional: Em todos vejo rostos desgastados pelo tempo. Ao anoitecer, cambaleando, parecem tropear com a escurido da noite (...) Uns anseiam por9

comunicar, outros prezam uma solido habitada de silncios, ao desabrigo das palavras (...) Que palavras o silncio esconde? Que sentidos expressa? Que identidades sustenta? Que sentimentos habita? (...) Muito do que no pode ser dito s pode ser vivido, da mesma forma que nem tudo o que vivido pode ser transmitido. Nos sem-abrigo, s possvel aceder a tudo isto atravs de uma abordagem fenomenolgica dos seus modos de (sobre) viver, atravs de uma experincia prxima que pretenda conhec-los na sua essncia de sujeitos em vez de os conhecer apenas como objectos (de estudo). A condio de sem-abrigo pode ser compreendida como o resultado de um longo percurso de desintegrao, de ausncia de perspectivas, de degradao das relaes de pertena, de desvinculao laboral at ao ltimo patamar responsvel pelos fenmenos de ruptura e de crise identitria. A este propsito, poderamos caracterizar o estigma como um atributo social que desacredita profundamente a pessoa, estilhaando a sua identidade e impedindo-a de ser socialmente aceite. Este processo de estigmatizao externo mas acaba por ser interiorizado, transformando-se tambm em auto-estigma, afectando indelevelmente a percepo que estes indivduos tm de si prprios (Goffman, 1993). A anlise das causas explicativas do fenmeno sem-abrigo conduz-nos reflexo sobre o ser e estar sem-abrigo. Esta condio pode ser encarada como um processo progressivo, referente inicialmente a estar sem-abrigo, percepcionado como algo anormal que sugere receio e desamparo, para, eventualmente e gradualmente, passar a ser sem-abrigo, algo percepcionado com normalidade, como consequncia da acumulao de insucessos, do conhecimento de estratgias dirias de sobrevivncia e da perda de esperana num estilo de vida alternativo ao existente (Pereira et al., 2000). A entrada na condio de sem-abrigo geralmente uma experincia traumatizante, verificando-se um choque inicial com esta realidade (Goodman, Saxe & Harvey, 1991), que pode ter maior ou menor repercusso consoante a resistncia da estrutura psicolgica preexistente e a sua maior ou menor vulnerabilidade, condicionando o ritmo de degradao do indivduo. No entanto, existe, na maioria dos casos, como que um toque de alerta interno a partir do qual surge um comportamento pr-activo na procura de alternativas de sada da condio sem-abrigo, que encarada como uma situao temporria ou transitria. Neste estdio de estar sem-abrigo, a possibilidade de sucesso bastante significativa se o modelo de reinsero for adequado e atempado. Porm, no estdio de ser sem-abrigo j no existe disposio para a reinsero, devido sobretudo ao insucesso de tentativas anteriores, com a frustrao decorrente de sucessivas recadas (Pereira et al., 2000). Configura-se uma situao de impotncia aprendida, que com o passar do tempo d lugar ao desnimo e acomodao. Geralmente, sinnimo do desgaste geral da estrutura psicolgica, da motivao e das10

competncias cognitivas e relacionais. Como o grau de disfuncionalidade, provocado pela desorganizao biopsicossocial, bastante acentuado, a probabilidade de sucesso de um processo de reabilitao bastante diminuta. Os indivduos consideram que so sem-abrigo, aceitam essa condio e resignam-se a ela, cristalizando num estado de desistncia e tendo como nica preocupao garantir a satisfao das necessidades bsicas (Frade, 1998). A perpetuao no tempo da condio de sem-abrigo, nesta perspectiva de cronicidade, implica uma deteriorao progressiva do estado geral de sade do indivduo e o aparecimento de doenas directamente decorrentes de um estilo de vida instvel e inseguro. So estes aspectos que analisaremos em seguida de forma mais pormenorizada, nomeadamente, as questes associadas alimentao, s afeces fsicas e aos problemas do foro psiquitrico e psicolgico.

2. Os Sem-Abrigo e a Sade A OMS (Organizao Mundial de Sade) define a sade como um completo estado de bem-estar fsico, mental e social e no simplesmente a ausncia de doena ou enfermidade. Esta, actualmente, j no concebida unicamente em termos biolgicos ou mdicos, exprimindo-se tambm em funo do contexto social, econmico, poltico ou cultural. Um dos principais elementos do quadro conceptual recente a sade da populao, determinada por um vasto leque de factores: o patrimnio biolgico e gentico, o desenvolvimento saudvel e o acesso aos servios de sade, o meio fsico envolvente e as capacidades de adaptao vida quotidiana, o rendimento econmico, o emprego e as condies de trabalho, as redes de suporte social e a educao. Na condio de sem-abrigo muitos destes aspectos encontram-se gravemente comprometidos e, provavelmente, por esse motivo a sade desta populao tem sido, recentemente, alvo de numerosas investigaes, sendo o domnio relativamente ao qual encontramos mais informao reunida e disponvel. Existe uma correlao evidente entre itinerncia e debilitao da sade, no entanto, difcil estabelecer uma relao causal e linear entre os dois conceitos. Uma sade debilitada um factor de risco para um indivduo se poder vir a tornar sem-abrigo e, por outro lado, a vida na rua afecta violentamente a sade, deteriorando-a rapidamente e dificultando ainda mais o realojamento. Doenas graves e abruptas, acidentes ou doenas crnicas (na ausncia de seguros de sade e de subsdios socais) implicam dispndio de tempo, custos mdicos elevados e incapacidades, acarretando graves riscos de desalojamento e de precariedade. Por outro lado, a sade de um sem-abrigo degrada-se, inevitavelmente, pela inacessibilidade a um alojamento seguro e permanente e a cuidados de sade adequados, pela impossibilidade de ter uma alimentao saudvel e de manter hbitos de higiene pessoal e de repouso (horrios e11

rotinas), assim como pelos seus fracos ou mesmo inexistentes recursos econmicos, que no lhe permitem aderir, na maioria das vezes, s teraputicas prescritas e efectuar os tratamentos mdicos necessrios. Normalmente, este cenrio completado com a co-morbilidade de patologias fsicas e mentais, na medida em que aqueles que sofrem de doena mental negligenciam ainda mais a sua sade fsica pela grande dificuldade em tomarem conta de si prprios, ao que se associa, invariavelmente, a exposio sistemtica a elevados nveis de stress e ansiedade, inerentes vida na rua. Conflui-se assim para a prevalncia de elevadas taxas de morbilidade e mortalidade nos sem-abrigo, superiores da restante populao domiciliada, as quais esto directa ou indirectamente relacionadas com a impossibilidade de manter uma alimentao correcta e saudvel.

2.1. Alimentao Em todas as sociedades a alimentao um acto cultural, ligando a satisfao dos aspectos fisiolgicos s tcnicas de preparao dos alimentos, socializao, aos ritos de consumo e simbologia de uma temporalidade quotidiana. Constatamos facilmente que o desabrigo no contempla nenhum destes aspectos, pela impossibilidade de os conjugar com os mecanismos existenciais de (sobre) vivncia na rua. Assim, a alimentao dos sem-abrigo s pode ser compreendida face s contingncias a que est sujeita, ao seu carcter marcadamente sazonal e lgica de instrumentalizao a que est submetida. Assume na realidade um papel econmico, possibilitando o desagravamento fiscal s empresas doadoras do banco alimentar (at 2% do seu volume de negcios) e a reciclagem de excessos no vendveis sados da Comunidade Europeia. Trata-se de uma alimentao proteiforme, flagrantemente

desequilibrada e inadaptada s suas reais necessidades (Amistani & Terrolle, 2008). Os gneros distribudos, dependentes de circuitos de recuperao, so de m qualidade e no decorrer dos longos perodos de armazenamento, perdem as suas qualidades originais e diminuem as suas propriedades organolpticas. Pretende-se saciar e no alimentar verdadeiramente os improdutivos, no seguimento da velha ideologia dos mdicos higienistas do sculo XIX. Apesar dos conselhos recorrentes dos bancos alimentares s associaes de ajuda alimentar, estas continuam a distribuir uma alimentao nutricionalmente catastrfica, sem compensao em fruta e legumes frescos, com carncia de protenas e vitaminas e muito sobrecarregada de farinceos e hidratos de carbono. Este dfice vitamnico por vezes atenuado custa de suplementos diversos e sistemticos, como a vitamina B6, recomendada medicamente mas anrquica nos efeitos produzidos, devido s flutuaes dos sem-abrigo pelos servios disponveis. Os nutricionistas afirmam a necessidade de resolver esta questo no quadro de uma filantropia renovada e humanitria, surgindo, nesta perspectiva, o Vita12

Poche: alimento energtico chocolatado enriquecido com vitaminas e apresentado sob a forma de pasta, embalada num papel de alumnio estanque), elaborado pela Sociedade Nutriset e vendido s instituies humanitrias. Ser esta a resposta esperada pelos filantropos, que j no sculo XIX falavam numa geleia nutritiva para os necessitados? Se somos o que comemos, as pessoas sem domiclio fixo, no podem seno estar conscientes da excluso que os marca no plano alimentar e que se estende aos mais variados domnios (Gaboriau & Terrolle, 2003). A alimentao desempenha um papel estruturante no nosso equilbrio fisiolgico e psicolgico e, neste sentido, o desequilbrio nutricional que atinge diariamente os sem-abrigo alarmante, acarretando graves e preocupantes problemas de sade fsica, como adiante veremos.

2.2. Sade fsica Apesar de mltiplas variveis, como a idade, o sexo e a etnia, poderem influenciar de forma diferenciada a sade da populao sem-abrigo (Begin, Casavant & Chenier, 1999), h diversas problemticas transversais a este grupo, que nele adquirem especial dimenso. O sem-abrigo adulto tem uma percentagem de mortalidade cerca de quatro vezes superior da populao em geral e a sua mdia de vida situa-se abaixo dos 45 anos de idade (Donohoe, 2004). As doenas cardiovasculares, enquanto patologias assintomticas, so a principal causa de morte nos indivduos sem-abrigo do sexo masculino, muito associada elevada prevalncia de hipertenso arterial e outros factores de risco, nomeadamente, o tabagismo, o alcoolismo e a hipercolesteremia. (Raoult, Foucault & Brouqui, 2001). Apesar de muitos sucumbirem tambm hipotermia e s doenas etlicas do fgado. Os comportamentos de risco relativamente s doenas sexualmente transmissveis, como a partilha de seringas, relaes sexuais desprotegidas e a prostituio, justificam a elevada prevalncia de VIH/SIDA, Hepatites B e C, tuberculose e outras doenas infectocontagiosas, risco este ainda agravado pela ineficcia ou ausncia de programas de vacinao especficos dirigidos a este grupo. De acordo com o Departamento de Sade e de Servios Humanitrios, em 1996 nos E.U.A., 3% dos sem-abrigo tinham problemas de HIV/AIDS, 26% tinham graves problemas de sade, como tuberculose, pneumonia ou doenas sexualmente transmissveis e 46% apresentavam problemas de sade crnicos, tais como tenso alta, diabetes ou cancro. Estudos realizados em Espanha revelaram, igualmente, elevados ndices de HIV e tuberculose nos sem-abrigo comparativamente com a restante populao espanhola (Muoz, Vazquez & Cruzado, 1995). A permanncia na rua, associada a cuidados de higiene desadequados, torna esta populao mais susceptvel a infeces de vria ordem, nomeadamente, do trato urinrio, infeces dentrias (devido a graves problemas de13

higiene oral), doenas respiratrias (asma, bronquite e pneumonia), afeces gastrointestinais e doenas dermatolgicas como lceras e gangrena (Raoult, Foucault & Brouqui, 2001). O tratamento de urgncia social arrasta consigo o fracasso, tanto no plano alimentar como nos planos relativos sade e aos cuidados de higiene. A ausncia de estabilidade na cronicidade e cristalizao da vida na rua hipoteca todo o tratamento continuado dos males e toda a esperana de um regresso a uma normalidade sanitria (Amistani & Terrolle, 2008). Esta constatao tambm extensvel ao domnio da sade mental, onde as lacunas ao nvel do tratamento e da reinsero de pessoas sem-abrigo atingem propores alarmantes. Esta , provavelmente, a rea onde a resposta social se revela mais ineficaz e menos direccionada. 2.3. Sade mental A grande questo que se coloca se a itinerncia causa ou consequncia da doena mental, a qual constitui, actualmente, uma preocupao primria em matria de sade (Begin et al., 1999). A doena mental , sem dvida, um factor de risco e de vulnerabilidade que pode conduzir situao de sem-abrigo, na medida em que a funcionalidade e autonomia dos sujeitos ficam altamente afectadas, agravando-se exponencialmente este risco para os doentes com esquizofrenia (Olfson et al., 1999, cit in Bento & Barreto, 2002). A sintomatologia delirante persecutria, as alucinaes auditivas, os comportamentos bizarros e a negligncia com a higiene pessoal, impedem o estabelecimento de relacionamentos interpessoais normais, podendo conduzir alienao e ao isolamento (Mojtabai, 2005). H quem afirme que, na maior parte dos casos de sem-abrigo, a presena de psicopatologias precede claramente a vida na rua. Contudo, a precariedade econmica e social e a consequente devastao psicolgica, associadas a esta condio, podero funcionar tambm como stressores, com um papel crucial na precipitao dos surtos psicticos e na manuteno das perturbaes mentais (Hendryx & Ahcni, 1997, cit in Shinn, 2007). As mais comuns entre a populao sem-abrigo so a esquizofrenia, perturbaes delirantes persistentes, depresso, toxicodependncia, alcoolismo, duplo diagnstico e perturbaes da personalidade (Fischer & Breakey, 1991; McQuistion et al., 2003; Muoz et al., 1996), no existindo, contudo, exclusividade de patologias neste grupo de pessoas. De acordo com dados apresentados em 1996 pelo Departamento de Sade e de Servios Humanitrios nos E.U.A., as situaes de duplo diagnstico afectavam 66% da populao sem-abrigo, 38% apresentavam problemas de alcoolismo, 26% dependncia de drogas e 39% problemas de sade mental. Ao nvel do panorama nacional, de acordo com os Servios de Psiquiatria e Sade Mental da Direco Geral de Sade, verifica-se que em mais de 90% dos casos possvel estabelecer um diagnstico, com predominncia clara para quatro tipos de patologia: alcoolismo, toxicodependncias, psicoses e perturbaes da personalidade14

(Bento, 2001). Os quadros demenciais so tambm frequentes, sobretudo na populao semabrigo mais idosa ou dependente de lcool, podendo ainda estar relacionados com uma reduzida ou mesmo inexistente estimulao intelectual e cognitiva nestes longos percursos de excluso. A Sade Mental algo profundo e global, que participa activamente em todo o funcionamento humano, quer biolgico, quer psicolgico, expandindo-se por todo o sujeito. Como refere Matos (2003, p.12), quando uma parcela desse corpo adoece ou di, a doena ou a dor ser necessariamente mental e vice-versa. Ser sempre global. Sendo assim, aquilo a que costumamos chamar Sade Mental, deveria chamar-se apenas Sadeapenas Sade, tout court. Nos sem-abrigo, as doenas mentais e fsicas podem facilmente ser compreendidas como perturbaes psicossomticas, no sentido da expresso simblica de um conflito psquico e da ausncia de laos afectivos. A nossa sensao de bem-estar no indiferente a essa ausncia e reclama-a, somatizando as dores da alma. Esta constatao remete-nos para a necessidade de compreender as vivncias psicolgicas e emocionais subjacentes realidade dos sem-abrigo. neste sentido que as teorias psicolgicas podem fornecer um importante contributo.

2.4. O papel da Psicologia A nvel social a temtica do desabrigo tem sido j amplamente debatida, no entanto, o conhecimento acerca dos mecanismos psicolgicos a ela inerentes encontra-se ainda relativamente inexplorado. Para alm da realidade visvel e externa daqueles que habitam nas ruas, tambm fundamental perceber quais as suas realidades intrnsecas mais ntimas, como vivem, pensam e sentem o desencontro com o outro e, em alguns casos, consigo mesmo. Como salienta Pais (2006, p.34), o que se reclama um olhar intrometido, olhar metido no que normalmente se desolha, mas tambm comprometido, isto , envolvendo um compromisso, uma obrigao de denncia, de desocultao, de desvendamento, (...) um olhar de compreenso que permita desvendar os sentidos do vivido. O conceito de desafiliao, proveniente da sociologia e definido como ruptura dos laos afiliativos com os principais sistemas sociais e grupos de pertena, poder ter uma traduo em termos psicolgicos ao nvel da filiao e da vinculao aos outros. Os sem-abrigo caracterizam-se pela ausncia de uma vinculao segura que se explica por uma histria relacional quase sempre disfuncional, pautada por inmeras perdas e rupturas. Neste sentido, a sua grande dificuldade de amarem e serem amados pode ser entendida como uma autoteraputica de proteco perante processos precoces muito dolorosos (Bento, 2001). No consolidaram dentro de si um sentimento de confiana bsica que lhes permita acreditar que os outros no os abandonaro, apresentando, por isso, comportamentos de maior ambivalncia, ansiedade e desorganizao emocional.15

Tambm tm dificuldade em se situarem como pertencentes a um sistema de relaes, o que denuncia a existncia de importantes falhas ambientais precoces, ao nvel das funes materna e paterna, que foram vividas como uma ferida narcsica profunda, com sentimentos dolorosos de falta e de frustrao pessoal, que acabam por se espalhar para outras reas da vida (Bento & Barreto, 2002). Segundo os mesmos autores, os modelos de vinculao insegura encontram-se relacionados com uma maior hostilidade e desconfiana em relao ao mundo social, mais solido, sintomas fsicos, afectos negativos, consumo de lcool e sentimentos de vergonha, raiva, receio de avaliao negativa e narcisismo patolgico, permanecendo num registo de funcionamento dual pr-edipiano. Estes sujeitos encontram-se permanentemente em conflito, com uma constante angstia de abandono, onde predominam sentimentos de rejeio e excluso. Este estudo acerca dos modelos de vinculao nos sem-abrigo, que no deixa de ser inconclusivo, como os prprios autores afirmam, remete-nos, contudo, para a importncia de reflectir mais demoradamente sobre as relaes entre afiliao, filiao e vinculao, que encontram aqui, contudo, alguma base de sustentabilidade. De acordo com o Modelo Pushed Out (Ploeg & Scholte, 1997) o desabrigo tambm visto como um processo de sucessivos abandonos: h, inicialmente, uma rejeio no seio da famlia, que depois se alastra a processos de excluso na escola, no trabalho e na comunidade. As redes e os contextos sociais vo-se desagregando e a manifestao de comportamentos problemticos vai reforando constantemente os mecanismos de rejeio. O Modelo Interaccionista de Horowitz (1987) prope-nos j uma viso mais dialctica e ecolgica do desabrigo, que resultaria da interaco e convergncia de duas variveis. As vulnerabilidades e fragilidades pessoais, conjugadas com um ambiente externo desfavorvel, que no faculte estimulao nem apoio, explicaria o porqu de alguns chegarem situao mais extrema de excluso e outros conseguirem manter ainda algum nvel de integrao, ou porque psicologicamente seriam mais resistentes ou porque o meio familiar e educacional seria mais positivo e facilitador. Podemos, ento, pensar que sem casa, significa mais, com certeza, do que a mera ausncia de algo externo, neste caso de uma habitao que nos proteja de um ambiente fsico ameaador e nos permita o recolhimento e a privacidade. Trata-se, essencialmente, da ausncia de uma realidade de intimidade e de um sentido de ligao interna a ns prprios e aos outros. Os indivduos que se encontram sem casa experimentam, possivelmente, a inexistncia de um porto de abrigo seguro, que lhes proporcione confiana e autonomia para explorar o mundo, com a certeza reconfortante de que tero uma base afectiva que os acolher no regresso. A confluncia de problemas do foro psiquitrico e psicolgico est muitas vezes na origem da sada de casa, da perda de emprego, da quebra de laos familiares e da vida na rua.16

Todavia, os problemas mentais tambm podem surgir como consequncia destes mesmos acontecimentos de vida. Ambos os aspectos se entrecruzam, influenciando-se reciprocamente e s a anlise aprofundada de cada histria de vida nos permite esclarecer a sequncia do seu aparecimento. No entanto, tal nem sempre vivel, j que a interveno junto desta populao se reveste de um conjunto de obstculos e limitaes, dificilmente ultrapassveis com os parcos recursos actualmente existentes. So estes aspectos que vamos analisar em seguida mais detalhadamente.

2.5. Perspectivas de interveno Existem inmeras dificuldades logsticas na prestao de cuidados de sade fsica e mental populao sem-abrigo, j que a ausncia de documentos de identificao e de uma residncia fixa faz com que os seus relatrios mdicos estejam espalhados um pouco por todo o lado. Por outro lado, verifica-se uma procura tardia ou desadequada dos cuidados de sade, justificada pela inexistncia, insuficincia ou desajustamento do apoio mdico e social que lhes prestado. A rede social de apoio, constituda pela Segurana Social e por diversas Instituies Particulares de Solidariedade Social e Organizaes No Governamentais, que disponibilizam cuidados bsicos a nvel alimentar, habitacional e de sade, atravs de equipas de rua, refeitrios sociais e albergues nocturnos, mas as intervenes dirigem-se sobretudo satisfao de necessidades bsicas, no contemplando medidas estruturais de reintegrao comunitria, criando muitas vezes a dependncia crnica dos servios e a perpetuao da vida na rua. So principalmente os servios de urgncia, no corao dos grandes centros urbanos e as instituies de apoio aos sem-abrigo que vo actuando numa perspectiva de emergncia social. No Plano Nacional de Sade Mental (2007 / 2016), salientada a necessidade de assegurar cuidados especficos de sade mental a esta populao, enquanto grupo especialmente vulnervel. Programas activos e coordenados de extenso dos servios e a mobilizao dos profissionais de sade no sentido de irem eles prprios ao encontro dos semabrigo, onde quer que eles estejam, podero atenuar os perodos de disfuncionalidade destas pessoas, actuando enquanto o seu nvel de desorganizao pessoal ainda no irreversvel e evitando hospitalizaes onerosas, assim como institucionalizaes psiquitricas e penais por vezes desnecessrias e contraproducentes. A estes aspectos de maior pragmatismo, junta-se uma cultura da evitao da misria com que tropeamos diariamente (Pais, 2006), de discriminao e estigmatizao social face aos sem-abrigo, proveniente da sociedade em geral e at dos prprios profissionais de sade, que no so imunes aos esteretipos de alcolicos, drogados, pessoas fracas e responsveis pela sua situao, afectando negativamente a qualidade da assistncia que lhes17

prestada, desumanizando-a e fortalecendo cada vez mais os muros de silncio e solido que os aprisionam no seu mundo e os excluem socialmente. de salientar que os constrangimentos e dificuldades acima referidos, ao nvel da interveno junto da populao sem-abrigo, so comuns ao domnio do conhecimento e da caracterizao desta mesma populao em termos cientficos. Contudo, apesar das limitaes subjacentes a esta temtica, existem alguns estudos empricos de referncia, que passaremos a apresentar em seguida.

3. Estudos empricos As investigaes efectuadas com a populao sem-abrigo so ainda escassas, nomeadamente, pelas dificuldades logsticas e metodolgicas que lhes esto associadas. Todavia, algumas destacam-se a nvel internacional pelo seu interesse e pelo contributo fornecido para o conhecimento dos sem-abrigo e outras, a nvel nacional, salientam-se pelo auxlio na compreenso da realidade concreta do nosso pas e dos servios que prestam apoio aos sem-abrigo nos centros urbanos de Lisboa e Porto, na linha de investigao do presente trabalho. Iremos seguidamente referir os estudos j realizados e que conseguimos identificar.

3.1. Estudos internacionais A principal investigao, levada a cabo em Espanha, de caracterizao sciodemogrfica dos sem-abrigo, encontrou indivduos predominantemente do sexo masculino, com uma mdia de idades de cerca de 40 anos, baixo nvel educacional, solteiros, com experincias de institucionalizaes psiquitricas e/ ou penais, desempregados e encontrandose a maioria (80%) na rua h mais de um ano (Muoz & Vazquez, 1999). Curiosamente, em Portugal, a caracterizao do perfil dos sem-abrigo nas ruas de Lisboa apresenta resultados muito similares (Bento, Barreto & Pires, 1996). Em consequncia das pesquisas em Espanha, acima referidas, os autores subdividiram as causas da situao de sem-abrigo em quatro grupos distintos: aspectos materiais, afectivos, pessoais e institucionais, encontrando-se altas taxas de prevalncia de esquizofrenia e depresso. Em Portugal, porm, apesar da esquizofrenia assumir valores muito representativos na populao sem-abrigo, o mesmo j no acontece com a depresso nem com a neuroticismo em geral (Bento, 1999). possvel que as suas caractersticas tornem fcil o acolhimento destas pessoas por parte da sociedade ou, ento, a organizao da sua personalidade poder ficar encoberta pelos abusos de substncias psicoactivas. Relativamente ao auxlio prestado aos sem-abrigo, existem em Espanha 129 albergues com 5224 lugares, mas s com 386 lugares para reabilitao

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psicossocial, sendo em maior nmero os servios de cariz informativo e assistencialista ao nvel dos bens essenciais, como alimentao e roupa, semelhana da realidade portuguesa. Thelen (2006), numa pesquisa desenvolvida em Portugal, Frana e Blgica, que se consubstanciou na obra LExil de soi d ici et des ailleurs, procura mostrar os traos comuns das pessoas sem-abrigo e dos seus percursos de vida, multiplicando os pontos de vista, dando voz s instituies de apoio a esta populao e salientando a violncia extrema que a rua exerce sobre os sem-abrigo. No seu trabalho de observao participante como voluntrio em associaes de suporte aos sem-abrigo, o investigador, assumiu-se como um sem abrigo em Portugal, onde viveu na rua cerca de um ms, procurando aqui, tal como na Frana e na Blgica, as estratgias de sobrevivncia exigidas por este modo de vida. Encontrou dois elementos centrais comuns s realidades dos diferentes pases: a adaptao rua enraizada na negao dos outros e o exlio de si. A adaptao rua o corolrio de um longo percurso de carncia afectiva e de um insuficiente enraizamento familiar, reforados na rua pela constante humilhao intrnseca situao de sem-abrigo. O exlio de si definido como um habitus especfico, exprimindo-se na capacidade do indivduo restringir ao mximo as suas necessidades e simplificar at ao limite mais extremo a sua existncia, como forma de lidar com as exigncias de um meio hostil como a rua, encontrando frequentemente apoio no lcool e nas drogas para lidar com essa solido imensa. Thelen (2006) demarca-se, assim, de numerosos trabalhos sociolgicos e psicolgicos que se centram exclusivamente nos aspectos psicossociais associados aos sem-abrigo, na medida em que a sua perspectiva interaccionista permite levar em considerao os efeitos do ambiente envolvente nos semabrigo de longa durao. Na opinio do autor, a maioria das instituies ditas de suporte mais no faz do que reforar as dimenses de desumanizao, favorecendo os esquemas de reproduo da violncia e humilhao da rua, no se oferecendo como alternativa, nem afectiva, nem funcional, nem simblica para os sem-abrigo, alimentando assim a representao que estes tm de si prprios e dos outros. Collard e Gambiez (2005) realizaram uma incurso pelo mundo dos sem-abrigo em Frana, com quem viveram na rua durante mais de treze anos, numa perspectiva metodolgica de observao participante. No seu trabalho etnogrfico, eles alertam tambm para a grande desumanizao no tratamento aos sem-abrigo por parte das instituies que lidam com eles diariamente, assim como referenciam as atitudes estigmatizantes por parte dos profissionais e voluntrios, que favorecem os sentimentos de inutilidade, insegurana e baixa auto-estima daqueles que vivem nas ruas.

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Os estudos realizados em Portugal apesar de relativamente reduzidos, no deixam, contudo, de se revelar primordiais para o conhecimento dos sem abrigo em territrio nacional, como iremos ver em seguida.

3.2. Estudos nacionais Em Lisboa, atendendo certamente maior dimenso e abrangncia do fenmeno dos sem abrigo e, consequentemente, a um maior interesse poltico e investimento pblico na tentativa de minorar esta realidade, encontramos um maior nmero de estudos desenvolvidos junto desta populao, comparativamente ao Porto, que se encontra ainda num plano bastante mais elementar. O Laboratrio Nacional de Engenharia Civil (LNEC), atravs do Grupo de Ecologia Social (GES), tem vindo a realizar, desde 1986, estudos para a Cmara Municipal de Lisboa sobre os sem abrigo que habitam a cidade de Lisboa. No mbito de um projecto designado Apoio aos Sem-Abrigo da cidade de Lisboa, Figueira et al., (1995), encontraram indivduos predominantemente do sexo masculino, com baixas qualificaes acadmicas e profissionais, acentuadas nas idades mais avanadas, verificando que o consumo de drogas tende a ser maior entre os jovens e o consumo de lcool mais frequente entre os mais velhos, sendo comum a todos os grupos etrios o desapego estrutura familiar. Os homens parecem tender mais para o isolamento social do que as mulheres, sugerindo por parte destas mais capacidade para a manuteno de laos afectivos duradouros. Pereira e Silva (1999), por sua vez, procederam a uma caracterizao do universo dos sem-abrigo da cidade de Lisboa, atendendo ao seu local de pernoita nos perodos de Vero e Inverno. Os autores realam o carcter heterogneo dos sem-abrigo e a diversidade dos seus trajectos, concluindo pela necessidade de intervenes articuladas e adequadas realidade de cada um, evitando perpetuar a segregao desta populao nos centros de acolhimento, que muitas vezes se assemelham a guetos exclusivistas. Apresentam os sem-abrigo como sujeitos com itinerrios escolares de insucesso, contextos familiares conturbados (de violncia, abandono e toxicodependncias por parte dos progenitores) e sadas prematuras de casa e ruptura face aos principais espaos de referncia social: emprego, famlia e comunidade. Relativamente aos apoios que a cidade disponibiliza aos sem-abrigo, identificam cerca de vinte instituies com as seguintes valncias: distribuio de gneros alimentares e refeies; alojamento nocturno; actividade laboral; formao tcnico-profissional; actividade ocupacional e vida comunitria. Este estudo denotou um aumento significativo das respostas de residncia temporria, as quais geram riscos, relacionados com o ciclo vicioso de residncia intermitente ou acolhimento/rua rua/acolhimento, que pode conduzir institucionalizao crescente dos sem-abrigo. Realam tambm o aumento de indivduos nesta condio, mais pessoas a recorrer aos centros20

de acolhimento em detrimento da pernoita na rua e a emergncia de sem-abrigo imigrantes. Tendo em conta a tendncia poltica destes estudos deixamos aqui a nossa reserva quanto iseno na apresentao e anlise dos dados, contudo, no quisemos deixar de lhes fazer referncia. Pimenta (1992), por sua vez, identificou uma nova gerao de excludos provenientes da crise econmica, mutaes no mercado de trabalho, crise na habitao, crise na segurana social e toxicodependncia, com nveis de instruo elevados, a par dos marginalizados clssicos, sobretudo mendigos e vagabundos, mais idosos, com problemas de alcoolismo associados. O autor sugere que se accionem medidas de preveno e processos de reintegrao levados a cabo nos primeiros tempos de permanncia na rua, de modo a diminuir o nmero de pessoas nesta condio. Gentil (1993), no seu trabalho de investigao junto dos sem-abrigo utilizadores do Refeitrio dos Anjos em Lisboa, constatou uma prevalncia de 72,5% de consumidores de lcool, 20% de consumo de drogas e 75% de sujeitos a viver na rua h um ano ou mais, com diversos problemas de sade associados, nomeadamente, doenas infecto-contagiosas. Borges (1995), numa caracterizao scio-econmica dos utilizadores do Refeitrio dos Anjos, encontrou maioritariamente homens, entre os 20 e os 39 anos, sozinhos, naturais de Lisboa, com situaes de abandono escolar e rupturas familiares. O autor salienta, ainda, que a maioria dos apoios prestados aos sem-abrigo de cariz assistencial e pontual com desarticulao dos servios, desfavorecendo a reabilitao dos utentes e constituindo mais um elemento que integra as estratgias de sobrevivncia marginais accionadas pelos sem-abrigo. As instituies s do resposta a uma parte das necessidades materiais (alojamento e alimentao), no contemplando as necessidades no materiais (relacionamento social, afecto e participao comunitria), apontando para a necessidade de um salto qualitativo neste domnio. Cerca de metade dos entrevistados revelou insatisfao com os servios prestados pela ineficcia na resoluo dos seus problemas, pela desumanizao do tratamento, pela falta de critrios nas ajudas prestadas, pela m qualidade na alimentao e nas condies de higiene. Bento, Barreto e Pires (1996) apresentaram, em resultado do seu estudo, um perfil de sem-abrigo: indivduo de sexo masculino, raa branca, nacionalidade portuguesa, entre 35 e 60 anos, escolaridade mnima, solteiro, sem contactos familiares, h mais de trs anos sem casa, com passado institucional, doenas psiquitricas, alcoolismo e situaes de vitimizao. Rio (1997) procedeu a uma anlise dos sem-abrigo em Lisboa, considerando como causas raiz para a sua situao a escassez de casas para habitao de baixa renda e a inadequao de rendimentos dos mais pobres, sinal claro da falncia da habitao social, devendo o Estado promover polticas de reinsero social no sentido de colmatar esta falha. A caracterizao desta populao levou a autora a definir o sem-abrigo tipo da cidade de Lisboa: indivduo do sexo masculino, que se encontra nesta21

situao h 30 dias ou menos, branco, entre 26 e 35 anos, oriundo de fora do concelho de Lisboa, vivendo, no entanto, nesta cidade h pelo menos mais de 10 anos, utiliza maioritariamente a rua como local de pernoita, frequentou o ensino secundrio, no sendo em geral casado, pode ser pai, tendo ainda irmos e outra famlia que residem em territrio nacional, a sua profisso vendedor e, como ajuda suplementar, pede dinheiro e/ou arruma carros, foi (ou ainda ) vendedor ou consumidor de droga. A pobreza, a droga e o alcoolismo so designados pela autora como os plos do tringulo da morte para esta populao, considerando, contudo, que alguns sem-abrigo comeam a procurar refgio na bebida e na droga aps o seu ingresso na vida na rua. Fernandes (2006) desenvolveu um estudo junto da populao sem-abrigo do Porto, tendo efectuado doze entrevistas de rua a indivduos nesta situao, entre os 22 e os 64 anos, a maior parte solteiros e oriundos de fora do distrito do Porto, com baixa ou nula escolaridade. Nas trajectrias de vida encontradas, encontrou um conjunto de factores potencialmente conducentes vida na rua: rupturas familiares, desemprego, perda da habitao, sade precria, toxicodependncia e afastamento das redes de sociabilidade, verificando que os entrevistados associam a situao de sem-abrigo a uma identidade estigmatizada, existindo uma auto-percepo da excluso em que se encontram e da imagem social negativa que essa condio encerra. Baptista (1997) apresenta os resultados de um projecto levado a cabo pela CESIS (Centro de Estudos para a Interveno Social) com o objectivo de explorar a dimenso subjectiva dos fenmenos de marginalizao social em meio urbano. Para tal, realizaram entrevistas s instituies com responsabilidades a nvel social no concelho de Lisboa, mais concretamente as esquadras da Polcia de Segurana Pblica, considerando que as representaes existentes sobre os sem-abrigo por parte dessas mesmas instituies podem ser determinantes das polticas sociais adoptadas. Para a maior parte dos actores sociais a marginalizao resulta de caractersticas individuais, familiares e culturais que levam excluso dos indivduos por parte da sociedade ou sua automarginalizao, implicando uma desintegrao social, entre os quais so referidos o desemprego, o trabalho precrio, o alcoolismo e a toxicodependncia. Finalmente, de referir, ainda neste mbito, um estudo realizado em Lisboa por Sousa e Almeida (2001), neste caso, com vista ao levantamento das necessidades, preferncias e nveis de satisfao com os servios, junto de um grupo de pessoas sem-abrigo. Concluiu-se que os servios no conseguiam ajudar estas pessoas de uma forma efectiva, davam respostas insatisfatrias e desfasadas das suas necessidades, a ajuda prestada era precedida de um tempo de espera muito longo e os tcnicos e funcionrios revelavam-se pouco empenhados. As necessidades mais referidas foram as seguintes: obteno de alimentao, vesturio e abrigo; identificao e avaliao de necessidades; assistncia mdica; informao e proteco de direitos; obteno22

de emprego. Os aspectos apontados pelos sem-abrigo como susceptveis de melhor responder s suas necessidades passam por: alargamento do horrio de funcionamento dos servios sociais; desenvolvimento de respostas individualizadas; acompanhamento na comunidade dos vrios aspectos do processo de (re) insero social; esforos de proteco jurdica; diminuio da burocracia no acesso aos servios; maior celeridade nas respostas e maior flexibilidade das regras de funcionamento dos servios. Os inquiridos tambm referiram a necessidade de mais disciplina, segurana e respeito, assim como a aplicao de sanes mais vigorosas em caso de incumprimento das regras estipuladas nos abrigos, acrescentando, ainda, a importncia de critrios mais rigorosos de admisso ao abrigo, nomeadamente, de pessoas com perturbaes mentais ou problemticas de alcoolismo, por questes de segurana pessoal. Finalmente, foi apontada a existncia de situaes de aproveitamento indevido dos servios sociais por parte de alguns utentes e tcnicos, percebendo-se o desejo de uma maior fiscalizao no sentido de proteger os direitos daqueles que precisam. O nosso trabalho de investigao partilha tambm destes propsitos encontrados nos estudos acima mencionados, j que pretendemos avaliar a percepo dos tcnicos das instituies de apoio aos sem-abrigo relativamente ao fenmeno da vida na rua, assim como a percepo dos sem abrigo no Porto face aos servios prestados. Os resultados iro permitirnos perceber se existe ou no concordncia de percepes entre a realidade lisboeta, com alguns contornos especficos pela sua dimenso geogrfica substancialmente superior e pela flutuao populacional caracterstica das capitais, e a realidade do Porto, enquanto segunda maior metrpole do pas. Neste sentido, ser interessante, desde j, ter uma noo mais concreta da realidade da rea urbana do Porto, no que diz respeito ao fenmeno do desabrigo.

3.3. O Porto Sem-Abrigo Inicialmente, pode parecer incompreensvel o facto do nmero de pessoas sem-abrigo continuar a aumentar na cidade do Porto, apesar da tendncia tambm crescente, nomeadamente, desde a dcada de 90, para o aparecimento de IPSS (Instituies Particulares de Solidariedade Social) e ONG (Organizaes No Governamentais), destinadas a prestarlhes assistncia. Segundo dados apresentados pelo Instituto de Segurana Social (2004/2005), o concelho do Porto destacava-se claramente no panorama nacional ao nvel da existncia de apoios psicossociais especficos para os sem-abrigo, com um peso percentual de 60% a 73% da populao abrangida, existindo aqui alojamentos apoiados e habitaes assistidas, segundo a mesma fonte. Todavia inspira-nos algum cuidado a validade destes resultados, pela inspirao poltica subjacente e pelo tipo de metodologia adoptada.

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O crescimento dos sem-abrigo tem de ser compreendido no contexto de uma nova pobreza do mundo moderno, pela qual o Porto j foi severamente atingido, e que se difunde marginalmente pelas zonas centrais e histricas da cidade, simbolicamente mais fortes. As pessoas que viviam essencialmente da indstria na zona dos bairros camarrios do Porto (Aleixo, Pasteleira, Pinheiro Torres, etc.), a partir dos anos 80, com a automao do processo industrial e o encerramento de fbricas tornaram-se inconvertveis para os servios, aumentando o desemprego de longa durao. Consequentemente, verificou-se um agravamento das condies de vida nas cinturas da cidade e uma tendente estigmatizao e criminalizao da pobreza, aparecendo territrios de excluso, onde a droga surgiu, muitas vezes, como libi nesta tendncia recriminatria, levando nos anos 90 concretizao das primeiras milcias populares nos bairros crticos da cidade. A ronda nocturna efectuada na carrinha de distribuio alimentar da Cruz Vermelha, permitiu-nos constatar que muitas das pessoas ajudadas, j no se enquadram no esteretipo da figura do sem-abrigo. Algumas so qualificadas, com uma vida anterior confortvel, mas empobreceram repentinamente e j no conseguem assegurar a sua subsistncia, encontrandose altamente endividadas, apesar de at possurem um emprego. Outras so pessoas carenciadas que vivem em casas degradadas ou penses, que recebem o RSI (Rendimento Social de Insero) ou reformas irrisrias. De assinalar tambm um nmero significativo e acrescido de mulheres vtimas de abusos e violncia, famlias monoparentais e indivduos estrangeiros, sobretudo africanos e de pases de leste, normalmente em situao de ilegalidade. As pessoas que esto a dormir na via pblica so apenas a ponta do iceberg ou a face mais visvel do desabrigo na rea urbana do Porto. A AANP (Associao de Albergues Nocturnos do Porto) procedeu a uma caracterizao scio-demogrfica dos seus utentes (de 1998 a 2005), apontando para um amplitude entre 1000 e 2000 pessoas sem-abrigo na zona urbana, registando 1095 entradas e 1046 sadas, com 86% de homens e 14% de mulheres, uma mdia de idades de 39 anos, nacionalidade maioritariamente portuguesa (78%), solteiros (54%) e divorciados (22%), sem retaguarda familiar (90%), com baixa qualificao escolar e sem qualquer tipo de suporte financeiro (73%), na maior parte dos casos com psicopatologias associadas (70%). Um estudo levado a cabo pelo ISS (Instituto de Segurana Social) no Porto apontava para uma territorialidade das problemticas, como j referimos atrs, sendo os sem-abrigo na zona urbana do Porto, maioritariamente homens, com menos de 39 anos e com grande incidncia de problemticas associadas toxicodependncia, mais frequentes do que em Lisboa, onde o alcoolismo teria um peso mais acentuado. A AMI (Assistncia Mdica Internacional) em 2003, afirma que existem na cidade cerca de 2000 indivduos em situao de sem-abrigo,24

maioritariamente do sexo masculino e com idades compreendidas entre os 30 e os 50 anos, apesar da tendncia actual ser para um decrscimo da mdia de idades. Segundo o Presidente da Associao de Albergues Nocturnos do Porto, h por dia quatro novos casos a bater porta. No mesmo sentido, a linha 114 (Linha nacional de Emergncia Social), integrada no Plano Nacional de Incluso, refere que a problemtica dos sem-abrigo na cidade do Porto gravssima. A AMI afirma tambm que o nmero de pessoas apoiadas no mbito do Programa Comunitrio de Ajuda Alimentar no Porto triplicou em 2007 e que entre 1999 e 2001 os semabrigo no Porto aumentaram 40%, reflexo de uma crise econmica que continua a persistir, ainda hoje, e que refora a pertinncia da investigao sobre os sem-abrigo na segunda cidade mais populosa do pas. Depois desta breve incurso pelo mundo dos sem-abrigo, no razovel pensar que um ser humano possa optar de forma livre e autnoma por esta condio de vida. No existe ainda uma explicao consensual relativamente distino entre causas e consequncias inerentes a esta temtica, apontando-se para a influncia recproca entre ambas e para o carcter simultaneamente social e individual das mesmas. Os sem-abrigo caracterizam-se quase sempre por uma evidente degradao fsica e mental e os estudos realizados neste domnio comprovam a evidncia emprica to facilmente observvel (Bento, 1999). As suas capacidades psquicas para abraar projectos normalizantes encontram-se altamente comprometidas e esta incapacidade ainda reforada por um conjunto de obstculos econmicos, sociais e familiares que lhe esto associados. A dificuldade que o problema encerra ter de ser encarada como um desafio profissional para todos aqueles que trabalham na rea da reabilitao psicossocial. necessrio avanar com passos discretos mas seguros, estabelecendo com os sem-abrigo objectivos pequenos e realistas (Martin, 1988, cit in Bento & Barreto, 2002), para que readquiram a confiana em si prprios e nos outros. uma tarefa colossal mas no impossvel, se reflectirmos ponderadamente sobre as coisas bsicas da vida e conseguirmos fornecer-lhes, em alternativa transitoriedade do seu mundo, segurana, estabilidade e um porto seguro, em termos afectivos e emocionais. Todavia, a prtica avana frente da teoria neste domnio e carecemos ainda de slidas bases tericas que alicercem a interveno e as boas prticas profissionais. Impe-se percorrer um longo caminho, no na procura da verdade mas do conhecimento. este o nosso propsito com o estudo emprico que apresentamos seguidamente. Afastamos a pretenso de chegar ao fim da meta, mas propomo-nos avanar o possvel na compreenso de algumas questes cruciais associadas globalmente aos sem-abrigo e em particular realidade da rea urbana do Porto.

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CAPTULO II ESTUDO EMPRICO

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Neste captulo descrevemos a metodologia adoptada no mbito do estudo emprico efectuado, para em seguida apresentarmos a anlise e discusso dos resultados obtidos.

1. Metodologia No incio, tommos como objecto de estudo os sem-abrigo que habitam as ruas do Porto. Contudo, o acesso progressivo a esta populao permitiu-nos conhecer a sua complexidade social e as mltiplas instituies que lhe prestam auxlio, surgindo assim a necessidade de tambm as estudar, associando-as aos mecanismos de adaptao dos semabrigo vida na rua. Deste duplo conhecimento adveio a ideia de confrontar as perspectivas de ambos os actores sociais: os que vivem por dentro e na pele a condio de sem-abrigo e os que constituem para eles, a maior parte das vezes, a sua nica rede social de suporte. Foi mais o trabalho em si que estruturou a pesquisa e no o contrrio (Bogdan & Biklen, 1994). Esta investigao possui um carcter descritivo e exploratrio, tratando-se de um estudo qualitativo relativamente metodologia utilizada na recolha de dados e quantitativo em relao ao posterior tratamento dos mesmos, no que diz respeito amostra dos semabrigo. Adoptmos uma perspectiva complementar entre mtodos subjectivos e objectivos, rejeitando conceptualmente a velha dicotomia que, por vezes, ainda persiste neste domnio. Desta maneira, consideramos importante rentabilizar os dados obtidos com as entrevistas atravs do seu tratamento estatstico, o que nos possibilitou encontrar alguns pontos em comum nas trajectrias de vida dos sujeitos. Assim, foi possvel ir ao encontro do principal propsito desta investigao e das expectativas que crimos no seu decurso, com base em diversas pesquisas, j anteriormente citadas e que apontam para a existncia de um perfil da populao sem-abrigo (Bento et al., 1999; Borges, 1995; Gentil, 1993; Muoz & Vazquez, 1999; Pimenta, 1992; Thelen, 2006). Nesta medida, o estudo tem como objectivo principal caracterizar uma amostra de indivduos sem-abrigo na cidade do Porto, conhecer a sua realidade actual e o seu nvel de satisfao com os servios que lhes so disponibilizados. Propomo-nos, tambm, como objectivo secundrio, identificar e caracterizar as instituies de apoio aos sem-abrigo quanto ao tipo de servios prestados, bem como conhecer a percepo que tm deste fenmeno e das respostas institucionalmente existentes. Do resultado dos dois objectivos de investigao j definidos, estabelecemos, ainda, um objectivo secundrio de menor importncia, que consiste em comparar as opinies dos sem-abrigo e dos tcnicos das instituies e avaliar at que ponto existe convergncia de percepes entre os dois grupos de participantes.

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Descrevemos, seguidamente, os instrumentos e procedimentos utilizados no estudo emprico, para depois caracterizarmos a amostra de indivduos sem-abrigo na cidade do Porto e a amostra das instituies que, neste mesmo local, lhes prestam auxlio.

1.1. Instrumentos Como estratgia de recolha de dados, optmos, em ambas as populaes - alvo, pela realizao de entrevistas semi-directivas ou semi-estruturadas, tal como so designadas por Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut (1999), que nos permitiram a anlise dos testemunhos personalizados dos sem-abrigo e dos tcnicos das instituies. Os guies das entrevistas foram previamente concebidos tendo em conta os objectivos, simultaneamente, descritivos e exploratrios deste estudo e as caractersticas das amostras. A ordem de colocao das questes pode ser varivel e no ser mesmo necessrio formul-las na totalidade, se o grau de fluidez dos discursos assim o permitir. O guio ento indispensvel, com a condio de sabermos no nos servir dele e de o adaptarmos entrevista (Poirier et al., 1999). Na entrevista, dirigida amostra de 85 sujeitos sem-abrigo, o guio composto por vrios grupos de perguntas, que pretendem abranger diversas dimenses da caracterizao dos seus percursos de vida, de acordo com variveis pr-estabelecidas, referenciadas por vrios autores, j citados no captulo anterior deste trabalho, e que so anunciadoras de regularidades entre os sem-abrigo (Bento & Barreto, 2002; Borges, 1995; Mc Quistion et al., 2003; Muoz & Vazquez, 1999; Pimenta, 1992; Raoult, Foucault & Brouqui, 2001; Sousa & Almeida, 2001; Thelen, 2006). Neste sentido, podemos assinalar as seguintes reas temticas: caracterizao scio-demogrfica (sexo, idade, raa, naturalidade, nacionalidade, estado civil, nmero de irmos, nmero de filhos e nvel de escolaridade); caracterizao da situao profissional (condio perante o trabalho, profisso e emigrao por razes profissionais); caracterizao do estado de sade (sade fsica, acidentes e leses, sade mental e histria de consumos); caracterizao de comportamentos (prostituio, delinquncia, agressividade e vitimizao); caracterizao do passado institucional (psiquitrico ou penal); caracterizao da histria de sem-abrigo (causas, tempo de permanncia na rua e estratgias de sobrevivncia); caracterizao da esfera relacional (tipo de contacto familiar, situao conjugal, relacionamentos actuais e figuras significativas); caracterizao da utilizao dos servios de apoio (recurso s instituies, necessidades identificadas, nvel de satisfao com os servios e razes da insatisfao). A caracterizao da aparncia fsica em funo da idade ser registada pelo investigador no final da entrevista, em resultado da observao por ele realizada no decurso da mesma.

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Relativamente entrevista dirigida aos tcnicos das instituies, as questes que constituem o guio pretendem abarcar as seguintes reas-chave: caracterizao das Instituies de Apoio aos Sem-Abrigo da cidade do Porto (tipo de instituio e de servios prestados, tcnicos que as constituem e articulao com outras instituies); caracterizao da percepo dos tcnicos relativamente ao fenmeno dos sem-abrigo, qualidade dos servios que lhes prestam e sua capacidade de satisfazer as necessidades desta populao. Tambm nos apoiamos em alguns estudos realizados neste mbito, j apresentados no captulo terico (Collard & Gambiez, 2005; Figueira et al., 1995; Thelen, 2006). 1.2. Procedimentos A investigao desenhada para este trabalho foi, no incio, eminentemente qualitativa. Pretendamos recolher histrias de vida limitadas a um nmero reduzido de sujeitos, por pensarmos que se revelaria uma tarefa rdua aceder a esta populao, considerada oculta, pela sua difcil acessibilidade e estigmatizao social associada e marginal, por constituir uma pequena parcela da populao geral (Diaz, 1998), tornando pouco vivel o contacto com muitos indivduos sem-abrigo. Contudo, no decurso da investigao, fomos agradavelmente surpreendidos com o seu interesse e receptividade, verificando-se um aumento gradual do nmero de participantes, que atingiu as 85 pessoas entrevistadas. No ultrapassmos este nmero, por um lado, devido a constrangimentos temporais e, por outro, devido saturao terica com que nos deparmos a determinada altura da recolha de dados. Verificmos, como acontece, alis, na maioria dos inquritos por entrevistas, uma saturao da informao por repetitividade e redundncia (Poirier, Clapier-Valladon & Raybaut, 1999). A recolha de dados foi realizada em diferentes locais, cuja escolha obedeceu a dois critrios: a relevncia para o nosso objecto de estudo e a facilidade de acesso que nos foi proporcionada. Foram entrevistados 49 sem-abrigo no contexto de rua, entre Janeiro e Outubro de 2009; 18 sem-abrigo no Abrigo Nocturno da AMI (Assistncia Mdica Internacional), entre Abril e Dezembro de 2009 e 18 sem-abrigo na AANP (Associao de Albergues Nocturnos do Porto), entre Junho e Outubro de 2009. Todas as entrevistas foram realizadas num nico momento temporal, pela mesma investigadora que, simultaneamente, recolha oral dos dados procedeu ao seu registo, aps consentimento dos inquiridos. As entrevistas realizadas nas instituies tiveram lugar entre as 17h30 e as 20h00. J as entrevistas de rua decorreram entre as 22h00 e as 2h00, tendo a durao de cada uma oscilado entre os 30 e os 60 minutos. Foi feita uma breve apresentao inicial aos sem-abrigo dos objectivos do estudo, sendo apresentadas garantias de anonimato e confidencialidade e explicitado o direito de no responderem a uma ou mais questes e de poderem a qualquer29

momento dar por terminada a entrevista, sem que isso acarretasse para eles qualquer prejuzo, de acordo com o termo do consentimento informado, (Blaxter, Hughes & Tight, 1996; Coehen & Manion, 1994; Hart & Bond, 1995). Contudo, tal no sucedeu, j que todas as entrevistas iniciadas foram concludas, sem nenhuma desistncia a assinalar. De salientar o facto da maior parte dos sujeitos se recusar a assinar o termo de consentimento informado, referindo a incoerncia que o mesmo encerra, j que garante, por um lado, o anonimato e exige, por outro, a identificao registada. As principais dificuldades encontradas relacionaram-se com a circunscrio da amostra e a resistncia dos participantes em relatar questes delicadas, que implicassem uma conduta reprovada moral e socialmente, ou mesmo, no caso dos imigrantes, detentora de um carcter de ilegalidade. Por outro lado, a nossa capacidade de suprimirmos quaisquer preconceitos sobre o fenmeno foi testada na relao com esta populao, exigindo fazer tbua rasa de todas as representaes prvias que pudessem comprometer as caractersticas de empatia, compreenso, facilitao e abertura ao outro, fundamentais para o estabelecimento de uma relao de confiana (Rogers, 1942), sem a qual no conseguiramos, certamente, atingir com eficcia os nossos propsitos. Recolhidos os dados, estes foram introduzidos numa matriz de dupla entrada e analisados atravs do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) verso 15, utilizado como um complemento metodolgico, que permitiu a anlise descritiva e o clculo dos testes estatsticos adequados aos objectivos da investigao. No que diz respeito recolha de dados efectuada junto das instituies, todas elas foram previamente contactadas e esclarecidas acerca dos objectivos do estudo, sendo solicitada a sua colaborao voluntria, atravs de uma carta dirigida ao coordenador (a). Depois de obtida aprovao, as entrevistas foram realizadas na instituio em causa a um elemento tcnico da equipa, num nico momento temporal e pela mesma investigadora que, simultaneamente, recolha oral dos dados procedeu ao seu registo, aps consentimento dos inquiridos. Cada entrevista durou em mdia entre 40 a 60 minutos. No caso da AANP, da AMI, da CAIS e dos Mdicos do Mundo, os elementos da equipa tcnica entrevistados conciliavam tambm a funo de coordenadores. De assinalar, globalmente, a disponibilidade apresentada pelas instituies em colaborarem no estudo e o dilogo aberto na resposta s nossas questes, enriquecendo, assim, os discursos obtidos. Estes foram sujeitos a uma anlise de contedo, que nos permitiu a descrio e organizao dos dados em ncleos referentes ou unidades de significao, cujo valor foi confirmado pela importncia assumida nas narrativas (Bell, 2008).

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Passamos, ento, de seguida caracterizao das amostras que fazem parte desta investigao.

1.3. Caracterizao da amostra O presente estudo constitudo por duas amostras: 85 sujeitos sem-abrigo no Porto e 12 Instituies de apoio a esta populao na mesma cidade. Ambas as amostras so no probabilsticas, intencionais e voluntrias, atendendo nossa orientao marcadamente exploratria. Essencialmente, em relao amostra dos sem-abrigo, a representatividade no foi um objectivo por ns definido, apesar da investigao recente ter vindo a demonstrar que essa uma meta da qual nos podemos aproximar atravs da necessria articulao entre metodologias qualitativas e quantitativas, sem perda de rigor e com ganhos significativos (Cohen & Arjan, 1994; Korf, 1999). Operacionalizmos o termo Sem-Abrigo como sendo aquele que no tem um tecto onde pernoitar, mesmo que, ocasionalmente, atravs da mendicidade, apoios institucionais ou outros recursos espordicos, consiga resolver a sua situao nocturna, encontrando-se a dormir num local pblico, tal como na rua, num abrigo, ou em qualquer outro stio que possa ser considerado, de algum modo, um espao temporrio (Sosin & Grossman, 1991). O grupo de pessoas sem-abrigo entrevistadas na rua (49) relativamente superior s entrevistadas nas instituies (36), j que foi nosso intuito aceder a este mundo social de indivduos habitualmente sub-representados nos estudos, pelo facto de se encontrarem ausentes dos sistemas formais de servios e controle social. Este grupo foi constitudo atravs do site-sampling, com a definio prvia de zonas-alvo e do snowball, com as cadeias de referncia obtidas a partir dos sem-abrigo entrevistados, que nomeavam outros indivduos na mesma situao (Cohen & Arjan, 1994; Korf, 1999). Relativamente amostra de 12 Instituies de Apoio aos Sem-Abrigo no Porto, foram seleccionadas aquelas que lidam directamente com esta populao, direccionando para ela os seus servios, a citar: AANP (Associao de Albergues Nocturnos do Porto); AMI (Assistncia Mdica Internacional); CAIS (Crculo de Apoio Integrao dos Sem-Abrigo); C.A.S.A. (Centro de Apoio ao Sem-Abrigo); Colgio Nossa Senhora do Rosrio; Corao da Cidade; Cruz Vermelha Portuguesa; Legio da Boa Vontade; M.A.S.A. (Movimento de Apoio ao Sem-Abrigo); Mdicos do Mundo; Samaritanos; S.A.O.M. (Servio de Assistncia das Organizaes de Maria). Os restantes dados, relativos caracterizao das amostras, sero expostos no captulo seguinte referente apresentao dos resultados, j que essa caracterizao constitui,

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precisamente, o objectivo principal deste trabalho, destacando-se os mais pertinentes relativamente ao nosso objecto de estudo.

2. Apresentao dos resultados Comeamos por fazer uma anlise descritiva dos resultado