a pedagogia do gesto

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    Benjamin e Brecht: a pedagogia do gesto

    Luciano Gatti

    Doutor em filosofia pela Unicamp

    Resumo: O artigo examina a in-terpretao do teatro pico de

    Bertolt Brecht elaborada por WalterBenjamin em seu ensaio O que oteatro pico?, de 1931. A partir daexigncia de reconfigurao crticado teatro tradicional, em vista doesclarecimento do pblico e de suavinculao a um movimento maisamplo de transformao social, soapresentados os pressupostos e asdificuldades de um teatro pedaggi-co, tal como apresentado por Brechtem sua pea Um homem um homem.Com isso, discute-se a perspectivade anlise de Benjamin, que ressaltao potencial crtico e anti-ilusionistade certos procedimentos teatrais,notadamente a produo de gestospela interrupo da ao.

    Palavras-chave: Walter Benjamin,Bertolt Brecht, teatro pico.

    Abstract: The paper analyses theinterpretation of Bertolt Brechts

    epic theatre elaborated by WalterBenjamin in his essay What is epictheatre? (1931). After pointing outthe demand of critical reconfigura-tion of the traditional theatre in viewof the instruction of the public andof his association to a broader mo-vement of social transformation, thedifficulties and presuppositions of apedagogical theatre, so as it is pre-sented by Brecht in his play A manis a man, are presented. Benjaminsperspective of analysis is then finallydiscussed, particularly its emphasison the critical and ant-illusionisticpotential of theatrical proceedingssuch as the production of gesturesby the interruption of action.

    Key-words: Walter Benjamin,Bertolt Brecht, epic theatre.

    Prembulo

    A exigncia poltico-artstica de transformao das con-dies de produo e recepo artsticas, de modo que o teatro

    pudesse exercer algum papel no processo de esclarecimento dopblico, orienta os esforos de Bertolt Brecht durante os anos decolaborao intelectual com Walter Benjamin. Esta exigncia setraduz numa concepo pedaggica do trabalho artstico e da obrade arte, bem como na crtica s obras e s concepes estticas,antigas ou contemporneas, aqum desta exigncia. Os pressupos-

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    os textos verdade fundada na doutrina, Kafka transformara aparbola em um enigma indecifrvel.

    O desacordo de Brecht surge dessa intraduzibilidade da pa-rbola em ensinamento. Se, para Benjamin, Kafka teria tido o m-rito de mostrar o declnio de uma concepo de verdade calcada natradio, Brecht interpreta a indecifrabilidade da parbola kafkianacomo uma imperfeio e, nesse sentido, como ndice do fracasso deKafka como escritor. Essa parbola, diz Brecht a Benjamin, (...)

    nunca foi inteiramente transparente.3

    A valorizao dessa formapor Benjamin , consequentemente, tachada por Brecht de obscu-rantismo, como se Benjamin tivesse cedido estril profundida-de que marcaria parte da obra de Kafka. Este teria apresentadoimagens interessantes da alienao e da burocracia da sociedadecontempornea, mas no teria extrado delas nenhum ensinamentopara a vida prtica. Sua falta de clareza, diz o iluminista Brecht,poderia prestar-se, inclusive, apropriao pelo fascismo.4Diantedisto, Brecht prope uma outra perspectiva para a leitura de Kafka,que ele apresenta, no por acaso, na forma de uma parbola.

    Numa floresta, h troncos de diversos tipos. Os mais grossos servem

    produo de vigas para a produo de navios. Os menos slidos,mas ainda assim considerveis, servem para tampas de caixas eparedes de caixo. Os bem finos so utilizados como aoites. J osdeformados no servem para nada eles escapam ao sofrimento dautilidade. Devemos olhar o que Kafka escreveu como olhamos essafloresta. Encontraremos uma quantidade de coisas bem teis. Asimagens so boas. O resto no passa de mania de segredos. umdisparate. Devemos deixar isso de lado. Com a profundidade no

    3. Benjamin, W. Notizen Svendborg Sommer 1934. In: _____. GesammelteSchriften, vol. VI, p. 525.

    4. Cf. a seguinte passagem de uma das conversas com Brecht: Deveramos

    imaginar uma conversa de Lao Ts com o estudante Kafka. Lao Ts: Ento,estudante Kafka, as formas da economia e da organizao social em quevoc vive tornaram-se estranhas para voc? Kafka: Sim. Lao Ts: Vocno consegue mais se orientar nelas? Kafka: no. Lao Ts: As aes deuma empresa na bolsa so algo estranho para voc? Kafka: Sim Lao Ts:Ento, estudante Kakfa, voc exige agora um lder ao qual voc possa recor-rer. Brecht, continuando: Isto certamente condenvel. Eu me recuso aaceitar Kafka. Idem, p. 527.

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    se vai longe. Ela uma dimenso que se basta a si mesma. A meraprofundidade da no sai nada.5

    Esse texto ilumina mais a tarefa cobrada por Brecht da lite-ratura, bem como seu mal-estar diante da obra de Kafka, do que oprprio teor da obra do escritor tcheco. Ele no realiza uma anliseliterria das narrativas, nem transforma em questo a dificuldadede interpretao, mas procura liquidar o enigma ao transform-loem uma alegoria do mundo atual. desta perspectiva que Brecht

    justifica uma interpretao de O Processocomo alegoria proftica,seja das mediaes invisveis que determinam a vida dos homensnas grandes cidades, seja da ascenso do fascismo.

    As objees de Brecht resistncia da parbola kafkiana transmissibilidade do sentido, bem como seu esforo em dela ex-trair um ensinamento por meio da interpretao alegrica, fun-dam-se na defesa racionalista da fora do esclarecimento contrao perigo de recada do pblico no ilusionismo propagado pelosregimes fascistas. Na luta contra o fascismo, o teatro e a literatu-ra poderiam desempenhar a funo de esclarecimento a respeitodas foras que atuam nos processos histricos. Como reconhece

    Benjamin, esse esforo crnico de Brecht em legitimar a arteem face do entendimento termina sempre por lev-lo par-bola.6Essa preocupao extremamente forte numa poca emque Brecht estava particularmente preocupado com o alcancedidtico de seu trabalho e procurava, por meio de consideraesde mbito filosfico-cientfico, incorporar o problema da luta declasses sua produo. Nas palavras de Benjamin, tratava-se demobilizar a autoridade do marxismo para si a partir do prprioteor dogmtico e terico da poesia didtica.7Estas intenesracionalistas de sua produo so desenvolvidas no contexto desua crtica ao teatro tradicional, chamado por ele de aristotlico,

    fundado na empatia ou identificao afetiva (Einfhlung)entreo pblico e o palco e que atravs da catarse, da purgao dos

    5. Idem, pp. 527-8.6. Idem, p. 531.7. Idem, ibidem.

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    afetos, ajuda os homens a reencontrar o equilbrio diante da na-tureza eterna e imutvel das coisas humanas.8Com isso, Brechtconfere ao teatro a funo de crtica filosfica dos mecanismosilusionistas da arte.

    significativo que um dos captulos de seu trabalho tericoSobre uma dramaturgia no-aristotlica, texto contemporneo sdiscusses com Benjamin, leve o ttulo de O filsofo no teatro.

    Brecht se vale da figura do filsofo para ressaltar o papel de pro-fessor do novo dramaturgo: ele aquele que ensina que os pro-cessos por trs dos processos so processos entre homens, ou seja,que a histria no um destino, mas resulta da ao conjunta doshomens e, portanto, pode ser sempre transformada. Nesse contex-to, o teatro assume a funo de despertar no pblico o interesse dofilsofo no comportamento prtico dos homens.

    Eles [os filsofos] no colecionam apenas as reaes dos homensdiante de seu destino, mas atacam este destino mesmo. Eles descrevemas reaes dos homens do ponto de vista em que elas podem ser

    compreendidas como aes. O destino mesmo, contudo, eles odescrevem como uma atividade dos homens. Os processos por trsdos processos que determinam o destino (...). O objeto da exposio assim o entrelaamento das relaes sociais entre os homens.9

    possvel entender ento por que a valorizao por Benjaminda intraduzibilidade da parbola kafkiana em ensinamento ina-ceitvel para Brecht. Certamente Brecht no estava interessadoem colocar sua produo a servio do ensinamento de uma dou-trina tradicional, mas da autoridade do marxismo, o qual ensina-va a possibilidade de transformao social enquanto superao da

    sociedade de classes.

    8. Schwarz, R. Altos e Baixos da Atualidade de Brecht. In: _____. SeqnciasBrasileiras. So Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 114.

    9. Brecht, B. Schriften zur Theater, vol. 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1967,pp. 256-7.

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    I

    As restries de Benjamin vinculao por Brecht da fun-o pedaggica de seu teatro aos elementos mais racionalistasda parbola j podiam ser notadas trs anos antes, em seu ensaiodo incio de 1931, O que o teatro pico?, escrito em Berlimem circunstncias histricas e polticas bem diversas daquelas de1934. O ensaio corresponde a um esforo de elucidao e defesado teatro de Brecht perante as severas crticas dirigidas contra amontagem de Um homem um homem em fevereiro daquele mes-mo ano. Apesar dessa circunstncia, que impede que o ensaio deBenjamin seja inteiramente reconduzido ao texto da pea, ele no uma mera crtica de teatro jornalstica. Ao contrrio, na anlisedessa montagem ele desenvolve um estudo aprofundado sobre astransformaes decisivas introduzidas por Brecht no aparelho tea-tral com o intuito de conect-lo a um movimento mais amplo detransformao social.10A crtica de concepes herdadas da tradi-o se torna assim um elemento central do trabalho de Brecht emUm homem um homem. Nesse sentido, vale aqui a caracterizaoda fbula da pea feita por Anatol Rosenfeld:

    a despersonalizao do indivduo, a sua desmontagem e remontagemem outra personalidade; trata-se de uma stira concepoliberalista do desenvolvimento autnomo da personalidade humanae ao drama tradicional que costuma ter por heri um indivduoforte, de carter definido, imutvel. A concepo pica desta pealiga-se, pois, a uma filosofia que j no considera a personalidadehumana como autnoma e lhe nega a posio central.11

    10. Apesar de tomar parte num esforo conjunto de defesa e explicao doteatro pico, Benjamin no conseguiu publicar seu ensaio. Apenas uma se-

    gunda verso, sensivelmente alterada, seria publicada em 1939. A respeitode suas tentativas mal-sucedidas de publicar o texto na imprensa alem, cf.Wizisla, E. Benjamin und Brecht. Die Geschichte einer Freundschaft. Frankfurtam Main: Suhrkamp, 2004, pp. 182-6. O livro de Wizisla reconstri compreciso muitos elementos histricos e biogrficos referentes colaboraointelectual entre Benjamin e Brecht, mas, infelizmente, d pouca ateno anlise mesma dos escritos de Benjamin sobre Brecht.

    11. Rosenfeld, A. O Teatro pico. So Paulo: Perspectiva, 2002, p. 146.

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    Nessa pea, que Benjamin ressalta como um primeiro mode-lo do teatro pico12, Brecht conta a histria do estivador Galy Gay,apresentado do seguinte modo por Benjamin:

    o trabalhador sbio e solitrio, [que] concorda com a abolio desua prpria sabedoria e com sua incorporao ao exrcito colonialingls. Ele tinha acabado de sair de casa, a pedido da mulher, paracomprar um peixe. Nesse momento, encontra um peloto do exrcitoanglo-indiano, que ao saquear um pagode tinha perdido o quarto

    homem, que pertencia ao grupo. Os outros trs tm todo o interesseem encontrar um substituto o mais rapidamente possvel. Galy Gay o homem que no sabe dizer no. Acompanha os trs sem saber oque querem dele. Pouco a pouco, assume os pensamentos, atitudese hbitos que um homem deve ter na guerra. completamenteremontado, no reconhece a mulher quando ela consegue encontr-lo, e acaba transformando-se num temido guerreiro e conquistadorda fortaleza Sir el Dchowr, nas montanhas do Tibete. Um homem um homem, um estivador um mercenrio.13

    Brecht queria ensinar ao pblico que o homem no uma es-sncia fixa e imutvel, mas um ser histrico que exerce uma funo

    social correspondente sua inscrio histrica. O homem troca depersonalidade como o ator troca de papel, desempenhando aqueleque o mais adequado a cada situao. A compreenso das relaessociais como histricas exige a historicizao mesma do homem: Umhomem um homem: no se trata de fidelidade sua prpria essn-cia, e sim da disposio constante para receber uma nova essncia.14

    Benjamin tomou conhecimento da pea pela montagem de1931, no Staatstheaterde Berlim, a qual correspondia terceirafase de trabalho de Brecht em torno de Um homem um homem. Osprimeiros fragmentos de uma pea que levaria o ttulo de Galgei

    12. Benjamin, W. O que o teatro pico?. In: _____. Gesammelte Schriften,vol. II-2, p. 521. Edio brasileira: Benjamin, W. Obras Escolhidas,vol. I.Trad. de Srgio Paulo Rouanet. So Paulo: Brasiliense, 1995, p. 80.

    13. Benjamin, W. O que o teatro pico?. In: _____. Gesammelte Schriften,vol. II-2, p. 526. Edio brasileira: Benjamin, W. Obras Escolhidas,vol. I,pp. 85-6.

    14. Idem, p. 527. Idem, p. 86.

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    datam de 1920, enquanto a primeira verso da pea surge entre1924 e 1928 e tem sua estria em 1928, na Volksbhne de Berlim,recebida com elogios da crtica, depois de uma pr-estria tambmbastante elogiada em Darmstadt.15Nessas duas primeiras fases detrabalho, a transformao de Galy Gay no , em princpio, ne-gativa. A montagem de 1931, porm, ressalta o carter negativodo processo, apresentando a remontagem de Galy Gay como aconstruo de uma mquina de guerra. Ao contrrio das monta-gens anteriores, esta terceira verso da pea foi muito mal recebi-da, tendo apenas cinco apresentaes e provocando a rejeio doscrticos de teatro, inclusive de Herbert Jhering, crtico importantena poca e normalmente favorvel ao trabalho de Brecht.16

    A crtica de Jhering chama a ateno, em primeiro lugar,para o exagero e a disparidade no uso de instrumentos cnicoscomo pernas de pau, mos gigantes e mscaras que desfiguravamos traos e as medidas corporais dos atores. Na anlise de ele-mentos especficos da encenao, ele crtica ainda a atuao dePeter Lorre no papel principal pela falta de nitidez de sua dicoe pelo carter episdico de sua atuao. Estas restries situam-seem exato contraste com sua avaliao da montagem de 1928 na

    Volksbhne, fortemente elogiada pelo uso conseqente da tcnicateatral (Brecht no ataca, nem comemora a mecnica da era damquina17), pela nitidez da montagem e do trabalho de direo,assim como pelo desempenho do ator que interpretava Galy Gay.Em 1931, por sua vez, suas crticas pontuais montagem se re-nem em torno de uma observao de ordem geral, que destaca a in-compatibilidade entra a montagem e a prpria concepo do teatropico: Brecht teria demonstrado e defendido uma teoria utilizandoum objeto rejeitado. Nos termos da pea: Brecht teria entrado emcontradio com a tese da possibilidade de transformao emanci-

    15. Cf. Knopf, J. (Hrsg.) Brecht-Handbuch I: Stcke. Stuttgart, Weimar: Metzler,2003, pp. 152-4.

    16. Jhering, H. Vom Lustspiel zum Parabel. Skandal im Staatstheater. In:_____. Von Reinhardt bis Brecht.Eine Auswahl der Theaterkritiken von 1909-1932. Hamburg: Rowohlt, 1967, p. 326. Suas crticas elogiosas s monta-gens anteriores de Um homem um homemforam republicadas neste mesmovolume.

    17. Jehring, H. Op. cit., p. 262.

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    patria do homem, a qual sustenta um teatro pedaggico ligado slutas sociais, ao apresent-la num grupo social o exrcito colonialingls que ele critica e ridiculariza com humor negro. Nas pala-vras de Jehring, teria sido um erro provar um princpio pico numgrupo dramtico cuja viso de mundo negada.18

    A julgar por esta reprovao, de modo algum uma reao iso-lada pea, a crtica teatral da poca no teve dificuldades em lidarsomente com as inovaes introduzidas na tcnica de encenao,

    mas tambm com o endurecimento da crtica de Brecht ao compor-tamento dos soldados e transformao militarista de Galy Gay.19Se a historicidade do homem apresentava condies de superao doindividualismo em funo de uma nova relao com a coletividade,Brecht tambm julgou necessrio chamar a ateno para o potencialde agressividade inscrito em toda formao do coletivo. Emboraesta questo se intensifique somente na montagem de 1931, PatrickPrimavesi, em seu verbete para o Brecht-Handbuch, observa que aquesto da violncia do coletivo contra o indivduo j vinha sen-do trabalhada desde os primeiros esboos. As sucessivas verses dapea demonstram a crescente relevncia do problema para Brecht,que confronta a questo inicial do fortalecimento do indivduo na

    massa com os problemas do marxismo e da ideologia de massa fas-cista, uma questo qual ele retornaria at os anos 1950, quandorecoloca o problema da pea como o da fora sedutora exercidapelos falsos coletivos sobre o pequeno burgus.20A questo nodizia respeito somente caracterizao do exrcito colonial inglscomo uma comunidade a-social, o que, de resto, no era grandenovidade na poca.21 O que importava na parbola era, segun-do Primavesi, o questionamento do modelo de comportamentoapresentado. Por meio da nfase nos aspectos grotescos, a guerradeveria ser mostrada como forma socialmente representativa deum crime legalizado. Na medida em que Brecht apresenta a inte-grao do homem civil no exrcito como uma comdia cruel, ele

    18. Idem, p. 327.19. Cf. Knopf, J. (Hrsg.). Brecht-Handbuch I: Stcke. Stuttgart, Weimar: Metzler,

    2003, p. 162; e Brecht-Handbuch IV: Schriften, Journale, Briefe, p. 59.20. Knopf, J. (Hrsg.). Brecht-Handbuch IV: Schriften, Journale, Briefe, p. 58.21. Cf. crticas pea mencionadas por Primavesi em: Idem, p. 59.

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    no obtm apenas uma descrio realista da guerra colonial. Coma apresentao da remontagem como um processo de iniciaoque inclui a morte simblica e o abandono da identidade anterior,ele demonstra, ao mesmo tempo, a dependncia deste coletivo emrelao liberao de energias criminais, a-sociais e destrutivas.22

    A crtica de Jhering deu ensejo resposta imediata e por-menorizada de Brecht. Publicada pouco depois no mesmo jornalberlinense, ela constitui parte importante das Anotaes com-

    dia Um homem um homem, um conjunto de textos que ressalta osprocedimentos concretos empregados na montagem no contextode uma nova forma de teatro. Ao confrontar seus crticos, Brechtrefora o carter de parbola da pea pela nfase na artificialidadepronunciada dos procedimentos. Com o intuito de demonstrar queo homem uma construo artificial, Brecht, que assumiu pesso-almente a direo da pea, explorou a artificialidade dos adereoscnicos com o intuito de apresentar o natural como artificialmenteproduzido. A introduo de mscaras, pernas de pau e mos gigan-tes assumia a funo, pela descaracterizao do corpo humano, demostrar tanto as dimenses naturais do corpo quanto o rosto nu

    e sem mscara como um efeito artstico. assim que o rosto nudo ator Peter Lorre apresentado como uma etapa do processo detransformao: sua expresso no um produto de emoes inte-riores de uma personalidade, mas resultado de um processo teatralque as expe na sua exterioridade. Algo semelhante ocorria comsua dico: a fala sem entonao e nitidez buscava chamar a aten-o do espectador para momentos especficos do texto. De maneirasegmentada e na forma de estrofes, o objetivo no era envolver oespectador na contradio do discurso dramtico, mas, como dizBrecht, afastar o espectador do texto, um efeito de distanciamentoalcanado com a apropriao da noo de cesura de Hlderlin,

    cuja funo no era a de ressaltar as representaes no verso, maso prprio trabalho potico de representao. Nesse sentido, o pr-prio texto era encenado do ponto de vista da sua interrupo, cha-mando a ateno para a artificialidade da fala natural.

    22. Idem,ibidem.

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    Esses elementos organizavam-se, por sua vez, no carter depea dentro da pea com que a exposio da transformao deGaly Gay era conduzida. Brecht segmentou as etapas e as cir-cunscreveu com artifcios que chamavam a ateno para a espe-cificidade de cada momento. Projees forneciam os nmeros dasetapas da transformao, enquanto dois painis mostravam aofundo imagens de Galy Gay antes e depois de sua remontagem.Com a mesma finalidade, Peter Lorre buscava mostrar o emprego

    de um mesmo procedimento em situaes distintas: Galy Gay seaproxima do muro com o mesmo gesto que repete depois, quandoseu fuzilamento encenado. Com isso, chamava-se a ateno doespectador para a conexo entre dois momentos distintos da ao,ressaltando a transformao ocorrida. Tratava-se, na formulaode Brecht, de exigir do espectador a postura de quem folheia umlivro, ou seja, a percepo direcionada para a citao dos movi-mentos corporais no contexto de um processo de literalizao doteatro que no ocorria pelo texto, mas pela relao diferenciadaentre corpo e texto no contexto da transformao da ao.

    Essa articulao entre natural e artificial dependia, porm, da

    constituio de uma relao diferenciada entre a exposio teatrale a conexo entre os processos apresentados. O enredo no deveriadesenvolver-se teleologicamente rumo ao seu desfecho, como sepoderia dizer da forma dramtica cannica, mas interromper-sede modo que cada parte pudesse ser vista na sua singularidade. Orealce dos elementos constitutivos salientaria a artificialidade dotodo. Esta idia de totalidade, como algo construdo por partes in-dependentes, ressaltada diversas vezes nas Anotaes comdiaUm homem um homem com os conceitos de gesto fundamental(Grundgestus) e fluxo total (Gesamtflu), empregados por Brechtna descrio do trabalho do ator pico. Assim como cada gestocorporal deveria obedecer a uma orientao de ordem geral, dadapelo gesto fundamental, o ator pico, diz ele, deveria lanar luzsobre determinados condicionantes dos processos histricos pelomodo como ele conecta procedimentos individuais e os insere nofluxo totalde sua apresentao. Ao contrrio do ator dramtico, eleno tem desde o incio seu personagem constitudo, mas faz comque este aparea aos poucos, de maneira segmentada, diante dos

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    olhos do espectador. Da no resulta um personagem imutvel,mas um outro que, em suas sucessivas mudanas, ganha nitidezpara a platia. Com isso, o teatro pico dissolveria a idia do atorportador da ao, ou seja, do ator que interioriza o papel principalde maneira unitria e sem interrupes.

    De acordo com a descrio acima, os procedimentos empre-gados por Brecht na montagem de 1931 podem ser caracterizadoscomo uma dialtica entre partes e todo: a tendncia desagre-

    gao inscrita na separao dos elementos contrabalanada porum movimento totalizador, responsvel por garantir a coernciada parbola, de modo que o espectador pudesse realizar a sntesedos procedimentos apresentados, dela extraindo um ensinamentoprtico. Aos diversos elementos que chamam a ateno do espec-tador para os mecanismos mobilizados pela prpria apresentao,Brecht julga ainda necessrio sobrepor a autoridade do prpriodramaturgo com o intuito de garantir que o ensinamento no seperdesse na figurao. De maneira irnica, mas tambm professo-ral, ele surge na terceira pessoa, anunciando a doutrina que sus-tenta a pea. Na montagem de 1928, ele aparece no interldio

    da viva Begbick, que introduz a transformao de Galy Gay emoutro homem, enquanto 1931 ele se antecipa prpria pea, in-troduzindo a questo j em seu prlogo:

    O senhor Bertolt Brecht afirma: um homem um homem.E isso qualquer um pode afirmar.Porm o senhor Bertolt Brecht consegue tambm provarQue qualquer um pode fazer com um homem o que desejar.Esta noite, aqui, como se fosse um automvel, um homem ser

    desmontadoE depois, sem que dele nada se perca, ser outra vez remontado.

    Com calor humano dele nos aproximaremosE sem dureza, mas com energia, a ele pediremosQue saiba s leis do mundo se conformarE que deixe seu peixe tranqilo nadar.No importa no que venha a ser transformado,Para sua nova funo estar corretamente adaptado.

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    Mas, se no o vigiarmos, ele poder se tornarDa noite para o dia, um assassino vulgar.O senhor Bertolt Brecht espera que observem o solo em que

    pisamComo a neve sob os ps se derreter.E que, vendo Galy Gay, finalmente compreendamComo perigoso neste mundo viver.23

    Um dos expedientes pedaggicos lembrados por Benjaminera a apresentao de situaes j conhecidas, de modo que a aten-o do espectador contemplasse tambm o modo como elas eramapresentadas. O anncio prvio da remontagem de Galy Gay de-sempenha assim a funo de preparar o espectador, transformandoo processo em objeto de estudo. Desse modo, o prlogo se conectatambm quelas tcnicas de literalizao do teatro, como a cons-truo de molduras textuais para determinadas cenas, por meio daprojeo de legendas introdutrias a cada etapa da remontagemdo estivador em soldado. Embora esse prlogo possa ser alinha-do a tais formas de redimensionamento da relao entre texto eexposio, sua funo central assegurar a traduo da figuraoartstica em sentido transmissvel ao pblico. Em outras palavras,Brecht parecia temer que seu ensinamento pudesse perder-se nairredutibilidade dos procedimentos de encenao ao sentido un-voco e certeiro, necessitando ento da sobreposio das palavrasdo dramaturgo para garantir a eficcia da parbola. Diante destasquestes, plausvel supor que partes e todo, ou melhor, procedi-mentos de encenao como a repetio dos gestos ou a cesura dasfalas, de um lado, e as intenes totalizantes inscritas na fbula, nogesto fundamental e no fluxo total, de outro, no compem, comoBrecht pretendia, uma unidade livre de tenses. A hiptese a serexplorada aqui a de que o ensaio de Benjamin O que o teatro

    pico?se movimenta no interior dessas tenses, voltando o teatropico contra a inteno mais explcita de seu autor ao defini-locomo um teatro gestual.

    23. Brecht, B. Um Homem um Homem. In: _____. Teatro Completo, vol. 2.Trad. de Fernando Peixoto. So Paulo: Paz e Terra, 1991, pp. 181-2.

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    II

    A fora pedaggica da pea sua capacidade de mostrar aopblico que o homem e as situaes so histricas e modificveis no apresentada por Benjamin a partir da posio explcita dodramaturgo, nem das muitas passagens em que os personagenscomentam a encenao teatral como um processo de desmonta-gem e montagem de seus elementos. Nenhum desses expedientes

    possui a fora e a evidncia da repetio de um mesmo gesto emmomentos-chave da pea. O mesmo gesto faz Galy Gay aproxi-mar-se duas vezes do muro, uma vez para despir-se e outra paraser fuzilado. O mesmo gesto faz com que ele desista de compraro peixe e aceite o elefante.24A pedagogia teatral no se efetivapela assimilao da tese de que o homem pode ser diferente doque ele , mas por meio do jogo, do exerccio ldico com os proce-dimentos teatrais e corporais de desmontagem e remontagem dohomem. Na interpretao de Benjamin, esse processo de citao dogesto, longe de ser um elemento secundrio na economia da mon-tagem, eleva-se posio de organizador da exposio e princpio

    formal decisivo do teatro pico.A ateno de Benjamin s mediaes entre a concepo de

    teatro pico e tcnicas de encenao desenvolvidas por Brecht oleva a localizar o cerne da exposio teatral naquele elemento quelhe permite definir o teatro pico como um teatro gestual: a pas-sagem da interrupo da ao produo do gesto.

    Em face das assertivas e declaraes fraudulentas dos indivduos, porum lado, e da ambigidade (Vielschichtigkeit) e falta de transparnciade suas aes, por outro, o gesto tem duas vantagens. Em primeirolugar, ele relativamente pouco falsificvel, e o tanto menosquanto mais imperceptvel e habitual for esse gesto. Em segundo

    lugar, em contraste com as aes e iniciativas dos indivduos, ogesto tem um comeo determinvel e um fim determinvel. Essecarter fechado, circunscrevendo numa moldura rigorosa cada um

    24. Benjamin, W. O que o teatro pico?. In: _____. Gesammelte Schriften,vol.II-2, p. 530. Edio brasileira: Benjamin, W. Obras Escolhidas,vol. I, p. 89.

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    dos elementos de uma postura que, no obstante, como um todo,est inscrita num fluxo vivo, constitui um dos fenmenos dialticosmais fundamentais do gesto. Resulta da uma concluso importante:quanto mais frequentemente interrompemos o protagonista deuma ao, mais gestos obtemos.25

    Essa relao entre partes e todo bastante distinta daqueladescrita por Brecht em suas Anotaes comdia Um homem umhomem. Em Brecht, a conexo da particularidade do gesto com a

    totalidade do fluxo total e do gesto fundamental era apresentadacomo uma figura do encadeamento da particularidade num todocontraditrio compreendido como o sentido da parbola.

    Pois se tratava aqui mais uma vez de destacar do sentido de cadafrase um gesto fundamental bem determinado, o qual no podiaprescindir inteiramente do sentido de cada frase para ser percebido,mas precisava ainda deste sentido somente como meio para atingirum fim. O contedo das partes consistia de contradies, e o atortinha que tentar envolver o espectador nas prprias contradies,mas no por meio da identificao com cada frase, e sim mantendo-o afastado delas. A apresentao teve de ser o mais objetiva possvel,

    mostrando um processo interno cheio de contradies enquantoum todo. (...) O esforo do ator pico de chamar a ateno paradeterminados processos entre os homens (colocando os homenscomo o milieu) pode levar s vezes ao erro de entend-lo como umepisodista de flego curto caso no se considere como ele conectatodos os processos particulares uns aos outros, inserindo-os nofluxo total de sua apresentao.26

    Benjamin, ao contrrio, situa a conexo entre o gesto e o flu-xo vivo sob a figura da interrupo, a qual no insere, mas des-taca o gesto do fluxo vivo, impedindo o encadeamento da ao.Destacado da continuidade, o elemento desapercebido ganha ocarter de expositor da ao em que estava inserido. Seu cartercircunscrito sua moldura permite assim mostrar a articulao

    25. Benjamin, W. O que o teatro pico?. In: _____. Gesammelte Schriften,vol.II-2, p. 521. Edio brasileira: Benjamin, W. Obras Escolhidas,vol. I, p. 80.

    26. Brecht, B. Anmerkungen zum Lustspiel Mann ist Mann. In: _____.Schriften zum Theater, pp. 983-6.

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    deste fluxo vivo. Seria esta sua relao com a verdade, seu carterno falsificvel: sua irredutibilidade a todo sentido previamenteconstitudo como possibilidade de construo de novos sentidos.

    A descoberta das circunstncias, responsvel por despertar ointeresse do pblico, no produto de uma explicao totalizanteque revela ao espectador como o mundo funciona, mas da inter-rupo mesma do discurso. A descoberta de situaes se processapela interrupo dos acontecimentos.27A interrupo tem a fun-

    o crtica de tornar estranha uma situao habitual, desmontan-do-a em seus componentes, e mostrando, a partir da possibilidadede um novo rearranjo, a falsidade do arranjo corrente. Sua funono assim s de desmontagem, de destruio do contexto. Elaprepara os elementos para serem remontados em uma nova situao.Ela mostra tanto sua imprescindibilidade quanto sua insuficincia.Sua limitao est na incapacidade de passar da desmontagem remontagem, uma vez que ela s imobiliza, decompe, separa emseus elementos uma dada situao. Quem realiza a tarefa de re-montagem o gesto. O teatro pico gestual. (...) O gesto seumaterial, e a aplicao oportuna desse material sua tarefa. (...)quanto mais frequentemente interrompemos o protagonista deuma ao, mais gestos obtemos. Em conseqncia, para o teatropico a interrupo da ao est no primeiro plano. 28A funoda interrupo est na produo do gesto. A interrupo mostraa mutabilidade da situao por permitir que uma determinada si-tuao se imobilize e seja desmontada, de modo que o gesto sejadela retirado e montado em uma nova situao.

    A interrupo est colocada a servio da citao do gesto, umprocesso que se origina na literalizao do palco, por meio do qual oprprio texto mobilizado no sentido da interrupo do elementodiscursivo por excelncia da apresentao teatral tradicional, o en-redo. Na segunda verso do ensaio sobre o teatro pico, Benjamin

    afirma: A interrupo um dos procedimentos fundamentais detoda constituio da forma. Ela se fundamenta na citao: citar

    27. Benjamin, W. O que o teatro pico?. In: _____. Gesammelte Schriften,vol.II-2, p. 522. Edio brasileira: Benjamin, W. Obras Escolhidas,vol. I, p. 81.

    28. Idem, p. 521. Edio brasileira: Idem, p. 80.

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    um texto interromper seu encadeamento (Zusammenhang).29Aintroduo de canes e cartazes rompe a identidade entre texto eenredo, suspendendo o curso da prpria ao, ou seja, do prpriodiscurso que sustenta a apresentao. A citao mostra que umanova ordenao dos elementos era uma possibilidade da situaooriginal, ou seja, a citao referncia pr-existncia dos ele-mentos na situao anterior, crtica da ordenao dessa situaoanterior pela interrupo que a desmonta e passagem para uma

    nova organizao, que mantm o arranjo anterior como um ar-ranjo estranhado. Trata-se de uma crtica feita com a linguagem ecom o material do objeto criticado, passagem, enfim, da destruio construo.

    III

    Benjamin apontou a inscrio histrica do teatro pico aoafirmar que a articulao de gesto e interrupo na constituiode um teatro no-ilusionista no era uma utopia do dramaturgo,mas uma possibilidade histrica inscrita no estgio mais avanadoda tcnica. No ensaio de 1931, ele escreve: As formas do tea-

    tro pico correspondem s novas formas tcnicas, ao cinema e aordio. Ele est situado no ponto mais alto da tcnica.30E trsanos depois, em 1934, em O autor como produtor, a questo recolocada do seguinte modo: Com o princpio da interrupo, oteatro pico adota um procedimento que se tornou familiar parans, nos ltimos anos, com o desenvolvimento do cinema e dordio, da imprensa e da fotografia. Refiro-me ao procedimento damontagem: pois o material montado interrompe o contexto noqual montado.31A destruio do teatro ilusionista pelas tcnicasavanadas de montagem emprestadas do rdio e do cinema no

    29. Benjamin, W. O que o teatro pico?, 2 verso. In: _____. GesammelteSchriften,vol. II-2, p. 536.

    30. Benjamin, W. O que o teatro pico?. In: _____. Gesammelte Schriften,vol.II-2, p. 524. Edio brasileira: Benjamin, W. Obras Escolhidas,vol. I, p. 83.

    31. Benjamin, W. O autor como produtor. In: _____. Gesammelte Schriften,vol. II-2, pp. 687-8. Edio brasileira: Benjamin, W. Obras Escolhidas,vol. I,p. 133.

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    assim apenas um ponto importante da anlise de Benjamin, mas aprpria perspectiva materialista de sua anlise.

    importante notar, contudo, que a relao entre crtica doilusionismo teatral e desenvolvimento tcnico no era, a princpio,nada bvia, uma vez que, como lembra Brecht em seus textos te-ricos da dcada de 1930, o responsvel pela sofisticao dos pro-cedimentos ilusionistas na histria do teatro europeu havia sidojustamente o aperfeioamento da tcnica teatral. A exigncia de

    naturalidade, nesse sentido, no se colocava para os dramaturgosda poca de Shakespeare com a mesma fora com que se colo-caria, mais tarde, para aqueles da poca de Goethe, por exemplo.Com essa observao, Brecht pretendia mostrar que a empatia noera um princpio absoluto, mas uma conquista tcnico-artstica deuma poca em que ela exercia uma funo socialmente progressis-ta. A empatia o grande instrumento artstico de uma poca emque o homem a varivel e seu meio a constante. S possvelidentificar-se com aqueles que trazem a estrela de seu destino noprprio peito.32De acordo com esta caracterizao, o ator deve-ria representar seu personagem com tal poder de sugesto que oespectador sentiria e veria o mesmo que o personagem. No cabe

    a ele discutir os sentimentos ou o comportamento do heri, masapenas compartilh-los, pois o comportamento deste seria, para oespectador, algo natural, e sua ao assumiria a aparncia de umdestino que no pode ser alterado. Em outras palavras, Brecht dizque s seria possvel identificar-se com aquilo que no se transfor-ma. O elemento central da crtica de Brecht empatia a caduci-dade deste procedimento:

    Essa empatia (identificao), um fenmeno social que signi-ficou um grande progresso para uma determinada poca histrica, cada vez mais um obstculo para o desenvolvimento posteriorda funo social das artes teatrais. A burguesia ascendente, que

    promoveu um desenvolvimento poderoso das foras produtivascom a emancipao econmica da personalidade individual, ti-nha interesse nessa identificao com sua arte. Hoje, quando apersonalidade individual livre tornou-se um obstculo ao desen-

    32. Brecht, B. Schriften zum Theater, p. 300.

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    volvimento posterior das foras produtivas, a tcnica de identifi-cao da arte perdeu seu direito. A personalidade individual tevede abandonar sua funo nos grandes coletivos, o que ocorre comdifceis lutas diante de nossos olhos.33

    No momento em que a funo de sujeito histrico passa aser desempenhada pelos movimentos sociais organizados, e nomais pelo indivduo, a empatia se torna um procedimento artsti-co conservador. Os processos decisivos entre os homens (...) en-

    contram-se nos grandes coletivos e no so mais apresentveis doponto de vista do homem individual. O indivduo est sujeito auma causalidade extremamente complicada e s pode ser mestrede seu destino como parte de um coletivo forosamente contra-ditrio em si mesmo.34Mas Brecht no quer apenas mostrar queo homem no compreensvel na sua auto-suficincia, como umser imutvel e isolado, pois no bastava apresentar no palco essanova ordenao social por meio de formas tradicionais fundadasna abstrao do indivduo, nem pela adaptao delas aos proces-sos coletivos. Este o fundamento de sua crtica ao naturalismo.Ainda que este tenha dado o impulso inicial na reviso do teatro

    tradicional, ele fora incapaz de promover uma transformao doteatro altura das necessidades e possibilidades inscritas no ma-terial que pretendia apresentar. Diante da exigncia de retratar anova realidade da classe trabalhadora, o drama naturalista tornouvisvel sua tendncia decomposio, fruto da introduo deelementos de natureza pica numa forma ainda estruturada se-gundo as restries da forma dramtica.35

    33. Idem, pp. 244-5.34. Idem, p. 274.35. Sobre essa tendncia decomposio do drama naturalista, cf. Szondi, P.

    Teoria do Drama Moderno. Trad. de Luiz Repa, So Paulo: Cosac & Naifi,2001. O esquema terico decisivo do drama naturalista a noo de meio de natureza pica, como indica sua origem no romance. Para Benjamin,em virtude da ausncia de reflexo sobre a prpria forma teatral, o objetivonaturalista de retratar a realidade no conseguiu abandonar o domnio doteatro ilusionista. Cf. Benjamin, W. O que o teatro pico?. In: _____.Gesammelte Schriften,vol. II-2, p. 522. Edio brasileira: Benjamin, W.Obras

    Escolhidas,vol. I, p. 81.

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    A exposio correta do mundo36, nos termos em que Brechtcoloca o problema, exigia a transformao das formas de exposiotradicionais de modo que o teatro se transformasse num instru-mento de conhecimento da realidade. O verdadeiro conhecimentodas coisas, a que o teatro pico almeja, produzido quando estasso expostas do ponto de vista da possibilidade de sua transforma-o. Mas isto no significa a adoo de uma posio utpica, poisessa transformao do teatro e da realidade no uma idia doartista, e sim uma possibilidade concreta inscrita no estgio maisavanado das foras produtivas. este reconhecimento da corre-lao entre tcnica e emancipao que permite a Brecht dar umencaminhamento no-ilusionista ao desenvolvimento da tcnicateatral. Por isso, seu caminho no o do excesso, da sofisticaoque sobrecarrega o teatro tradicional com mquinas complicadas,inmeros figurantes e efeitos refinados sem transform-lo em seusfundamentos e potencializar o seu carter ilusionista, tal como eraobservado no teatro comercial da Repblica de Weimar. O cami-nho reconhecido por Benjamin no teatro de Brecht o caminhoda sobriedade, que se traduz no despojamento do palco de todoartifcio suprfluo de modo a incorporar os mecanismos de mon-

    tagem trazidos do rdio e do cinema.(...) um teatro que, em vez de competir com esses novosinstrumentos de difuso, procura aplic-los e aprender com eles, emsuma, confronta-se com esses veculos. O teatro pico transformouesse confronto em coisa sua. o verdadeiro teatro do nosso tempo,pois est altura do nvel de desenvolvimento hoje alcanado pelocinema e pelo rdio. Para fins desse confronto, Brecht limitou-se aos elementos mais primitivos do teatro. Num certo sentido,contentou-se com uma tribuna. Renunciou a aes complexas.37

    Trata-se da elaborao de um outro ponto de vista, a partir doqual o teatro pode ser transformado pela tcnica mais avanada.

    como se o teatro tivesse que livrar-se de todo adereo desnecess-rio, retornando, num gesto de despojamento sbrio, sua estrutura

    36. Brecht, Schriften zum Theater, p. 306.37. Benjamin, W. O autor como produtor. In: _____. Gesammelte Schriften,vol.

    II-2, p. 697. Edio brasileira: Benjamin, W. Obras Escolhidas,vol. I, pp. 132-3.

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    bsica, para s ento comear de novo. A tarefa mais urgente doescritor moderno: chegar conscincia de quo pobre ele e dequanto precisa ser pobre para poder comear de novo.38No setrata aqui, evidentemente, de representao da pobreza, mas deum novo arranjo de elementos para a exposio da realidade. Odespojamento do teatro de Brecht no , assim, contraditrio coma tcnica mais avanada, mas justamente a maneira mais conse-qente de incorpor-la como instrumento crtico-pedaggico.

    As Anotaes comdia Um homem um homem introdu-ziam esta correlao entre teatro pedaggico e aparato tcnico pormeio da separao dos elementos que compunham o espetculo, demodo que eles pudessem se realar reciprocamente. O que Brechtformularia teoricamente nos anos de exlio como crtica empatiado teatro aristotlico j se efetivava na srie de interrupes daao provocada pela montagem do material de origem diversa:canes, cartazes, projeo de textos, imagens e filmes. Se a in-troduo no palco desse material de procedncia diversa permitiaao dramaturgo solidarizar-se com outros produtores, no sentidoapontado por Benjamin em O autor como produtor, e rompercom o modelo de produo individual, a orientao da monta-gem pela interrupo da ao separa esses elementos e os mostrana sua independncia, produzindo efeito contrrio ao ilusionismoque domina em concepes como a da obra de arte total:

    Quando o construtor de palcos se une ao diretor, ao escritor depeas, ao msico e ao ator, o que diz respeito ao trabalho social daapresentao, cada um deles apia os demais e goza desse apoio,e de modo algum esse trabalho precisa descambar numa obra dearte total, numa fuso total dos elementos artsticos. De certomodo, ele mantm, na sua associao com outras artes, por meio da

    separao de elementos, a individualidade de sua arte, do mesmomodo como ocorre com as outras artes. A colaborao entre as artestorna-se algo vivo; a contradio dos elementos no se dissolve.39

    38. Idem, p. 695. Edio brasileira: Idem, p. 131.39. Brecht, B. Schriften zum Theater, pp. 440-1.

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    O nico modo de evitar a produo da iluso e da empatia manter a independncia e a contradio entre os elementos que com-pem o espetculo. Os efeitos produzidos pelo aparato cnico, musi-cal e de iluminao, por exemplo, no devem desaparecer na ao, masvir tona como elementos distintos. Aqui o teatro pico se apropriavados procedimentos de montagem do rdio e do cinema.

    Se o cinema imps o princpio de que o espectador pode entrara qualquer momento na sala, de que para isso devem ser evitados

    os antecedentes muito complicados e de que cada parte, alm doseu valor para o todo, precisa tem um valor prprio, episdico,esse princpio tornou-se absolutamente necessrio para o rdio,cujo pblico desliga a cada momento, arbitrariamente, seus alto-falantes. O teatro pico faz o mesmo com o palco.40

    A tcnica de montagem incorporada ento ao teatro comoproduto de sua reflexo sobre o prprio espetculo enquanto algoproduzido. A funo social dessa postura se mostra no esforo emtransmitir ao espectador o ensinamento de que tambm a reali-dade algo construdo e que poderia ser transformado com umnovo arranjo de seus componentes. O que determina o avano do

    processo que se desdobra no palco no , portanto, a necessidadeinscrita desde o incio na ao e que a impulsiona em direo resoluo, mas um processo intermitente de montagem e desmon-tagem de situaes. Quando o desencadeamento interrompidoe o carter episdico da parte se torna evidente, no a realidademesma que aparece para o pblico, mas uma ordenao experi-mental da realidade41cuja funo evidenciar o carter histricoda situao encenada, por mais banal ou cotidiana que ela seja. Oexemplo preferido por Benjamin para ilustrar esse processo o deuma cena de famlia.

    Mostrarei, com um exemplo, como em sua seleo e tratamento

    dos gestos Brecht limita-se a transpor os mtodos da montagem,decisivos para o rdio e para o cinema, transformando um artifcio

    40. Benjamin, W. O que o teatro pico?. In: _____. Gesammelte Schriften,vol.II-2, p. 524. Edio brasileira: Benjamin, W. Obras Escolhidas,vol. I, p. 83.

    41. Idem, p. 522. Edio brasileira: Idem, p. 81.

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    frequentemente condicionado pela moda em um processo puramentehumano. Imaginemos uma cena de famlia: a mulher est segurandoum objeto de bronze, para jog-lo em sua filha; o pai est abrindoa janela, para pedir socorro. Nesse momento, entra um estranho. Aseqncia interrompida; o que aparece em seu lugar a situaocom que se depara o olhar do estranho: fisionomias transtornadas,janela aberta, mobilirio destrudo. Mas existe um olhar diante doqual mesmo as cenas mais habituais da vida contempornea tmesse aspecto. o olhar do dramaturgo pico.42

    O elemento casual, que normalmente passa despercebido,perde sua obviedade e se transforma em objeto de estudo parao espectador. A interrupo da ao assim o princpio formalpico que combate o ilusionismo num movimento de mo dupla:os diversos elementos so introduzidos com a finalidade de inter-romper a ao e a interrupo da ao que permite mostr-losinterligados, mas independentes entre si. O efeito de estranha-mento, pea-chave da teoria do teatro pico, , para Benjamin,uma conseqncia da produo de gestos pela interrupo da ao.Ela a responsvel pelo processo de descoberta das condiesque se realiza sobre o palco e, assim, o elemento em torno do qual

    se configura a funo pedaggica do teatro pico.43

    Na medida em que o gesto aparece na interrupo da ao,ele um produto da introduo no teatro das tcnicas de monta-gem do rdio e do cinema e, consequentemente, o ponto de in-terseco do corpo com a tcnica teatral. Ao apresentar a trans-formao da exposio teatral pela tcnica por meio da citao degestos, Benjamin mostra que o significado do gesto reside nessa

    42. Benjamin, W. O autor como produtor. In: _____. Gesammelte Schriften,vol. II-2, p. 698. Edio brasileira: Benjamin, W. Obras Escolhidas,vol. I, pp.133-4.

    43. Ttulos que se antepem s cenas, a fim de que o espectador possa passardo o que ao como; projees que contrastam com os processos sobre opalco; o descobrimento do aparato de iluminao e da msica; o estranha-mento de todo cenrio conhecido, o qual o torna saliente novamente emseu significado social; tudo isso confere ao espectador aquela postura deseja-da da considerao realista, que num mundo de premeditada confuso, temtanta necessidade do conceito de falsificao consciente e inconsciente dossentimentos. Brecht, B. Schriften zum Theater, pp. 464-5.

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    exposio da fragmentao do movimento do corpo pela tcnica.Como diz Patrick Primavesi, o ator enquanto portador da aodramtica suprimido (de modo experimental). No seu lugar en-tra o gesto montado.44Com isso, Brecht teria trazido a exposi-o das contradies sociais para o corpo do homem. O conflitono interiorizado nem psicologicamente resolvido, mas expostona materialidade do corpo. Nesse processo, ou melhor, nesse jogodo corpo com a tcnica se torna possvel pensar uma relao deaprendizado entre o homem e o aparelho orientada pela possibili-dade de o homem transformar-se de acordo com as circunstncias.A idia bsica a de que seu destino no se encontra traado emsua personalidade, mas se decide no confronto com as contradi-es objetivas das situaes em que toma parte.45

    essa exposio do confronto entre o homem e a tcnica pelafragmentao do movimento corporal que determina, por fim, aeducao do ator brechtiano. No teatro pico, a educao de umator consiste em familiariz-lo com um estilo de representao queo induz ao conhecimento; por sua vez, esse conhecimento determi-na sua representao no somente do ponto de vista do contedo,mas nos seus ritmos, pausas e nfases.46Ou seja, o conhecimento

    est relacionado no s interpretao da ao, aos elementos dis-cursivos que se unificam no enredo, mas, sobretudo, aos momentos

    44. Primavesi, P. bersetzung, Kommentar, Theater in Walter Benjamins frhenSchriften.Frankfurt, Basel: Strmfeld Verlag, 1998, pp. 367-8.

    45. Por isso, Galy Gay chamado de o homem que no sabe dizer no. Contraos dramaturgos que atacam de fora as condies em que vivemos, Brecht asdeixa criticarem-se mutuamente, de modo altamente mediatizado e dialti-co, contrapondo logicamente uns aos outros os seus diversos elementos. Seuestivador, Galy Gay, em Um homem um homem, oferece o grande espetculodas contradies da nossa ordem social. Talvez no seja excessivo definir osbio, no sentido de Brecht, como o indivduo que nos proporciona o espe-

    tculo mais completo dessa dialtica. De qualquer modo, Galy Gay umsbio. (...) No entanto, apresentado como um homem que no sabe dizerno. Isso tambm sbio. Pois com isso ele deixa as contradies da vidaonde em ltima anlise elas tm que ser resolvidas: no prprio homem. Squem est de acordo tem oportunidade de mudar o mundo. Benjamin, W.O que o teatro pico?. In: _____. Gesammelte Schriften,vol. II-2, p. 526.Edio brasileira: Benjamin, W. Obras Escolhidas,vol. I, p. 85.

    46. Idem, pp. 528-9. Edio brasileira: Idem, 87.

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    gestuais que suspendem o curso da ao, transformando-a tambmem objeto da exposio. O ator deve mostrar uma coisa, e mostrar-se a si mesmo. Ele mostra a coisa com naturalidade, na medida emque se mostra, e se mostra na medida em que mostra a coisa.47Uma vez que so os princpios tcnico-formais do teatro pico quelhe conferem esta possibilidade, possvel dizer tambm que elemostra a si mesmo na medida em que mostrado pelo aparelho.O ator atinge assim o fundamento pedaggico decisivo do teatropico: o que mostra deve ser mostrado. Em torno deste princpio seorganiza a funo pedaggica do teatro pico, segundo Benjamin.Ao impedir a identificao entre exposio e exposto, atraindo aateno do pblico para o carter construdo da obra e das situaesapresentadas, esse modo de exposio rompe com o ilusionismoda prtica teatral. Como coloca Primavesi,

    A construo desse momento indica que o gesto no teatro pico(...) exerce a funo central de mostrar a exposio como tal, aindaindependente de declaraes morais ou de viso de mundo. Domesmo modo como nas narrativas de Kafka, os gestos do teatropico no tm nenhum significado simblico assegurado epermanecem dependentes da respectiva ordenao experimental.48

    Como o gesto no redutvel a um significado preciso, mas aprpria apresentao gestual de abertura do sentido, a funo pedag-gica do teatro se efetiva como precedncia da exposio em relao aosentido fixo e determinado. Como diz Hans-ies Lehmann,

    O teatro no diz outra coisa e no diz de forma alguma mais queo real, tambm no diz antes, ele no traz nada no sentido deum aprendizado de novas intenes mentais. Ele produz, isso sim,uma traduo do mental no gestual. (...) Apenas para situar a teoriado gesto, isto no algo como uma exposio sensvel-corporalde um significado social, mas a exposio gestual da abertura desentido. O que Brecht ressaltou no gesto era seu carter enigmtico

    irredutvel e no aquilo que o aproximava de outros procedimentosteatrais ou discursivos. Para organizar suas idias, o pensador lum livro que ele j conhece. Ele pensa no modo como o livro

    47. Idem, p. 529. Edio brasileira: Idem, p. 86.48. Primavesi, P. Op. cit., pp. 369-70.

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    escrito. Este o modelo de leitura do teatro. Poderamos traduzirisso assim: Para organizar suas idias polticas, o pblico tomaparte num jogo gestual e lingstico que ele j conhece. Ele pensano tipo e o modo da exposio gestual e lingstica do processo.49

    Aprender com o teatro implica entender que o jogo temprioridade em relao inteligibilidade mesma da ao. No h,portanto, nenhum sentido trazido para a apresentao, mas so-mente o sentido que inventado pela primeira vez no teatro. A

    recusa determinao prvia do jogo por um sentido prvio no s um modo de chamar a ateno para a exposio, mas tambmuma maneira de promover o exerccio com o aparelho teatral, poisa encenao no s representao da realidade, mas, antes detudo, jogo com os procedimentos de representao.

    Esse primado da exposio impede que o espectador se identi-fique com a ao e, portanto, que seja induzido a avaliar a transfor-mao do homem em mquina de guerra como correta. O especta-dor deve parar para refletir sobre os procedimentos em curso. Brechtmostra a remontagem do homem como um processo correlato tcnica moderna, mas mostra seu lado destruidor em funo da ao

    militar e da anulao da subjetividade perante o falso coletivo. Opblico no deve concluir que tal remontagem positiva, mas queas condies sociais que destruram a personalidade como essnciaindividual imutvel produziram uma mquina de guerra integradaao falso coletivo, e tambm poderiam produzir outra. A questo, por-tanto, mostrar uma possibilidade concreta o homem pode sertransformado e criticar uma modalidade de efetivao dessa possi-bilidade. Brecht se apia assim na conquista do fim da personalidadeburguesa para criticar seu desdobramento imperialista em mquinade guerra, reservando espao para outro desdobramento fundado nahistoricidade do homem. Nesse sentido, o fortalecimento da crtica

    ao resultado da remontagem nas sucessivas verses no contradiz aidia de remontagem como possibilidade histrica vislumbrada noteatro pico, mas enfatiza a historicidade do processo.

    49. Lehmann, H-T. Versuch ber Fatzer. In: _____. Das Politische Schreiben.Essays zu Theatertexten. Berlin: Theater der Zeit, 2002, pp. 252-3.

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    No por acaso, foi no teatro pico que Benjamin apontou,pela primeira vez, a figura de uma dialtica em suspenso:

    A condio descoberta pelo teatro pico a dialtica em suspenso.(...) no teatro pico a matriz da dialtica no a seqnciacontraditria de palavras e aes, mas o prprio gesto. (...) Quandoo fluxo real da vida represado, imobilizando-se, essa interrupo vivida como se fosse um refluxo: o assombro esse refluxo. Oobjeto mais autntico desse assombro a dialtica em suspenso.50

    Compreender o teatro como exposio dessa dialtica emsuspenso significa apontar sua funo pedaggica em exercciosde interrupo e desmontagem de processos e situaes e no natransmisso de um saber positivo a respeito da realidade. Em ou-tras palavras, a pedagogia est no reconhecimento de possibilida-des histricas vislumbradas no carter experimental da citao degestos. O fato de esse procedimento no se resolver na exposioda ao revolucionria esta seria o horizonte poltico do teatropico significa que a experincia revolucionria ainda inditano pode apresentar-se no palco. Por isso, em Um Homem umHomem sua possibilidade surge sob a forma da desmontagem eda remontagem do homem como evidncia de adaptabilidade situao histrica que a ele se impe. A nica forma de exposi-o da poltica a exposio da interrupo de todo processo nocorpo do homem, desnaturalizando a situao histrica presente egarantindo a abertura de sentido ao prprio presente. Pois Brechtno poderia apresentar no palco a figura do heri ou do coletivorevolucionrio, antecipando-se experincia histrica que deveriaproduzi-lo. A dialtica em suspenso deve ser vista como sinaliza-o de um limite no ultrapassvel pela exposio artstica. O te-atro permanece teatro: no se transforma em teoria da revoluo,nem se funde com a poltica revolucionria.

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