galard, jean - a beleza do gesto

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Vice-re;tor

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UN IVE RSIDA DE DE SÃO PA ULO

Suely Vilela

Franc o Mari a Laj olo

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

A Beleza do Gesto

Uma Estética das Condutas

JEAN GALARD

Diretor-presidente Plinio Mart ins Fi lho

COMISSÃO EDITORIAL

Presidente José Mindlin

Vice-presidente Car10 s A lberto Barbosa Dantas

Adolpho José Mel1i

Benjamin Abda la Jún ior

Mari a Arminda do Nasciment o Arruel a

Nél io Marc o Vincenzo Bizzo

Ricardo Toledo S ilva

Diretora Editor;al Silvana Biral

Editoras-assistentes Marilena Vizentin

Car la Fernanda Fon tana

Mal'YAmazonas Leite de Barros

Tradução

Celso Faval'ello e Leon Kossovitch

Revisão Técnica

led:

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Título do original francês:

Lu Beullté dll geste: Por llneesthétiqlle des condllites

Tradução para o português feita a partir da edição da Prcsses deL 'Éco le Norma le Supér ieure, 1984.

Copyright © 1997 by Jean Galard

I" edição 1997

I " e dição , I " r eimprcssão 2008

Dados I nternacionais de Catalog ação na Pub licação (CIP)

(Câmara Bras il ei ra do Livro, S I' , B ra si l)

Galard, J ean, 1937-A Bel eza do Gesto: Uma Estéti ca das Condutas / Jean Gal ar d; tr adu ção

de Mary Amazonas Leite de Barr os. - 1. e d., I . reimpr . - São Paulo: Editor a

da Universidade de São Paulo, 2008. - (Críticas Poéticas, 7)

ISBN 978-85-314-0420-7

I. Estética I. Título. I!. Série.

97-4843 CDD-305.567

Indíces para catúlogo sisten1útico:

Para Alena

I. Estética: F ilosofia I 11.85

Direitos em língua portuguesa reservados ü

Edusp - Editora da Universidade de São Paulo

Av. Prof. Luciano Gualbcrto, Travessa.1, 374

6° andar - E eI. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária

05S08-900 - São Paulo - SI ' - Brasil

Divisão Comercial: Te!' (11) 3091-400813091-4150

SAC (lI) 3091-291f - Fax (II)3091-4IS I

www.edusp.com.br-e-mail: [email protected]

Printed in Brazil 2008

Foi feito o depósito legal

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SUMÁRIO

Prefácio à Edição Brasileira11

Uma Arte, ao Pé da Letra19

Poética da Conduta

23

Ética do Signo39

A Economia dos Meios

49

A Ação Simbólica59

Parêntesis

73

Estética Romântica

77

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10

o Sentido do Insignificante

89

o Franqueamento do Gesto

103

Estéticas

119

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Muitas línguas - embora nem todas - utili

zam o mesmo termo para designar osmovimentos

do corpo portadores de significação e algumas

ações que são qualificadas de "gestos" em sentido

figurado. É neste sentido que considero um gesto,

por exemplo, o ato generoso graças ao qual este

ensaio pode ser hoje editado no Brasil, gesto de

hospitalidade da Universidade de São Paulo, que

repete outro, do passado, do qual eu já me benefi

ciara. A língua portuguesa e francesa jogam demodo semelhante com essa ambivalência da pala

vra "gesto" - o que constitui ao menos um elemento favorável a esta tradução.

Até que ponto as conotações da palavra "gesto",entendida no sentido figurado, são idênticas em fran

cês e em português? Para percebê-Io, é preciso umouvidobem treinado. Esta nota não pretende respon

der a tal questão. Apenas chama atenção para o fato

de que a palavra, em francês, tem um valor estéti-

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co. Só O emprego do masculino subsiste atualmen

te, mas ele parece ter conservado, no sentido figu

rado, tudo o que havia de glorioso nos dois empre

gos femininos, hoje em desuso, e que designavam, naIdade Média, seja a narrativa das façanhas de uma

personagem histórica, exaltadas pela lenda, sejam

as ações belas e memoráveis. Para ilustrar (por,apa

rentemente, não poder defini-Ia) a acepção dita "abstrata", os dicionários mencionam correntemente a

locução "fazer um belo gesto".

A existência ou a ausência numa língua de

uma palavra que expresse o gesto no sentido figu

rado tem, certamente, alguma significação antro

pológica. O mesmo acontece com a associação pos

sível dessa palavra com a que designa a beleza e

com ojuízo de valor implicitamente aplicado a esse

eventual par terminológico. Essas realidades lin

güísticas são, sem dúvida, interessantes sintomas

para um estudo das mentalidades. A atitude italia

na em relação ao bel gesto é, antes, laudativa, en

quanto a atitude alemã em relação ao schõne Geste

tende ao irônico. O gosto pelo belo gesto pressupõe

uma preocupação com as formas (ecom os códigos,até para desobedecê-Ios) que se encontra mais nos

franceses do que nos brasileiros, pois, segundoconsta, estes são mais suscetíveis a condutas "informais".

Mas este ensaio não tem como objetivo, de for

ma alguma, analisar o espírito de um povo, nem se

colocar sob a égide de uma sociologia comparativa,nem contribuir para uma história das mentalida

des. Ele não tem a intenção de fazer o saber posi

tivo avançar, por pouco que seja. Sequer teve o cuidado de definir um corpus. Caberia aqui um arrependimento?

13

São inúmeros os fenômenos históricos, os pe

ríodos, as instituições, que, cuidadosamente ana

lisados, permitiriam compreender melhor a sedu

ção, a gravidade e também os engodos da "beleza

do gesto". Para citar alguns modelos metodológi

cos, pense-se no trabalho de Maurice Pinguet, La

Mort volontaire au Japon (1984), que explora com

documentos as significações do "bem morrer", ou

no de Michel Foucault, que, em L'Usage des plai-

sirs eLe Souci de sai (1984), deslinda e interroga,

no núcleo da cultura greco-~atina, aquilo a quechama de "artes da existência". Pense-se também

nos inúmeros objetos de pesquisa designados, de

passagem, por Georges Duby, no que concerne aofenômeno da cavalaria; por Jacob Burckhardt ou

Philippe Aries, a respeito da sociedade da corte;

por Paul Bénichou em Morales du grand siecle

(1948). Renato Janine Ribeiro efetua um vivo panorama da ética-estética das cortes européias dos

séculos XVII e XVIII em A Etiqueta no Antigo Regi-

me: do Sangue à Doce Vida (1983).

Pode-se - e deve-se - acrescentar a esses gran

des exemplos (ocavaleiro, o sábio, o homem da corte, o herói corneliano), com os quais se fica em ex

celente companhia, alguns casos mais comprometedores: o dos "dândis" e dos "decadentes", o de um

d'Annunzio, o de um Marinetti, que são igualmenteinstrutivos ou mais cruelmente esclarecedores.

Mas, quando este pequeno livro procurava fa

zer surgir seu objeto (e não analisar um objeto"dado"), o desejo de saber se a conduta da vida

poderia ser, um dia, inteiramente estetizada, im

punha-se quase obsessivamente. Estava fora decogitação encarar um estudo aprofundado, dedicado a uma ou a outra dessas figuras: o ganho pare-

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cia demasiado incerto; o desvio, por demais longo.O passado só era interessante como reservatóriode "fatos e gestos" em que se pudesse escolher conforme a ocasião. É assim, parece, que a educaçãomoral tratava outrora o conhecimento do passado:ela descontextualizava os fatos históricos a fim detorná-Ios exemplares. Este ensaio, refratário à investigação historiadora, procurou agenciar algumas noções a partir das quais uma conduta belaseria dorauante concebível.

Projeto novo, capaz de ter sentido atualmente?Ou projeto "utópico", isto é, do qual nunca se en

contrará realização satisfatória em lugar algum?Programa radicalmente impossível, ou atualmente impraticável devido à civilização em que estamos, que é tecnicista e inteiramente votada aoprincípio de utilidade? Em seu Hagakure nyumon

(Introdução ao Hagakurê, 1968; traduzido para ofrancês sob o título Le Japon moderne et l'éthiquesamourai", 1985), Mishima imputava a causa deseu desespero à época em que vivia: "A atmosferade compromisso deste tempo deve-se ao fato de

que aquele que se esforça por viver e morrer nabeleza se destina a uma morte que terá toda aaparência da ignomínia, ao passo que aquele quesó aspira a uma vida e a uma morte que são, narealidade, repugnantes passa dias felizes". Nãoseria, antes, de modo totalmente intemporal que aconduta da vida (assim como a da morte) e a vontade de beleza se excluiriam mutuamente?

A arte, geradora de beleza (não apenas de deleite, mas de beleza trágica, sublime, surpreenden

te), tem, sobre a vida corrente, a vantagem de recorrer à ficção. Tudo, então, lhe é permitido. Elavive sob o regime da impunidade. Como afirma

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15

Diderot: "Não se tem pelos seres imaginários a deferência que se deve a seres reais". Por isso, apli

cam-se as invenções da arte às representações darealidade: "Não se deve fazer poesia na vida. Osheróis, os amantes romanescos, os grandes patriotas, os magistrados inflexíveis, os apóstolos da religião, os filósofos a qualquer custo, todos essesraros e divinos insensatos fazem poesia na vida,daí a sua infelicidade" (Salon, de 1767). "Eles sãoexcelentes para ser pintados", acrescenta Diderot.Fornecem após sua morte os temas de grandes quadros. Mas, enquanto vivem, causam não só a sua

própria infelicidade, como também a de outrem.Não cabe aqui retomar novamente o problema,

vasto, de saber se a arte pode ou não modelar avida, se ela deve ou não fazê-Io. Porém, uma vezque esta é exatamente a questão que subtende esteensaio, que nos seja permitido acrescentar aindauma ou duas observações, em tom interrogativo:talvez elas possam revelar uma incorrigível ingenuidade; talvez possam, pelo contrário, mostrarcomo uma estética das condutas não é ainda uma

questão fechada.Quando Diderot escreve que não se deve fazer

poesia na vida e que as grandes ações só convêmaos quadros, quando afirma em outra parte (emParadoxe sur le comédien) que o teatro aumenta oque ele representa e que a arte imita um mundoideal onde tudo é "grande, raro, maravilhoso e sublime", observa que nossa vida, por contraste, é"pequena, pobre, mesquinha e miserável". Resignar-se-á com essa comprovação? Será preciso atéconsentir em vê-Ia piorar sob o efeito de uma arteadversa, que difunde por toda parte doravante aimagem de um outro "mundo ideal", convidando a

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uma vida sempre mais uniforme e vulgar? De

qualquer modo, a questão da estética da vida se

propõe. Se não explicitamente, para definir as condições de uma conduta bela, será implicitamente,

na súbita tomada de consciência de que um gesto

foi ignóbil ou de que um destino foi desperdiçado.

Após os triunfos, no século XVIII,da doutrina

do "belo ideal", a "arte" e a "vida", durante dois

séculos, não deixaram de se situar, uma em rela

ção à outra, numa complexa relação de rivalidade,

como dois termos que, ao mesmo tempo, se aproximam necessariamente e se excluem fatalmente.

"Empregar seu gênio na vida e não na obra": estaé a ambição, proveniente do romantismo, que se

formula mais ou menos expressamente durante o

século XIXe que se repete cada vez mais obstina

damente no decorrer do século XX.Uma grande

parte da arte deste século parece mobilizada pela

intenção de apagar as fronteiras entre a obra e

seus entornos, entre a cena e o espectador, entre

a religião da arte e o mundo comum. A vasta des

cendência de Marcel Duchamp se esgota hoje na

compulsiva experimentação do que é "próprio daarte". Na perplexidade em que estamos agora

quanto à questão de saber o que a arte tem de es

pecífico ou distinto, duas hipóteses extremas aco

dem: terá a arte concluído o trabalho de apagar

suas fronteiras a ponto de ter-se abolido totalmen

te? Ou terá ela cumprido a ambição de estender

seus limites a ponto de ter conquistado (pelo me

nos a título simplesmente de "zonas de influência")todos os domínios da vida?

A questão da disseminação da arte, de sua "difusão" (de seu triunfo difuso), de seu ultrapassamento, produziu uma literatura tão ricamente

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17

ilustrada de propósitos retóricos que as noções de"Arte" e de "Vida" tornaram-se cada vez mais ne

bulosas. Pior do que inúteis: atravancadoras. Entretanto, a questão ética, por seu lado, continua a

se colocar, embora seja abandonada pela teoria.

Como conduzir a vida? Pergunta de todos os ins

'tantes, que requer, ao longo de nossos dias, prin

cípios diferentes daqueles açambarcados pelo dis

curso moral (tolerância, respeito pelos direitos do

homem). Talvez ela requeira, de fato, outra coisa

além de "princípios". Será que não se pode imagi

nar, em vez das leis que se supõem governando a

vida moral, uma arte do "pertinente", produzindopara cada situação singular o gesto que convém?

Kant, em Crítica do Juízo (§ 5) estabelece a distin

ção: "mostrar gosto em sua conduta (ou no julga

mento da de outros) é algo totalmente diverso do

que exteriorizar seu modo de pensamento moral".

Este é precisamente o ponto sobre o qual é interes

sante interrogar-se. Não está o exercício do gosto

na origem de nossas condutas mais inventivas?

Não será a repugnância o fator mais poderoso de

recusa das condutas degradantes? É preciso entender por "gosto" coisa diferente da expressão de

uma intuição obstinada: é exatamente o que acon

tece esteticamente, uma vez que se admite que o

gosto se cultiva. Nas páginas que se seguem, cogi

tar-se-á a eventualidade de uma ética renovada,

que procuraria, para nossos juízos e escolhas,

constituir, refinar, cultivar um gosto esclarecido.

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UMA ARTE, AO PÉ DA LETRA

A arte mais necessária, aquela para a qualcada instante oferece matéria e oportunidade, éentretanto de todas a mais rudimentar, a maisdesprovida de princípios conscientes, de categoriasestilísticas, de referências notórias: a arte do comportamento.

Saber encontrar, no momento oportuno, o gestoadequado; atribuir valor tanto à maneira quanto aoobjetivo; não se contentar com o respeito aos usosnem com as facilidades da sem-cerimônia; saber,com gestos mínimos, abrir o curso banal da existência à estranheza: alguns modos felizes de comportamento requerem uma compreensão que parece decorrer da mesma ordem estética que a do sentimento, inspirado, no pólo oposto, pela trivialidade deum malogro, pela deselegância de um procedimen

to, pela afetação de um modo de ser; mas estão longe de constituir objeto de reflexões há tanto tempofamiliares quanto as que se aplicam habitualmente

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às artes instituídas. Enquanto as análises cinema

tográficas, as concepções arquitetõnicas, as teorias

literárias florescem no luxo especulativo, a apreciação das condutas e das atitudes permanece subme

tida à indigente jurisdição da intuição.Todos os nossos atos são constantemente sus

cetíveis de se converter em gestos, de simbolizar

um modo de ser, um jeito de tratar os outros. É im

possível, até na solidão ou na inação, impedir que

a conduta tenha sentido (que signifique, por exem

plo, o isolamento, o recolhimento, por vezes a de

missão, a deserção), portanto, que seja, como uma

postura, expressiva. Esse conjunto de atitudes (deposturas ou imposturas), que adotamos inevitavel

mente a todo instante, não requereria uma verda

deira arte, que o avalie, o trabalhe, o recomponha?

Talvez a noção de arte sugira uma intenção por

demais aplicada, concertada, para parecer compa

tível com a espontaneidade e a improvisação que

se supõem prevalentes na condução da vida. Mas

não será em nome de uma exigência estética quenotamos justamente essa inconveniência (essa in

compatibilidade) e que ficamos constrangidos, porexemplo, quando vemos alguém compondo sua

imagem ou calculando seus efeitos? Decorreriam

as atitudes afetadas de uma aplicação intempes

tiva da arte à vida? Não indicariam elas, antes,

pelo contrário, que nisso nos ativemos aos proce

dimentos de uma arte simplificada? Os escrúpulos

da atividade artística levam-na a desfazer as poses, os maneirismos, as construções mais estuda

das. A espontaneidade é uma das ambições da

arte; o natural, uma categoria estética.Villiers de l'Isle-Adam evoca "um cantor que,

junto ao leito de morte de sua noiva, e ouvindo a

21

irmã da moça desmanchar-se em soluços convul

sivos, não podia impedir-se de observar, apesar

da aflição, as falhas de emissão vocal observáveisnaqueles soluços e pensava, vagamente, nos exer

cícios apropriados para lhes dar mais corpo"!.

Villiers de l'Isle-Adam se empenha em persuadir

nos de que a dor ou a alegria não são menos in

tensamente sentidas quando sua expressão é con

tida do que quando ela se manifesta em ruídos

confusos. Nos seres que gostariam de se prescre

ver impulsos mais espontâneos, paixões mais

francas, mais sinceras, ele evidencia, pelo contrá

rio, uma fraqueza afetiva, conjecturando que lançam clamores para justificar-se de antemão pela

inércia na qual sentem que vão logo recair. A agi

tação emocional reivindica mentirosamente o

natural: reproduz "sinceridades correntes", "pantomimas convencionais".

Seé verdade que toda reação é socialmente mo

delada, que nossos gestos, inclusive os mais elementares, são educados, a arte que se dedicasse aeles não contradiria o "natural", substituiria uma

arte anterior, uma estética implícita, pouco consciente, que regula o porte e a atitude, a continên

cia e as conveniências, que subtende a exigência da

contenção, quando não do comedimento. Uma artedeliberada, associada às condutas, não teria como

objetivo opor seus eventuais refinamentos aos extravasamentos dos instintos; ela experimentaria

gestos inusitados, que a estética herdada exclui.É preciso entender aqui o "gesto" na maiorextensão do termo: não só no sentido próprio (os

1.Vill iers de l'Isle~Adam, "Sentimentalisme", Contes cruelfj, Paris, Garnier-

Flammarion , 1980, p . 180 .

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22

movimentos do corpo, os usos corporais), mas tam

bém na acepção figurada. Permanecer resoluta

mente exposto a um perigo, enfrentar um adversário mais forte, lançar-se em nome da honra numa

aventura sem esperança, é "agir pela beleza do

gesto" - como se um sistema estético, de princí

pios constantemente ativos, mas informulados, nos

incitasse a acreditar que a beleza nunca pode apa

recer tão bem como nas poses de desafio, nas rea

ções suicidas, no brilho e na gratuidade. Referên

cias tácitas determinam igualmente ojuízo dirigi

do ao gesto global que é todo o desenrolar de uma

vida: elas detêm os critérios segundo os quais umavida é "bem-sucedida" ou "malograda", fixam o

modelo das carreiras "exemplares", cristálizando,

ao mesmo tempo, o fracasso incontável das existências frustradas.

Tratar a conduta como uma arte. Postular

que ela pode, como o teatro ou a música, despren

der-se dos ideais estreitos, das estéticas correntes. As tentativas deste ensaio entendem o inte

resse estético segundo diversas definições concor

rentes, para explorar a cada vez a eventualidadede sua aplicação ao conjunto do comportamento.

Essas hipóteses desejam propor-se, como outras

abordagens, como sendo uma série de esboços

(como sendo uma seqüência de gestos). Longe de

atribuir a si mesma um campo de experiência

pré-constituído, um domínio de observação, a in

vestigação procede aqui de um desejo cujo obje

to não é comprovado, mas induzido; apoiando-se

num esquema analógico, ela infere a possibilida

de de provocar, no próprio curso da vida, a consistência formal ou a intensidade emocional, pró

prias da experiência artística.

POÉTICA DA CONDUTA

Que a apreensão estética da existência seja,

afinal, coisa comum, é o que atestam, por exemplo,

o uso corrente das noções de "rotina", "monoto

nia", "cinza", o enfado que se tem por levar uma

vida chinfrim, pobremente cotidiana, condenada à

chatice, ou ainda a extensão metafórica que às

vezes se dá à oposição da "prosa" à "poesia".A categoria do "poético" reivindica, desde o ro

mantismo, um campo de aplicação que excede a es

fera das palavras, inclui, para Chateaubriand, al

gumas práticas antigas (as festas, as peregrina

ções), estende-se, com George Sand, ao modo de

vida campestre em seu conjunto. Sartre, um século

depois, interpreta a maneira de ser africana, cele

brada por Senghor sob o nome de Negritude, como

a expressão de uma poesia de agricultores, oposta

a uma prosa de engenheiros! . Por mais distante

1. J.~P.8artre, "Orphée noir",Situations IIl, Paris, Gallimard, 1949, p. 265.

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24

que esteja dos temas românticos, Valéry destaca

um fato de linguagem ("Dizemos de uma paisagem

que é poética; dizemo-Io de uma circunstância davida; dizemo-Io às vezes de uma pessoa") e retoma

o postulado que este uso implica ("Sei que tem

poesia neste arranha-céu"2). Karel Teige, nos Ma

nifestos do Poetismo, declara preferir as vibra

ções que a vida oferece aos cinco sentidos às flores

destacadas da literatura: "poesia das tardes de do

mingo, das excursões, dos cafés iluminados, do ál

cool embriagador, dos bulevares animados, das ca

minhadas nos balneários, e ainda poesia do silên

cio, da noite, da calma e da paz"3.De que modo objetos, lugares, condições de

existência, seres, comportamentos podem parecer carregados de poesia? Se aí só existe uma

série de idéias feitas, como e por quem foramelas transmitidas?

Jean Lacouture ressalta que Malraux se empe

nhou em combates pelos chineses, vietnamitas,

espanhóis, enquanto se manteve à margem das

tribunas da Frente Popular. Observa também que

algo dessa atitude reaparece no terceiro-mundismoda esquerda dos anos 60, que prefere apaixonar-se

pelos palestinos ou vietnamitas a fazê-Io pelo pro

letariado francês. Ele conclui: "Debate sem fim, etalvez sem razão. Há os da infantaria e os da ca

valaria. Nômades e sedentários. Poetas e prosado

res"4.Repartir em variedades congeniais os poetas

2. Paul Valér:y'"Propos sur Ia poésie" e "Nécess ité de Ia poésie", Variété,

Pari s, Gal limard , 1957, Pléiade, tomo I, pp. 1362, 1386 .

3. Karel Teige, "Poétisme" (1924), Change (10):111,1972.

4. Jean Lacouture,André Malraux. Une Vie dans le s iêcle, Paris, Seuil, 1973,

pp.184·185.

25

e os prosadores segundo suas preferências, saben

do-se que gosto não se discute, é eliminar depres

sa demais o objeto do debate. Pelo contrário, querenovação de perspectiva não haveria, se as dife

rentes maneiras de viver e agir pudessem compa

rar-se, criticar-se, comentar-se conforme uma ter

minologia tão elaborada quanto a das análises do

discurso e, para começar, conforme a alternativa

da poesia e da prosa. Em vez de atingir uma

tipologia naturalista dos caracteres, essa transpo

sição das categorias literárias ofereceria a cada

um a liberdade de decidir sobre o tom, o gênero, o

registro nos quais ele escreveria sua vida. Um indivíduo, e até um grupo, escolheria comportar-se

de maneira poética ou consentir com a prosa, emvirtude das circunstâncias ou do estado de suas

convicções estéticas.

Suponhamos que a poesia, em vez de ser pri

meiramente uma coleção de objetos (verbais), seja

um processo cuja autonomia fosse suficiente para

que ele operasse de maneira semelhante nas cons

truções de palavras, nas disposições de objetos,

nas composições de gestos. Se a operação poéticaconsiste em algum funcionamento dos signos (e

não no uso de alguns signos), torna-se concebível

uma poética da conduta que não se deixe deter

pela evidente heterogeneidade das palavras e dos

gestos na tarefa de determinar as propriedadesdesse funcionamento.

Sem ambicionar exatidão (nem paralelismo

com a incerta essência da Poesia), sem outra ga

rantia que não seja o sucesso amplamente testa

do do esquema que Jakobson construiu para clas

sificar as funções da linguagem, tome-se como

ponto de partida a definição da função poética

---,.-

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26

por ele proposta - mesmo que se tenha depois

de explorar as deduções resultantes de uma de

finição diferente.A função poética põe em evidência o lado ma

terial dos signos; ela enfatiza as particularidades

sensíveis da mensagem, que então se refere prin

cipalmente a si mesma em vez de se dissolver, as

sim que utilizada em proveito da experiência

evocada ou da informação transmitida; ela organi

za as seqüências de signos de forma a manter o

caráter perceptível de sua construçã05. Quais os

processos que permitem obter essa visibilidade da

linguagem tornada "autotélica"? Em primeiro lugar, as "figuras", e talvez exclusivamente elas, se

esse termo for entendido com suficiente amplitu

de para designar tudo o que torna a linguagem

percebida enquanto tal, e não apenas o que se

afasta de seu emprego mais freqüente6•

O caráter perceptível de algumas seqüências

de signos manifesta-se no âmbito da conduta, as

sim como no da linguagem. Os "códigosdo savoir-

vivre" formavam outrora um rigoroso equivalente

dos tratados do bem falar ou do bem escrever. Suaexistência bastaria para provar que a conduta é

suscetível da mesma aproximação retórica que a

linguagem. Os gestos que eles codificavam consti

tuem a "visibilidade" da conduta, como as figuras

tornam possível a da linguagem.

5. Roman Jakobson, "Lingllistique et poétique", Essais de linguistique

générale, Par is , Minui t, 1963, p. 218.

6. Tzvetan Todorov, Poétique de Ia prose, Paris, 8elli l, 1971, p. 51;

Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage, Paris, Seuil , 1972, pp.

351-352.

27

Do mesmo modo que a análise literária teve de

combater o descrédito que era lançado sobre as

"formas" supostamente vazias quando prevalecia a

preocupação com um assim chamado "fundo", aanálise das condutas deveria começar por reabili

tar o gesto, que é freqüentemente depreciado porser considerado exterior e secundário em relação

à verdade das intenções. A intenção verdadeira

seria a que se concretiza em atos. A intenção seria

falsa, afetada, quando se contenta com gestos. O

ato e o gesto, entretanto, não se distinguem segun

do as intenções diferentes que os subtendem. Os

movimentos de um operário aparecem ora como

atos, ora como gestos, embora não se suponha que

a intenção que os dirige tenha mudado. São atos

enquanto não são descritos. São gestos desde que

despertem atenção. O gesto nada mais é que o atoconsiderado na totalidade de seu desenrolar, per

cebido enq"llantotal, observado, captado. O ato é o

que resta de um gesto cujos momentos foram es

quecidos e do qual só se conhecem os resultados.

O gesto se revela, mesmo que sua intenção seja

prática, interessada. O ato se resume em seus efei

tos, ainda que quisesse se mostrar espetacular ou

gratuito. Um se impõe com o caráter perceptível de

sua construção; o outro passa como uma prosa que

transmitiu o que tinha a dizer. O gesto é a poesiado ato.

A conduta se gestualiza por meio de figuras

que são parcialmente as mesmas inventariadas

pela teoria do discurso. A repetição poetiza os cos

tumes. A gradação caracteriza as carreiras bem

sucedidas, como também a antítese, os.sucessos

inopinados ou as quedas magistrais. A elipse assinala a liberdade de postura. A ironia mimetiza ati-

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tudes e, ao mesmo tempo, ordena índices que contradizem o sentido dessas mesmas atitudes. Osholocaustos, numa insurreição, constituem ora asmetáforas (quando devastam os edifícios oficiais),ora as metonímias (quando destroem bens privados) da simbólica revolucionária. Recusar umaperto de mão é uma litotes; (,)abraço é umahipérbole.

É verdade que algumas figuras do comportamento permaneceriam despercebidas (não existiriam enquanto figuras) se a linguagem não interviesse para ressaltá-Ias. Nenhuma conduta, talvez,

poderia se dar por elíptica, sem uma enunciaçãoque destacasse que "se queimaram as etapas". Tãodeterminante na ordem da poesia verbal, a repetição é um problema quando se trata dos gestos.Por um lado, ela é correntemente vivida comoumanecessidade infeliz: as tarefas comuns se repetemna monotonia. Todavia, ela aparece comoum fatorde poesia segundo a estética espontânea que rege,por exemplo, as narrações de anedotas, onde seutiliza comumente o imperfeito de reiteração. "Os

Surrealistas se reuniam todos os dias no Cyrano".O passado se torna tanto mais mítico quanto maishabitual ele tiver sido. "Maillol freqüentementesegurava o mijo quando voltava de Paris paraMarly-Ie-Roy, para melhor regar as grandes estátuas de seu jardim com esse elixir que tão bempatina os bronzes"7. Uma ocorrência que foi talvezúnica se enriquece quando relatada comoum rito.Brassai' conta que Picasso, na época em que mora~va na Rue La Boétie, trabalhava para Albert

7. Brassal, Conversations avec Picasso, Paris, Gallimard, 1964, p. 251.

29

Skira, cujo escritório ficava na casa ao lado: quando concluía um cobre, em vez de pegar o telefone,

fazia soar uma trombeta; Skira logo comparecias.Teria esse gesto o mesmo charme caso se supusesse que ele ocorreu sóuma vez? A reiteração desempenha um papel estético decisivo. Mas é precisoindagar se esse papel não lhe é conferido pelomodo verbal do imperfeito, se não resulta de umartifício de expressão mais do que de uma virtudepoética que estaria ligada à própria realidaderepetitiva, em suma, se a poesia das repetiçõesnão é inteiramente obra da linguagem.

Os recursos criativos do comportamento correm o risco de se revelarem por demais reduzidos,comparados com as possibilidades das artes de ficção e, mais especialmente, com os das artes depura linguagem. Algumas condutas podem ser ditas, mas não realizadas. Por exemplo, a imaginada por Coeteau: "o que eu pegaria numa casa tomada pelo fogoseria exatamente o fogo".A belezado gesto deriva aqui da ambigüidade da palavra"fogo", de seu simbolismo. Trata-se de um gesto

fictício, inteiramente constituído de um jogo depalavras. A passagem ao ato não só seria inútil(procura-se fogo tanto num incêndio quanto emqualquer outro lugar), como seria até impossível(não se transporta o fogo em estado puro: o que seretira do incêndio é este ou aquele objeto em chamas). É, portanto, à linguagem que se deve atribuir, ainda aqui, o poder de poetização que se exercita em um aparente proveito da conduta.

8. Id., p. 129.

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Deve-se generalizar? Propõe-se a questão desaber se a conduta não é irremediavelmente prosaica em relação aos achados a que se prestam aspalavras. Pode-se ficar tentado a responder que osgestos, enquanto tais, não são poéticos nem prosaicos, que o papel decisivo pertence à linguagem,que é por ela que a poesia acede ao comportamento, sendo este esteticamente neutro enquanto a literatura dele não se encarrega.

Um dia, Alfred Jarry mostrou de maneira brutal que um gesto aparentemente insensato adquire sentido de repente, no exato instante em que se

pensa pronunciar a expressão verbal que mais literalmente lhe corresponda. Tendo entrado numbar com seu aparato' habitual de armas de fogo, dáum tiro de revólver no copo de gelo, que se estilhaça. Em meio ao pânico geral, volta-se para umasenhora sentada perto e diz: "Muito bem, quebrado o gelo"', conversemos". A polissemia da palavra"gelo", como há pouco a da palavra "fogo"é essencial na constituição de tal gesto. Portanto, este nãoexistiria se não tivesse sido dito.

Na frase de Cocteau, os dois sentidos de "fogo"estão ligados por uma relação simbólica, a combustão física significando, de maneira convencional, aintensidade espiritual. Jarry, ao contrário, aproxima dois sentidos de "gelo" que não têm relação. O

pseudogesto de Cocteau possui um efeito "poético"que se pode julgar relativamente fácil; ele é apenasengenhoso, ao passo que o de Jarry é insólito e "surrealista". Mas ambos têm em COl;num fato de ilustrarem mais os poderes do verbo que os do gesto.

* Alfred Jarry dá um tiro de revólver num espelho. A l íngua francesa usa

a mesma palavra "glace" para espe lho e para gelo [N. daT .] .

31

É, portanto, verdadeiro, em certo sentido, quesó há poesia nos poemas (como só há aventura nos·romances, intriga nas narrativas, dramatização noteatro) e que um gesto talvez deva o essencial desua beleza ao talento com que é relatado. Entretanto, desde que não se minimizem esses privilégios da literatura, podem-se reconhecer os procedimentos de que ela dispõe para tentar fazê-Iosoperar alhures de outro modo. Apreendidos numgrau suficiente de abstração, eles aparecem comooperações estéticas, suscetíveis de se precisaremdiversamente segundo a substância da arte que os

emprega.O mais notável desses procedimentos é o queconsiste em restabelecer o sentido de algumas formas que os constrangimentos funcionais destinavam à insignificância. No texto artístico, comoafirma Iuri Lotman, "produz-se uma semantizaçãodos elementos extra-semânticos (sintáticos) da língua natural"9. A mesma operação que se encontra.na prática cinematográfica da câmara lenta ou docongelamento da imagem consistirá também, sob

outras modalidades, em romper o desenrolar daconduta, em reter a atenção em algum de seusmomentos, para conferir-lhe um sentido que o encadeamento dos atos dissolveria.

Greimas assinalou a ambivalência de algumasatividades corporais que, segundo a situação, têmestatutos semióticos opostos. Um movimento,abaixar a cabeça, por exemplo, pode parecer umenunciado gestual completo (saudar); pode, ao contrário, embora fisicamente idêntico, integrar-se

9. Iuri Lotman, La Structure du texte artis tique, Paris, Gallimard, 1973,

p.53.

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numa sequencia (passar por uma porta baixa).Tendo sido um enunciado, torna-se então um elemento que tem, antes de mais, o estatuto do

fonema, da unidade mínima que, reduzida a simesma, nada quer dizer. Movimento semelhantepode, portanto, se dar, quer para um programainteiro, dotado de significado, quer para umsubprograma, que Greimas compara à sílaba desprovida de significação. Neste caso, ele se limita aassegurar a transitividade da seqüência. Naquele,será dito intransitivo. Um movimento corporal,que era suscetível de constituir por si só um programa e, portanto, de se encontrar carregado de

sentido, se "dessemantiza" quando se incorporanum sintagma mais amplolo.

Por uma decisão terminológica que não é a deGreimas, mas que parece confluir com o uso da língua, consideremos como sendo gestos apenas osmovimentos do corpo que são intransitivos, que sãoprogramas inteiros. É preciso então admitir que osmesmos movimentos, quando se fundem numsintagma mais vasto, quando se dessemantizam,perdem o estatuto de gesto. Como não existe, ao

que parece, qualquer movimento que se encontresempre em posição semanticamente neutra, e tampouco existe algum que esteja definitivamente àmargem do processo de dessemantização, deve-seesperar que, no conjunto dos usos corporais, a classe dos gestos seja móvel. Um ator pode constituircomo gesto o movimento do braço que toma deempréstimo ao semeador: ele o ressemantiza in-

10. A . J . Greimas, "Condit ions d'une sémiot ique du Il londenaturel",Langages (10): 14-15, 1968; retomado em Du Senso Essais sémiotiques,

Par is, Seni l, 1970, pp. 49-91 , ver e spec ia lmente pp. 60, 65.

33

serindo-o em sua conduta, porque esse movimento nela não se integra como na do camponês quesemeia um campo. Do mesmo modo, um simples

espectador pode ressemantizar um elemento daconduta de outrem e ver, por exemplo, um "gestoaugusto"ll em que o semeador nem tem a sensaçãode ser augusto, nem sequer a de fazer gestos.

Isso dá conta de uma propriedade notável dogesto, a saber, que ele permite dizer, em virtude dariqueza semântica que pode ligar-se a qualquermovimento do corpo, mas resguardando-se do quetenha sido dito, devido à absorção sempre possíveldesse movimento num sintagma que o neutraliza.

A significação do gesto é sempre transmitida coma possibilidade de sua denegação. Um movimentoé capaz de se apresentar comoportador de um sentido autônomo facilmente legível e de desaparecerimediatamente na inocência de uma prática insignificante. Ele diz perfeitamente o que quer dizer,mas, de repente, cala-se, apaga-se, não é precisonele deter-se, ele nunca foi um gesto. As condutasde sedução freqüentemente jogam com essa ambigüidade: as proposições amorosas arriscam gestos

que sabem anular-se como tais se não obtêm a resposta esperada (então um carinho não passa deum toque casual, que não se queria um gesto). Éque todos os movimentos, todas as posturas estãoem condições de se mostrar intransitivos, masigualmente de se desembaraçar imediatamente desua carga semântica incorporando-se numa seqüência, seja pela efetiva construção ulteríor des-

11. Expres são bem conhecida na l íngua francesa . Victor Hugo: "L'ombre ISemble élargirjusqu'aux étoiles / Le geste auguste du semeur".

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sa, seja por uma simples mudança de pontuação

que faz aparecer um fragmento de seqüência onde

se poderia ter lido um enunciado completo. Alegaras coerções de uma ocupação é o meio mais banal,

por exemplo, de suprimir o sentido de uma parti

da, que lhe fora efetivamente conferido, mas que

se prefere anular. Indo embora, signifiquei meu

desacordo, minha inimizade ou minha indiferença;

entretanto, essa partida deixa de ser um gesto, sea seqüência do programa me solicitar alhures.

Para que a linguagem disponha de latitudes

semelhantes, seria preciso, por um lado, que uma

palavra pudesse deixar de ser uma palavra, queela se transformasse eventualmente em sílaba des

provida de significação, e que, por outro, uma sí

laba pudesse valer subitamente como uma pala

vra. A primeira condição, na verdade, é preenchi

da, pois é em relação à experiência lingüística que

Greimas definiu o fenômeno de dessemantização

para assinalar sua presença na ordem gestual; a

palavra ar anula-se como tal em par; que se anula por sua vez em parte, que se anula ainda em

repartirá. Mas e o processo recíproco? Que magiapoderia por ventura fazer supor o par na parte oubruscamente fazer entrar ar em par?'

A poesia é a arte dessas metamorfoses. Cha

memos agora de função poética o poder que tem alinguagem de variar a extensão dos elementos car

regados de sentido. Como exemplo de acrescenta

mento, podemos pensar nos artifícios de Queneau,provocando a absorção da matéria sonora de uma

palavra na de outra (volatilizando les Arts ao es-

o exemplo de Jean Galard escande lorl. IP01:t/. /porte/ e /rapportera/[N. da T.].

35

crever: "Nous lézards aimons les Muses"12'). Quan

to ao estreitamento das unidades, parece ser este

o objetivo dos procedimentos mobilizados commais

constância pelo que se convencionou chamar de

poesia. A repetição, multiplicando os enunciados

nos quais reaparece uma palavra, disjunge-a de

cada contexto, impede-a de fundir-se na seqüência

que ia confiscá-Ia. A aliteração cria unidades sig

nificantes interiores às próprias palavras. O esta

belecimento de correspondências inesperadas rea

nima as metáforas primitivas que inúmeras pala

vras contêm, mas que o uso havia extinguido, ou

então inventa etimologias fictícias, que deslocamos agregados costumeiros. Uma permanência for

mal ressaltada pela rima ou por uma assonância

produz um salto de nível que faz erguer a palavraalém do discurso linear. No extremo desse estrei

tamento, e como Leiris mostrou suntuosamente,

vogais e consoantes reencontram seu sabor, seu

perfume, sua qualidade tátil, enquanto os caracteres alfabéticos libertam toda a simbólica de seu

grafismo. "A poesia se desvanece e o sabá se con

gela quando letras e palavras retomam o seu lugarna ordem e tornam-se letras mortas após terem

sido energias cabalísticas de iluminação"13.

A semelhança se torna, portanto, exata entre

a poesia - que Jakobson define também como

uma linguagem na qual "a forma interior das pa

lavras, em outros termos, a carga semântica de

12. Raymond Queneau, Si tu ['imagines, Paris, Gallimard, 1952, p. 115.

O texto joga com a homofonia de lézards (lagartos) e le s art s (as artes)

[N. da T. ].

13. Michel Leiris, Biffures, Paris , Gallimard, 1948, ver o conjunto do capí-

tulo "Alphabet", pp. 38-71.

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II'

36

seus constituintes, encontra sua pertinência"14 _

e um certo tipo de comportamento que seria pre

ciso qualificar de gestual porque se caracteriza

pela abundância dos movimento ressemantizados.Esse tipo de comportamento é, evidentemente,

muito diferente do hábito de gesticular. Do mesmo

modo que a poesia verbal não é o simples acúmu

10 das unidades lingüísticas que a sensibilidade de

uma época já sobrecarregou de sentido, a conduta

determinada pela função poética não consiste em

uma multiplicação dos gestos, entendendo-se com

isso os movimentos já codificados pelo sistema de

comunicação em vigor.Trata-se, antes, de uma cri

ação de gestos, isto é, da liberação de movimentosainda não percebidos, devido ao deslocamento da

seqüência que os continha. Na situação mais favo

rável à atividade gestual, que é o teatro, a oportu

nidade dessa distinção é flagrante: a cabotinagem

se contenta com retomar, tais quais, os gestos tes

tados, enquanto a procura do ator visa a decompor

o comportamento nas unidades significantes quesão habitualmente imperceptíveis.

Aplicada à conduta, a função poética desman

tela o encadeamento pragmático dos movimentos;ela contraria a absorção dos meios pelo fim, doimediato pela perspectiva; ressalta a maneira de

agir, o método empregado, converte a escolha do

procedimento num verdadeiro objetivo.

Participar de uma votação ou abster-se dela.

Se é verdade que aí estão dois gestos, ambos entretanto não se apresentam imediatamente comotais.

Votar é primeiro um ato, que parece inteiramente

14. Roman Jakobson, "Linguistique et Poétique", op. cito

37

empenhado num esforço transitivo em favor de umresultado, em relação ao qual ele representa ummeio dessemantizado. A abstenção, ao contrário,

propõe-se de chofre como um gesto; ela concretizano instante o sentido que pretende atribuir à con

sulta enquanto tal. Ora, revela ao mesmo tempo

que a participação no voto é também ela um gesto; ressalta que a aceitação do sufrágio já é significativa de um assentimento dado ao sistema que

organiza a expropriação das responsabilidades; ela

põe em evidência que "votar, seja em que chapa for,

é votar pelo voto e já aceitar as instituições"15 .Por fácil que seja criticar a ineficiência dos

gestos demasiado puros, é preciso pelo menos reconhecer que são eles que fazem sobressair, por

contraste, que as condutas mais pragmáticas são,

por sua vez, compostas por gestos esquecidos.Jacques Vaché, dizem, nunca estendia a mão.

Esse outro gesto de abstenção lança uma significa

ção renovada sobre o gesto contrário, salienta, bruscamente, no outro, o estranho hábito do aperto demão mecânico e ressemantiza um movimento que

comumente deixamos de reconhecer como gesto.

A poesia, seja ela verbal ou gestual, reanimaos signos extintos, para que toda prosa se torneassim mais viva.

15. Cf. Francis Jeansoll, Sartre dans sa uie, Paris, Senil, 1974, pp. 257-258.

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11

II

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ÉTICA DO SIGNO

Onde há catástrofe, grande ou pequena, principalmente pequena, sempre se encontram homensprovidenciais para organizar os salvamentos, canalizar os transeuntes, afastar os curiosos, distribuir conselhos: personagens enfáticos que aproveitam a oportunidade para gesticular.

Sempre, nos locais das catástrofes, sobretudodas grandes, testemunhas apressadas se convencem de que não têm nada a fazer ali, que aquilonão lhes diz respeito, que estão sendo esperadasem outro lugar, esquecendo imediatamente quesua fuga também terá sido um gesto.

As catástrofes ocorrem em qualquer lugar.Portanto, a todo momento realizamos um ou outrodestes gestos: ora o excesso de signo, o exagero, apresteza exibicionista, a solicitude indiscreta; orao signo da defecção, da demissão, da indiferença.

O cuidado com a imagem que se dá de si mesmo é uma preocupação que embaraça, comprome-

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40

tendo a credibilidade dessa imagem e que muitas

vezes acaba por transmitir um sentido diferente do

que devia ser mostrado: em vez de ser a persona

gem que se queria aparentar, revela-se o pretensioso que se é. Mas, se é imediata a denúncia da

cabotinagem, da mania de se oferecer como espe

táculo, não existe, inversamente, uma palavra que

designe a consciência insuficiente das significações

que se produzem "involuntariamente", por exem

plo, quando um silêncio é uma aprovação suben

tendida do que dizem os outros, quando a simplespresença física marca uma solidariedade tácita

para com os circunstantes ou quando consentimos

com as atitudes mais vis a pretexto de que a intenção significante pode ser suspensa.

Aprender a produzir signos exatos; saber me

dir os signos que sempre se emitem: pode-se con

ceber uma ética que consistiria num bom uso dos

signos e que aproveitaria a experiência adquiridanesse sentido pela atividade artística.

Roland Barthes, por exemplo, várias vezes,levou suas análises semiológicas até o limiar de

uma moral explícita. Em Essais critiques, ele es

boça uma "moral da roupagem de teatro"l. Em

Mythologies, ele declara que o exame dos proces

sos empregados pelo cinema de reconstituição his

tórica "pode nos introduzir numa moral do signo"2.Se se reconhece que o comportamento cotidi

ano e a conduta inteira de uma vida são compostos

de elementos significantes, é preciso admitir queuma tal moral semiótica se aplicará a todos os as-

1. Roland Barthes, Essais critiques, Paris, Seuil, 1964, pp. 53~62.

2. Roland Barthes, Mythologies, Par is , Seui l, 1957, p. 28.

41

pectos desse comportamento, ao conjunto dessa

conduta. Ora, sua expressão elaborar-se-á apro

ximando-se ao máximo (é o que acontece em

Barthes) da experiência teatral, cinematográfica,fotográfica, literária. Parece, portanto, que a con

duta da vida pode regular-se por uma axiologia

de origem estética.

O mais das vezes, quando a arte e a moral não

são separadas nem inseridas em campos de expe

riência heterogêneos, é da moral (por exemplo,

política) que se esperam as normas que orientarão

a produção artística. Aqui, ao contrário, a prova

artística ou, mais precisamente, a escolha esteti

camente fundada entre os diversos estatutos dosigno que podem ser utilizados pela arte fornece

seus princípios à moral.

Que toda a vida moral se defina comoum bom

uso dos signos é o que o estoicismo já pretendia.

Mas ocorre, hoje em dia, que a reflexão sobre o sig

no tem seu terreno predileto na análise do espaço

literário, do fato pictórico ou cinematográfico, isto

é, do que é preciso chamar o domínio artístico, en

quanto os procedimentos semióticos que ali se ex

perimentam não interessam à vida cotidiana emseu conjunto. O refinamento de nossas avaliações

morais depende doravante, pois, dos sucessos da

investigação estética.

Tudo se dá, aliás, como se a moral estabeleci

da se regulasse por uma concepção do signo que

determinou uma certa literatura ou uma certa pin

tura em seu esforço, agora fora de moda, de repro

dução da realidade. Não pertenceriam os valores

morais de franqueza, sinceridade, autenticidade a

um sistema que, esteticamente, exigiria a fidelida

de da expressão, a verdade, a exata semelhança?

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42

Há uma moral, como há uma estética, que privile

gia a função referenciaI. Importa saber com queme do que se trata; é preciso primeiramente satis

fazer à necessidade de elucidar o que é o outro, oque se pode esperar dele, o que ele possui verda

deiramente. O hipócrita fornece signos que supostamente traduzem as qualidades que sua alma

contém; mas ele não fornecerá "a própria coisa". O

mal moral se encarna na figura do escroque, quenão tem a propriedade real dos bens que sua atitude significa, e se desenvolve em todas as formas

de "representação fraudulenta" enumeradas porErving Goffman em La Mise en scene de Ia vie

quotidienne3. Essa axiologia, moral aomesmo tem

po que estética, pressupõe uma separação cortan

te entre o que pertence à ordem dos signos e arealidade verdadeira à qual eles remetem.

Pode-se imaginar uma generalização semiótica,

totalmente estranha a essa concepção e que não

deixa mais nada fora da rede significante. Desapa

rece a distinção que dispunha, de um lado, os gestos deliberados, as confissões de intenção, a comu

nicação ratificada e, do outro, as condutas "insignificantes" e, ao mesmo tempo, as atividades "sérias"

às quais as pessoas se entregariam sob o impacto

da coerção ou das obrigações, distinção que separa

va também a cena social (o espetáculo dos signos) e

os bastidores (outilitário). Ora, com o desaparecimento desse dualismo, é a possibilidade de muitas

astúcias ideológicas que desmorona, na medida em

que o mito, segundo Barthes, consiste em empregar

3. Erving Goffman, La Mise en s cene de Ia u ie quo tidienne , Paris, Minuit,1973, vaI. I.

43

signos, mascarando-os enquanto tais, "naturalizan

do-os", ou em utilizar conotadores que convêm ape

nas a significações denotadas.O primeiro princípio de uma moral semiótica

imporia, portanto, o reconhecimento do signo onde

ele está, ou seja, em toda parte. Ele recomendariaarrancar as condutas ditas funcionais de sua

pseudo-insignificância, para afirmá-Ias em seuvalor simbólico.

Existe em Barthes, paralelamente a essa exi

gência, um dever de discrição concernente à inten

ção significante. A moral da roupagem de teatro

proscreve a hipertrofia da função histórica, a dabeleza formal, a da suntuosidade. De um modo

geral, a moral do signo recusa "o luxo das formas

significativas", a tentação "de tornar pesada a sig

nificação de qualquer caução da natureza".

Ver-se-á a intervenção simultânea desses dois

princípios tomando-se livremente como referência

a oposição do estilo aristocrático ao estilo burguês,como a evoca Erving Goffman ao retomá-Ia, por

sua vez, de Adam 8mith4. O estilo burguês divide

a vida, por um lado, em atividades profissionais,em que se trata de produzir com brilho índices de

competência, de prestígio ou riqueza, por outro

lado, em atividades privadas em que reinam a

parcimônia, o conchavo secreto, a mediocridade

sem importância. O estilo aristocrático mobilizatodas as atividades menores comumente abando

nadas ao insignificante para nele incorporar os

signos do caráter, do poder e da distinção. Uma

semelhante exigência de perfeição "espetacular"

4. Id. , p. 39.

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44

(que possa ser exibida, como acontece com qualquer signo) refere-se desta vez às circunstâncias

mais banais e a cada detalhe do comportamentocorrente. Esses dois estilos de vida se opõem, por

tanto, primeiramente quanto à extensão que atribuem ao mundo dos signos. Opõem-se ao mesmo

tempo pelo grau de ênfase com que cada um os

dota. Um se extenua na sobrecarga, no inchaço, no

pesadume: ele não concebe o ensino sem as posturas professorais, a medicina sem a redundância

das poses doutorais, a indústria sem o aparato dos

emblemas do dinamismo. O outro acena um fugi

dio sinal para quem quiser compreender.Os termos "burguês" e "aristocrático" são, evi

dentemente, inadequados para designar esses dois

estilos hoje. Em relação ao repertório dos concei

tos que qualificam, por exemplo, os estilos pictóri

cos, aquele de que se dispuser para a apreciação

dos estilos de vida será marcado pela penúria,como se não fosse admitida ali a existência de umobjeto de pensamento.

Conviria, porém, uma qualificação para resu

mir os dois primeiros princípios de uma moral dosigno de acordo com as sugestões de Barthes. Ater

se à sobriedade do signo, à nitidez de seu valor

convencional, deixar-lhe a leveza de sua arbitrarie

dade, é admitir uma exigência estética de rigor5• O

outro princípio, por sua vez, impõe o reconheci

mento de que todo gesto, todo ato, por furtivo que

seja, toda atitude, mesmo "não-intencional", toda

conduta, mesmo "privada", todo arranjo secreto e

toda preparação nos bastidores são portadores de

5. Roland Barthes, Essais critiques, op. cit ., p. 142.

45

significação exatamente como as poses públicas, as

atitudes expressamente destinadas à comunicação,

as grandes cenas apresentadas sob as luzes da ribalta. Para essa moral, não há deslizes, nem ges

tos semanticamente neutros, nem recurso possível

para a desculpa de se ter infringido o sentido deuma conduta "só desta vez". Tal consciência inexo

rável, aliada à vontade de rigor precedentemente

definida, põe em ação uma moral que merece em

dobro a denominação de rigorismo, por mais que

se queira dissociar esse termo de qualquer idéia de

austeridade. Por praticar muito precisamente esta

ética, André Breton incorreu na censura de ter-seimiscuído de maneira constante e intratável na

vida de seus companheiros, ainda que ninguém lhe

negasse o direito à intransigência quando só setratava da literatura dos outros ou da vida públi

ca do grupo surrealista.

Haveria, portanto, por um lado, uma moral

fundada no papel representativo do signo. Ela re

prova a hipocrisia comouma aparência enganosa:

o comportamento manifesto do hipócrita exprime

disposições internas, uma benevolência por exemplo, uma simpatia, uma cortesia, que não estãocontidas na realidade do caráter. O signo represen

tativo pode ser falso: a expressão nem sempre cor

responde à verdade que deve ser traduzida. Mes

mo quando o signo é verídico, a reprovação pode se

manifestar, por exemplo, a propósito do servilismo

que exprime uma alma baixa: a baixeza, a covar

dia, o egoísmo são referentes reprovados. Existem

aqui, portanto, ao mesmo tempo dois tipos de con

denações possíveis: a que se refere à tradução infiel da realidade interior, e a que se refere à tra

dução fiel de uma realidade inconfessável.

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É possível uma outra moral, não mais funda

da nessa função de duplicação tradicionalmente

atribuída ao signo. Imaginemos que a conduta não

mais seja compreendida como a exteriorização deuma natureza íntima, que não seja mais suposta

comomanifestação de um ser interior, que não seja

mais um índice de um temperamento, mas que sedê apenas por aquilo que ela é na pura exteriori

dade: uma forma produtora de um sentido, uma

configuração significante que é supérfluo referir a

uma origem substancial. Permanece a possibilida

de de uma avaliação. Independentemente do valoratribuído ao referente, independentemente tam

bém da veracidade do significante, a crítica visa

rá à própria forma do signo e, notadamente, suas

"hipertrofias" como diria Barthes. Por exemplo, o

comportamento servil é desprezível, não porque

exprime uma alma de escravo ou porque represen

ta falsamente uma disposição obsequiosa que estaria ausente, mas porque ele superalimenta ossignos da obsequiosidade. O servilismo é a redun

dância da obsequiosidade. Domesmo modo, o com

portamento enfatuado é desprezível, não porqueexprime a vaidade ou porque representa falsamen

te uma importância que se empresta a si mesmo

e que não se possui, mas porque é a inflação dos

signos de segurança. A suficiência é uma segurança redundante.

O gesto "falso", por conseguinte, não é mais o

que remete mentirosamente a uma intenção que

deveria corresponder-Ihe e que falta. A intençãopode efetivamente existir, e é justamente na me

dida em que ela está ali, patente, demasiado presente, previamente fixada, que o gesto será percebido como falso. A conduta afetada não é a condu-

47

ta insincera, mas a que domina um sentido deci

dido de antemão, devidamente reconhecível, como

"a competência profissional", "a jovialidade", "a

descontração". Pouco importa, a essa altura, queos recursos expressivos sejam hauridos num repertório tradicional ou que sejam renovados de formaa chocar os hábitos. Tanto faz que se repita sua

respeitabilidade ou que se reafirme sua marginalidade se a intenção assim exibida preexistir ao

comportamento, que se reduz a um papel representativo e se corrompe sob o efeito da preocupa

ção com a comunicação. Toda conduta é significan

te e, talvez, "comunique" um sentido. Mas, quan

do este é isolável, quando uma fórmula o resume,pode-se considerar, de maneira análoga, que a conduta é falsa, ritualizada, dominada pela função de

comunicação, semioticamente imoral.Esta moral tem como condição o reconheci

mento da aptidão de outrem para compreender os

signos. Sua virtude dominante é a inteligência

aquela que é preciso demonstrar para escolher os

signos mais precisos, e aquela de que é precisoacreditar que o outro esteja provido. Sua genero

sidade é postular em todos a inteligência mais sensível e preferir o risco de deixar perder um bom

número de signos demasiado discretos à insistên

cia, aos gestos ressaltados.

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A ECONOMIA DOS MEIOS

A contenção e a discrição, a recusa da ênfase,

da hipertrofia dos signos, tal é a condição da qua-

lidade do gesto, em culturas, aliás, em tudo opos-

tas. Longe do universo mental do classicismo eu-

ropeu, nos astecas, nessa sociedade da consumação

que Georges Bataille situou "moralmente em nos-

sos antípodas"l, a ética, contudo, prescrevia a me-

dida, a ponderação, ela reprovava os trasbordamen-

tos de atividade tanto quanto a inaçã02• "Aocami-

nhar pelas ruas e estradas, ande comcalma e tran-

qüilidade, não levante os pés alto demais, não cor-

ra... Fale com calma, pausadamente, com uma voz

bem empostada, nem demasiado baixo, nem dema-

siado alto, não fale depressa demais, nem alto de-

mais, não urre como um impudente." A ética dos

1. Georges Bataille, La Part maudite, Paris , Minuit, col . Points, 1967, p. 88.

2. Christian Duverger, La Fleur Zétale, économie du sacri{ice azteque, Paris,

Seuil , 1979, pp. 59·68.

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antigos mexicanos caracteriza-se pela desconfiança quanto aos movimentos passionais e pela repug

nância da gesticulação. Ela obedece a um princípioque Christian Duverger formula assim: "Em todaação, um resultado ótimo deve ajustar-se a umadespesa energética mínima". Duverger consideraque essa ética da parcimônia deriva de uma "preocupação draconiana com a economia generalizada"que os astecas teriam herdado de seu período deerrância num ambiente hostil. Todavia, ele observa, por outro lado, que ainda no século XIII "é oardor guerreiro que os mexicanos valorizavam aci

ma de tudo", ao passo que, no século XV, eles zombam "do quachic, o soldado valoroso, mas fogoso,que se atirava à frente do combate sem refletir sobre o perigo". Uma "conquista de cultura" operouse entrementes; constituiu-se uma "moral econômica" que os hábitos ancestrais, portanto, não explicam inteiramente. Como compreender então essareprovação da gesticulação agitada? Duverger sugere brevemente uma razão para isso. "O gesto écalibrado porque a sociedade asteca é uma socie

dade de signos [...] Para não interferir nessa redesemiótica, o gesto utilitário deve, portanto, passarabsolutamente despercebido, isto é, reduzir-se àeficácia." Da ética austera, submetida às condiçõesda sobrevivência, que reprova o desperdício, sepassou, em suma, a uma ética dorigor propriamente semiótico.

O mínimo de movimento para obter o máximode conseqüência: a qualidade do gesto é funçãodessa relação de parcimônia. A impressão de ele

gância, mas também a de inteligência ou de poderprovêm do contraste entre a agitação mais reduzida e a amplitude do resultado alcançado.

51

A gesticulação emocional representa a inversãodessa relação. Afirmando que a sinceridade, para

ser justa, pressupõe que sejamos "sóbrios nos gestos, escrupulosos nas palavras, reservados nos entusiasmos, contidos nos desesperos", Villiers del'Isle-Adam imagina uma passagem ao ato dessepreceit03• Maximiliam de W, abandonado por suaamante, que o considera desprovido de sensibilidade, volta para casa, senta-se à mesa de trabalho,lixa as unhas; escreve alguns versos sobre um valeescocês cuja lembrança lhe vem por acaso, percorrealgumas páginas de um livro novo; depois se levan

ta e, tendo fechado as cortinas, pega seu revólver,mata-se depois de ter sorrido e dado de ombros.Esse efeito, de que os dândis fizeram seu ideal,

exerce um fascínio que se encontra em paragensbem distantes do dandismo: nos autores de ready-

made, por exemplo. Pois, contentando-se com umamudança na orientação de um objeto, com um levedeslocamento, com uma transformação de nome,Marcel Duchamp talvez satisfizesse sua "preguiça";ele talvez perseguisse uma empresa de derrisão;

mas, ao mesmo tempo, aplicava um projeto concertado de conversão das energias Ínfimas4•

Nessa chave da economia dos meios, o mutismo do gesto terá um alto rendimento. A parcimônia de linguagem é sempre bela. O gesto silencioso e medido, desencadeando por si só a transformação de sentido de uma situação, representará,portanto, um caso notável do efeito estético, pelomenos como ele é aqui encarado.

3. Villiers de l'Isle-Adam, "Sentimentalisme", Contes cruels, Paris, Garnier~Flammarion , 1980, p . 187 .

4 . Gil be rt L as ca ul t, "Le s P etites é ne rg ie s e t I a pui ss ance tim ide", Mareei

Duchamp, VAre (59): 3-7, 1974.

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Brummel passa diante de destacamento ao

mesmo tempo que o príncipe de Gales, com quem

ele está estremecido, e finge acreditar que a saudação das tropas se dirige a ele5. Sem nenhuma

palavra, sem esforço, utilizando economicamente

um dispositivo simbólico já montado, Brummel

torna soberbamente evidente que não se pode se

quer imaginar que tanto aparato seja destinado a

um simples príncipe.

Do mesmo modo, o gesto discreto de JulesValles, evidenciando subitamente a verdade de um

lugar:

Jules Val les t rabalhava na Rotonde da Rue d 'Hautefeuil le .

Num canto de mesa, o insurre to escrevia seus artigos incendiár ios

em meio de graves jornalistas do Monde e professores de Sorbonne

que beb iam copos de água com f lo r de laranjeir a. Nada de licor ; só

se podia fumar na sobreloja. Terminado o artigo, Valles saía na

ponta dos pés fazendo o gesto de tomar água benta6 .

Do café à igreja: se essa metáfora é bem-suce

dida, isso não se dá a despeito dos poucos recursos

que aí se empregam, mas em razão justamente

dessa contenção, em proporção direta da discriçãoque se adotará, por exemplo, ao se persignar. Épreciso imaginar aqui algum gesto quase impercep

tível, que quer e não quer ser surpreendido.

Ainda que os usos corporais sejam perfeita

mente capazes de desenvolver, por si sós, uma sim

bólica infinitamente variada, podem também enri

quecer-se tomando como coadjuvante um objeto,

entre os que já estão mais fortemente carregados

5. Emilien Carassus, LeMythe du dandy , Paris, A. Colin, 1971, p. 121.

6. Pierre Labracherie, La \ fi e quo tidi enne de la boheme l it térai re au XIX"

siecie, Paris, Haehette, 1967, pp. 3·7.

53

de sentido, e separando-os, assim, de seu quadro ou

de seu manejo habituais. Um gesto mínimo encon

tra então prolongamentos rápidos numa simbólicapreviamente traçada. Ele pode atingir, ademais,

uma polivalência de sentido tão exatamente instan

tânea que nenhuma tradução verbal dele pareça

concebível; daí a impressão ainda maior de poupan

ça de energia, pois o pensamento tropeça ao enunci

ar de pronto ou mesmo ao desatar exaustivamente

o sentido complexo que se pressente e que um sim

ples gesto pôde produzir com facilidade.

Milan Kundera, em La Vie est ailleurs, conta

que seu jovem herói quer chamar a atenção de umilustre poeta, que tarda a responder à admiração

que lhe é dedicada. Perdendo a paciência, Jaromil

põe-se a pilhar as cabines telefônicas, reúne uma

coleção de fones, empacota-os e os envia ao poeta. O

fone com o fio cortado foi anteriormente designado

como"o tipo de objeto que, separado de seu quadro

habitual, produz uma impressão mágica e pode le

gitimamente ser qualificado de objeto surrealista".

Sua utilização, no episódio das relações com o ilus

tre poeta, transferirá ao gesto uma pluralidade desentidos possíveis (apelo suplicante ou, ao contráio,

interrupção orgulhosa de uma vã espera) justifi

cando a expressão pela qual Jaromil define sua re

messa: "um gesto carregado de poesia"7.

Esse emprego de objetos com simbolismo pré

constituído tem um efeito tão seguro que se pres

ta a algumas facilidades de repetição, que são o

academismo dogesto, como o de queimar uma ban

deira. Dá-se com um gesto o que se dá com um

7. Milan Kundera, La Vie est ailleurs, Paris, Gallimard, 1973, pp. 119, 191-

194.

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quadro: não é necessário que se tenha encontrado

seu semlhante para que ele produza um sentimen

to de déjà vu. Kundera não deixa de ser irônico

acerca das impressões poéticas de Jaromil.Um "motivo", por seu sentido próprio, não ga

rante a excelência da obra em que figura, assim

como ele não basta, se banal, para corrompê-Ia. Ao

estereótipo que consiste em queimar uma bandei

ra, é interessante comparar um outro gesto, utili

zando-se o mesmo emblema, também com intenção

de protesto, porém mais duramente ofensivo a des

peito de sua aparência mais pacífica: o de um ra

paz que foi detido, no fim dos anos 60, pela polí

cia, em Santiago do Chile, por ter lavado a bandeira norte-americana na frente da embaixada dos

Estados Unidos.

Um gesto, para atingir a plenitude de sentido

de que uma verdadeira obra de arte é capaz, de

modo nenhum precisa conter implicações infinitas.

Pelo contrário, suponhamos que estas sejam pou

co numerosas e límpidas para a intuição; imagine

mos que uma posição analítica se presuma capaz

de traduzir logo em algumas palavras esses signostão abertamente inteligíveis; pelo fracasso inespe

rado da intenção discursiva se reconhecerá a jus

teza do gesto.

Este gesto, por exemplo, o último, sem dúvida,

de Alfred Jarry (André Breton dizia que, a partir

de Jarry, "a diferenciação tida por muito tempocomo necessária entre a arte e a vida seria contes

tada, para acabar aniquilada em seu princípio"B):

transportado para o hospital La Charité, da água-

8. André Breton, Anthologie de l'humour noir, Paris, Ed. du Sagittaire, 1940,

pp. 168-169.

55

furtada miserável onde vivia e onde um dia foi

descoberto paralisado das duas pernas, Jarry, às

vésperas de sua morte, quando o médico Saltas lhe

pergunta o que lhe daria mais prazer, pede um palito de dentes.

Alusão ao "banquete da vida"? Ação de graças

pelas migalhas de um pseudofestim? Cinismo sé

rio? .. Ou ironia, de antemão, em relação aos co

mentários, fatalmente canhestros, acumulados de

noções por demais amplas, de referências elásti

cas, pretendendo captar a singularidade de um

gesto que, afinal, de maneira não menos evidente

e igualmente incerta, dispensava a metafísica e

nada queria "dizer"?O contraste entre a extrema simplicidade do

gesto e sua riqueza simbólica é suscetível de au

mentar infinitamente, sem que seja necessário

imaginar uma complicação desmedida de seu sen

tido, contanto que o gesto se simplifique até a abs

tenção. Pois a verdadeira ausência de movimento

se torna ela mesma, eventualmente, um gesto. O

hábito de Jacques Vaché de nunca estender a mão

não deixava, certamente, de ter sentido, de manei

ra até bastante brutal.

Há alguns anos, jornais relatavam na França

minúsculos atos de sabotagem ou de fraude a que

se atribuíam um alcance "revolucionário" e que

queriam mover uma "verdadeira arte nova". Recei

tas simples permitiam viajar gratuitamente pelaSNCF (Société Nationale des Chemins de Fer

Français) ou de metrô, paralisar a produção da

empresa em que se trabalha, provocando nela,

pela contrafação dos documentos, planejamentos

ou registros contábeis, inextricáveis incidentes. O

intuito era quebrar os regulamentos, o sistema de

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controle minucioso, a hierarquia permanente, e

isso com gestos mínimos cuja simplicidade con

trastava com a perturbação que criavam. Por que

esses furtos, essas pequenas fraudes, essas vinganças sorrateiras dão a impressão de que o ges

to aqui é menos ainda que mínimo, miserável?

No mesmo momento, na Itália, praticava-se

o que se chamou "a desobediência civil". Por

exemplo, tendo o preço da passagem de ônibus

aumentado (mas não os salários), o protesto con

siste, não em deixar de pagar, mas em adquirir

a passagem pelo preço anterior. A recusa fica

desse modo mais bem marcada, a desobediência

mais nítida, a abstenção finalmente mais completa do que viajar de graça.

A comparação desses dois tipos de conduta

evidencia que, para se apreender a qualidade do

gesto segundo a perspectiva de uma economia dos

meios, convém precisar algo importante: não é a

quantidade objetiva de parcimônia que se deve le

var em conta, mas o efeito de simplicidade. A be

leza do gesto, por definição, mostra-se; é de sua

essência manifestar-se e até, em certa medida,

dar-se como espetáculo. A fraude, sendo secreta, o

desembaraço, que dissimula seus procedimentos,

a sabotagem sub-reptícia situam-se, na realidade,

no oposto desse efeito.

Freud utiliza essa noção de parcimônia em O

Chiste e Suas Relações com o Inconsciente. Anali

sando diversos procedimentos pelos quais as mes

mas palavras tomam diversos sentidos, ele consi

dera que "uma tendência à compressão, ou melhor,

à parcimônia, domina todas essas técnicas". Ora,

Tzvetan Todorov, por sua vez, acha que é preciso

afastar a validade dessa noção na explicação dos

57

fenômenos do espírit09• A propósito de um exemplo

de duplo sentido citado por Freud (tendo sido um

dos primeiros atos do reinado de Napoleão III o deconfiscar os bens da família de Orléans, fez-se a

esse respeito um trocadilho: "É o primeiro vôo' da

águia"), ele se pergunta se a parcimônia no esforço

físico, que teria sido necessária para pronunciar

duas palavras em vez de uma, não é amplamente

compensada pelo dispêndio de esforço mental ne

cessário para que se ache uma palavra muito bem

apropriada aos dois sentidos visados. Ele acrescen

ta que a fragilidade desse conceito de parcimônia

não escapou ao próprio Freud, que, quando o apre

senta, confessa que algumas economias realizadas

pela técnica do espírito

[ .. .] lembram-nos talvez as das donas de casa que perdem

tempo e dinheiro com transporte, na esperança de, num mercado

distante, pagar por seus legumes alguns centavosmenos. Queeco

nomias realizaria, portanto, o espírito com sua técnica? Ele pou

pa a reunião de algumas palavras novas que, na maior par te do

tempo, teriam sido facilmente encontradas; em compensação, o es

pírito deve se esforçar por procurar a palavra capaz derevestir os

dois pensamentos; muitas vezes, até, é preciso procurar, primei

ro, para um de seus pensamentos, uma expressão poucousual mas

suscetível de realizar sua fusão com o segundo. Não seria mais

simples, realmente mais econômico,exprimir os dois pensamen

tos tais comose apresentam, sob o risco de não encontrar para eles

expressão comum?Não estaria a parcimônia de palavras mais do

que compensada por um suplemento de dispêndio intelectual?

Parece que essa discussão não teria objeto se

ficasse entendido de chofre que o chiste chama a

9. Tzvetan Todorov, Théories du symbole, Paris, Seuil , 1977, pp. 311-315.

* Em francês {{voZ" significa ao mesmo tempo "vôo" e "furto", resumindo exa

tamente ao opini ão púb li ca sob re o ges to de Napoleão 111[N. da T .] .

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atenção de Freud por seu efeito estético (do contrário, como se efetuaria a seleção dos exemplos?) e

que esse efeito não se mede de modo algum poruma parcimônia positivamente verificável, masantes, segundo a impressão de desafogo que provoca. Ocorre que o máximo esforço é requerido paradar à imagem a maior simplicidade: assim ocorrena dança. A "economia" estética tem a particularidade de começar nada economizando; puro dispêndio, dissipação das energias, o jogo consiste aquiem dilapidar o esforço físico e mental para chegara um mínimo - contrastando esse mínimo com os

inesperados abalos de sentido que ele desencadeia.O efeito estético, por definição, é pura aparência.Se, por hipótese, ele for relacionado com a noçãode poupança, será preciso então imaginar uma espécie de jogo com poupança, uma economia representada, uma poupança fingida, não sendo o objetivo economizar realmente forças, mas produzir, demodo tão custoso quanto necessário, a forma maissimples para evidenciá-Ia em sua relação com osentido mais pleno.

A AÇÃO SIMBÓLICA

Há, portanto, um "efeito" do gesto, que não sereduz aos resultados que se esperam de um ato. Ogesto se mostra. Ele tem sentido, ao marcar umtempo de pausa no encadeamento dos atos. Há, emqualquer gesto, algo suspenso que dá margem àrepercussão simbólica, ao valor de exemplo.

A ação militante recorreu por vezes a um modode intervenção que procede por gestos. Foi o queaconteceu freqüentemente, nos anos 60, em paísestão diversos quanto o Japão, o Uruguai ou os Países Baixos. Os Estados Unidos, particularmente,foram palco de numerosas manifestações dessetipo, das quais Jerry Rubin, que foi um de seusatores, fez uma relação em Do it1•

Quando os trens de G. 1.'s transportavam astropas com destinação à estação militar de Oak-

1. Jerry Rubin, Do it, Ed. Simon and Schuster, 1970; trad. fr. , Paris , Seuil ,1971.

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land, O Comitê Vietnã de Berkeley tentou opor-seà sua passagem. Os trens continuaram seu cami

nho até o dia em que os militantes conseguiram

bloquear um comboio. Sua imobilização não excede alguns minutos. Osmilitantes pacifistas logose

dispersam, espalham-se pelas ruas de Berkeley

como combatentes vitoriosos, proclamando haver

detido o transporte das tropas: "Detivemos de vez

a máquina de guerra em seus trilhos"2. Duas com

preensões do acontecimento entram em choque.

Para uma, esse gesto é totalmente irrisório; ele

não tem conseqüência quanto ao prosseguimento

da guerra. Para a segunda, ele prova subitamen

te que a máquina não é invencível. Naquela, umaduração contínua contém momentos que agem uns

sobre os outros, passo a passo, segundo uma cau

salidade transitiva; nesta, o instante exemplar não

está inserido no encadeamento temporal, despoja

se de qualquer eficiência sobre o futuro próximo eergue-se intransitivamente como uma referência

firme para um futuro indefinido. Todos os atos re

feridos em Do it pressupõem que se admitiu a va

lidade dessa concepção do tempo, que substitui o

rendimento linear pela influência paralela.

Por isso é difícil avaliar a eficácia de ações semelhantes: a própria noção de eficácia, a idéia de

medir os efeitos adquiridos, pertencem provavel

mente a uma outra ordem de avaliação diferente

daquela que um gesto, enquanto tal, pode ressaltar. Pela mesma razão, o destino do movimento

pacifista em seu conjunto não deve ser apreciado

segundo a consideração de sua degenerescência

2. Id., pp. 32-36.

61

efetiva. É verdade que J erry Rubin, mais tarde,

refugiou-se na espiritualidade absconsa e no

psicologismo bioenergétic03• É verdade que Tom

Hayden fez uma campanha eleitoral no mesmoestilo de seus adversários dos anos 60 e que

Eldrige Cleaver arregimentou pessoas em favor do

exército american04• Mas os gestos outrora bem

sucedidos conservam sua vida própria e seu valor

de exemplo, apesar das abdicações que se segui

ram. Vale para o belo gesto o mesmo que para aobra realizada: a ausência de efeito imediato ou os

absurdos ulteriormente proferidos pelo autor não

legitimam sua depreciação retrospectiva.

Os atos dessa espécie convertem-se em gestosporque parecem comportar em si mesmos sua jus

tificação. Bastante ricos de sentido para não serem

indiferentes ou gratuitos, só têm por objetivo pro

duzir o acontecimento que os resume. Não formam

o meio de uma finalidade exterior, mas têm em

sua própria realização sua razão suficiente.

Seria bom demais que esses simples gestos ti

vessem rigorosamente os mesmos efeitos de uma

longa paciência. As ações contadas emDo it visam

à repercussão espetacular imediata. É duvidoso

que tenham tido, em profundidade, a influência

que Jerry Rubin, por outro lado, lhes atribui:·"Podíamos mudar o curso da história num só dia.

Numa hora. Num segundo. Pela intervenção deci

siva no momento decisivo". A euforia que Rubin

manifesta com tanta constância não provém pro

vavelmente apenas do contraste entre os meios

que ele emprega e o resultado obtido, mas de uma

3. Les Temps modemes , (361-362): 202 e S5., 1976.

4. Id. , pp. 75 e S5.; 87-88.

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verdadeira suspensão do princípio de realidade. O

benefício revolucionário antecipado é pelo menos

incerto; o militantismo refletido teria boas razões

para avaliá-Io como nulo.Será, entretanto, irremediavelmente aberran

te a simplificação, alegremente agressiva, que con

siste em confundir o brilho do gesto e a ação efi

caz? Há, em Do it, um episódio no qual se realiza

a inteira substituição da realidade pelo desejo: o

do anúncio, nas ruas de Nova Iorque, do fim da

guerra do Vietnã, vários anos antes que a paz setenha tornado efetiva, numa barafunda tão convin

cente que a polícia, acrescentando seu próprio tu

multo, parece ter-se juntado à festa. "Ninguémparecia lamentar o fim da guerra. É ainda mais

surpreendente que ninguém tenha tido a idéia de

perguntar quem ganhara"5. Quando a resignação,

a inércia do hábito, o bloqueio da imaginação con

tribuem, por sua vez, para a perpetuação da rea

lidade histórica, como negar, em contrapartida,

qualquér poder à ficção em ato, à ruptura das ro

tinas e ao próprio simulacro da esperança? A pro

clamação do fim da guerra era irrealista como um

jogo, mas obrigava a realidade a se enunciar, porseu turno, como uma má ficção. Quando projeta

essa farsa muito séria, Jerry Rubin não se com

praz apenas em imaginar a satisfação instantânea

de um desejo inútil; tem em vista o efeito de cho

que que a interrupção de um sonho produz e a ati

va repulsa que dela resulta quando o chamado da

verdade toma um aspecto brutalmente paradoxal:

"Seria preciso que Nixon se mexesse para vir tran-

5. Jerry Rubin, op. cit., pp. 138·140.

63

qüilizar na tevê o povo americano e dizer que a

guerra continua".A dicotomia que reserva ao "ato" os privilégios

da eficácia e qualifica de simples "gesto" qualquerconduta presumida estéril domina há tanto tempo

o pensamento espontâneo que os recursos próprios

do gesto são dificilmente diferenciados. Contudo,

a celebração antecipada do fim da guerra e uma

manifestação pacifista comum,ainda que se limitem ambas a se oferecer como espetáculo, não se

reduzem à mesma coisa. "Nossa celebração arran

cava as pessoas de seus hábitos. As que eram fa

voráveis à guerra não sabiam como se defender

contra aquele ataque psicológico. Não a podiamignorar comoteriam ignorado cartazes que diziam:

Abaixo a guerra." A natureza particular do gesto

subversivo requer um princípio específico de apre

ciação, levando em conta a novidade e a simplicidade dos meios empregados, a desproporção entre

a iniciativa e suas repercussões, a desorientação e

a anarquia resultante desse desequilíbrio, abrin

do assim uma dimensão que não é redutível, nem

todavia inteiramente heterogênea, àquela da ação

militante razoável.Embora o gesto possa ser exemplar sem visar

a efeitos tão ruidosamente espetaculares, ele é

indissociável de uma intenção de parecer ou mos

trar, por onde já se introduz, aiqda que discretamente, a idéia de espetáculo. É nesse ponto que

ele está mais sujeito à crítica. Talvez seja aqui,

ao mesmo tempo, que evidencia seu pleno senti

do. O exagero que Jerry Rubin traz à espetacula

rização da conduta é, a esse respeito, uma (ltil

ampliação da teatralidade elementar deteetávelem qualquer gesto.

li

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I

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Quando a Comissão das Atividades Antiameri

canas abre um inquérito sobre o Comitê Vietnã de

Berkeley, Rubin, chamado a Washington para tes

temunhar, prepara-se "como para uma esti"é~ naBroadway" ..Sua chegada ao Congresso, com,? édescrita em Do it, é uma verdadeira entrada em

cenas. Envergando um traje de ópera com os bol

sos atulhados de panfletos e brochuras, atravessa

o saguão frustrando divertidamente as objeções

dos guardas que pretendem reprimi-Io. "Os projetores e as câmaras ronronaram. Fazíamos nossa

entrada. Dei a volta na sala, sentindo meu público..." Um dos advogados é expulso da audiência e

preso. Seus colegas levantam-se, em protesto, desistem e saem da sala um a um. "Víamo-nos sem

advogados. Era realmente um golpe duro. Aquelescanalhas de advogados nos roubavam a cena." Ter

a cena, no caso, é captar a atenção geral de modo

que a atitude que se apresenta adquira o alcance

do que Rubin chama "mito". Alguns anos depois,"os yippies iam servir-se da Convenção Democra

ta e de suas pompas teatraIs para construir seus

tablados e encenar o mito; íamos afanar o papelprincipal dos democratas, a imprensa só se inte

ressaria por nós, e o espectro yippie ia começar aassombrar a América"?.

Entre este ser imaginário que é o mito e o in

divíduo ou o grupo que o simboliza, a relação é a

mesma que a existente entre a personagem e o

ator. Analisando essa relação de representação,

Louis Jouvet excluía a possibilidade de a persona-

6. Id., pp. 61.63.

7. Id. , p. 83 (o movimento )'ippie f orma u ma sínt ese d o esquerd ismo e dacorrente hippie).

IIi65

gem, comoo herói, alguma vez "se encarnar": viva,

mas inacessível, a irrealidade é sua naturezas.

Essa irrealidade, longe de diminuir a sedução ou

o assombro que exerce, é, antes, a sua condição. Opróprio Jerry Rubin, tão confiante contudo na pos

sibilidade de realizar o mito, bem observa a irre

dutível distância que o separa de seus agentes oca

sionais: "Omito ultrapassa sempre o que o fundou.

O mito do Che é muito mais poderoso que o indi-'víduo Che Guevara"9.

Ora, esse acesso do real ao estatuto do imagi

nário necessita de algumas mediações, que são averdadeira fonte do mito. Este deriva menos de

um dado inicial, cujo conteúdo seria favorável a

essa transfiguração, do que dos procedimentos que

entram em ação na narrativa mitológica ou na

imagem lendária. Isso explica que os detalhes que

pareciam os mais prosaicos alcancem um dia o

prestígio simbólico - e torna-se plausível a reco

mendação yippie de fazer de cada pequeno aconte

cimento um elemento mítico1o. Esses procedimen

tos, por diversos que sejam, conforme se trate de

uma narrativa épica, de uma efígie, de uma reportagem televisiva, reduzem-se, essencialmente, a

abstrair fragmentos instantâneos, cuja irrealidade

mágica resultará do seu simples destacamento de

um conjunto contínuo.

"Todojornalista é um dramaturgo: ele pega a

vida e faz dela uma peça de teatro"11. É que ele

8. Louis JOl1vet, Témoignages sur le théâtre, Paris , Flammarion, 1952, pp.

175,177.

9 . Je rry Rubin . op. cit., p . 83.

10. Id.•p. 128.

11. Id.•p. 106.

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não pega toda a vida; o que retém dela se encon

tra, por isso mesmo, liberto dos encadeamentos

pragmáticos e se torna disponível para os jogos

do imaginário. A transformação mítica de umepisódio qualquer exige, para toda encenação,essa seleção isolante, que o relatório mais escru

puloso, como também o mais sumário, realiZa)necessariamente.

O ato de alcance mítico implica, portanto, um/fracionamento do tempo; a descontinuidade é sua

condição. A propósito das grandes manifestaçõesrelatadas por Rubin, um testemunho exterior a Do

it revela que "os combates de rua paravam assim

que as equipes de televisão saíam para o almoço"12.A partir dessa observação desmistificadora, podese contentar em concluir que o espetáculo assim

dado só tinha o sentido de servir à ambição de apa

recer dos participantes, o vedetismo dos protagonistas, a vaidade de reter por um instante os olha

res de um público. Uma interpretação menos res

trita detectaria talvez em tal preocupação da "mídia" a necessidade de produzir, não só diante dos

outros, mas também para si, essa mutação da rea

lidade evanescente em acontecimento, da continui

dade cotidiana em lenda, que sua intervenção ga

rante automaticamente. Permanece o fato de que,

ao submeter-se a esse tipo de mediação, que é for

çosamente intermitente, a conduta se fragmenta:

às grandes cenas, fechadas sobre si mesmas, sucede-se apenas a trivialidade dos entreatos.

Preparando com o Comitê Nacional de Mobili

zação a manifestação antiguerra de outubro de

12. Les Temps modernes, op. cit ., p. 274.

67

1967 em Washington, Rubin imagina um "cenário"

em que, de provocação em proibição, deve desenvolver-se "o dramático enfrentamento da Liberda

de contra a Repressão". Devido ao número imenso dos manifestantes, à estimulante intransigên

cia governamental, à embriaguez de sentir que omundo inteiro tem os olhos fixados sobre si, o co

mício se torna uma sublevação, sua eclosão será

invencível. "O governo é obrigado a transigir. E, no

final, tomamos o Pentágono!"13. Uma liberdade de

imaginação completa, exercendo-se relativamente

a uma conjuntura ideal, concebe a tomada do

Pentágono como um fim. O mais gigantesco edifício administrativo, a mais implacável máquina de

guerra, apesar da proteção de tropas especializa

das, sucumbe ao cerco de manifestantes desarma

dos que conseguem invadi-lo. E essa proeza não

suscita, aparentemente, nenhuma conseqüência.

Apocalipse ou apoteose, é um resultado.

O cúmulo do prosaísmo, isto é, da falta de sen

sibilidade ao mito, é atingido quando o espírito

conserva, em meio a uma situação excepcional, a

preocupação com as coerções cotidianas, como entre essas Mães de Família que consentem em par

ticipar da manifestação contra o Pentágono,

contanto que tenham tempo de voltar para casa

para o jantar14. O prosaísmo aqui não provém de

alguma indignidade afeita à preocupação de se alimentar. Não resulta, tampouco, da interrupção

deliberada de uma proeza que prometia infinitos

prolongamentos. Reside, ao contrário, no apego às

13. Jerry Rubin, op. cit., p. 68.

14. Id., p. 72.

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II

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68

obrigações costumeiras, na ansiedade da tarefa

próxima: na recusa das descontinuidades. A obser

vância da disposição mítica consiste, para Rubin,nessa mesma circunstância, em provocar a inter

rupção mais cortante. "Juramo-nos escapar, namedida do possível, de qualquer prisão, mas era

preciso um fim teatral para a tomada do Pentágono"15.Deixar-se prender, para um manifestante

inflamado pela lenda, é a melhor maneira de as

sistir a um autêntico cair de cortina e, por conse

guinte, de conferir retroativamente ao lapso detempo que precede uma completeza fabulosa.

A conduta dirigida pela inspiração mítica, destacando, assim, de qualquer seqüência possível

atos instantaneamente suficientes, parece, portanto, comprazer-se com uma perfeita esterilidade. E

é esse exatamente o agravo comum dirigido aos

fatores de perturbação simbólica: sua agitação épura pantomima, seus lances fulgurantes só visam

e conseguem ser imagem, esses fantoches e esses

fogos-fátuos não mudam nem perturbam coisa al

guma, sua turbulência carnavalesca é uma de

monstração de impotência, e todo esse exibicionismo é tão inútil quanto uma revolução de brincadei

ra. Régis Debray, crítico severo das atitudes inú

teis, denuncia nesses termos o maio estudantil de

1968, "que foi para a Revolução o que o onanismoé para o ato sexual"16.

Entretanto, a oposição demasiado evidente en

tre a esterilidade das posturas espetaculares e a

virtude agente do trabalho paciente precisa ser

15. Id., p . 80.

16. Régis Debray, Les Rendez-uous manqués, Paris, SeuiI, 1975, pp. 123 e 55.

69

sensivelmente retificada. A convicção de que os

atos destinados exclusivamente ao efeito do espe

táculo não são inofensivos se fortalece, em Rubin,

todas as vezes que o adversário se apressa preci

samente em esvaziá-Ios de sua significação simbó

lica. Enquanto ele reivindica que o inculpem por

ter urinado no muro do Pentágono, é por vadiagem

que será preso17. Numa faculdade ocupada pelos

estudantes, em que está em jogo nada menos que

derrubar o governo, as detenções são caracteriza

das como ataque à propriedade privada18. A mais

dura resposta que as encenações subversivas de

vem temer é a de se verem convertidas em infrações menores: não é esta a prova de que sua eficá

cia específica ia residir naquilo que contém demais

especificamente teatral? Por outro lado, o retorno

publicitário que o poder estabelecido, por sua vez,

não se priva de recolher de uma bela atitude gra

tuita, o rendimento demagógico que ele extrai de

uma infinitesimal reforma, o benefício que o Prín

cipe assegura para si sabendo aparecer, o efeito

muito real que ele obtém distribuindo ninharias,

toda essa potência oriunda da imagem contradiz oorgulhoso dualismo que desejaria opor a atividade

fecunda às esterilidades masturbatórias. Debray

admite, de passagem, que existe uma "eficácia re

lativa do simbólico". Concessão oportuna, quando

se propõe, como ele faz, incluir a gesticulação es

querdista no fenômeno global que é a "sociedade do

espetáculo"; pois essa perversão geral não precisa

ria tanto ser vilipendiada se permanecesse sem

17. Jerry Rubin, op. cit., p . 80.

18.Id., p . 129 .

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conseqüência. A comum transformação do ato emimagem, da vontade em pose, do projeto em mitoseria apenas deplorável se representasse simples

mente a impotência. A irritação que suscita indica sem dúvida que se trata de outra coisa.

O apego ao mito não é, necessariamente, esterilizante. No jogo de um modelo voluntariamentesimplificador, condutas eventualmente fecundasidealizam seu objetivo, depuram seus motivos.Seria ousadia pretender que toda ação verdadeiraimplicasse uma escrupulosa consciência de suasrazões, uma visão exata da complexidade de seusobjetivos. É, antes, presumível que esforços perse

verantes pudessem ter por incitação e por sustentáculo o mais esquemático símbolo. Por que a tomada do Pentágono seria um mito menos eficiente do que a da Bastilha, ou a ocupação da Sorbonnedo que a libertação do Santo Sepulcro?

Um ato se torna espetacular quando um iníciomarcado, uma realização nítida, a ênfase de suaexpressividade o tornam uma unidade plena designificação. Ao apressar-se em amaldiçoar a idéiade espetáculo, reduzindo-a à de ineficiência, cai-seno engodo semelhante ao de opor os verdadeirosatos às vãs palavras: o mesmo que esquecer os.poderes da linguagem. A reprovação que atinge cadavez mais dogmaticamente o que se denomina a sociedade do espetáculo visaria com mais direito alguns sentidos que ali se exprimem, os estilos queali prevalecem. A abjeção que as palavras podemsignificar não motiva a depreciação da linguagemenquanto tal. Do mesmo modo, o desprezo dos outros que se manifesta no blefe de alguns atos nãojustifica que seja censurada a capacidade que tema conduta de formar imagem.

71

Infelizmente, não é freqüente que um ato simbólico saiba contentar-se em ser exemplar. Ambicionando ao mesmo tempo os méritos da ação di

reta, ele abandona o verdadeiro teatro pela comédia do afã, defende-se de ser puro espetáculo e resvala para o estardalhaço. Maio de 1968 representaria talvez ainda hoje um mito mais vivaz se selimitasse a criar a imagem de um abalo inédito,em vez de querer, além disso, dar-se a ilusão deinstigar uma clássica revolução proletária. Quando vitupera as falsas aparências esquerdistas,Régis Debray não é nada convincente se pretendecensurar as demonstrações espetaculares, que não

são tão vãs quanto diz, para melhor louvar o rigordo trabalho estratégico, o qual, como se sabe, nemsempre, tampouco ele, termina onde pensava ir.Mas a diatribe é justa se atribui à impostura umateatralidade que crê dispor de outros meios alémdaqueles que a cena oferece, e se nisso tudo se trata, mais precisamente, de opor-se à confusão dosgêneros.

As manifestações simbólicas dos anos 60 tiveram muitas vezes a virtude de contar, incondicio

nal e exclusivamente, com os poderes do espetáculo. Mesmo que tenha acontecido a seus autoressuperestimá-Ios, pelo menos não tentavam acreditar que os paralelepípedos tenham o mesmo efeito que as granadas, nem que as imagens que inventavam possam chocar outra coisa além dasimaginações. Daí, por exemplo, nos amigos deRubin, o interesse ingenuamente confessado pelapublicidade que a imprensa e a televisão lhes reservava e a estranha indiferença pelas seqüências

próximas das ações que empreendiam. Aoprocuraragir apenas pelo exemplo, eles se encontravam

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mais aptos a utilizar plenamente todos os seusrecursos dramáticos.

O pensamento espontâneo opõe a aparência do

gesto à seriedade do ato, a esterilidade das gesticulações à eficiência do trabalho invisível, a ilusãodo simbólico à realidade prática. Evitar-se-á substituir essa dicotomia simplista pela confiança ingênua nos poderes do gesto. Concedamos que elenão tem eficácia alguma. Mas nem por isso é desprovido de alcance.

Durante os Jogos Olímpicos de Munique, em1972, dezenas de milhões de espectadores puderam assistir pela televisão a um gesto ao mesmotempo muito simples e muito ativo. Ao término de

uma prova, durante a execução do hino nacional,o vencedor balançava ostensivamente sua medalhadando as costas à tribuna oficial. Seria preciso,para minimizar o alcance desse gesto e negar-lheo peso de um ato verdadeiro, ignorar também afunção dos ritos, dos cerimoniais, das festividadesorganizadas. Era apenas um gesto, ele tinha umainfluência apenas simbólica. Mas seria a realidade, cujo prestígio ele minava, de outra ordem? Seria inconseqüente admitir que os emblemas e asinsígnias, os concursos, os aparatos, são autênticos fatores de pressão, e acreditar que a arte desubvertê-los tem a inutilidade das gesticulações.

PARÊNTESIS

A teatralidade, o cálculo do rendimento espetacular, podem faltar em inúmeras condutas quedeverão sua qualidade a virtudes mais secretas. Aescolha dos exemplos evocados até aqui restringiuse aos gestos concertados: assim se reduziu o desígnio que se formara inicialmente. À margem desses gestos deliberadamente emitidos para outrem,

desenvolvem-se condutas mais fluidas: atitudesgraciosas ou gratuitas, comportamentos soberanos,sem preocupação com o efeito. Mas, querendo-seconsiderá-los exemplos, experimenta-se a dificuldade que há em citar uma conduta.

Não se menciona uma conduta como se podecitar um texto. Uma obra de linguagem se atribuium começo e um fim; ela é separável das contingências que ac~mpanharam sua elaboração. Presta-se a uma reatualização a cada vez que se a relê.

Limita-se eventualmente a algumas palavras, queencontram uma significação no instante em que se

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enunciam. Uma conduta, ao contrário, ganha sen

tido a partir de uma situação que não tem contor

nos assinaláveis e que, por esse fato, não se repe

tirá. Seus inícios são fugidios, seu fim é impreciso. Não só o tempo que ela implica não é delimitável, como também é intimamente solidária do

espaço empírico em que se situa. Seu sentido de

pende do lugar e dos arredores, dos parceiros, doscomparsas ou das testemunhas ocasionalmente

presentes - componentes cujos limites são impossíveis de ser estabelecidos.

Longe de se caracterizar pela incapacidade de

invenção, o comportamento pode seguramente pro

duzír acontecimentos análogos a um chiste; masele o fará englobando tantas alusões a circunstân

cias tão fugidias que sua obra, efêmera, dificilmen

te se deixará captar pela análise. Esta pesa num

texto porque ele permanece e, num achado verbal,

porque se repete. Ela fica desamparada diante da

fugacidade de uma situação vivida, como a musi

cologia ficaria se nenhuma música pudesse serreouvida.

Uma composição musical se apresenta como

um objeto preciso. Sua execução por um intérprete,ainda que seja menos fácil definir o que lhe é próprio, possui, contudo, por sua vez, uma existênciadistinta. Porém, e as circunstâncias dessa execu

ção? A escolha da obra, a do lugar e do momento

podem ter uma qualidade criativa que depende de

uma arte verdadeira: arte da situação, do acontecimento, do comportamento coletivo. Mas como tra

çar os limites dessa situação? E comodescrever tal

momento sem deslizar do relatório à reinvenção?

Por razões possivelmente diferentes, mas demaneira igualmente radical nos dois casos, a des-

75

crição malogra na restituição da qualidade exatade uma obra de comportamento, do mesmo modo

que o fariam as palavras se devessem mostrar o

aspecto de uma pintura ou a aparência de um

monumento. É quase tão desconcertante ter de ci

tar comoexemplo uma conduta quanto se ver obri

gado a resumir um quadro.Ora, remeter à experiência direta tampouco

é praticável: nesse caso, aqui não se visita, nãose reserva e nada se reitera. Embora a lingua

gem se esquive, é impossível dispensar esse re

curso aproximativo.

Algumas condutas serão, conseqüentemente,

privilegiadas; não em virtude de suas qualidadesintrínsecas, mas simplesmente porque são menos

incômodas de ser citadas do que todas as outras.

São aquelas que se destacam da continuidade am

biente por um começoe um fim relativamente cla

ros, por uma auto-suficiência que permite isoláIas. Uma conduta se relata tanto melhor quanto

mais comprimida estiver no tempo, mais intencionalmente distinta de seu contexto, mais deliberadamente visível: será evocada tanto mais facilmen

te como exemplo, quanto mais já tiver adquirido o

estatuto do "gesto". Por essa razão, categorias que

a pura reflexão estética não teria talvez retido

como essenciais passam acidentalmente a ocupar

um lugar central. Assim, a referência às "ações

exemplares", que correspondia à simples comodi

dade da citação (poisjá tinham, literalmente, qua

lidade de exemplos), acarretou uma valorização do

teatral e do espetacular que conviria retificar.Porém, essa inclinação à teatralidade ou a pro

pensão ao espetacular não seriam apenas o gostodo gesto, levado à exacerbação? E não se deveria

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pôr até mesmo esta idéia de gesto, agora, em questão? Atribuindo-lhe um papel preeminente, a presente reflexão se concedeu uma facilidade: entre

todas as condutas, ela restringiu seu interesseàquelas que se abstraíam do fluxo (do vago)corrente e que se autodesignam por sua intransitividade.

Ao mesmo tempo, privilegiando o gesto, essareflexão sobre a arte das condutas oferecia a simesma a vantagem de encontrar tacitamente acaução de uma teoria estética já constituída: a quese elaborou há cerca de dois séculos e que conserva com freqüência, ainda hoje, a aparência de uma

verdade intemporal. Pois tudo acontece como se adoutrina romântica tivesse sido construída expressamente para se aplicar em particular ao gesto.

ESTÉTICA ROMÂNTICA

Tzvetan Todorov demonstrou que a doutrinacontida nos escritos de Karl Philipp Moritz,August Wilhelm Schlegel e Novalis permanecepresente até no pensamento de Sartre, Blanchotou Barthes1 . Ele a resume com os traços seguintes:1.valorização do processo de produção, sendo preferido o momento de formação ao resultado forma

do, ao produto acabado; 2. recusa da função externa: a beleza reside na intransitividade de uma coisa realizada em si mesma; 3. afirmação da necessária coerência interna da obra de arte; 4. vontade sintética de uma fusão entre a forma e o conteúdo, entre a matéria e a idéia; 5. afirmação deque o sentido da obra é indizível: as idéias que elaencerra são intraduzíveis em linguagem comum,

1. Tzvetan Todorov, Théories du symbole, Paris, Seuil, 1977; "La Réflexion

sur Ia littérature dans Ia Franca contemporaine", Poétique (38), Paris,

8euil , 1979.

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sendo a interpretação, portanto, infinita. Segundoos textos teóricos do romantismo alemão, "essescinco traços característicos (produção, intransitividade, coerência, sintetismo, expressão do indizí

vel) aplicam-se ora ao belo em geral, ora à arte,ora ao que não é senão um meio dela, mas meioemblemático: o símbolo romântico". Basta conside

rar ponto por ponto esse corpo de princípios parase verificar que ele convém ademais admiravelmente ao gesto.

Seria esse "momento de formação", preferidopela estética romântica ao "resultado já formado",o gesto criador, oposto à obra realizada? O primeiro princípio dessa doutrina se aplica, portanto,mais imediatamente, ao próprio gesto do que àpoesia, à arte ou ao símbolo; ele só terá validadeem relação a esses na medida em que forem concebidos como materialização de um gesto. Por isso,a pintura gestual, nos anos 40 de nosso século,dará a si mesma palavras de ordem que parecemdemarcar os preceitos românticos. Ela desejará"revalorizar o ser em ato em relação aos produtosdo ato"; "o gesto livre do artista sobre a tela seráconsiderado o fim em si da pintura"2. Klee, Kan

dinsky, Hartung serão tidos como os "longínquosprecursores" de uma "revolução estética" cuja teoria se encontra, na realidade, claramente formulada desde o fim do século XVIII. Recentemente, aarte conceitual, a body art, a land art se aplicaram, por sua vez e segundo o mesmo princípio, adestituir o objeto acabado de seu estatuto de obra,em proveito do gesto que o precede, a transferir ao

2. Margit Rowell, La Peinture, legeste, l'action, Paris, Klincksieck, 1972, pp.9-10.

79

desenrolar do ato a atenção que se fixa comum enteem seu resultad03.

É escusado procurar demonstrar que a idéia

de intransitividade convém à essência do gesto,pois é precisamente com essa idéia que este se viudefinido, quando foi preciso distingui-Io do at04•

Poder-se-ia dizer, com Lukács, que "o gesto é aúnica coisa que se completa em si mesma"5, seessa fórmula não conviesse igualmente, palavrapor palavra, à concepção romântica da beleza.Para Moritz, "o belo não exige um fim fora de simesmo, pois ele é tão realizado em si mesmo quetodo o fim de sua existência se encontra em si

mesmo ... A essência do belo consiste em sua realização em si mesma"6. Não se deveria, por conseguinte, remeter à ideologia romântica toda a sedução que pode exercer o gesto quando ele é como odescrevemos: esgotando-se em sua atualização,indiferente aos resultados, exemplarmente erguido fora do encadeamento temporal?

Requer-se da obra de arte que ela possua umcaráter sistemático, em que a finalidade interna(ou coerência) compense a ausência de finalidade

externa. Para definir essa propriedade, que atribuià obra poética e que nega aos discursos prosaicos,Moritz procede por comparação e recorre à distinção entre a dança, organizada de maneira internapela medida, e a marcha7 - como se esse novo

3. Frank Popper, Art , act ion et part icipa tion. L'Ar ti st e e t Ia créat iui té

aujourd'hui, Paris, Klincksieck, 1980.

4 . Cf. supra, pp. 27, 32-33.

5. Cito por Michel Maffesoli , La Conquê te du prê sent , Paris, P.D.F., 1979,

p.176.6. Cito por Tzvetan Todorov , Théories du symbole, ap. cit ., p. 188.

7. Id., p . 191 .

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princípio tivesse em suma, também ele, sua apli

cação mais clara e mais imediata no domínio dos

gestos. Seria preciso, sem dúvida, suspeitar-se

igualmente da presença da ideologia romântica naatração da volta ao passado, no desejo de contem

plar o destino, nessa atitude que amiúde se mani

festa em Nietzsche, por exemplo ("Gosto dos ani

versários, das noites de São Silvestre ... Adqui

re-se uma visão segura, uma espécie de escorço do

passado, toma-se a resolução com um coração mais

audaz e mais firme a retomar caminho"B),que con

siste em emprestar à vida a autonomia de uma

forma orgânica, a coerência de uma obra ou a or

ganização de um gesto.O tema romântico da fusão dos contrários re

cobre uma quantidade excessiva de oposições para

que se empreenda aqui o estabelecimento, a respei

to de cada uma delas, do papel sintético que o gesto

está particularmente em condições de desempe

nhar. Deixando-se de lado aquelas que a história

das idéias fez definhar (mas o gesto não seria no

tavelmente indicado para reabsorver a antinomia

da "alma" e do "corpo"?) ou aquelas cujo alcance,

talvez erroneamente, tenha sido negligenciado neste estudo (mas - falho ou não - não representa

ria o gesto o mais flagrante encontro do "conscien

te" e do "inconsciente"?) só reterá a oposição "for

ma"/ "conteúdo", "matéria"/ "idéia" ou, segundo

uma terminologia que parece hoje mais precisa,

"significante"/ "significado"; não apenas porque ela

ocupa um lugar importante na doutrina românti-

8. Carta a sua mãe, ci tada por Dani el Halévy, Nietzsche, Paris, Grasset,

1944, reed. 1977, pp. 71.72; "El e passa a noi te de São Sil vestre relendo

suas composições dejuventude", p. 222.

81

ca, comotambém porque a estética não parou, até

os dias de hoje, de apresentar a unificação dessescontrários como uma tarefa essencial da arte. Ora,

se essa exigência sintética recomenda, como seumeio mais seguro, que a relação entre o significan

te e o significado seja "motivada", onde se encon

trará uma possibilidade mais exata do que no ges

to? Que discurso se organizará algum dia, para sig

nificar o amor, de uma maneira mais bem "moti

vada" que o beijo ou que uma conduta generosa?

Enfim, o último princípio da estética românti

ca, segundo o qual as palavras da linguagem co

mum não podem traduzir o conteúdo de uma obra

de arte, aplica-se por sua vez diretamente ao gesto. Este, com efeito, não menos que a arte, possui

a propriedade de exprimir as coisas sem as enun

ciar, sem que elas sejam ditas. Não apenas a sua

significação é sempre transmitida com a possibili

dade de denegação, como se observou acima9, mastambém lhe é facultado, devido à simultaneidade

de seus aspectos, mostrar em conjunto significa

ções contraditórias que a linguagem não poderiacondensar tão intimamente - como na crise his

térica em que "a doente, com uma das mãos, segura o vestido contra o corpo (enquanto mulher), ao

passo que com a outra mão se esforça em arrancá

10 (enquanto homem)"lo. Os gestos que já foram

evocados para ilustrar o que se chamava então

efeito de parcimônia11 conviriam igualmente como

exemplos do símbolo comodefine a estética român-

9 . Cf . supra, pp. 33-34.

10. Freud, Les Fantasmes hystériques et leur relation à la bisexualité, trad.

fr.em Névrose, psychose et perversion. Paris, P.UF., 1973, p. 155.

11. Cf. supra, pp. 50, 56-58.

83

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tica: eles se captam num "relance", "num só lan

ce"12e a percepção instantânea de sua forma liber

ta a superabundância de seu sentido - de modo

que a linguagem cotidiana, incapaz de esgotar essariqueza, é ademais impotente para restituir o equi

valente de um tal contraste13. Suponhamos de pas

sagem que isso se deva talvez ao seu aparecimen

to tão indizivelmente carregado de sentido que o

gesto de outrem suscita, com excessiva freqüência

de nossa parte, a pobre resposta que é a repetição:

enquanto replicamos as palavras com outras que

as prolongam, devolvemos um gesto, como se fos

se preciso anulá-Io, desfazer-se dele.

É importante destacar a afinidade que o cul

to do gesto mantém com uma doutrina formulada

há já duzentos anos. Não que seja preciso considerar essa doutrina como "falsa", nem mesmo como"caduca". Mas não é inútil tomar consciência da

limitação que ela engendra. As condutas que ela

incita privilegiar deixarão, por conseguinte, de

aparecer como sendo as únicas dignas de interesse estético.

Essa limitação é particularmente marcada

pela própria natureza da concepção romântica. O

12. Friedrich Creuzer, citado por Tzvetan Todorov, Théories du symbole , op.

cit., p. 254.

13. Nietzsche, de Bonn, onde então vivia, vai a Colônia. "Tendopedido o en

dereço de um locador, foi conduzido, talvez por um engraçadinho, a uma

casa de tolerância. Entrou no salão público, e logo se viu cercado pelas

mulheres despidas. No meio do salão, um piano aberto. 'Fui diretamen

te ao piano', contou ele, 'como o único ser que t inha alma naquele cômo

do.' Ele sentou-se, colocou as mãos no teclado e fez explodir uma das po

derosas improvisações que seus amigos admiravam. As mulheres, estupefatas , ouviam. Nietzsche levantou-se de repente e saiu, deixando-as

perturbadas." Citado por Daniel Halévy, op. cit., pp. 75-76.

princípio de intransitividade fraciona a conduta ereserva a seus diversos momentos uma qualidade

desigual, pois os instantes que ele caracteriza, realizados em si mesmos, inúteis e belos, deixarão

estender-se, no triste intervalo que os separa, lon

gos períodos fatalmente transitivos. A menos queum estetismo voluntarista decida que cada mo

mento será vivido como se representasse uma to

talidade acabada e simbolizasse um destino. Para

defender essa atitude, será preciso nada menos

que a concentração crispada em si de um Malraux:certo dia, ele estava no elevador com sua mulher

quando ela lhe pediu que fizesse a gentileza delivrá-Ia de um dos muitos pacotes que a atrapalha

vam; ele se recusou a pegá-Io, considerando incom

patível com a sua personagem carregar um pacote14.Mas, mesmo quando uma vigilância implacá

vel - e condições de existência privilegiadas

permite conferir a cada instante a completeza do

gesto, de quanta certeza de gosto não se precisa

para se compor, de um só lance, toda uma vida,com a coerência que, por outro lado, essa estética

exige!

Enquanto a música ou a pintura toleram a in-terrupção e não se alteram por ter de depender da

disponibilidade de seus instrumentos e de seusmateriais, enquanto a poesia não enfrenta de for

ma alguma o fracasso quando chega a uma pausa,a um branco, ao silêncio, a conduta tem a particu

laridade de nunca poder ser suspensa: ela conti

nua a tomar sentido e não-sentido, a derivar no

14. Relatado por Alain Malraux, Les Marronniers de Boulogne, Paris, PIou,1978, p. 174.

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informe, a consumir o seu tempo contado, mesmo

quando a arte que ela requer se retira. Ora, impo

tente para se protelar, a conduta é, além disso,refratária ao arrependimento. Ela não é suscetível

de retoque. Nenhuma correção realizável, nenhu~

ma retomada do trabalho passado, nem da ociosi

dade, nem mesmo da volta ao esboço.Nenhum cor

te possível, diferentemente das artes que podemsuprimir um fragmento mal-sucedido, ao contrário

até, ao que parece, de todas as outras artes, emque é sempre possível anular uma obra malfeita e

recomeçar tudo sobre novas bases. Aqui, os arrependimentos permanecerão sem efeito: teria sido

preciso parar ali, era preciso partir naquele mo

mento. O erro de gosto, a inabilidade na execuçãosão irremediáveis. Uma lentidão no acabamento

de um episódio (uma visita, uma viagem, uma li

gação), e não só esse erro é irreparável no futuro,

mas corrompe o passado, embota o que o precedeu,

contamina para sempre por retroação os mais felizes começos.

É verdade que o artista das condutas, por maisdedicado que esteja a essa ansiedade do irreversí

vel, dispõe de um recurso para temperá-Ia. Pois seo fenômeno de retroação, que submete o que está

terminado às influências do presente, pode chegar

à paradoxal corrupção do passado, permitirá porvezes, igualmente, sua emenda. Sartre, em Les

Mains sales, dá vários exemplos desses retornos de

sentido que afetam o que já aconteceu. Hoederer

não mais existe, mas sua morte será o que o Parti

do quiser que ela seja: assassinato político, se

Hoederer for um adversário, crime passional,

quando for reabilitado. Por sua vez, Hugo, o assassino, num último gesto, fixa o sentido dessa morte:

ele reivindica a responsabilidade por seu crime e

preserva sua vítima de tornar-se um cadáver anô

nimo, um dejeto do Partido. Dir-se-á que apenas o

sentido flutuou e que, pelo menos, o acontecimento

permaneceu intransformável? Mas o acontecimentoem si reduz-se a nada: foi um acidente, acaso con

tra o qual justamente Hoederer se revoltou inven

tando in extremis uma mentira. O gesto ulterior de

Hugo dá enfim a Hoederer "a morte que lhe con

vém". Uma porta aberta com um chute: nesse ins

tante, o homem que foi assassinado dois anos antes

morre por suas idéias em vez de morrer por acaso.

Mas a liberdade de recompor o passado, que é,

numa tal perspectiva, a licença mais tentadora,poderia perfeitamente ser também a mais perigo

sa. É verdade que Sartre maneja uma distinção

entre a piedosa intenção de Hugo e as operações

cínicas do Partido. Todavia, em nome de que inti

midade será um mais apto que outro para decidir,

no que se refere a Hoederer, que tal é "a morte quelhe convém"? Milan Kundera, ao contrário, assimi

la expressamente, por reservar-Ines a mesma des

confiança, o indivíduo que retoca sua vida e o par

tido político que reinventa a história. Em Le Livredu rire et de l'oubli, Mirek queria se conceder, para

completar seu destino que se aproxima do fim, o

direito de que dispõe o romancista de reescrever

ou de suprimir um episódio insatisfatório. Mas a

mulher, a quem outrora amou, e de que se enver

gonha, obstina-se em figurar em sua juventude e

não se deixa apagar. A existência retorcida de

-Zdena, que atravanca a vida de Mirek, é análoga

finalmente à do próprio Mirek, que não convém ao

Partido. Em ambos os casos, a coerência do todopressupõe que seja eliminado o detalhe refratário:

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um homem aqui, uma lembrança lá. Portanto,

sempre é possível que um sentido retrospectivoremodele, como a história coletiva, um destino in

dividual; mas isso se dará à custa da morte e doesquecimento.

Como conceber uma estética das condutas que

escape a tais esquemas? Duas eventualidades po

dem se oferecer: uma que consiste em tomar sis

tematicamente o contrapé da ideologia romântica,

a outra em escolher por princípio categorias que

lhe sejam radicalmente estranhas.

O esteta romântico queria momentos de exce

ção, começos radicais (a partida do aventureiro, a

do emigrante, a efervescência da Grande Noite),acabamentos irrevogáveis (o adiamento da demis

são, a suspensão das atividades, o suicídio). Ser

lhe-á oposta a reabilitação da banalidade, a acei

tação do cotidiano, a dignidade transitiva do tri

vial, a digressão do transitório. Ele se impunha o

dever de viver sem tempos mortos e intensificar o

mínimo instante. Prefere-se agora percorrer com

displicência as monotonias diárias. Nunca perdia

de vista que cada um de seus gestos empenhava a

imagem global de sua vida. Objetando-lhe a fórmula de Cioran: "só descobrimos sabor no cotidia

no quando nos furtamos à obrigação de ter um des

tino", é pela obstinação no insignificante e no des

cosido que se fará doravante valer o direito de serum homem comum.

Essa atitude, que Pascal Bruckner e Alain

Finkielkraut descreveram paramentando-a com

uma surpreendente sedução15, não será ainda, ape-

15. Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, Au Coin de Ia rue, l'aventure, Pa-

r is , Seuil , 1979.

87

sar de tudo, bastante próxima das posturas que ela

rejeita? Aplicando-se metodicamente a inverter oromantismo, ela o lembra constantemente, como

um contrário obsessivamente presente - quandonão retoma certos traços para os transpor do subli

me ao frívolo, do espetacular ao minúsculo, na in

tenção de "democratizar" o direito à aventura.Em vez disso, postular-se-á, antes, mais uma

vez, que a atividade artística está para desempe

nhar, em relação à estética das condutas, o papel de

modelo e que ela pode sugerir princípios mais inteiramente afastados das seqüelas do romantismo.

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II

o SENTIDO DO INSIGNIFICANTE

Tudo o que se chama Arte, aqui e ali, ou

trora e agora, é por demais disparatado para que

uma função artística geral oriente esse heteróclito

e flutuante conjunto. Uma obra por si mesma é

ocasião de prazeres tão múltiplos e, para o mesmo

.sujeito, de abalos afetivos tão variados que uma

investigação, que se dedicasse à definição da fun

ção estética, deveria interrogar-se imediatamentesobre o estranho desejo que a faz postular uma tão

improvável unicidade de princípio.

Deixando-se de lado tal ou qual obra (sem dú

vida, setores inteiros das Belas-artes), que serão

excluídas do campo de aplicação da fórmula pro

posta, pode-se tentar definir uma função, que não

se deve apressadamente crer especificamente es

tética, a qual, decerto, não é a única a reger as

operações reputadas artísticas, maS que pode

exemplificar-se de modos bastante semelhantes

em artes bastante diferentes, para que, ao mesmo

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90

tempo, possa supor-se que seja consistente com

uma função original, que a qualifique provisoriamente de estética.

É uma função de desfocalização, para se resumir numa palavra e para não se recear situá

Ia em posição negativa relativamente ao que a

precede. Estão em primeiro lugar a focalização

da atenção, a consciência seletiva, a discrimina

ção do essencial e do acessório, do significante e

do insignificante, do sentido e do acaso, da figu

ra e do fundo. A desfocalização destitui o essen

cial, dá sentido ao acidental, detém-se no deta

lhe, deriva na margem.

Qual é essa necessidade primeira que impõe àatenção esquemas que negligenciam mil contingên

cias? - O ato de fabricação, diz Valéry, em Eupa-

linos, não se inquieta com todas as qualidades da

substância que ele modifica, mas apenas com algu

mas: "O homem constrói por abstração, ignorando

e esquecendo uma grande parte das qualidades do

que ele emprega"1. Por conseguinte, necessidade

"prática"? Necessidade "pragmática", "utilitária"?

- Seria verdadeiramente preciso que, no campo

de consciência, a recuperação da realidade residual tenha comocondição uma atitude "teórica", uma

disposição "desinteressada", uma curiosidade "gra

tuita"? Será preciso tomar partido nessas oposi

ções que relegaram a arte às regiões anódinas da

superfluidade? - Necessidade "vital"? - Mas será

que se acredita que a flutuação da atenção para

além das balizas seja mortal?

1. Paul Valéry, Eupalinos ou l'architecte, Paris, Gallimard, 1960, Pléiade, voI.

lI, pp. 123-124.

91

Papel discriminante da linguagem? Mesmo

que ali não esteja a origem absoluta da segregação

do essencial e do secundário, verifica-se que a opo

sição lingüística entre o que é pertinente e ()quenão é fornece o arquétipo mais claro das outras

distinções aqui em causa e que a dualidade do sig

nificante e do insignificante implica referência a

sistemas de signos, dos quais a língua é o mais

acabado. Entretanto, esta não estrutura de forma

tão imutável a matéria verbal que não possa subi

tamente dar sentido àquilo que, um pouco antes,

estava privado de pertinência, pois a poesia é a

arte dessa transmutação. Parece que se levaria em

conta .ao mesmo tempo a primeira presunção, referente ao efeito de abstração próprio da língua, e

a reserva que impõe a presença do recurso poéti

co no núcleo da linguagem, avançando-se que a

discriminação dos elementos vivos e dos elementos

mortos, quanto ao sentido, não é imputável à lin

guagem enquanto tal, mas à função de comunica

ção que tende a açambarcá-Ia. .Tudo pode ser signo, do gesto mais furtivo à

postura menos estudada. Na própria substância

da linguagem tudo faz sentido; tal palavra em lu

gar de um sinônimo, tal assonância, o timbre da

voz, a fluência, o silêncio. Mas esses índices são

por demais fugazes ou singulares para que um

consenso se estabeleça sobre o que significam. A

atitude de comunicação, que deve contar com a

reciprocidade dos interlocutores, reterá exclusiva

mente os significados experimentados, os signifi

cantes instituídos, os signos estabelecidos. Afas

tando o sentido inédito, que se prestaria a uma

compreensão arriscada, a inteligências divergen

tes, ela obscurece o que o engendra. Não é apenas

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92

o ato de fabricação, comoo definiu Valéry, é, gene

ricamente, o ato de comunicação que procede por

abstração, "ignorando e esquecendo uma grande

parte das qualidades do que emprega".A função de desfocalização, em compensação,

dá sentido ao insignificante: à sílaba na palavra,

à pedra no muro, à cor na forma, à palavra na fra

se. A prosa de comunicação focaliza-se na frase,

cujos elementos serão apenas constituintes. A pro

sa literária, sem perder de vista o enunciado global, assume suas unidades interiores, favorece em

particular sua polissemia, que o contexto tende a

reduzir e que a intenção de comunicar visa a anu

lar.A poesia encarrega-se ao mesmo tempo da coe

rênciado texto global, das implicações plurivalen

tes de cada uma de suas palavras e até da textu

ra das sonoridades ou das grafias.

Essa reconquista estética do insignificante é

sem fim. A arte propriamente dita é apenas uma

de suas etapas. A desfocalização artística consiste

em dar novamente sentido a todos os detalhes queentram no espaço da obra, em colocá-Ios no mes

mo plano, em conferir-Ihes uma força significanteigual. Mas essa operação de ressemantização de

todos os elementos presentes só é bem-sucedida

justamente nesse espaço privilegiado, à custa dofechamento da obra, às custas do circundante so

bre o fundo do qual ela se põe. A desfocalização

não é o abandono da atenção nem o relaxamento

da consciência; é como se a disseminação percep

tiva exigisse uma outra concentração e impusesse

uma indiferença mais completa em relação ao con

torno desse novo centro. Ora, se os academismostoleram essa contradição, a história da arte em

ato é a das recusas sucessivas da idéia resignada

93

de uma justaposição entre o reino do sentido, es

tabelecido nos limites da obra, e o da insignificân

cia, que prolifera ao redor. A pintura moderna,

desde o impressionismo, recupera o espaço bidimensional da tela, impõe-lhe autodesignar-se

como o próprio lugar do sentido, impede-a de reto

mar o estatuto de invisível instrumento da pro

fundidade; ela reconquista em seguida a própria

substância dessa superfície, ressemantiza sua ma

terialidade, recusando que se limite ao papel de

suporte fortuito da área colorida. Todavia, a obra

necessariamente se interrompe, abandona suas

margens ao acaso. Picasso não elude esse proble

ma: "O grande lance é o espaço entre o quadro e a

moldura"2. Mas será esse ainda o lance da pintu

ra? Será que esse é, ainda hoje, o lance da "arte"?

Desde que esta se tornou manifestamente objeto

de um interesse institucionalizado e está por sua

vez focalizada enquanto tal pela cultura estabele

cida, a desfocalização perseguida não é mais "ar

tística"; munida de métodos experimentados no

interior das Belas-artes, ela se dissemina foradessa moldura.

O teatro restitui a cada gesto todos os seus

poderes simbólicos, rompe o encadeamento dos

movimentos transitivos, valoriza cada atitude,

impede-a de fundir-se, despercebida, na totalida

de indiferenciada de tal ou qual conduta socialmente identificável. Os silêncios deixam de ser as

pausas da significação; os ruídos tornaram-se coi

sa diferente de parasitas da comunicação; a qua

lidade das luzes não se reduz mais às funções da

2. Citado por LOllis Aragon, Les Collages, Pari s, Hermann, 1965, p . 74.

94

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I

iluminação. Mas a amplitude nova da atenção as

sim solicitada, que, por ser difusa, não deve ser

menos vigilante, esse alargamento da consciência,

agora desfocalizada e requerida para encontrar

sentido em cada entonação, em cada atuação, em

cada expectativa, só parecem possíveis às custas

dos inúmeros artifícios que reduzem, por algum

tempo, o mundo às dimensões de uma cena. Ora,

o grande lance, ainda aí, para os mais exigentes,

é a relação entre o palco e as fileiras do público, o

espaço entre a cena e os bastidores, o intervalo

entre o espetáculo e o tempo profano que o prece

de e o sucede. Muitos esforços do teatro contempo

râneo tendem à abolição dessa fronteira instituída pela ribalta entre uma zona integralmente

semantizada e o lugar de penumbra onde a exis

tência do público, contingente, permanece à mar

gem dos desdobramentos do sentido. Outras ten

tativas, do mesmo alcance, suprimem os bastido

res, generalizam a troca dos cenários e das roupas

diante do público. O momento em que um atorendossa os índices vestimentários de uma nova

personagem não pode aparecer como sendo um

instante altamente significante: por que ele se dissimularia comouma coerção transitiva, comouma

inessencial transição? - Contudo, essa teatraliza

ção conquistadora, que ganha os bastidores, trans

põe a ribalta, distribui papéis aos espectadores,

anexa os corredores e arrisca eventualmente algu

mas incursões nas ruas vizinhas, interrompe-se

quando não é mais hora de atuar, quando a festa

termina, ou quando, para os mais obstinados, che

ga a hora de pensar em outras formas de ação.

Dirigiria o reconhecimento dos limites da arteteatral ou da pintura uma visão restritiva da ativi-

dade estética? Na medida em que a definimos de

maneira muito geral para distingui-Ia das artes,

que são submetidas, por sua vez, não apenas à es

pecialização de seus procedimentos respectivos,

mas à heteronomia da apresentação de uma "obra",pode-se sempre, é claro, postular que ela deve se

aplicar ao campo integral da vida cotidiana. Toda

via, querendo-se evitar repisar simplesmente uma

palavra de ordem, pregar vagamente a obrigação

de "mudar de vida", querendo-se exortar os outros eincitar-se a buscar efetivamente os meios de

poetizar a existência, é preciso conceituar tão fir

memente quanto possível pelo menos uma das fun

ções que estão em atividade na prática das artes.

Parece que, no que concerne à realização dessa preliminar, um primeiro passo pode ser dado

que permita ultrapassar os sumários e agora muito oficiais encorajamentos da "criatividade": a

desfocalização da atenção ou, mais precisamente,

a exclusão do princípio de pertinência (tal como é

definido pelas ciências da comunicação) representa

talvez a operação cuja análise seria muito fecun

da nesse aspecto.

Tomada de empréstimo à experiência teatral, a

idéia de bastidor pode ser generalizada, a ponto desimbolizar toda a classe dos lugares, das ocupa

ções, dos períodos que são dedicados à preparação

do sentido e suprimidos de sua manifestação. O

exemplo da recuperação progressiva, no espaço do

jogo cênico, das passagens adjacentes ao palco ouaos corredores reservados ao escoamento do públi

co, inspiraria então um modo de vida que instituís

se um mesmo grau de densidade semântica entre a

habitação e a rua (mas a rua seria então habitada),

a destinação e a estrada (mas o viajante não teria

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mais destino), a "vida" e o trabalho (mas a vida per

deria suas aspas, seus parêntesis, suas pontua

ções). O apartamento moderno, que dissocia o

living onde se vive e os bastidores reservados à co

zinha, à toalete, ao sono, ao amor, seria substituído

por um espaço comum, impedindo que uma ativida

de qualquer fosse considerada indigna.

Tomada de empréstimo às artes gráficas, a

idéia de margem pode ser entendida, de forma

mais genérica, como conveniente a todos os espa

ços neutros, aos dias vazios, aos tempos mortos,

aos encontros inuteis. A atenção marginal da qual

dão testemunho, no sentido literal, a poesia de

ApoIlinaire e a reflexão de Michel Butor, a caligrafia desde sempre, a escritura versificada talvez e

a história em quadrinhos mostra por vezes o exem

plo de uma possível reconquista, em benefício deum sentido mais diversamente enraizado, dessas

extensões laterais e infecundas que são também as

franjas de uma jornada, os dias seguintes de fes

ta, os fins de vida. Num elogio da pane3, Jacques

Meunier indica de que modo a ruptura dos meca

nismos provoca descobertas, experiências, abertu

ras no inesperado. Para isso, pressupõe-se umaverdadeira aptidão para apreender-se a providên

cia marginal. Do contrário, o desarranjo da rotina

representará apenas uma perda de tempo, o inci

dente será apenas uma confusão; deixar-se-á pas

sar a oportunidade de um encontro na irritação de

ter faltado a um compromisso.

A ideia de ruído, apesar de não ser espontane

amente relacionada com a experiência da música,

só é entretanto definível enquanto oposta ao som

3. Jacques Meunier, "Vive Ia panne!", LeMonde dimanche, 12 fev. 1981.

I

musical, pois o ruído resulta da superposição de

vibrações que são chamadas "não-harmônicas".

Ora, tal como a idéia de bastidores ou a de mar

gem, a idéia de ruído pode ser empregada em domínios estranhos à arte de origem; a teoria da co

municação designa dessa maneira os fenômenos

que interferem com um sinal, seja qual for sua

natureza (luminoso, gráfico, icônico, gestual, ver

bal), e que limitam a transmissão da informação.

O trabalho musical, que consiste em enriquecer a

série dos sons disponíveis num sistema historica

mente dado, aparece por conseguinte como exem

plar fora do campo que lhe é próprio. Do mesmo

modo que a música concreta subtrai os ruídos(acústicos) ao acaso e os introduz na ordem da

pertinência musical, a conduta cotidiana pode arrancar os "ruídos" (metaforicamente definidos) da

insignificância e conferir-lhes uma carga semânti

ca. Quais são esses "ruídos"? Trata-se dos parasi

tas da comunicação, dos elementos imprevistos

pelo código que, misturando-se ao sinal, confun

dem a mensagem: reações singulares, comporta

mentos inclassificáveis. Tendo um colegial de de

zoito anos fabricado sem autorização um engenhoexplosivo que estourara inopinadamente no ba

nheiro de seu quarto de estudo, a vara criminal lhe

inflige quinze meses de prisão, catorze dos quais

com sursis: o rapaz anota cuidadosamente sua con

denação num caderno de notas, tal como deve teranotado anteriormente, quando freqüentava as

reuniões dos escoteiros ou a aula de tecnologia, afórmula da mistura detonante4•

4. Le Monde, 26 mar . 1981.

98 99

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o menor dicionário analógico enumera copiosamente as palavras que designam ruídos (zumbido,vozerio, sussurro, chiado, marulho, estalo, crepitação, grito, rangido etc.) e das quais a escuta musical se privou até recentemente. Pelo menos tais listas podiam ser feitas antes mesmo do aparecimento da música concreta. Nada disso, no que se refereà conduta. Num momento dado da evoluçãodos costumes, e comoresposta a uma situação determinada, o sistema dos comportamentos cuja pertinênciaé admitida (seja qual for sua significação: que estase relacione com as categorias do permitido, do recomendado ou do interdito), esse sistema sempre se

pretende relativamente aberto e, na medida justamente em que não é totalmente rígido, dispensa-sede ser explícito: as virtualidades que exclui ficamainda mais recalcadas, sua enumeração, mesmo queparcial, ainda mais impossível. A codificação estrita dos sistemas- musicais autoriza e provoca umaformulação dos elementos que eles admitem, isto é,dos sons, e permite o recenseamento dos ruídos queexcluem. Mas a codificação das condutas, muitomenos rigorosa aparentemente, impõe-se de manei

ra indireta e tácita, embeleza-se com a idéia de liberdade e mantém relações imprevistas no nada doimpensável. Não mais se trata aqui da classe dosatos interditos, que, no que lhes diz respeito, sãoperfeitamente codificados e cujos traços pertinentesos tribunais nunca deixam de lembrar com precisão.Os comportamentos que escapam ao código nãoacarretam uma interdição franca, suscitam uma reprovação velada. Não infringindo regra explícita alguma, não têm a significação do delito; mas, por se

comporem de signos inéditos, aparecem como umdesregramento do princípio de comunicação. Usar

roupas inadequadas à ocasião, cumprimentar comcortesia desconhecidos na rua: esses atos, mal saídos do impensável, revertem ao insensato.

O dandismo de modo nenhum recomendava a

extravagância. Em vez do exagero no fausto ou nafantasia, ele procurava uma distinção sóbria. Semdúvida, tratava-se de se singularizar, mais porrefinamento que por incongruência. Era precisoser notado, mas sem recorrer aos procedimentosvistosos; provocar a surpresa, mas utilizando melhor do que ninguém os recursos comuns5.

O dândi cultiva o detalhe essencial. Mais exatamente, tudo é detalhe para ele, e cada detalhe écapital.

É às coisas que têm menos importância que ele pretende

mais se apegar .. .De um conjunto de prá ticas ins igni ficantes e inú

teis, ele faz uma arte que leva sua marca pessoal, que agrada e

que seduz à maneira de uma obra de engenho. Ele comunica aos

menores signos de roupa, de postura e de linguagem um sentido

e um poder que eles não têm naturalmente. Ele produz do nada

uma superioridade misteriosa que ninguém saberia definir, mas

cu jos efeitos são tão reais e tão grandes quanto os das superio ridades classi ficadas e reconhec idas . O dândi é um revolucionário

e um ilusionista6•

Ele é artista e, nisso mesmo, revolucionário, seé verdade que a arte tem como efeito subverter ahierarquia que a ordem estabelecida postula entreo importante e o acessório. Sua conduta não é extravagante. Mas seria correto chamá-Ia de excên-

trica se, desse modo, se pudesse designar a liber-

5. Emilien Carassus, Le Mythe da dandy . Pari s, A. Col in , 1971, p . 1Ol .

6. Jules Lemaitre, Les Contemporains, 1875, citado por E. Carassus, op. cit.,

pp. 253-254.

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dade discreta que desloca bruscamente os valores

centrais. O dandismo transfere para os gestos

mais fúteis o cuidado exigente, comumente reser

vado às tarefas reputadas sérias; ele mina por

contragolpe os prestígios da riqueza, dos títulos,

da função social. Institui uma arte de viver no sen

tido em que realiza essa desfocalização da atenção

que o exemplo das outras artes autoriza a conside

rar como sendo uma possível finalidade da atividade estética.

Mas ele quer, ao mesmo tempo, que o descen

tramento dos valores se imponha como uma nova

maneira de ser. Visa a instaurar uma codificação

das condutas, que redefina as convenções e regulamente os usos. Uma decisão sobre nadas, que

não se funda em nada, decreta obrigações de ves

tuário, prescreve passatempos e fixa até seus ho

rários. A exploração do inessencial, no dândi, in

clui a experiência do frívolo e da arbitrariedade,

mas não se aventura a tornar-se disponível aosefeitos de acaso.

É próprio da arte em geral tornar-se acolhedo

ra dos achados fortuitos. Tirar partido dos mate

riais é, ao mesmo tempo, deixar viver seus acidentes (nós da madeira, particularidade pessoal de

um ator, tremor inopinado de um traço) e trans

mutar esses dados contingentes em uma necessi

dade nova. A função estética, que visa à evicção do

insignificante, só se manifesta de maneira plenamente convincente onde este se deixou afrontar

diretamente. Ora, é próprio da arte de viver lidar

com o acontecimento, em outras palavras, com o

imponderável e o imprevisível. A complexidade de

uma situação vivida ultrapassará sempre em mildetalhes a de um problema plástico ou de uma

conjuntura cênica. A atenção metódica aí seria len

ta e pesada. A focalização analítica delimita ape

nas signos já desertados. Nenhum outro campo

estético exige, como a arte das condutas, essa ex

trema prontidão para a captura das coincidências,

cuja condição reside na atenção desfocalizada.

Aqui, menos ainda que em outra parte, Ó sen

tido premeditado não pode operar. Em vez do sentido fixado, do significante distinto e dos signos

diferenciados: atenção flutuante, visão sem foco,

vigilância esparsa.

A elaboração de uma agenda proporciona tal

vez uma satisfação de ordem estética: a de ter pre

ludiado a eliminação das contingências, inserindoqualquer eventualidade na ordenação de um sen

tido global. Entretanto, o revés está à altura da

esperança: o acaso, não admitido, volta por refra

ção, mas tem agora o aspecto amargo ou ridículodo absurdo. Por se ter querido proscrever o alea

tório, impediu-se o poder de dar instantaneamen

te uma significação ao acontecimento.

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o FRANQUEAMENTO DO GESTO

Em nossas relações com outrem, a atenção se

focaliza no sujeito, naquilo que ele quer, naquilo

que ele é. Os gestos de outrem aparecem como osíndices de seu ser. Emitimos os nossos sabendo

que eles contribuem para revelar a pessoa que somos. O efeito da desfocalização equivaleria a

dissociar os gestos do sujeito que os realiza, a

tomá-los pelo que dizem ou pelo que fazem, sem osimputar a uma substância subjetiva. Nossas con

dutas provavelmente se diversificariam se lhesfosse concedida, em sua relação com a pessoa que

se supõe assumi-Ias, a liberdade que têm os discursos diante de seu locutor.

Definida pela intransitividade, a idéia de ges

to, comose viu, reativa facilmente a estética laten

te que herdamos do romantismo. Utilizada, em

compensação, para marcar a distância que pode

estabelecer-se entre uma conduta e seu ator, abreperspectivas novas.

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Quando uma conduta é qualificada pejorativa

mente de simples "gesto", o que se incrimina não

é talvez tanto sua ineficiência quanto sua insince

ridade. Opondo-a aos "verdadeiros atos", não se

quer apenas negar-lhe qualquer influência pragmática, mas censurar-lhe uma imediata falsidade.

Não é a insuficiência de seus efeitos que se real

ça (seria preciso então suspender indefinidamen

te ojuízo, na espera de repercussões sempre pos

síveis), é o vício inicial de sua intenção. A condu

ta é apenas uma seqüência de gestos se o objetivoque pretende perseguir se transforma de chofre

em pretexto e se é flagrante que seus móveis são

antes representados que sentidos."Eu era uma falsa criança: sentia meus atos se

transformarem em gestos", afirma Sartre em sua

autobiografial. Porque aprendeu a se ver pelosolhos dos adultos, o pequeno ator conforma seu

comportamento à expectativa deles e compõe paraoutrem um ser artificial.

Em que consiste precisamente o artifício de

um gesto? Como se explica que, entre todas as

condutas culturalmente adquiridas, algumas espe

cialmente sejam suspeitas de afetação? Como, pormeio do equívoco comum dos sentimentos, flagrase o índice de uma particular inautenticidade? O

ato se torna gesto quando seu único sentido é mos

trar-se, quando se dedica primeiro a se fazer com

preender, quando se transforma em linguagem.

Seu artifício é a ênfase dada a traços pertinentes

devido aos quais ele transmite o que quer dizer.

Ocorre que, por isso mesmo, contradiz-se o proje-

1. Jean-Paul Sartre, Les Mols. Paris, GaUimard, 1964,p. 67.

to que se trata de significar, como o árbitro que

quer mostrar sua segurança de juízo por uma ra

pidez que compromete a segurança, ou como o

ouvinte tão aplicado em emitir sinais de atenção

que não tem mais tempo para ficar atento. De

modo geral e de modo menos paradoxal no senti

do corrente, a intenção de comunicação, por recor

rer necessariamente à convenção de um código,

não poderia tomar a conduta por matéria sem

provocar nela uma notável perturbação de seu es

tado supostamente natural.

O comportamento assim submetido à função

de comunicação foi qualificado anteriormente2 de

semioticamente imoral.É

que ainda não aparecera a eventualidade dojogo ao qual se prestam os

signos. Hipertrofiar os índices da respeitabilidade

que se concede a si mesmo é uma coisa. Imitar porderrisão esses mesmos índices é outra. O acesso da

conduta ao universo das significações lhe abre ao

mesmo tempo a possibilidade de tomar de emprés

timo diversos recursos à linguagem e de se bene

ficiar, por exemplo, de uma distinção análoga

àquela que opera a análise do discurso entre o

enunciado assumido e o enunciado citado.Na ordem verbal, com efeito, qualquer que seja

o conteúdo literal de um enunciado, propõe-se a

questão de saber se o locutor dele se encarrega ou

não. Ainda que o discurso seja enunciado na pri

meira pessoa, esse "eu"não é necessariamente o do

autor. A literatura joga constantemente com o

pluralismo subjetivo, com as posições defasadas do

sujeito-autor, do sujeito-narrador, do sujeito-perso-

2. Cf. supra, p.47.

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nagem, com a distância que o escritor introduz en

tre os dois "eus", quando dissocia autor e narrador,

quando é e não é a personagem à qual emprestauma voz, quando diz "eu" para ser um outro. Esse

processo de desdobramento, a literatura o dispara

ao infinito incluindo o artifício eventual do pseudônimo, a prática constante do enunciado comen

tado e até a vertigem da enunciação que se auto

critica, e mesmo da crítica que vira derrisão. Ora,

o teatro e o cinema sabem igualmente provocar tal

diferenciação. Eles contêm a linguagem, é verda

de, como uma de suas componentes, mas não é

sempre por sua presença stricto sensu que criam

uma enunciação distanciada. Um espetáculo, enquanto tal, é suscetível dos modos paródico, irôni

co, humorístico; nenhuma necessidade de diálogonem de voz aff para recorrer, se preciso, a uma

compreensão de segundo ou de terceiro grau. A pin

tura presta-se também a essa defasagem. Quando

a pop art apareceu, colocou-se a questão de saber

se sua relação com a realidade contemporânea queela exibia era de fascínio, de afastamento ou de

derrisão. Que a incerteza tenha por muito tempo

persistido prova ao mesmo tempo que o deciframento da intenção última é menos fácil em pintu

ra que em literatura, mas que a distinção entre

esse deciframento da enunciação e a leitura doenunciado é aí igualmente válida. Da mesma ma

neira, ainda, a música, ao fazer sucederem-se,

numa obra, movimentos diferentes, engendra uma

enunciação irredutível aos enunciados que ela designa alternadamente. Assim, o fenômeno do des

dobramento subjetivo encontra talvez na lingua

gem o campo privilegiado: o que o torna mais facilmente analisável, comotambém o que lhe ofere-

ce as possibilidades mais finas ou mais extremas.

Mas vê-se que ele interessa igualmente às artes

que não são verbais. Ele poderia ser retido pela

hipotética definição de uma função estética geral.

Seria a conduta o único domínio onde ele não po

deria transcorrer? Suprimir-lhe a palavra seria,

primeiramente, simplificar abstratamente o com

portamento. Sua distinção é uma evidência falha

se incita a apreendê-Ios em concorrência. Falar em

vez de se calar, dizer isso em vez daquilo, dizê-Io

assim e não de outro modo, são maneiras diversas

de se conduzir. A linguagem é um dos modos do

comportamento. Ora, a prática da mentira osten

siva, por exemplo, seja ela de cinismo ou cortesia,afetuosa ou lúdica, introduz na própria conduta um

desvio idêntico àquele que constitui a condição es

sencial das artes de ficção. Ademais, consideran

do-se até o mutismo do gesto, é preciso reconhecer

que ele não é refratário a esse processo de desdo

bramento, pois este opera no mímico. Embora pa

reça pouco verossímil que uma conduta saiba citar

uma outra, que possa representar um ato que não

seria o seu, é isso, contudo, o que acontece. Uma

breve mímica se assinala por vezes não apenascomo a paródia dosgestos de outrem, mas comoum

recuo tomado em relação a si mesmo. Por estreita

que pareça a experiência que se pode aqui alegar,

ela basta para afastar um obstáculo de princípio e

abre caminho para uma estética cuja tarefa seria

provocar metodicamente a multiplicação e o enri

quecimento de experiências da mesma ordem.

Afastar de si mesmo os próprios gestos, mos

trá-Ios, designá-Ios pelo que são, pelo que dizem ou

pelo que fazem, administrando, aquém de seuenunciado, o implícito do sentido que a eles se dá.

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Por exemplo, o gesto de um dândi do século

passado: um rico financista deixa cair uma moeda

e se abaixa para procurá-Ia, d'Orsay se agacha porsua vez e, para ajudar na busca, ilumina um can

to queimando uma cédula3.A arte da conduta começa pela emancipação

dos gestos, quando eles são emitidos sem que sedeva, neles, identificar-se.

Fica, assim, invalidada a alternativa do natu

ral e do factício. Não há como suspeitar do gesto

de insinceridade quando este não pretende mais

traduzir as disposições interiores nem os objetivospessoais do sujeito que o inventa.

Produzir gestos que se evita endossar. Essa

representação da conduta, longe de submeter-se às

críticas que visam a "mentira" do espetáculo, suspende, ao contrário, a pertinência de toda distin

ção entre o verídico e o enganador.

Esse franqueamento dos gestos e a diversifica

ção das condutas que dele resultaria parecem ter

como condição que se saibam empregar os índices

mais capazes de significar a distância subjetiva.

Amplificação paródica, por exemplo, a propósito daqual seria inepto perguntar se ela é ou não since

ra. Além disso, sucessão, numa mesma conduta, de

gestos entre os quais se supunha que se escolhes

se4, como quando se muda o estilo da vestimenta,

3. Emilien Carassus, Le Mythe du dandy , Par is , A. Col in , 1971, p . 123 .

4 . Roman Jakobson define da seguinte mane ira a função poét ica: a combi-

nação, em contigüidade, na construção de uma seqüência, de termos con-

correntes , pertencentes a uma série virtual, equivalentes entre si sob um

aspecto e diferentes sob outras relações. "Afunção poética projeta o prin-

c ípio de equiva lência do e ixo da seleção sobre o e ixo da combinação."

"Linguistique et poétique", Essaia de linguistique générale, Paris, Minuit,1963, p . 220 .

a atividade profissional. Uma forma de vestimen

ta, um estatuto profissional, fazem sentido distin

guindo-se das outras formas, dos outros estatutossimultaneamente concebíveis; eles identificam o

sujeito que os adota ou os suporta, diferenciandose das virtualidades que ficam excluídas. A reto

mada, em sucessão rápida, de possibilidades que

são, quanto ao sentido, excludentes umas das ou

tras desregula, portanto, as bases da comunicação,

perturba a imputação das identidades. Ela provocao retraimento do sujeito da enunciação e a liberta

ção dos enunciados anônimos.Tendo Ruskin, Burne Jones e William Morris

convidado seus compatriotas a passar de uma es

tética pictórica a uma estética estendida a toda a

vida, desenvolveu-se na Inglaterra, por volta de

1875, um esteticismo do mobiliário e da roupa.

"Então se viu passear em plena luz do dia moci

nhas vestidas com roupas da Idade Média, e du

rante os serões essas mesmas mulheres apareciam

em vestidos copiados de quadros antigos, com lírios nos cabelos". Emilien Carassus, que cita os fa

tos segundo Paul Bourget, acrescenta por sua vez:"Encontraremos mais tarde, na França, afetações

igualmente estranhas, expostas em Maftresse

d'esth?des, de Willy, por exemplo"5.

Poder-se-ia falar em "afetação" se essas estra

nhas roupas fossem usadas numa festa popular,num desfile de carnaval? Certamente não. Está

convencionado que nessas circunstâncias a gente

se disfarça. Por que o fato de passear com traje

5. Emilien Carassus,Le Snobisnte et les leUres françaises de Paul Bourget àMareei Proust, Par is , A. Colin, 1966, pp. 126-127.

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medieval é percebido de forma tão diferente numcaso e no outro?

Pelo disfarce se exibe a diferença entre o ser

de empréstimo e a pessoa real (esse contraste faz

rir). Na afetação, ao contrário, gostar-se-ia de dis

simular os artifícios de uma identidade usurpada

(essa confusão provoca indignação). Pobreza de

nossos jogos: não conseguimos admitir que entre o

disfarce e a afetação possam se estender todos os

graus da mudança de identidade.

Quando Emile Faguet tomava o ônibus com

um uniforme de acadêmico, ele nem estava disfar

çado nem era afetado.

Jacques Vaché mudava de uniforme sem cessar; ele passeava pelas ruas ora vestido de aviador, ora de hussardo. À diversidade sucessiva ele

preferia por vezes uma pluralidade simultânea:

De forma alguma abstencionista, é evidente, ele arvora um

uniforme admiravelmente talhado e dividido ao meio, uniforme de

algum modo s intét ico que é, de um lado, o dos exércitos "al iados",

do outro o dos exércitos "in imigos" e cuja unif icação totalmente

superf ic ia l é conseguida com grande reforço de bolsos externos ,

talabar tes claros, cartas de estado-maior e voltas apertadas de len

ços de seda com todas as cores do horizonte' .

As artes da linguagem autorizam o sujeito fa

lante a confundir sua identidade, e até a eclipsar

se enquanto prosseguem osjogos desencadeados. A

arte das condutas deveria admitir uma distinção

semelhante entre o sujeito agente (suas intenções,

suas convicções) e os gestos que ele propõe, paro

dia ou cita (Por que seria preciso que sejam seus

6. André Breton, Anthologie de ['humour noir; Paris, Ed. du Sagittaire, 1940,

p.234.

"próprios" gestos, quando aquele que fala é dispen

sado de apossar-se de cada um dos enunciados queformula?).

Estreitamente imputados ao sujeito que os

emite, os gestos têm uma coerência pobre. Fran

queados desse assinalamento único, não só seu re

gistro se estende (comono teatro, onde nem o autor, nem o diretor, nem o ator são pessoalmente

obrigados a assumir os gestos que mostram), como

também se torna possível conceber condutas com

implicações divergentes. Os gestos subversivosmais matreiros extraem sua força da hábil relação

que mantêm com a intenção bem pensante: é tão

impossível acreditar que eles a partilham quanto

estabelecer que zombam dela. Acontece o mesmo

com o gesto, já citado, daquele jovem americano

que, em Santiago do Chile, lavava a bandeira de

seu país de suas nódoas simbólicas; ou ainda da

primeira manifestação pública do Movimento de

Liberação Feminina: no dia 26 de agosto de 1970,uma dezena de militantes vão ao Arco do Triunfo

e ali depositam um ramo em memória da "mulherdo soldado desconhecido". Nessas condutas aberta

mente dúbias, o alcance ofensivo não é dissociáveldo respeito literal concedido ao emblema ou ao ri

tual, como se o mesmo gesto implicasse ao mesmo

tempo dois sujeitos, de modo que as forças da or

dem, que não deixam de intervir, vão se expor ao

ridículo de não poder sancionar um sem desautorarabsurdamente o outro.

Tzvetan Todorov distingue, em Barthes, o ca

ráter tradicional das afirmações (o conteúdo dos

enunciados, que reitera notadamente os temas da

intransitividade do texto, da pluralidade de suasinterpretações) e o modo novo da enunciação: "ne-

112 113

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nhum discurso é inteiramente assumido, nem to

talmente condenado; sempre se ouve finalmente

uma palavra por procuração"7. Como afirmaBarthes sobre si mesmo, "ele evolui ao sabor dos

autores de que trata", sem aderir ao que afirmam,sem se manter tampouco à distância desses outros

discursos: ele queria empregar "aspas incertas",

"parêntesis flutuantes". Essa enunciação inédita

tem por efeito dispersar o "sujeito". Quem fala? A

"pessoa" se encontra "se não anulada, pelo menos

ilocalizável". Todorov vê em tal concepção da escri

tura a marca da modernidade, que consiste em "re

conhecer o outro diferente de si mesmo, o outro em

si mesmo, em inaugurar a era da alteridade e da

exterioridade generalizadas".

Ora, o que pode a escritura, não estará o gesto, por sua vez, em condições de tentar? Parece até

que a arte dos gestos nesse ponto precedeu a ex

periência literária. Não será a relação que o ator

mantém com sua personagem, há muito, rigorosa

mente idêntica à que Barthes institui com os au

tores de que trata? O paradoxo do ator é que ele

não adere à personagem que faz viver. Ele lhe

empresta seu corpo, assim comoBarthes "empresta sua voz aos outros sem se fundir com eles".

Será essa relação transportável para fora doteatro? Talvez fosse conveniente afastar os casos

em que é o teatro inteiro que se transporta parafora da cena que lhe é destinada, como nas cele

brações dos costumes de outrora.

7. Tzvetan Todorov, "La Réflexion sur Ia littérature dans Ia France

contemporaíne", Poétique (38): 141·147, 1978. A análise dessa "polifonia"

do texto é desenvolvida no livro que Tzvetan Todorov dedicou a Bakhtin:

Mikharl Bakhtine, leprincipe dialogique, Par is , Seuil , 1981.

Casa-se com velas nos castelos alugados por uma noite, ao

som das violas ou das flautas-doces. Em Evron, em Mayenne, os

habitantes se ves tem com roupas do século X para ir ao mercado,

que festeja seu milênio este ano . ..Aqui e ali, os camponeses se en

contram aos domingos para muti rões à moda antiga, onde ceifam

amarrando as gavelas à mão, formando uma roda para bater o

trigo com o mangual, suando bastan te , torcendo-se de ri r das brin

cadeiras nostá lgicas dos rapazes da regiãoB•

Semelhantes à festa, ao jogo e ao rito - se

melhantes por isso igualmente ao teatro -, essas

celebrações nostálgicas preenchem um tempo de

finido; são momentos separados, parêntesis na

vida. Mas não é difícil imaginar que esses parên

tesis, como os de Barthes, podem se tornar "flu

tuantes" e que, por exemplo, os hábitos da refei

ção entrem, cada vez com mais freqüência, na erada alteridade. Bourdieu quer evidenciar, nas di

ferentes maneiras à mesa, a filosofia prática de

cada classe social. É um estilo de vida que se ma

nifesta no "comer-à-vontade" das classes popula

res, em que a refeição é colocada sob o signo daabundância, da liberdade, da familiaridade, da

"sem-cerimônia". A burguesia, ao contrário, cóm

sua preocupação de "comer nos conformes", mos

tra o valor que atribui à contenção e ao comedi

mento, à cerimônia social, à estilização da condu

ta9. Evidentemente, Bourdieu não ignora que a

luta pela elevação social, portanto o sobrelanço

na distinção e a volta, supremamente distinta,

aos costumes populares tornam cada vez mais

8. Josettte Alia, ( 'LaCourse au bon vieux temps", Le Nouvel observateur,

(826), 6-12 set. 1980.

9. Pierre Bourdieu, La Distinction, critique Badale du jugement, Paris,

Minuit, 1979, pp. 215-222.

114 115

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difícil imputar qualquer etos a uma classe definida. Sua reflexão negligencia todavia, o maisdas vezes, os casos de empréstimo, a infração aohábito, a migração dos costumes, todas as práti

cas que consistem em imitar, em experimentar,em partilhar o etos do outro.

Sem dúvida, esses fenômenos ainda não atingiram um grau de freqüência estatística suficiente para que a sociologia se interesse por eles. Aestética, em contrapartida, deve talvez reconhecerneles a operação de uma categoria suscetível de setornar para ela essencial: a dispersão subjetiva.

A arte de se comportar poderia então se definir como o exerCÍcio assíduo do afastamento de

si mesmo. Fundando-se no exemplo que o teatrooferece constantemente, mas que não é o único aoferecer - pois a pintura, a música ou a literatura implicam igualmente a expatriação afetiva,a experimentação emocional, o jogo dos sentimentos e das idéias que são experimentados semque se deva aderir a eles -, esta arte consistiriaem manejar, em todo comportamento, o índice deuma íntima distância. Assim como é lícito nutrir

se hoje "sem-cerimônia" e comer amanhã "nosconformes", ou tomar emprestados os ritos darefeição japonesa, depois os de uma refeição africana, é possível igualmente experimentar os gestos de uma fé que não se possui, permanecer, porexemplo, sentado por muito tempo numa mesquita até que se se torne outro, como a gente se torna outro ainda escutando um concerto de órgãonuma igreja barroca. O jogo da alteridade ficasem dúvida facilitado, nesses últimos casos, pela

distância que separa a cultura de origem e a cultura de empréstimo, pelo amplo espaço que aqui

I

1I1,

se abre ao imaginário. Entretanto, a cisão subjetiva é praticável até mais perto de si: na vidaprofissional, como Sartre demonstrou com suacélebre descrição do garçom de café que represen

ta ser garçom de cafPo; também na vida sentimental, em que as condutas de sedução consistem em se atribuir, com toda a gama das conivências e dos papéis codificados, o amor que ainda não se experimenta; na própria vida amorosae no erotismo, que inventam, como jogos, mitologias secretas ou figuras intercambiáveis.

Se fosse mais correntemente aceito que nossosgestos não se destinam diretamente a exprimirnossas convicções íntimas, nossas intenções profundas, nossos pontos de vista pessoais, admitindo-se que com eles jogamos como se fossem umalinguagem e que eles devem servir para citar asatitudes que queremos ressaltadas, ser-nos-iadado por acréscimo poder relacioná-Ios também,de vez em quando, de maneira inesperada e bela,a nós mesmos, ao sabor de uma coincidência queé preciso prontamente captar.

O escultor Manolo entra, num sábado à noite,

na igreja da Rue des Abbesses e, pegando umaesmoleira colocada diante do altar da Virgem, começa a fazer a coleta murmurando com uma vozfinória: "Para os pobres, por favor". Os fiéis dãocada um seus dois tostões. Manolo, depois de seajoelhar e se persignar, vai-se embora com a coletall. Ora, de fato, ele era paupérrimo.

10. Jean-Paul Sartre, VÊtre et le néant, Paris, Gallirnard, 1943, pp. 98-99.11. Pierre Labracherie, La Vie quotidienne de ia boheme l it té ra ire au XIX'

siécle, Paris, Haehette, 1967,p. 230.

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Num concurso do conservatório, uma atriz sem

futuro, entrando em cena para representar a som

bria Eriphile de Racine, pronuncia o início de sua

tirada olhando para ojúri: "Não os constranjamos,

Doris, retiremo-nos". Tinham-lhe repetido que ela

era ruim, que não tinha voz, traquejo, tempera

mento. Ela diz o texto de Racine, o texto trágico,a grande tirada tão bem adaptada a sua ínfima

situação: "Não os constranjamos, Doris, retiremo

nos", deixando o teatro para sempre12•

A relação ambígua que um autor mantém com

sua obra, a distância mais ou menos marcada que

ele opõe, não só a suas personagens, mas igualmen

te ao sujeito virtual encarregado da função de

narrador - como ao sujeito latente que o tom, o

gênero, o registro empregados implicam e até ao

tema que deve assumir o sentido global da obra _,

todo esse jogo das distinções reivindicadas, denegadas, reafirmadas constitui o espaço próprio da lite

ratura e, por extensão, da invenção artística. A pre

sunção de "insinceridade" seria, portanto, aqui vã.

Mas, na medida em que nenhuma adesão é a priori

requerida entre a pessoa do autor e os pontos de

vista que ele encena, torna-se lícito, para ele, oportunamente, apropriar-se intimamente deles.

Face aos protestos habituais de sinceridade,

que nos deixam indiferentes, tão tristemente pre

visível é a vida interior de nossos semelhantes,quem nos dera encontrar amiúde verdadeiros ar

tistas da conduta, mais preocupados em nos dar

um prazer teatral do que em exigir nossa intimi-

12. Suzanne Bernard, Le Temps des cigales , Paris, J. J. Pauvert, 1975, pp.37-38.

dade como contrapartida de sua interioridade ba

nal: criadores de gestos, levando a discrição pes

soal a ponto de fazer de seus afetos e convicções

próprias o jogo secreto de sua fidelidade. Quandose retiram, o gesto inteiro de sua vida tem a den

sidade de uma obra. O enigma é completo. Tudo é

possível. Nem mesmo se exclui que tenham sido"sinceros".

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ESTÉTICAS

"É o gesto que conta": fórmula benévola pelaqual se desculpa a modicidade de um dom, a mediocridade de um serviço prestado. Aprecia-se aqualidade do gesto, na falta de seus efeitos. Justificação ambígua, que lembra e ao mesmo temponega que se esperava um resultado mais substancial. Agir pela beleza do gesto, tal é o recurso que

se oferece aos militantes das causas perdidas.Quando o fracasso é certo, resta aomenos o estilo.A falência é inevitável, mas não lhe faltará distinção. Sucumbamos com topete. Se a morte é nossodestino, toda conduta não é mais que um gesto:apliquemos aí as formas e concluamos na beleza.

A idéia do gesto, quando é compreendida nosentido do espetacular, do intransitivo e do simbólico, induz tal estética do brilho e reatualiza aideologia romântica que a subtende. Apesar de a

assimilação da beleza e da inutilidade declaradater caído em desuso nas artes refletidas, quando se

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trata da conduta da vida, a estética espontânea

que a rege faz ressurgir essa referência longínqua.

Pode-se, entretanto, conservar a idéia de ges

to, entendê-Ia de uma maneira totalmente diver

sa - como a possibilidade de introduzir a alteridade em si - e conceber um comportamento que

seria doravante capaz de engendrar um sujeito

plural em vez de exprimir uma pessoa constituída.

Segundo Philippe Audoin, o surrealismo, que é

"dotado de violência, é igualmente algo livre; uma

postura, um gesto rápido, preciso. As justificativas

ideológicas existem, podem formular-se, mas o que

conta ao final, enfim, é a atitude, é o gesto"l. Uma

vez mais, como na estética do simbólico, "é o ges

to que conta". Mas a fórmula mudou de sentido.

Enquanto o despeito se encontrava há pouco com

pensado pelo brilho do gesto, agora, a intensidade,

a convicção, a própria violência, coexistem com o

que o gesto pode ter de livre. A paixão é compatí

vel com a distância interior, a emotividade e a ten

são com a liberdade, o sentimento do trágico da

existência com o jogo soberano. É possível ser sério sem se levar a sério, conter uma resolução ina

balável sem ser tomado por ela. Ser outro em si

mesmo resume-se nisto: não ser desertado, nem

possuído, mas exatamente o que se chama ser "habitado".

O gesto rápido e preciso se destaca de seu au

tor, desata-se do sujeito, como se usasse aspas,

como se estivesse enunciado com essa elocução ní

tida, bem articulada, que têm os atores. No desa

jeitamento e no balbucio, os gestos que se tentam

1. Philippe Audoin, "Le 8urréalisme et lejeu", Entretiens SUl' le surréalisme,

Paris , Mouton, 1968, p . 456.

e os propósitos que se extirpam continuam a adenr a sI.

Segundo a estética derivada do romantismo, o

campo aberto ao gesto se estende até dois extre

mos aparentemente opo.stos: a forma global deuma vida (o grande gesto que constitui um desti

no individual) e o instante privilegiado (o breve

momento em que o gesto, auto-suficiente, acede a

um estatuto mítico). Esses pseudocontrários têm

em comum definir-se pela intransitividade: em

ambos os casos, o gesto é uma totalidade fechada,

sem finalidade externa, e por isso mesmo, simbó

lica. A insatisfação estética torna-se então alta

mente provável. O destino não tem o rigor que se

esperava, sua linha não é tão nítida quanto se de

sejava, contingências demais confundem-lhe o tra

çado. Quanto ao instante, ele só está inteiro no so

nho. O momento vivido é transitivo, captado de an

temão pelo futuro próximo, já empenhado no tra

balho em curso ou na tarefa vindoura. Supondo-se

que se possa extrair do fluxo costumeiro alguminstante verdadeiro, a continuidade comum da

existência, ao contrário, parecerá ainda mais ba

nal e mais morna. Assim, para Mallarmé, que levava sua atividade de poeta até a mais pura inu

tilidade e que devia circunscrever a profissão que

o fazia viver, nas palavras de Valéry, "em não sei

qual reserva e em qual região miserável e servil de

si mesmo"2.A menos, evidentemente, que o instan

te radical seja o do último gesto (comono caso da-

2. Paul Valéry, "Sorte de préface", Variété, Paris, Gall imard, 1957, cal .

Pléiacie, tomo l, pp. 682-683. "Mas esse admirabilíssimo doutor em letras

sublimes que dispensava à sua volta lições de pureza espiritual, que nos

oferecia a meia voz uma dout rina de forma de liciosa que inspirava uma

espécie de mitologia generalizada, sofria cada vez menos silenciosamen-

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quele doente a quem é vetado o uso do álcool e quemajestosamente se mata num jantar regado achampanha; como também Dom Juan, em outrobanquete). O gesto intransitivo, quer seja conquistado contra o prosaísmo que o limita quer sobrevenha como um último desafio, espalha ao seu redor o definhamento e só se realiza plenamente namorte.

Em contrapartida, se o gesto é compreendidocomo a possibilidade de introduzir um afastamento de si em relação a si, não há atividades ou momentos privilegiados. Toda ocasião se presta a essadefasagem íntima. Desvio francamente aberto às

vezes (na paródia, na ironia, no jogo), às vezesimperceptível (quando se exerce uma profissãocom escrúpulo e desprendimento; sem amarguranem indolência, ainda que sem zelo; interessandose por ela, mas recusando-se a investir nela a totalidade de si mesmo).

Assim se extingue a espera ansiosa dos momentos de exceção. Mas não resulta disso quequalquer situação seja tolerável. À vontade de distanciamento subjetivo se opõem os sistemas polí

ticos, religiosos, familiares que, não contentes comregrar a literalidade da conduta, pretendem regero estado de espírito com o qual se observam suasinjunções (como essas empresas que utilizam emproveito próprio a mística do dinamismo, que nãose limitam a distribuir as tarefas, mas exigem queelas sejam cumpridas com convicção, com entu-

t e a c or vé ia d e p rofe ss ar out ra c oisa e a d ilap id aç ão d as h or as p re cios as

que devia sacrificar ao seu dever i nferior" [. .. ] I'Todos os anos, a aproxima-

ç ão d of im d as f ér ias e nven en ava n ele a e moção d om ome nt o s up re mo d osfunerais do verão."

siasmo OU frenesi). Então, o ato e a intenção prescrita fazem um só corpo. Anula-se a liberdadeinterior, teria dito outrora a moral. Nenhum espaço disponível - deveria dizer a estética -, nenhum

intervalo, nenhum jogo por meio do qual a exterioridade e a alteridade do gesto se possam mostrar.

Essas duas concepções não esgotam certamente as possibilidades abertas à estética das condutas. Não está excluído que se possa orientá-Ia numaoutra direção, reservando à noção de gesto umpapel muito menos favorável. É possível, além disso, que o próprio gesto seja suscetível ainda de alguma outra compreensão. O que é exemplificadopelo teatro não é ap"enas o simbolismo dos atosarrancados aos encadeamentos pragmáticos, nemo franqueamento dos gestos desatados do sujeito,é também o desenvolvimento de movimentos quevão até o fim de si mesmos. Comparados aos doscomediantes, nossos gestos - no sentido físico dotermo - parecem comfreqüência hesitantes, quase sempre contraídos; eles são muito curtos; emitem involuntariamente sinais contraditórios. Os deum ator são mais amplos, mais resolutos. Da mes

ma forma, uma ação teatral geralmente agita umanecessidade que se desenrola até as suas realizações extremas, enquanto nossos atos se esgarçamno inacabado. Por conseguinte, tomado no sentidofigurado, o gesto, instruído pela experiência teatral, poderia se definir assim: uma conduta dirigida por uma determinação irreversível, que prossegue até seu termo; o contrário das veleidades, dasmeias-medidas. Essa definição, com toda certeza,difere amplamente daquela que acaba de ser desen

volvida: o afastamento de si mesmo, a distânciasubjetiva contrariam o grande movimento no qual

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se entra de cabeça (nem por isso, porém, são con

trários exatos; algum recuo em relação a si mesmo

é compatível com o fascínio dos limites). Ela se

distingue igualmente da definição que foi anterior

mente considerada: a atração pelo espetacular epelo simbólico é estranha à paixão que se lança até

seu fim, preocupada demais com aquilo que ela

quer para se preocupar com o que se parece.

O objetivo desta reflexão não consistia em lan

çar os fundamentos da estética das condutas: não

se acreditou que devesse haver, nesse domínio

como tampo'Uco em outro qualquer, uma estética

única. O propósito não era sequer examinar exaus

tivamente os diversos sentidos que o gesto pode as

sumir: retiveram-se dois deles, que não são os úni

cos possíveis, como acabamos de ver rapidamente.

Tratava-se, antes, de testar um dispositivo analógi

co,de apreciar-lhe a fecundidade, na esperança de

que ele prometa prolongamentos indefinidos. Pres

supôs-se que as artes instituídas podem fornecer o

exemplo de certos esquemas ou modelos3 que são

transponíveis até para a conduta geral da vida.

A arte atual pede uma redefinição de sua fun

ção: se a questão for julgada segundo a abundân

cia das obras deliberadamente agressivas, o sim

ples deleite deixou de representar uma justificati

va suficiente. Todavia, designar-lhe um fim com

pletamente exterior, colocando-a, por exemplo, a

serviço de causas consideradas prioritárias, não

3. A hipótese de uma l'art ialização" da experiência, de um esquematismo

sociotranscendental vindo da arte, const itui objeto de um estudo muito

erudito e muito mais amplo que o presente ensai o por parte de Alain

Roger, Nus e tpaysages. Es sa i sur Iafonct ion de l 'art , Paris, Aubier, 1978.

A t ese de Ala in Roger é discutida em Jean Galard, "Reperes pour l'élar-

gissement de l'expérience esthétique", Diogene, (119), 1982.

seria apenas contrário à convicção da maioria dos

artistas, mas resultaria sobretudo emjulgar equivocadamente sua influência real em domínios onde

ela é perfeitamente dispensável. Para levar em

conta o caráter experimental e exploratório que elaespontaneamente se atribui, e para não desconhe

cer, ao mesmo tempo, o que pode haver de especí

ficona atividade estética, poder-se-ia imaginar que

a arte é o lugar privilegiado de uma pesquisa que

visa a prover a conduta cotidiana (tanto quanto

aquela que não é de modo algum cotidiana) com

meios ou conceitos nos quilis ela precisa muito se

inspirar para se tornar menos insípida, pobre efeia.

Terá essa operação analógica, essa transposição do ato artístico para o comportamento geral

encontrado aqui uma aplicação probatória? O au

tor deste exercício não faz questão de defender sua

hipótese, nem de se retratar. Um gesto pedia que

fosse tentado. Mais do que um autor, era-lhe ne

cessário um ator. Uma breve peça em dois quadros

devia ser encenada. O gesto foi cumprido. Que o

entendam como quiserem.