a origem do cristianismo - jacó abramovitch lentsman

351
Atenção! Como esta obra foi escaneada e dizitalizada e o programa utilizado que a transformou em texto não tem 100% de precisão e não foi feita uma correção completa após a digitalização, alguns erros gráficos podem ser percebidos. Não são erros do livro e sim do programa que fez a digitalização. SE UM DIA FOR REEDITADA , NÃO SE ESQUEÇA DE ADQUIRIR A VERSÃO IMPRESSA ORIGINAL, CASO CONTRÁRIO ESTARÁ FAZENDO PIRATARIA. PIRATARIA É CRIME

Upload: carla-oliveira

Post on 25-Jul-2015

364 views

Category:

Documents


29 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

Atenção!

Como esta obra foi escaneada e dizitalizada e o programa utilizado que a transformou em texto não tem 100% de precisão e não foi feita uma correção completa após a digitalização, alguns erros gráficos podem ser percebidos. Não são erros do livro e sim do programa que fez a digitalização.

SE UM DIA FOR REEDITADA , NÃO SE ESQUEÇA DE ADQUIRIR A VERSÃO IMPRESSA ORIGINAL, CASO CONTRÁRIO ESTARÁ FAZENDO PIRATARIA. PIRATARIA É CRIME

Page 2: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

A ORIGEM J.LENTSMAN

DO CRISTIANISMO

Page 3: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O livro A Origem do Cristianismo, escrito por um renomado historiador soviético — Jacó Lentsman — foi publicado pela primeira vez na U.R.S.S., em 1958, sob os auspícios da Academia de Ciência. Conheceu, em seguida, uma tradução francesa e outra espanhola, e está sendo publicada agora, pela primeira vez, em português, pela Editôra Fulgor, na sua Coleção de Estudos Sociais e Filosóficos. Encarregou-se da sua tradução o ProL Cunha Andrade, Assistente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da U.S.P., um especialista em História da Filosofia, e uru apaixonado estudioso dos problemas sociais e religiosos.Corno o seu nome indica, o presente trabalho é consa4 grado ao estúdo dos principais problemas das origens e das raízes ideológicas da religião cristã e da edificação da Igreja Cristã. Durante muitos séculàs aceitou-se pràticarnente sem discussão o caráter divino do Cristo, a sua qualidade de filho de Deus, a sua existência histórica, e, portanto, o caráter sobrenatural e divino da Igreja Cristã, fundada por inspiração direta do Cristo. E certo que desde os primeiros tempos existiram doutrinas heréticas dentro do seio do cristianismo, mas essas divergências não se referiam às questões básicas do caráter divino da própria igreja, e do seu fundador mítico. As grandes dúvidas, . a crítica fundamentada, que veio abalar os alicerces do edifício construído durante os milénios de fé cega e irracional, só surgiram mesmo no século XVIII, especialmente devido aos trabalhos dos enciclopedistas. De lá, para cá, como resultado da ação de sociólogos, historiadores e psicólogos surgiu na França, na Alemanha, na Inglaterra e na U.R.S.S., principalmente, uma verdadeiia escola —- ou escolas, seria melhor dizer — de crítica racionalista, que encara as manifestações religiosas como fenômenos de ordem psicológica e social tão naturais quanto quaisquer outros, e, como tal, passíveis de estudos científicos. Os textos religiosos, sejam êles a Bíblia, ou o Alcorão, o Talrnud, ou os Vedas, são documentos escritos, de caráter histórico, sem qualquer coisa de sagrado ou de revelado, que devem ser estudados à luz da crítica racionalista. E é isso que Jacó Lentsman faz neste livro. Estuda à luz da razão e das conquistas das diversas ciências as fontes pagãs e cristãs, os autores dos primeiros séculos do cristianismo, os monumentos que chegaram até nós etc., elucidando, dessa forma, de modo brilhante, as fases iniciais do complexo processo histórico e social que fz surgir o cristianismo, e que O transformou lentamente na religião oficial do Império Romano.

Page 4: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

TRADUZIDO DO ORIGINAL EM FRANCÊS L’ORIGINE DU CHRISTIANISMEPUBLICADO POR EDIÇÕES EM LINGUAS ESTRANGEIRAS, MOSCOU - 1961COLEÇÃO DE ESTUDOS SOCIAIS E FILOSÓFICOS DIREÇÃO DEJOSÉ SEVERO DE CAMARGO PEREIRA ( U. S. P)

CAPA DE DOMINGOS LOGULLO

RESERVADOS TODOS OS DIREITOS DEREPRODUÇÃO. DE ADAPTAÇÃO E DE TRADUÇÃO PARA A LÍNGUA PORTUGUÊSA.COPYRIGHT — EDITÔRA FULGOR LIMITADA RUA ANHANGUERA. 66 - TELEFONE 51-3095 CAIXA POSTAL 1 821 - SÃO PAULO – 1963

JACÓ ABRAMOVITCH LENTSMANA ORIGEM DO CRISTIANISMOTRADUÇÃO DE JOÃO CUNHA ANDRADEASSISTENTE DE HISTÓRIA DA FILOSOFIADA FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DA U.S.P.

EDITORA FULGOR

Page 5: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INDICEPREFÁCIO À TRADUÇÃO FRANCESA 9INTRODUÇÃO 111 AS FONTES DO CRISTIANISMO 331 Fontes cristãs 342 Fontes não cristãs 55II O IMPËRJO ROMANO NO SËCULO 1.PREMISSAS ECONÔMICAS E SOCIAIS DO CRISTIANISMO 67III AS RAIZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO 771 Religiões e Cultos do Império Romano 772 O Cristianismo e o Judaísmo 91IV O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 105V AS COMUNIDADES CRISTÃS DURANTEA PRIMEIRA METADE DO SËCULO II 1231 A Separação do Judaísmo 1262 Formação da Ideologia Cristã 1353 O Papel do Clero Segundo as Epístolas Pastorais 1404 A Tendência Judaico-Cristã nas Epístolas do Nôvo-Testamento 1435 A Doutrina dos Doze Apóstolos 1476 As Primeiras Heresias 1517 Os Escritos do Apologista Justino 154VI O CRISTIANISMO DURANTEA SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 1651 O Império Romano sob Marco Aurélio e Cômodo 1652 O Jesus Evangélico 1683 O Problema Social dos Evangelhos 1834 A Igreja Episcopal 1935 Os Críticos Antigos do Cristianismo 2046 As Heresias do Século IICONCLUSÃO 225

A presente obra é consagrada aos principais problemas concernentes às origens e às raízes da religião cristã, e à constituição da Igreja. Ela apresenta um sumário da literatura cristã dos primeiros séculos, descreve as fases iniciais do processo histórico que determinou a transformação do cristianismo em religião oficial do Império Romano,

Page 6: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O leitor nela encontrará, por outro lado, uma exposição da crítica do cristianismo pelos pensadores da Antigüidade, e um relato das razões do aparecimento de doutrinas heréticas no século II.

PREFÁCIO À TRADUÇÃO FRANCESAA obra cuja tradução é proposta aos leitores foi publicada em 1958, sob os auspícios da Academia de Ciências da U.R.S.S. O autor propôs-se o objetivo de nela expor, de maneira acessível a todos, os resultados das pesquisas efetuadas pelos historiadores soviéticos a respeito das origens do cristianismo. Em vista das divergências essenciais entre dois historiadores de primeiro plano, A. Ranovitch e R. Viper, no que concerne à natureza social do cristianismo primitivo e ao momento de sua aparição, reservamos grande espaço para a análise de suas opiniões.Destinado primeiramente aos leitores soviéticos, menos habituados aos textos bíblicos do que os leitores franceses, em conseqüência da absoluta laicidade do ensino e da estrita separação entre a Igreja e o Estado em nosso país, êste livro expõe, talvez muito mais detalhadamente do que seria necessário, o conteúdo do Nôvo Testamento; porém, se se suprimissem essas passagens na presente tradução, prejudicar-se-ia a unidade da obra. Ao reexaminar o texto, tendo em vista a sua tradução, o autor achou-se no dever de levar em maior conta as opiniões dos escritores franceses sôbre a matéria (Alfred Loisy e outros), e, também, a concepção católica das origens cristãs.Os textos bíblicos são citados segundo a tradução de Louis Second, Paris, 1952.

9

Page 7: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INTRODUÇÃOO problema das origens do cristianismo, das fases da sua evolução até o momento em que se torna a religião dominante do Império Romano em decadência, das razões da sua vitória sôbre as outras religiões que pretendiam o mesmo papel, não apresenta apenas um interêsse teórico. Sua solução é também muito importante para se esclarecer o caráter da ideologia e das opiniões vigentes durante o período de decomposição do sistema escravagista, mas ela deve seu principal alcance e sua atualidade política ao fato de, por meio dela, ser possível dissipar-se, à luz da ciência, o mito da origem divina do cristianismo, e revelar-se as causas materiais do nascimento e do triunfo da religião cristã, a mais influente das três religiões mundiais.A análise científica do problema das origens do cristianismomostra que esta religião, como tôdas as outras, apareceu em conseqüência de certas condições econômicas e sociais. Rigorosamente aplicada, ela põe em evidência, por outro lado, que a vitória do cristianismo resulta, não da qualidade da moral de que seria o portador, mas de uma série de circunstâncias de natureza bem diferente, entre as quais convém citar, particularmente, a renúncia da Igreja ao espírito revolucionário das primeiras comunidades cristãs e a acomodação do alto clero com os meios governamentais da antiga Roma.Sendo a análise científica fatal aos dogmas ortodoxos, as pesquisas consagradas aos começos do cristianismo sempre se desenrolaram num clima de áspera luta política. As tentativas de encarar os documentos dos primeiros tempos da era cristã, na medida em que são fontes históricas, aplicando ao seu estudo os métodos científicos em uso, sempre se defrontaram com a oposição formal da Igreja. Ela prefere, evidentemente, apresentar as sagradas escrituras como um artigo de fé à margem de qualquer pesquisa, como um texto sagrado, em que cada palavra se deve à «revelação». O Papa Pio XII, dirigindo a palavra a um congresso internacional de historiadores que se reuniram em Roma em 1955, repetiu de nôvo que, para os católicos, o problema da existência de Jesus concerne à fé, não à ciência.Apesar da profusão de trabalhos consagrados aos diversos aspectos da historiografia do cristianismo primitivo, espera-se sempre um estudo de conjunto e leigo, sôbre êste problema.11

Page 8: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

12A ORIGEM DO CRISTIANISMOA semelhança de muitos outros escritores, Albert Schweitzer em sua Geschichte der Leben-Jesu-Forschung, uma das obras mais sérias neste plano, reduz tudo, como seu título o indica, ünicamente à questão da existência histórica de Cristo, questão importante certamente, mas parcial. F. Engeis, por exemplo, nem sequer a abordou, apesar de ter consagrado três trabalhos bastante importantes ao cristianismo primitivo. É preciso dizer, contudo, que os pesquisadores que se dedicaram à lenda de Jesus Cristo, tal como o Nôvo Testamento a expõe, foram obrigados a exprímir sua opinião sôbre a autenticidade da tradição evangélica, donde a atualidade de seus escritos para o historiador não religioso do cristianismo.Até aos começos do século XVII, esta questão nunca tinha sido estudada de um ponto de vista científico, por causa do império sem limites da ideologia religiosa. Os escritores católicos, assim como os seus adversários, nunca tinham pôsto em dúvida as afirmações das santas escrituras. Até mesmo os teólogos luteranos, como Osiander (século XVI), chegavam a declarar que, se os evangelhos expunham certos acontecimentos várias vêzes e com detalhes muitas vêzes contraditórios — a ressurreição da filha de Jairo, por exemplo — isso apenas significava que a coisa tinha acontecido mais de uma vez. Até mesmo os movimentos revolucionários das massas contra o poder da Igreja Católica se desenrolaram habitualmente sob a palavra de ordem de retôrno aos costumes evangélicos. Foi o que aconteceu, particularmente, por ocasião das revoltas camponesas na Inglaterra (a insurreição dirigida por Wat Tyler em 1381), das sublevações dos taborítas tchecos (1419-1434), da Grande Guerra Camponesa na Alemanha (1524-1525), da revolução inglêsa do século XVII.O exame crítico dos primeiros escritos cristãos, em geral, e dos evangelhos, em particular, não começou senão a partir dos fins do século XVII, mas desenvolve-se muito durante o século XVIII, o «século das luzes». Hermann-Samuel Reimarus, filósofo alemão, um dos promotores da corrente racionalista que negava os milagres, sustentava que Jesus nada tinha de divino, que êle fôra apenas um dos profetas hebreus. No que diz respeito à ressurreição, Reimarus afirmava que os discípulos de Jesus tii ham inventado essa fábula depois de terem roubado seu cadáver. Temendo as perseguições da Igreja, o pensador se absteve de publicar sua obra, que só foi publicada (em parte) depois de sua morte, sob os cuidados de Lessing. Os dogmas da Igreja também foram criticados pelos materialistas e pelos deístas inglêses do século XVII e do comêço do século seguinte.Na França, grande número de ideólogos da burguesia, em luta, por essa época, contra o feudalismo, particularmente Voltaire,

Page 9: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INTRODUÇÃO 13os enciclopedistas do círculo de Diderot e D’Holbach, mantiveram, ao mesmo tempo, um violento combate contra a Igreja Católica, poderoso pilar da ordem feudal. Os grandes filósofos franceses denunciavam implacàvelmente o obscurantismo dessa Igreja, conclamavam o povo a «esmagar a infame». Assinalaram grande número de contradições nos evangelhos. Voltaire, em particular, procurou mostrar as coincidências que existem até no uso dos têrinos entre o Evangelho de João, e os escritos de Filon de Alexandria, filósofo grego de origem udaica no .comêço do século 1.No princípio do século XIX, o progresso geral dos métodos de estudo dos documentos históricos não deixou de influir nas pesquisas relativas às origens do cristianismo. A análise Crítica dos monumentos mais antigos da literatura grega, tais como os poemas de Homero, revelou contradições devidas à superposição de textos compostos em épocas diferentes e assaz distanciadas uma da outra. O estudo dos documentos concerflentes à história romana dos tempos mais recuados deu resulfados análogos.A aplicação dos novos métodos de investigação histórica ao estudo dos evangelhos não tardou a evidenciar a inconsistência completa dos dogmas tradicionais da Igreja. No decorrer dos primeiros decênios do século passado, deram-se os primeiros passos nesse ‘sentido por iniciativa de Ferdinand-Christian Baur, Professor de Teologia da Universidade de Tubingue, na Aleanha. Hegeliano convicto, tentou aplicar o método dialético hegeliano aos primeiros escritos cristãos. Baur e seus discípulos (Escola de Tubingue) descobriram duas tendências contrárias no Nôvo Testamento: a primeira, ligada a Pedro, apresenta os sinais das origens judaicas da religião cristã, e a segunda, ligada ao nome do apóstolo Paulo (paulinismo) opõe-se ao judaísmo. Segundo os escritores da escola de Tubingue, em conformidade com a concepção filosófica de Hegel, os evangelhos são a síntese aóssas duas tendências contrárias e devem, por essa razão, ser çs escritos menos antigos do Nôvo Testamento. Firmes nessa çonvicção, os adeptos de Baur desenvolveram uma frutuosa atividade para estabelecer a data da composição dos livros neotestamentários. A Escola de Tubingue submeteu êsses textos a uma análise sistemática e êsse foi, incontestàvelmente, um dos seus maiores méritos. Ela revelou diferenças essenciais ntre os evangelhos sinóticos e o Evangelho Segundo João, assim como grande número de contradições nos evangelhos, demonstrou que a maioria das epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo, tais como nós as conhecemos, não puderam ter vindo luz antes do século II. Os representantes da Escola de Tubingue enriqueceram assim muito a crítica científica dos pri-

Page 10: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

14A ORIGEM 00 CRISTIANISMOmeiros escritos cristãos. Porém, idealistas em filosofia, não souberam abordar o aspecto social do problema das origens do cristianismo.«A Escola de Tubingue, assinala F. Engeis, (.. . ) vai tão longe no exame crítico, quanto uma escola teológica poderiair. Ela admite que os quatro evangelhos não são (... ) senão arranjos ulteriores de escritos perdidos ( . . . ). Ela risca da narração histórica, como inadmissíveis, todos os milagres e tôdas as contradições; do que resta, procura «salvar tudo aquilo que pode ser salvo» ( ...). Em todo o caso, tudo aquild que a Escola de Tubingue rejeita do Nôvo Testamento como apócrifo, ou como não histórico, pode ser considerado como definitivamente rejeitado pela ciência.»1O passo seguinte no domínio da crítica científica dos evangelhos foi dado pelo teólogo David-Friedrich Strauss que estudou com a ajuda do método comparativo os dados do Nóvo Testamento a respeito do Cristo. Nos dois tornos de sua Vida de Jesus, demonstrou irrefutàvelmente que quase tudo aquilo que os apóstolos dizem sôbre o Cristo foi emprestado de religiões anteriores ao cristianismo, que a fé na divindade de jesus tinha sido inspirada pela espera, entre os hebreus, da aparição de um redentor, do Messias (oint, em hebraico). Convém, contudo, lembrar que, na terceira edição do seu livro, Strauss atribuiu caráter histórico a certo número de lendas ligadas à vida de Jesus, visivelmente na esperança dë ser nomead para a cadeira de teologia da Universidade de Zurich. ao tendo conseguido tal nomeação, êle mesmo anulou, posteriormente, aquela concessão ao dogma da Igreja. . . Nos Diálogos de Ulrich de Hutten, confessou, um quarto de século mais tarde: «Meu livro fechou-me o acesso ao professorado, que era minha aspiração e para o qual tinha aptidões, parece-me. Arrancou-me ao ambiente normal, lançou-me num meio estranho, condenou-me à solidão. Bendigo, contudo, êsse livro que, apesar de me ter causado um grande prejuízo, assegurou a serenidade de minha alma e do meu coração.» Caracterizando num estilo colorido a importância da vida de Jesus de Strauss, A. Schweitzer diz: «Strauss passou um atestado de óbito a tôda uma série de interpretações racionalistas das lendas evangélicas. E se estas últimas ainda figuram na teologia contemporânea, não é senão na qualidade de fantasmas.»2A obra de David Strauss defrontou-se com uma crítica brutal, muitas vêzes difamatória, da parte dos teólogos católicos

1 Karl MARX e F. ENGELS: Sur la Religion, Ëditions Sociales, Paris, 1960, pág. 317.2 A. SCHwErrzzR: The Quest oj the Histoical Jesus, Londres,1954, pá. 84.

Page 11: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INTRODUÇÃO15e, também, dos protestantes. Porém, pouco a pouco, suas ópiniões se impuseram, porque os elementos míticos que êle assinalou nos evangelhos são absolutamente evidentes. Isto levõu os tëólogos a buscar uma explicação para a presença de tais elementos no Nôvo Testamento e a estudar, por outro lado, o problema da interdependência dos evangelhos sinóticos. A. Weisse, contemporâneo e discípulo de Strauss, adiantou a hipótese de que o Evangelho Segundo Marcos era o mais antigo, e que a inclusão de elementos míticos no Nôvo Testamento se explicava pelas necessidades da luta contra o gnosticismo, que negava a natureza humana do Cristo.Bruno Bauer, Professor de Teologia na Universidade de Bonn, distinguiu-se também por sua análise dos primeiros escritos. De 1840 à 1842, editou a Crítica dos Fatos Contidos no Evangelho de S. João e a Crítica da História Evangélica dos Sinóticos, obras em que demonstrou que os evangelhos não são dignos de confiança enquanto fontes documentárias a respeito da vida de Jesus; que êles só são importantes na medida em que refletem o clima em que se desenrolam as atividades das comunidades cristãs primitivas, a situação daqueles tempos. Diferentemente de Strauss, Bruno Bauer sublinhou nos seus trabalhos posteriores (particularmente em O Cristo e os Césares) não as fontes judaicas, mas as grecoromanas do cristianismo. Segundo êle, a religião cristã era a síntese original do estoicismo, corrente filosófica greco-romana, com um judaísmo helenizado. Semelhante conclusão levou, làgicamente, Bauer à negação da realidade histórica de Jesus, o que provocou uma verdadeira batalha defensiva nos meios clericais. Teve de deixar o seu cargo de professor na universidade, seus escritos foram deliberadamente ignorados e êle sofreu durante muito tempo t6da espécie de perseguição.No artigo «Bruno Bauer e o Cristianismo Primitivo», F. Engeis apreciõu da seguinte maneira o alcance das pesquisas dêsse historiador da religião: «Os teólogos oficiais, Renan inclusive, o plagiavam e, por êsse motivo, eram unânimes em deixar seu nome no esquecimento. E, no entanto, êle valia mais do que êles, e fêz mais do que êles no domínio que tanto nos interessa; a nós socialistas: a questão da origem histórica do cristianismo.»3Depois da publicação dos trabalhos dos representantes da Escola de Tubingue, de David Strauss, de Bruno Bauer, até mesmo certos escritores católicos e ortodoxos compreenderam a impossibilidade de manter suas antigas posições. A evolução le Ernest Renan foi típica a êsse respeito. Apesar da sua formação católica, tentou, sob a influência das novas idéias,

3 Karl MARX e F. ENGELS, ob. cit., pág. 191.

Page 12: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

16 A ORIGEM DO CRISTIANISMOapresentar o Cristo como um ser humano em uma série de obras que fizeram sensação na época, entre as quais se destacam sua Vie de Jêsus e Les Apótres.A principal conclusão das obras críticas dos pesquisadores mencionados foi, portanto, enunciar que os quatro evangelhos do Nôvo Testamento não teriam podido vir a luz antes do II século, sendo assim quase os últimos, em data, dos escritos canônicos. O estabelecimento da data aproximada, e por vêzes exata, da composição das diferentes epístolas do Nôvo Testamento pôs em evidência que a maior parte delas são anteriores aos evangelhos. Ora, Jesus é descrito nos evangelhos comdetalhes pseudo-concretos, dos quais não se encontram qualquer vestígio nos escritos cristãos mais antigos. Esta circunstância levou inevitàvelmente o pesquisador imparcial a concluir que os evangelhos não são válidos como documentos a respeito da existência histórica de Jesus.Uma das lacunas mais graves dos representantes da Escola de Tubingue, assim como de seus adversários, reside na sua inaptidão para ver no cristianismo um fenômeno histórico determinado por dadas condições, a expressão ideológica das contradições que lavravam no seio da sociedade escravagista do Império Romano. Para êles, o cristianismo era portador de uma verdade absoluta. Nem sequer, procuraram indagar qual era a tese social do cristianismo primitivo, e qual era seu programa político...Friedrich Engels consagrou a maior atenção possível a essas questões que nunca deixaram de lhe interessar, e das quais tratou em trabalhos tais como Ludwig Feuerbach, AntiDühring, Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado etc. A herança literária de Engeis compõrta três trabalhos especialmente consagrados à história do cristianismo nos seus começos: Bruno Bauer e o Cristianismo Primitivo (1882),O Livro da Revelação (1883) e Contribuição à História do Cristianismo Primitivo (1894), trabalhos em que apresenta um apanhado dos •êxitos obtidos no terreno da crítica do. Nôvo Testamento, e em que desenvolve uma teoria nova a respeito das origens cristãs, do ponto de vista do materialismo científico.Engeis fixou sua atenção nas pesquisas relativas às raízes ideológicas e à natureza social do cristianismo original, caracterizado por êle como uma religião de escravos e de oprimidos. Êle frisou que, nos seus princípios, a cristandade englobava um número infinito de seitas que se degladiavam numa verdadeira straggle for li/e4, e cuja ideologia não passava de um amontoado de preconceitos e superstições. E que, se o cristianismo primitivo pôde, apesar de tudo, conquistar as massas

4 Luta pela vida. (Nota do Tradutor.)

Page 13: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INTRODUÇÃO 17e a elas se impor finalmente, foi porque êle indicava uma solução para as multidões oprimidas e prêsas de um desespêro e de uma miséria sem nome, solução ilusória, é certo, porquanto situava-a no outro mundo. Entre os fatôres que favoreceram a difusão do cristianismo na Antigüidade, Engeis indica a ausência do ritual entre seus primeiros adeptos, o que destruía as separações étnicas e sociais entre os homens, e proclamava a idéia de igualdade, se bem que num sentido puramente negativo, uma vez que se tratava da igualdade do pecado original e diante de Deus. Resumindo suas idéias sôbre o cristianismo primitivo, Engeis assinala seu espírito rebelde, a sêde sã de vingança dos primeiros cristãos contra a poder romano.O comêço do nosso século foi marcado por um nôvo passQ importante no domínio do estudo das raízes ideológicas do cristianismo. Um grupo de historiadores burgueses, crentes na sua maioria, e que é conhecido pelo nome de «Escola Mitológica)>, ultrapassou consideràvelmente os representantes da Escola de Tubingue no que concerne à crítica do Nôvo Testamento. Tais histriadores proclamaram que não se dispõe de qualquer prova cientificamente válida a respeito da existência histórica de Jesus. Tal idéia tinha sido enunciada primeiramente pelos pensadores franceses do século XVIII, mas foram, sobretudo, os trabalhos da Escola de Tubingue que contribuíram para o aparecimento da Escola mitológica, porque esta é, de fato, uma continuadora daquela. As dúvidas a respeito da realidade histórica do suposto fundador do cristianismo tornaram-se legítimas, com efeito, desde que se estabeleceu que os evangelhos datavam do século II. E tal realidade foi negada por J. Robertson, W. B. Smith, A. Niemojevsqui, A. Drews,P. Couchoud e muitos outros escritores.5Notemos que a maioria, senão a totalidade, dos representantes da Escola Mitológica, assim como os da Escola de Tubingue, seus predecessores, estavam longe do marxismo, mas também do ateísmo. Um grande número dêles buscava «purificar», «melhorar» o cristianismo, conservando-lhe a auréola da sua superioridade moral sôbre as outras religiões, trocavam. segundo a expressão de Lenine, «os velho preconceitos apodrecidos», por «preconceitos novos, ainda mais repugnantes e mais infames.»6 Unânimes no que concerne ao caráter mítico

5 Seus trabalhos principais: J. ROBERTSON: Os Mitos Esangélicos; A, NIEMOJEVSQUI A Filosofia da Vida de Jesus; A. DREws: O Mito de Jesus e o Gnosticismo, Fonte do Cristianismo; P. Couci-our: Le .Myst lre de Jésus et Le Crépusczle de Dieu; E. MOUTIER-ROUSSET: Le Cbrist -t-jl Existá?6 V. LENINE: “Du Rôle du Materialisme Militant”, (1922), is JC. Marx et sa Doctrine, Ëd. Sociales, Paris, 1953, pág. 88.

Page 14: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

A ORIGEM DO CRISTIANISMOde Cristo, professavam êsses historiadores opiniões por vêzes muito diferentes a respeito da origem dessa lenda e das fontes históricas dë que teria saído a imagem evangélica de Jesus. Tendo criticado de maneira aprofundada os textos do Nôvo Testamento, os representantes da corrente dita mitológica não souberam indicar suas fontes de modo suficientemente claro, e isso por diversas razões, entre as quais convém assinalar, em primeiro lugar, a pobreza da documentação de que dispunham.Uma das têntativas mais sérias para resolver o problema da origem do mito de Cristo, foi a do inglês John Robertson, no comêço do nosso século. Êle continuou as pesquisas do 5eu compatriota, o etnólogo J. Frazer, que numa obra conhecida, The Golden Bough, tentou demonstrar, valendo-se do método cõmparativo, a existência de um paralelismo nos usos e cos— lumes dos diversos povos, e de analogias em sua evolução espiritual. Segundo êste sábio, as raízes da religião devem ser buscadas nos ritos mágicos das tribos primitivas. Assinala que muitas dessas tribos professavam o culto do deus morto e ressuscitado e tinham, em particular, o hábito de matar seus chefes ou os filhos dêstes, acreditando assegurar por tal preço a fertilidade do solo. Aplicando esta idéia como fio condutor para o estudo do problema da origem da religião cristã, Robertson chegou à conclusão de que se assistia, aqui também, ao mesmo processo, devendo isto significar que o mito evangélico nasceu de representações religiosas precedentes. Descobriu certos traços de um culto de Jesus anterior ao cristianismà, e observou que várias passagens do Evangelho Segundo Marcos e de outros sinóticos limitam-se a expor cenas de um rito que tinha por tema «Paixões» pré-cristãs.A indicação de Robertson a respeito da necessidade de se estudarem as raízes pré-cristãs do culto de Jesus foi’ seguida por outros historiadores da Escola Mitológica, notadamente Thomas Whittaker e W. Smith. O primeiro achava que o culto evangélico de Jesus deriva diretamente do culto judaico pré monoteísta de Josué, que figura no Velho Testamento como continuador de Moisés, depois da sua morte, O episódio bíblico em que Josué, filho de Nun, manda o Sol parar prova satisfatàriamente seu papel divino desde o comêço. W. Smith, erudito americano, procurava demonstrar, por seu lado, que, muito antes do aparecimento do cristianismo, o nome de Jesus era apenas um epiteto aplicado ao deus hebreu Jeová, e que aquêles que veneravam Jeová-Jesus faziam-se chamar nazarenos. O mito de Jesus nos evangelhos é interpretado por W. Smith como uma pura alegoria.Arthur Drews é um dos mais conhecidos representantes da Escola Mitológica, mas o seu mérito principal foi ter pôsto ao18

Page 15: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INTRODUÇÃO 19alcance do leitor médio as idéias e os argumentos dos seus predecessores. Diferentemente de W. Smith, achava que o cristianismo proviera do gnosticismo.7Nos começos dêste século, A. Niemojevsqui, publicista polonês, partindo de analogias superficiais, tentou estabelecer um liame entre o mito evangélico do Cristo, e os temas astrológicos. Porém, foi P. Couchoud, amigo íntimo de Anatole Erance, que trouxe novas contribuições ao estudo das raízes históricas dêsse mito. Demonstrou de maneira convincente que a objeção mais séria contra a tese da existência real de Jesus provinha da representação dêste sob um aspecto divino nos mais antigos escritos cristãos: o Apocalípse de João, as Epístolas atribuidas ao apóstolo Paulo. Para os primeiros cristãos, Jesus não era um homem, mas um cordeiro imolado «desde a fundação do mundo». Segundo Couchoud, a biografia terrestre do Cristo só apareceu no século II, em seqüência ao crescimento do número de adeptos da nova religião, provenientes dos meios pagãos, e foi-se enriquecendo gradualmente com tôda espécie de detalhes. Segundo a opinião dêste autor, o primeiro evangelho foi composto por Márcio, herético dos meados do II século, filósofo gnóstico. Os evangelhos canônicos teriam sido elaborados apenas para se oporem ao evangelho marcionita.As idéias de Couchoud foram desenvolvidas nos trabalhos do seu compatriota, Edouard Dujardin, que, partindo de considerações gerais, assinala que, se a história ignorava casos de divinização de profetas, os casos de antropomorfização dos deuses eram, ao contrário, bastante freqüentes. A literatura cristã dos primeiros tempos apresentava Jesus não sob o aspeto de um homem, mas de uma divindade. Segundo Dujardin, o cristianismo teria aparecido com os seus traços específicos lá pelo ano 27 de nossa era, quando, depois da execução de um rito em que se representavam cenas que tinham por tema a morte e a ressurreição de Jesus, divindade pré-cristã, um grupo de crentes, aos quais se deu o nome de apóstolos, afirmaram que tinham visto com seus próprios olhos a ressurreição de Jesus Cristo, herói do drama sagrado. Dujardin considera que a lenda evangélica foi composta posteriormente à Guerra dos Judeus, que se desenrolou de 66 a 73, época em que o cristianismo já se considera o sucessor do judaísmo, que entrara em decadência.Tais eram, em poucas palavras, as idéias principais da Escola Mitológica no que concerne às fontes da lenda evan7 Doutrina mística sôbre a gnose, conhecimento da pretensa ‘essênda divina”, O gnosticismo difundiu-se nas regiões orientais do Império Romano durante os três primeiros séculos da nossa era.

Page 16: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

20A ORIGEM DO CRISTIANISMOgélica. Nem tôdas as suas conjecturas são aceitáveis, particularmente as de Niemojevisqui e as de Dujardin. A concepção do culto pré-cristão do Jesus-Deus, transformado no decorrer do II século em Jesus-homem, nos parece extremamente fecunda nos quadros dos nossos conhecimentos atuais, e vimos que muitos pesquisadores a confirmam. A principal aquisição da Escola Mitológica no seu conjunto consiste, portanto, no. seu exame crítico do mito evangélico de Jesus, Homem-Deus.Não menos significativa que o aparecimento de uma escola mitológica inteira é a evolução que as concepções da escola dita histórica, isto é, a que admite a existência terrestre de Jesus, conheceu depois de um século..0 exemplo seguinte mostra os progressos da crítica da lenda evangélica, mesmo nos meios católicos. Em fins do século X1X, os escritos de Ernesto Renan produziram uma enorme impressão sôbre os crentes; êle afirmava que o relato dos evanvelhos sinóticos sôbre Jesus era quase que inteiramente autêntido, mas apresentava o Cristo como uma criatura humana.Nos começos do nosso século, entre as obras postas no Índex, proibidas aos leitores católicos, figuravam as de Louis Duchesne e as de Alfred Loisy, grandes especialistas da história do cristianismo primitivo. O Abade A. Loisy, um dos fundadores do modernismo católico, foi excomungado em 1908 pela simples razão de ter querido estudar as fontes cristãs à luz da ciência, e isto apesar de sua fidelidade à Igreja.8 As conclusões a que chegou após a análise dessas fontes coincidem, em muitos pontos, com as conclusões dos representantes da Escola de Tubingue. Acha, igualmente, que os documentos chegados até nós nada contêm de probante sôbre a vida de jesus e, em geral, sôbre a ideologia das primeiras comunidades cristãs. A seus olhos, o relato evangélico justifica apenas a hipótese da existência de um protótipo longínquo do Cristo que teria servido de modêlo para a lenda conhecida.A. Loisy, a êste respeito, participava das opiniões dos teólogos liberais do seu tempo, mas, posteriormente, êle foi muito além, pondo em dúvida a autenticidade das Epístolas paulinianas. Segundo êle, essas Epístolas teriam sido largamente refundidas, em. várias ocasiões, no curso do século II, antes de serem incluídas no Nôvo Testamento, de sorte que apenas uma parte ínfima do seu texto remontaria à época em que o apóstolo Paulo teria vivido. Ao têrmo de suas longas pesquisas, Loisy desfechou um rude golpe na tradição ortodoxa, ao provar que os livros do Nôvo Testamento não fornecem

8 Ver F. HEILER: Der Vater des Katholischea Modernismes Aijie d Loisy (1857-1940),. Munique, 1947, pág. 72.

Page 17: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INTRODUÇÃO 21qualquer dado válido sôbre Jesus, salvo certas reminiscências relativas à sua personalidade e à sua morte.De que modo êste homem profundamente religioso, êste abade, chegou a um ponto de vista tão radicalmente contrário ao dogma da Igreja Católica e da Protestante? Jovem ainda, quando estudava no Instituto Católico de Paris, tinha notadô que os evangelhos sinóticos se contradizem, particularmente quando dão genealogias diferentes do Cristo. (Nos evangelhos, segundo Mateus, e segundo Lucas.) Os argumentos que seus professôres opunham à crítica racionalista dos evangelhos eram tão frágeis que êle mesmo se pôs a estudar essa crítia, movido pelo desejo sincero de defender mais eficazmente os dogmas do catolicismo. Em suas Memoires9, Alfred Loisy reproduz o texto da prece em que pedia ao Senhor vinte anos de saúde, paciência e amor ao trabalho para defender a Igreja contra seus inimigos no campo científico. Porém, êsses vinte anos de esforços o conduziram a um resultado absolutamente diferente.Padre, foi, em primeiro lugar, privado do direito de ensinar teologia, depois, seus livros foram postos no Índex, e êle mesmo viu-se excomungado, pois não quis retratar piblicamente suas obras, tal como o exigia o Vaticano. Por menos científico que seja, o exame das origens do cristianismo revela-se incompatível com a fé católica, mesmo para êste abade bem intencionado...Não se imagine, contudo, que é apenas o Vaticano que se opõe com tôdas as suas fôrças à análise científica das origens do cristianismo, particularmente a Pontifícia Comissão Bíblica, encarregada de sufocar a mínima veleidade de crítica racionalista às santas escrituras. Friedrich Heiler, biógrafo, muito cristão aliás, de Alfred Loisy, nota à página 225 da obra anteriormente citada: «. . . As pesquisas em nome da verdade chocam-se não apenas com a resistência da Igreja Romana, mas, também, com a de tôdas as outras comunidades cristãs, com raras exceções! Além da Cúria de Roma, as ortodoxias protestantes se encarniçaram contra muitos espíritos nobres e audazes.»Até mesmo um pastor protestante tal como Albert Schweitzer, . um dos mais eminentes pesquisadores contemporâneos no domínio da história do cristianismo primitivo, não pôde evitar as perseguições, ainda que sua vida possa servir de modêlo de virtudes cristãs.10 Filho de um pastor alsaciano, êle próprio Doutor ém Teologia, na idade de 30 anos tomou a decisão de deixar a Europa, onde tinha a existência garantida, para

9 Memoires, T. 1, pág. 103.10 W. AUGUSTNY: Alberi Schweitzer und De, Berlim, 1947.

Page 18: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

22 A ORIGEM DO CRISTIANISMOir ao Congo tratar dos negros doentes, na qualidade de médico. Semelhante manifestação de amor ao próximo deveria despertar a admiração de todos os cristãos sinceros. Porém, à semelhança de Loisy, Schweitzer tinha começado muito cedo a duvidar da autenticidade dos relatos evangélicos. . . Na obra a que nos referimos acima, êle se impôs o dever de proclamar que Jesus não era o Filho de Deus, nem mesmo o Messias, mas julgava-se apenas o enviado do Senhor na Terra. Segundo Schweitzer, Jesus permanece nos nossos dias «tão desconhecido e obscuro, como durante a Antigüidade.» (Op. cit., pág. 401.) Êle negava a maioria dos dogmas da teologia católica e mesmo os da liberal, e foi por isso que as autoridades de uma sociedade de missionários se opuseram longamente à sua partida para o Congo, mesmo na qualidade de simples médico; não lhe deram permissão para tanto, a não ser quando êle conseguiu os meios para construir, a sua própria custa, um hospital em Lambarené, e prometeu abster-se de divulgar suas opiniões na África.Segundo as opiniões de Loisy e as de Schweitzer, ambos teólogos, os evangelhos não podem servir de fonte ao historiador uma vez que êles não passam de um amontoado de mitos e. lendas superpostas em diversas épocas. Segundo Schweit. zer, os evangelhos descrevem apenas um ano da vida de Jesus Cristo, e segundo Loisy, menos ainda.Referindo-se aos historiadores contemporâneos do cristianismo primitivo, como A. Schweitzer, C. Guignebert e R. Bultmann 11, A. Robertson constata que, aos olhos dêles, a «única coisa que sobra entre os escombros da lenda desacreditada (de Jesus) é que o homem a respeito de cuja vida pouco ou simplesmente nada se sabe, o homem que segundo Schweitzer nunca declarou psblicamente ser o Messias, que, segundo Bultmann, não se julgava tal e, segundo Guignebert, talvez não se chamasse Jesus, a única coisa que resta, é que êste homem foi crucificado por Pilatos e tornou-se o herói de um romance teológico composto pelas gerações seguintes para servir a seus próprios interesses. »1 2

11 R. BULTMANN, um dos mais importantes teólogos liberais contemporâneos, fundador da corrente que se chama de desmitificação, assi nabo a presença nos evangelhos de numerosos mitos absolutamente contrários ao bom senso, tais como o da Imaculada Conceição, da ressurreição etc. Afirmou que, verificando, por aqui e por lá, vestígios da fé dos primeiros cristãos na Revelação, não a encontrava no Nôvo Tesamenio, e se recusou a crer na incarnação, milagre “ocorrido há 1950 anos.” K. JASPER5 e R. BULTMANN: Die Prage der Enmy.thologisierung, Munique, 1954, pág. 69.12 A. R0BERT50N: Jésas: Myth or History, Londres, 1946, pág. 39.

Page 19: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INTRODUÇÃO 23Vemos que os historiadores modernos do cristianismo primitivo se caracterizam por sua negação da pretensa veracidade dos detalhes contidos no mito evangélico de Jesus Cristo, mesmo quando acreditam que êle tenha existido. Os resultados obtidos no decorrer de um século pela crítica científica dos primeiros escritos cristãos colocaram certos adeptos da escola dita histórica na obrigação de aceitar do relato evangélico apenas a comunicação referente à existência de um profeta judeu crucificado por Pôncio Pilatos, e isto micamente como hipótese de trabalho. A seus olhos, Jesus já deixou de ser Homem-Deus dos evangelhos e até mesmo o Cristo isento dos atributos sobrenaturais proposto pelos representantes da Escola de Tubingue; êle não passa, na maioria das vêzes, de uma abstração que serve melhor do que as outras para explicar a gênese da doutrina cristã.A esta escola pertence o inglês Archibald Robertson, historiador progressista cuja obra a respeito das origens do cristianismo foi recentemente traduzida em russo, e que é preciso não confundir com John Robertson, um dos fundadores da Escola Mitológica. Interessado em esclarecer êste problema à luz do materialismo, êste historiador busca as raízes sociais e econômicas do cristianismo primitivo na conjunctura real na Palestina e no Império Romano em geral, no alvorecer de nossa era. Apesar de considerar que o cristianismo primitivo era a religião dos oprimidos e dos deserdados, êle permanece um partidário convencido da Escola Histórica,Notemos que os adeptos desta escola não são unânimes em admitir a existência de um protótipo de Jesus finicamente a titulo de hipótese que facilite a compreensão do aparecimento do conhecido mito. E preciso não esquecer que o problema das origens do cristianismo sempre ultrapassou, o quadro da ciência. As declarações a respeito da existência real de Cristo mistura-se quase sempre o desejo oculto de conciliar a ciência e , a religião, de adaptar esta àquela. Ajuntemos que nos países capitalistas êste problema é estudado quase que exclusivamente por teólogos, cujo bem-estar material depende do reconhecime to da autenticidade do relato evangélico. Se pensarmos nas palavras de Schweitzer — «O exame crítico da vida de Jesus é para os teólogos uma escola de honestidade» — é necessário constatar que poucos entre êles levam isso em conta. - Pode-se, com efeito, contar nos dedos os padres que, a exemplo de Bruno Bauer, Alfred Loisy, Albert Schweitzei, não hesitam em pôr em perigo seu confôrto material e sua posição social ao defender suas opiniões científicas. Habitualmente, é o contrário que se dá: vimos que David Strauss renunciou pro

Page 20: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

24A ORIGEM DO CRISTIANISMOvisàriamente às suas conclusões avançadas, na esperança de obter uma cátedra na universidade.A solução do problema relativo às fontes do mito evangélico de Jesus tornou-se ainda mais árduo pelo fato de a maioria dos documentos históricos que poderiam esclarecê-lo terem sido destruídos pela Igreja triunfante, enquanto que aquêles de que dispomos foram refundidos ou, simplesmente, falsificados. Ainda mesmo nos nossos dias, sua publicação é monopolizada nos países capitalistas pela casta dos teólogos. E necessário ter tudo isso em conta se quisermos ter uma idéia exata dos obstáculos com que se defronta todo pesquisador objetivo.O historiador das origens cristãs não pode deixar de valer-se dos trabalhos da Escola Mitológica e da Escola Histórica, assim como dos resultados de outras investigações sôbreo Nôvo Testamento. As conclusões dos representantes da Escola de Tubingue a respeito de os evangelhos canônicos terem sido compostos em data menos recuada do que aquela que se admitia, conclusões irrefutáveis do ponto de vista científico, obrigaram os teólogos das diversas Igrejas a tentarem lançar uma ponte para cobrir o espaço de um século entre a época em que, tradicionalmente, se situava a vida de Jesus (isto é, o primeiro têrço do século 1), e a época do aparecimento dos textos evangélicos I,no século II). No limiar do nosso século, várias teorias foram formuladas com o fim de salvar o prestígio dos evangelhos, esclarecendo a maneira pela qual êles teriam sido compostos. Dessas teorias, as principais são as seguintes: 1) a teoria da tradiçco (Traditionshypothese, segundo a terminologia alemã), segundo a qual os evangelistas compuseram seus evangelhos independentemente, utilizando-se apenas de tradição oral proveniente das primeiras comunidades cristãs; 2) a teoria das !ontes (Quellenhypothese), que afirma que todos os evangelistas dispuseram dos mesmos documentos e nêles se fundaram cada um a seu modo; finalmente, 3) a teoria da utilização (Benutzungshypothese), segundo a qual os evangelistas teriam composto os evangelhos conhecidos à base de outros, anteriormente. A discussão entre os representantes dessas correntes e suas subdivisões foi acompanhada da publicação de numerosas obras, sem que os teólogos tenham podido chegar a uma conclusão aceitável por todos. Mas, tal discussão teve pelo menos um aspecto positivo, a saber: fêz avançar de muito os estudos sôbre o problema dos evangelhos sinóticos. Estabeleceu-se, particularmente, que o mais antigo entre êles era o segundo e não o primeiro, como o supunha a Escola de Tubingue. A parte comum dos evangelhos segundo Mateus e segundo Lucas, que não figura no Evangelho Segundo

Page 21: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INTRODUÇÃO25Marcos, foi submetida a um exame detalhado, o que permitiu apreender melhor as tendências em que se haviam inspirado ao recolher e redigir os evangelhos canônicos. Outros êxitos parciais foram obtidos no que concerne à análise dos sinóticos, mas a «ponte» de que falamos acima não pôde ser lançada:as teorias sôbre tôdas as espéceis de proto-evangelhos e «fontes das fontes» permaneceram o que eram: hipóteses gratuitas. O fracasso dessas tentativas decorre do caráter irrealizável da tarefa que os teólogos se propunham buscando, em primeiro lugar, provas da existência histórica de Jesus, enquanto que as fontes de que dispomos mostram que a evolução se fêz no sentido contrário, isto é, do Jesus-Deus, ao Jesus-Homem dos evangelhos. Na multidão de obras consagradas ao estudo da literatura cristã primitiva, algumas há que contribuíram em larga medida para desenvolver nossos conhecimentos a respeito da história das origens do cristiánismo, apesar das concepções idealistas dos seus autores, particularmente os trabalhos especiais relativos a tal ou qual escrito cristão dos primeiros séculos, tal ou qual aspecto do problema que nos interessa, como o aparecimento das diferentes heresias, a constituição do episcopado, e assim por diante, além de tôdas as espécies de obras de referência e de concordância dos têrmos que figuram na Bíblia etc., que nenhum historiador soviético do cristianismo pode dispensar.Os livros aparecidos depois da guerra se revelam, contudo, em nítida regressão no domínio do estudo do cristianismo original. A literatura católica ortodoxa proclama com redo brada energia o caráter sagrado dos textos canônicos, tal como o faz H. Daniel-Rops em Je’sus eu sou Temps, Paris, 1946, obra em que êle admite todos os milagres descritos no Novo Testamento, a Imaculada Conceição inclusive, e consagra maisde 600 páginas do seu livro a expor o mito evangélico de acôrdo com a tradição da Igreja. Reconhecendo, em parte, os méritos do método histórico aplicado ao estudo dos Evangelhos, êste autor sente-se no dever de lembrar que a análise do Nôvo Testamento não deve ter senão um único fim: o de afastar as dúvidas a respeito da sua veracidade. Em lugar de buscar as raízes da ideologia cristã primitiva nas condições da vida material e espiritual da população mediterrânea na alvorada de nossa era, Daniel-Rops não se cansa de sublinhar o caráter «excepcional» do cristianismo. Revelação vinda do alto. Otom de sua polêmica com os teólogos liberais trai contudo o desejo de encontrar uma posição comum a fim de salvar a tradição ortodoxa em face da ofensiva da crítica radical. A mesma tendência se apresenta ainda mais claramente no livro do jesuíta J. Daniélou, Dialogues Avec les Marxistes, les

Page 22: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

26A ORIGEM DO CRISTIANISMOExistentialistes, les Protestants, les Juijs, l’Hindouisme, Paris, 1948. À página 55 dessa obra, o seu autor exclama com fingido espanto: «A quem se poderia fazer crer que a religião de S. Paulo é o reflexo das condições econômicas da civilização mediterrânea do século 1?» Afirmando que não se pode descobrir desacordos fundamentais entre católicos e protestantes quanto aos dogmas e ao resto, êle qualifica de escandaloso o cisma da Igreja, opinião compartilhada por alguns protestantes, entre o quais Ch. Westphal que, em carta endereçada a Daniélou, e que êste último cita em seu livro (págs. 129-139), proclama a necessidade de esquecer as divergências entre o catolicismo e o protestantismo, pois, acrescenta- êle, «talvez a existência mesma da Igreja, no século em que estamos, vai depender dessa conversão. Neste sentido também, o tempo urge.» Assim, vemos os cleiqcais de tôdas as côres pregarem a união em face do perigo que os ameaça. . . E isto, naturalmente, à base de uma ortodoxia vagamente renovada, depurada de - suas obscuridades mais flagrantes, mas sempre a mesma quanto ao fundo e ao preço do esquecimento das conclusões críticas da Escola Mitológica e também daquelas, muito menos radicais, da Escola de Tubingue. De fato, torna-se cada vez mais difícil descobrir qualquer diferença entre os teólogos - católicos, e os protestantes, uma vez que êstes últimos encaramos textos do Nôvo Testamento de um modo cada vez mais dogmático. É preciso acentuar que esta atitude de sua parte não decorre de um progresso da ciência histórica aplicada aos estudos dos evangelhos; ela apenas reflete a renúncia da ciência burguesa às tradições liberais do seu passado. Atualmente, a Escola Mitológica não tem continuadores no Ocidente, s-e bem que as conclusões críticas enunciadas por seus representantes nada tenham perdido do seu valor.Os escritos de P. Alfaricl3 constituem, a êsse respeito, a única exceção conhecida pelo autor destas linhas. Sua biografia lembra sob muitos aspectos a de Alfred Loisy, mas êle foi mais longe que êste último nas suas conclusões. Fêz seus estudos no Instituto Católico mas, ordenado padre, renunciou a êsse título em 1910, sob a influência da excomunhão de Loisy, cujas idéias êle admirava. Em 1932, foi por sua vez - excomungado, por ter defendído pi.’iblícamente as teses -da Escola Mitológica. Durante um quarto de século, P. Alfaric ensinou história da religião na Universidade de Estrasburgo. Em 1945, fundou o Círculo Ernest Renan, sociedade que se propôs o fim de estudar o cristianismo primitivo do ponto de vista leigo.

13 Ver P.- ALFARXC: A l’Éçole de la Raison. Eudes sar les O-eigines Chruíiernes, Paris, 1957.

Page 23: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INTRODUÇÃO27A partir dessa data, tem participado cada vez rnaís enèrgicamente da ação da União Racionalista dirigida por F. Joliot-Curíe.Como Alfred Loisy, Prosper Alfaric assinalou nas suas Memoires a «dificuldade sem cessar crescente de conciliar a fé tradicional, com urna razão sempre mais exigente.» Mas, diferentemente do seu predecessor, êle achava que a vida de Jesus apresenta muitas semelhanças com os mitos de Osíris, de Mitra e de Atis. Durante os últimos anos de sua vida, acompanhou com viva atenção as escavações arqueológicas na região de Coumrâ, e, estudando os manuscritos que aí se encontraram, foi levado à conclusão que êle eram o elo que faltava até então à história do cristianismo primitivo, que êles demonstravam que êste tinhaS nascido no seio da seita dos essênios.Seu biógrafo relata certa passagem de sua vida que muito bem o caracteriza. Como lhes apresentassem alguém muito susceptível em prosseguir as pesquisas a respeito da história das origens do cristianismo, êle refletiu a respeito dos méritos do candidato, e respondeu: «Inegàvelmente é um sábio de valor, mas tem muito receio de aborrecer o padre Daniélou. . . »P. Alfaríc foí o último representante da Escola Mitológicana França.A estagnação da literatura burguesa de após-guerra consagrada às origens cristãs não impede que se possa lançar no seu ativo a atenção que ela dispensa aos documentos recentemente descobertos pelos arqueólogos. Por exemplo, os rolos de Courmrã, que são de grande importância para o estudo das origens cristãs, foram objeto de alguns artigos e de numerosos livros. Outros documentos novos que podem esclarecer esta questão são também estudados. atentamente no Ocidente.Os historiadores soviéticos têm, igualmente, trazido sua contribuição ao estudo da história das origens do cristíanísmo. Sem falar da publicação na U.R.S.S. de uma multidão de brochuras de vulgarízação, assim como da tradução para o russo de quase tôdas as obras estrangeiras importantes sôbre êsse assunto, numerosos dos nossos especialistas se fazem notar pela amplítude de suas investigações originais. Graças à separação da Igreja e do Estado em nosso país depois da Grande Revolução Socialista - de Outubro, os historiadores da religião e do cristianismo, em particular, têm encontrado entre nós, pela primeira vez no mundo, a possibilidade de estudar êstes problemas de um modo verdadeiramente livre. A fundação de museus anti-religiosos e de revistas consagradas à história da religião ajuda os nossos sábios a fazer progredir os estudos das

Page 24: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

28 A ORIGEM DO CRISTIANISMOorigens cristãs. Eles publicaram durante os últimos decênios muitas obras de valor nesse domínio. Já nas décadas de 20 e de 30, apareciam Como Nascem e Morrem os Deuses e as Deusas, de J. Iaroslavsqui, vários escritos devidos à pena deN. Roumiantsev tais como: Morte e Ressurreição dõ Salvador (estudo da mitologia comparada), O Cristo Pré-cristão, O Apocalípse de João. Porém, entre os trabalhos mais importantes sôbre êste assunto nos últimos tempos, cumpre analisar com total prioridade os de A. Ranovitch e os do Acadêmico R. Viper.O primeiro é o autor de grande número de artigos e de três obras capitais sôbre o cristianismo nos seus começos: As Fontes Primordiais da História do Cristianismo Primitivo. Materiais e Documentos, 1933, As Críticas Antigas do Cristianismo (Fragmentos de Luciano, Por/iro, Celso e Outros Escritores), 1935, Ensaios Sôbre a Igreja Cristã Primitiva, 1941. Estes livros, com exclusão do terceiro, se julgados pelos títulos, parecem ser simples coleções de textos; basta, porém, folheá-los para se verificar o imenso trabalho que o escritor dispendeu, não apenas quanto à escolha e à tradução dos textos que êle cita, mas ainda para a sua interpretação à luz da ciência histórica. Nos Ensaios, a melhor monografia soviética sôbre as origens cristãs, A. Ranovitch apresenta o balanço de suas longas pesquisas cujas conclusões principais são expostas na presente obra. É preciso acrescentar, contudo, que as descobertas recentes de novos documentos, de uma grande importância, sôbre o cristianismo primitivo nos impuseram o dever de reconsiderar algumas de suas afirmações com o objetivo de as completar, e de as tornar mais precisas.O Acadêmico Viper publicou após a guerra dois livros:O Nascimento da Literatura Cristã, 1946, e Roma e o Cristianismo Primitivo, 1956. O primeiro é consagrado à análise dos escritos cristãos primitivos, incluídos ou não no No’vo Testamento. Depois de o ter examinado minuciosamente, Ranovitch emitiu conclusões que aceitamos inteiramente. No segundo,R. Viper, desenvolvendo as idéias de Bruno Bauer sôbre a estreita ligação entre o cristianismo e a ideologia do antigo mundo grego-romano e partindo da data da composição de alguns dos escritos cristãos que êle mesmo estabeleceu, considera êstes últimos condicionados à ideologia e ao estado de espírito dos meios dominantes no Império Romano, que conhecemos através das obras dos escritores latinos e gregos da Antigüidade.O Acadêmico Viper demonstra de modo convincente, se bem que exagerando um pouco, que o texto dos evangelhos canônicos e a constituição da Igreja Cristã não podem ser anteriores aos meados do século II e que, por essa época, a

Page 25: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INTRODUÇÃO 29ideologia cristã refletia já, em grande medida, a das classes possuidoras da antiga sociedade romana. Sua negação da existência .do cristianismo durante a segunda metade do século 1 e a primeira metade do século II suscita, contudo, graves objeções pelo fato de não ter êle levado em conta papiros e monumentos ristãos que datam justamente da primeira metade do século II. Este historiador não aceita a idéia de que o cristianismo nos seus começos fôsse a religião dos oprimidos; considera que êle refletia, desde o seu nascimento, os interêsses das classes possuidoras, sem poder explicar de que maneira a ideologia cristã pôde aparecer de repente, quase que inteiramente elaborada.Entre os últimos trabalhos dos historiadores soviéticos do cristianismo primitivo, um dos mais dignos de atenção é o artigo «Questões Essenciais das Origens do Cristianismo», publicado por S. Covalev, em 1958, no Anuário do Museu de História da Religião e do Ateísmo. Apresentando o balanço das pesquisas procedidas nesse domínio pelos sábios soviéticos, e propondo a título preliminar novas soluções, Covalev sustenta que a questão da realidade histórica de Jesus não deve de modo algum figurar no primeiro plano da historiografia do cristianismo, e apela para que todos os esforços sejam orien-. tados em função do esclarecimento das causas materiais, sociais e econômicas da aparição da religião cristã. Situa condicional- mente o nascimento do cristianismo na Palestina e assinala, pela primeira vez, de um modo bastante nítido, a diferença radical entre a imagem de Jesus e os traços dos outros personagens evangélicos. Enquanto que o Crísto se caracteriza•nos primeiros escritos cristãos por sua evolução, da categoria de uma divindade, para a de um Homem-Deus, os apóstolos aparecem no Nôvo Testamento na ualidade de simples mortais podendo ter, por conseguinte, protótipos históricos reais, ainda que aureolados por um clarão legendário.Após a descoberta dos manuscritos do Mar Morto, os pesquisadores materialistas discutem vivamente nestes últimos tempos a questão de se saber onde, geogràficamente, o cristianismo nasceu. A. Donini, pesquisador italiano, declara em seus trabalhos estar absolutamente persuadido de que êsses documentos representam a malha que faltava à longa cadeia de fatos que conduzem ao nascimento da religião cristã. P. Alfaric é quase da mesma opinião, já o dissemos, e o inglês A. Robertson, historiador materialista, acha que o relato evangélico se inspirou nas atividades de um revolucionário palestino do mundo antigo chamado Jesus. Retornaremos muitas vêzes aos argumentos apresentados pdí’ êsses escritores.Os trabalhos dos historiadores soviéticos consagrados a algumas províncias do Império Romano, particularmente às

Page 26: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

30 A ORIGEM DO CRISTJÀNISMOorientais, revestem-se de uma grande importância para o estudo aprofundado das origens do cristianismo no decorrer dos três primeiros séculos da era nova. Citemos, entre êsses escritos, o livro de A. Ranovitch, As Províncias Orientais do Império Romano, do Século 1 ao III, 1949, alguns artigos de E. Staçrmann sôbre a ideologia da população laboriosa do Império Romano: «As Revoltas Africanas do Século III», «Reflexo das Contradições de Classe no Culto de Hércules nos Séculos II e III», «As Perseguições dos Cristãos no III século», «Sôbre a História das Correntes Ideológicas nos Séculos II e III». Não podemos recordar aqui tudo aquilo que já se escreveu entre nós sôbre êsse assunto, porém mencionaremos ainda o trabalho de 1. Frantsev: Contribuição à História do Aparecimçnto do Cristianismo no Egito. Digamos, enfim, algumas palavras sôbre a obra recente de um historiador polonês, B. Lapiqui, A Cultura Ética da Antiga Roma, e o Cristianismo Primitivo, 1958. Comparando os diversos sistemas ideológicos da Roma antiga, com o cristianismo primitivo, B. Lapiqui afirma que as fontes de que dispomos permitem distinguir duas correntes ideológicas fundamentais no seio da sociedade romana na alvorada da nossa era: a corrente das classes dominantes e aquela, essencialmente diferente, dos filósofos romanos, correntes às quais a nova ideologia cristã se opunha rad.icalmente. Na opinião dêste escritor, enquanto que os filósofos romanos, humanitários, colocavam o homem no centro de tudo, a ideologia cristã era teocêntrica, e não humanitária, apesar do seu humanismo. As conclusões de B. Lapiqui são, às vêzes, disçutíveis, porém sua obra não deixa de chamar a atenção para um aspecto da ideologia cristã primitiva que é muito importante e que foi pouco esclarecido até então na literatura marxista.Os principais resultados do estudo das origens cristãs durante mais de um século e meio podem ser resumidos como segue:

1. A análise objetiva e livre de influência religiosa dêste problema não é acessível em cada época senão aos representantes das classes avançadas. No século XVIII e durante a primeira metade do século XIX, historiadores burgueses lançaram os fundamentos da crítica racionalista aos dogmas da Igreja, assinalaram as contradições dos evangelhos, ensaiaram aplicar à literatura cristã primitiva os métodos científicos de estudo dos documentos históricos em geral. Quando renunciou ao seu papel progressista e tornou-se uma fôrça reacionária, seus ideólogos estabeleceram como seu objetivo principal não esclarecer a verdadeira evolução histórica da religião cristã, mas salvar

Page 27: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

INTRODUÇÂO 31na medida do possível o prestígio vacilante dos dogmas clericais. A tarefa de estudar objetivamente, cientificamente, o cristianismo primitivo foi assumida pelos teóricos da nova classe ascendente, o proletariado contemporâneo, os quais, utilizando as descobertas dos seus predecessores e os dados recentes, buscam esclarecer as origens cristãs em função das condições históricas que determinaram o aparecimento do cristianismo, e, posterior- mente, o seu acesso à categoria de religião universal.2. O exame concreto dos monumentos da literatura cristã primitiva permitiu que se estabelecesse terem sido os evangelhos canônicos compostos no século II, terem sido retocados várias vêzes, de tal modo que a ordem cronológica da composição dos escritos evangélicos não corresponde, de modo algum, à ordem em que são apresentados no Nôvo Testamento.3. Quanto à realidade histórica de Jesus, questão que suscitou mais divergências e discussões do que qualquer outra, chegou-se à conclusão de que os dados de que se dispõe estão longe de a confirmar.4. O desmentido dado a esta tese destrói inevitàvelmente, por outro lado, a concepção tradicional de uma Igreja única, fundada desde os começos por apóstolos que visavam assegurar a observação dos ensinamentos de Cristo. A Igreja proveio, ao contrário, de uma infinidade de comunidades de crentes, muitas vêzes em luta umas contra as outras, e não se constituiu senão no século II.Uma vez provada a inconsistência do mito evangélico, devem os historiadores do cristianismo abordar a tarefa muito mais importante de descobrir as fontes a partir das quais se formou êste mito até a sua inclusão no Nôvo Testamento. E preciso admitir que aquêles que se dedicam ao estudo do problema das origens cristãs concentrarão sua atenção na história das antigas comunidades cristãs existentes nas cidades e províncias do Império Romano, que estudarão muito especialmente as doutrinas heréticas e a luta entre estas últimas e a Igreja nascente.O autor da presente obra não se propôs nenhum objetivo de pesquisador. Impôs-se, primeiro que tudo, a tarefa de expor, utilizando os documentos conhecidos há muito tempo e as descobertas recentes, as condições que determinaram o aparecimento do cristianismo, de assinalar as principais fases da evolução da ideologia cristã, de explicar, finalmente, «como foi possível que as massas populares do Império Romano tives-

Page 28: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

32 A ORIGEM DO CRISTIANISMOsem preferido a tôdas as outras religiões esta absurdidade pregada pelos oprimidos e pelos escravos. - . »14Diferentemente dos autores que acham necessário descrever a história do cristianismo primitivo até a época de Constantino, nós pararemos a nossa análise no limiar do século III, uma vez que, subseqüentemente, o cristianismo aparece sob o aspecto de uma religião já constituída, fortalecida por um código estabelecido, o Nôvo Testamento, e por um aparelho administrativo, a Igreja. No século III, não se trata mais da formação da religião nova, tema da nossa obra, mas da luta da religião cristã contra suas rivais para a dominação no seio do Império Romano, circunstâncias que, sem excluir sua evolução ulterior, a implicava, ao contrário, em vista da adaptação desta religião aos interêsses das classes dominantes em Roma.Dedicamos grande espaço nas páginas que se vão ler à análise dos evangelhos e a outros escritos cristãos, bem como à data de sua composição. Sem isso, é impossível apresentar um quadro histàricamente fiel da evolução do cristianismo, de pôr em evidência as transformações sofridas por essa religião. Ao escrever êste livro, quis o autor tratar, sobretudo, das questões referentes à gênese da imagem evangélica do Cristo, da formação dos dogmas cristãos, da atitude dos ideólogos da nova religião em face da escravidão e do poder secular, da composição social das comunidades cristãs primitivas, do aparecimento do clero e das primeiras heresias.

14 K. Marx e F. ENGELS: Obras, Ed. Russa, T. XV pg. 603.

Page 29: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

CAPÍTULO 1AS FONTES DO CRISTIANISMOO problema das fontes do cristianismo primitivo se distingue por sua excessiva complexidade. O cristianismo apareceu como conseqüência das relações políticas e sociais existentes sob o regime escravagista. As condições de vida dos judeus da diáspora (os países da dispersão) tiveram também um papel determinante no nascimento da nova religião e nas formas de sua organização. Ela iria se difundir ràpidamente graças sobretudo à situação das massas populares, tanto das províncias romanas, como da Itália. No que diz respeito aos elementos do nôvo culto, êles não devem sua origem apenas. aos ritos e crenças religiosas dos antigos hebreus, mas, também, às religiões de outros povos do Oriente Próximo. Daí, a necessidade de tomar como fontes da pré-história do cristianismo, num sentido mais amplo, os inumeráveis monumentos de di. versas sociedades mediterrâneas que datam de muitos séculos antes da nossa era.No que concerne aos documentos ligados diretamente à história do cristianismo e chegados até nós, dividem-se êles em dois grupos: documentos cristãos e não cristãos que, por sua vez, são subdivididos para maior comodidade do exame. Ao primeiro grupo pertencem: a) os escritos reconhecidos como sagrados pela Igreja e incluídos no cânone (o Nôvo Testamento); b) os escritos dos apologistas cristãos (defensores da nova fé) e dos Padres da Igreja; c) os apócrifos, escritos não incluídos no cânone por motivos diversos, mas aprovados pela Igreja, e, além dêsses, obras e fragmentos de escritores cristãos heréticos que se opuseram aos dogmas da Igreja; d) inscrições, papiros, monumentos arqueológicos e outros que restaram das primeiras comunidades cristãs. Às fontes não cristãs pertencem as obras dos escritores judeus e greco-romanos dos primeiros séculos da nossa era.Os documentos cristãos chegados até nós são muito mais abundantes do que os não cristãos, e isso por duas razões: a) o interêsse que a igreja tinha de conservar Inícamente os velhos escritos redigidos por ela própria, e b) sua tendênçia a destruir todos aquêles que expunham a história do cristiánismo primitivo de modo contrário à sua interpretação dos acontecimentos.Quase todos os documentos existentes sôbre a cristandade nascente permaneceram durante mais de quinze séculos nas33

Page 30: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

34 A ORIGEM DO CRISTIANISMOmãos dos eclesiásticos. É isso que explica, primeiro, por que nos resta tão pouco da abundante literatura anticristã nos textos cristãos dos primeiros tempos, e, segundo, as numerosas falsificações e interpolações que êsses textos sofriam. É por isso que os enigmas do aparecimento e dos começos do cristianismo só podem ser decifrados penosamente, graças a um paciente estudo comparado dêsses textos, e aos esforços conjugados de todos os especialistas.1. FONTES CRISTÃSOs escritos cristãos canônicos, em número de vinte e sete, compreendem s evangelhos segundo Mateus, Marcos, Lucas e João, os Atos dos Apóstolos atribuídos a Lucas, uma série de epístolas de diversos apóstolos, a Paulo particularmente, e o Apocalipse, de João. Os teólogos, os ortodoxos, em particular, sublinham a diferença entre os escritos canônicos e os apócrifos relembrando a todo instante que cada palavra dos primeiros procede da Revelação divina, enquanto que os segundos são devidos a simples mortais.1

Inútil será dizer que nenhuma diferença real existe entre êsses dois grupos de documentos cristãos. O problema de se saber quais os escritos que deviam entrar para o cânone suscitou nos começos ásperas discussões, e isso ressalta das obras dos escritores cristãos dos tempos antigos. Eusébio, Bispo de Cesaréia, que viveu no século IV, diz na sua História Eclesiástica (III, 3 e seguintes) das divergências no seio da Igreja a propósito da introdução no cânone do Apocalípse de João, das Epístolas de Paulo e de alguns outros escritos. O estabelecimento definitivo dos textos canônicos só se deu, aproximadamente, na segunda metade do século IV, para o oriente do Mediterrâneo, e no comêço do século V, para o Ocidente. Assim se deu porque as comunidades cristãs, durante muito tempo, consideraram diferentes escritos como sagrados e, também, porque o estabelecimento do cânone foi precedido de uma luta encarniçada entre grupos clericais opostos.Segundo os teólogos, o essencial no Nôvo Testamento são os quatro evangelhos, nos quais se descreve a vida de Jesus e seus milagres e quë, segundo êsses mesmos teólogos, teriam sido compostos ou ditados pelos discípulos do Cristo. A palavra evangelho, que significa, em grego, «boa nova», não tem na1 Na encíclica Providentissimus, o Papa LEÃO XIII, querendo definir o caráter divino da inspiração dos evangelhistas, afirmou que êles “transmitiram com uma impecável fidelidade a palavra de Deus, e str’ mente essa palavra”. .. Mostraremos mais adiante, com base em numerosas passagens do Nôvo Testamento, em que consiste essa “impecável fidelidade.’

Page 31: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMO 35bôca dos representantes da Igreja outro sentido senão o de uma comunicação sôbre a obra do «Filho de Deus» que aceitou o martírio para resgatar os pecados do gênero humano. Mas, êsse têrmo já figurava na antiga literatura grega, a começar pela Odisséía de Homero (Cap. XIV, versículos 152 e 166) e, no final do século 1 antes de nossa era, nós o encontramos empregado sem qualquer relação com a religião cristã, em uma inscrição de Priene, antiga cidade da Jônia, na qual se comemora o dia do nascimento do Imperador Augusto. (Ogis, 458, II 40-41,)Além dos quatro evangelhos conhecidos, existiam dezenas de outros escritos do mesmo gênero que não foram incluídos no Nôvo Testamento por diversas razões. Irineu, escritor cristão do último quarto do século II, proclamava no seu Tratado Contra as Heresias (III, 11): «Há quatro evangelhos, nem um a mais, nem um a menos, e só pessoas d espírito leviano, os ignorantes e os insolentes é que, falseando a natureza dos evangelhos, podem aumentar ou diminuir o seu número.» E claro que Irineu não teria falado assim se tal questão não despertasse paixões no seu tempo. O Evangelho Segundo Lucas se refere, também, desde as primeiras linhas, a «muitos» autores que «teriam empreendido compor» evangelhos, e nas obras antigas, encontram-se referências a evangelhos dos nazarenos, dos judeus, dos egípcios, dos ebionitas, de Pedro, de Tomás, de Barnabé etc. Depois do triunfo do cristianismo, a Igreja impôs- se o dever de destruir ou de ocultar todos êsses textos, alguns dos quais foram reencontrados recentemente no Egito.• Os evangelhos introduzidos no cânone não cessaram contudo de ser retocados. Celso, adversário do cristianismo, assinalava entre 170 e 180: «, . . certos fiéis modificam o primeiro texto do evangelho três, quatro e mais vêzes, para poder subtraí-lo às refutações.» Os diversos manuscritos dos evangelhos canônicos eram de tal modo diferentes que os ideólogos da nova religião tentaram, na segunda metade do céculo III, estabelecer um texto evangélico único. Em vista das divergências entre as comunidades cristãs da época, três variantes foram então adotadas devidas, respectivamente, a Hesiquius de Alexandria, a Pânfilo de Cesaréia e a Luciano de Antióquia. Mas, as citações evangélicas dos papiros cristãos diferem muitas vêzes de cada uma delas, e só no Evangelho Segundo Lucas existem 3 500 passagens redigidas diferentemente,Mesmo segundo os Padres da Igreja os Evangelhos canônicos não podem ser considerados como fontes primordiais no sentido literal dêste têrmo. Primeiramente, o «segundo» que trazem no título (em grego cata) indica que êles não provieram das mãos dos evangelistas, que não fazem mais do que repro

Page 32: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

36A ORIGEM DO CRISTIANISMOduzir de modo mais ou menos exato o que êstes últimos teriam comunicado. Depois, segundo a tradição da Igreja, sômente Mateus e João foram apóstolos ligados pessoalmente a Jesus, enquanto que Marcos e Lucas foram, respectivamente, discípulos de Pedro e de Paulo. Por isso é que dissemos que, mesmo do ponto de vista estritamente ortodoxo, os evangelhos não são obras de testemunhas oculares dos acontecimentos que nêles são relatados.Os três primeiros evangelhos são consagrados essencial- mente a um só tema: a vida de Jesus e a sua doutrina, O estudo comparativo dos evangelhos sinóticos, isto é, segundo Mateus, Marcos e Lucas, que deu origem a uma vasta literatura, mostra que, aproximadamente, um têrço do seu conteúdo é comum a todos os três. As passagens que se encontram tinicamente em cada ‘um dêsses evangelhos constituem a metade do texto do Evangelho Segundo Lucas, um têrço do Evangelho Segundo Mateus e um décimo, aproximadamente, do Evangelho Segundo Marcos. Se os sinóticos se assemelham, tal se dá visivelmente porque têm uma fonte comum, a compilação perdida de parábolas e sentenças atribuídas a Jesus. Admite-se geralmente que o Evangelho Segundo Marcos2, o mais curto aliás, seria mais fiel a êsse suposto modêlo. Os autores dos dois outros sinóticos utilizavam o Evangelho Segundo Marcos, ou a fonte dêste, encompridaram-no, ajuntando-lhe detalhes que nãd se sabe de onde procedem.Partindo do fato de que o Evangelho Segundo Marcos expõe sobretudo as parábolas atribuídas a Jesus, enquanto que os evangelhos segundo Mateus e segundo Lucas contêm, apésar de suas diferenças, dados idênticos a respeito do nascimento do Cristo, da sua infância etc., avançou-se a hipótese segundo a qual as passagens que coincidem no primeiro e no terceiro evangelho, e que não figuram no segundo, teriam sido tiradas de uma compilação anterior, distinta daquela que o Evangelho Segundo Marcos reproduziria. Esta fonte comum teria fornecido, segundo os partidários da historicidade de Jesus, dados biográficos autênticos a seu respeito. Contudo, semelhante conjectura parece inaceitável, pois não se pode admitir que o autor do Evangelho Segundo Marcos tivesse podido ignorar a2 O problema de se saber qual dos dois primeiros evangelhos é o mais antigo suscitou no passado, e suscita ainda agora, entre os teólogos, encarniçadas discussões, O Evangelho Segundo Mateus seria, segundo a tradição da Igreja, o primeiro cronolàgicamente, mas os teólogos liberais da segunda metade do século passado e do comêço do nosso estabeleceram que o Evangelho Segundo Marcos é anterior a todos os outros, opinião que se procurou refutar em seguida, mas em vão, segundo nosso parecer. SCJIWEITZER acha que êsses dois primeiros evangelhos foram compostos quase ao mesmo tempo.

Page 33: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMO37existência de documento tão importante a respeito da vida de Jesus. É mais conveniente pensar que o autor do Evangelho Segundo Lucas utilizou muito simplesmente o texto do Evangelho Segundo Mateus. Porém, mesmo que êsses dois evangelhos tenham sido compostos, cada um, a partir de uma fonte anterior idêntica, isso não implica de modo nenhum que Jesus tenha existido, pois como se poderia explicar então a ausência total de comunicações sôbre sua vida terrestre em escritos cristãos mais antigos do que êsses?Os evangelhos sinóticos contradizem-se com bastante freqüência. Veremos mais adiante essas contradições minuciosamente. Por ora, basta assinalar, a título de exemplo, as diferentes genealogias de Jesus nos evangelhos segundo Mateus e Segundo Lucas. Se no primeiro (1, versículos 1-17) sua linhagem remonta a Abraão, e compreende 42 gerações, no segundo (III, versículos 23-28) ela parte de Adão e conta, de Abraão a Jesus, 55 gerações, em lugar de 42. Como sè vê, é impossível conciliar essas duas versões,, e isso levou a um bêco sem saída vários apologistas cristãos. Eusébio em sua História Eclesiástica (1,7) confessando no fundo sua impotência para resolver esta contradição exclama: «Seja lá corno fôr, só o evangelho anuncia a verdade!» «Argumento» que nada explica naturalmente, e que não anula a discordância entre êsses dois evangelistas «inspirados por Deus». As contradições dêsse gênero são muito numerosas nos evangelhos.Pode-se perguntar por’ que teria sido necessário compor tantas biografias de Jesus e por que os textos evangélicos, tão divergentes, foram incluídos, apesar de tudo, no cânone. Isto não foi, de modo algum, obra do azar ou da negligêncía: os evangelhos não são anais que tenham a intenção de informar a posteridade, êles foram compostos para a predicação, e cada um dêles visava um auditório diferente. O Evangelho Segundo Mateus, por exemplo, deveria servir às necessidades da propaganda do cristianismo entre os judeus. Nêle se encontram, mais do que nos outros, referências às profecias do Antigo Testamento, sôbre o Messias. Seu autor tem o cuidado de advertir: «Não creias que vim para abolir a lei ou os profetas: vim não para abolir, mas para cumprir.» (V, versículo 17.) Além disso, êle se dispensa de explicar os antigos têrmos hebraicos.Apesar dessa tendência judaica, por assim dizer, do primeiro evangelho, enganar-nos-íamos se o acreditássemos composto por um hebreu da Palestina, tal como o mito apresenta o apóstolo Mateus. Apesar dos esforços empregados pelos teólogos para demonstrar que, ao menos, o texto dêsse evangelho foi traduzido do hebraico, como tal deveria ter sido, não

Page 34: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

35A ORIGEM DO CRISTIANISMOse encontrou até os nossos dias o menor vestígio de um original hebraico dêste, ou dos outros evangelhos. A língua do Evangelho Segundo Mateus é muito aproximada do grego literário da época, e da língua dos outros livros do Nôvo Testamento, E por isso que Erasmo, de Rotterdam, já achava que o Evangelho Segundo Mateus tinha sido redigido originàriamente em grego, não sendo, portanto, uma tradução do hebraico.O terceiro sinótico, o Evangelho Segundo Lucas, expõe, segundo a Igreja, as predicações do apóstolo Paulo, assim comoo Evangelho Segundo Marcos, as do apóstolo Pedro. Era destinado, segundo parece, aos leitores gregos. O relato que oferece a respeito da estada de Jesus na Palestina é mais lacônica, sua genealogia remonta à Adão, as datas dos acontecimentos são dadas em função do Império Romano, sua linguagem se aproxima ao máximo do dialeto literário ático de então. O Evangelho Segundo Marcos também era destinado a um auditório bem determinado.O Evangelho Segundo Jogo difere consideràvelmente dos sinóticos. Enquanto êstes narram a vida de Jesus e os seus milagres, o quarto evangelista, como o notou o Padre da Igreja Clemente, de Alexandria (fim do século II, comêço do século III), «compôs um evangelho espiritual, ditado por sua inspiração. » As primeiras palavras dêsse livro do Novo Testamento são características: «No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.» Os filósofos dos séculos 1 e II, particularmente Filon, de Alexandria, falavam da mesma maneira a respeito do aparecimento do mundo e da essência dc, Altíssimo... Muitos dos relatos dos sinóticos pouco apropriados aos meios greco-romanos mais instruídos, foram omitidos ou retocados deliberadamente no Evangelho Segundo João. Referimo-nos aos episódios relativos, por exemplo, à tentação no deserto, à cura dos endemoniados e, mesmo, ao batismo de Jesus. Êste evangelho destinava-se a oferecer de certo modo a filosofia do cristianismo, a adaptá-lo às teorias filos& ficas da época.Assim, cada evangelho era endereçado a um meio determinado, e tinha limitada, dêsse modo, sua esfera de ação a uma ou outra região. Sua inclusão no cênone deu-se mais tarde, como conseqüência de uma escolha dos escritos cristãos mais autorizados aos olhos dos crentes.Em que época se pode fixar o aparecimento dos evangelhos? Os teólogos simplificam êste problema ao máximo. Afirmam que os relatos dos evangelistas não poderiam ser postos em dúvida, e situam a composição dos sinóticos em meados do século 1, e a do quarto evangelho, o de João, mais tarde, lá

Page 35: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMO39pelo ano 80.3 As datas de composição dos outros escritos canônicos foram estabelecidas por êles segundo o mesmo «princípio», donde se segue que o Nôvo Testamento já existia na sua íntegra na segunda metadci do século 1. A Igreja Católica, bem como a Igreja Ortodoxa, proclama que a ordem cronológica dos livros do Nôvo Testamento corresponde à ordem em que são apresentados no cênone, sendo, portanto, os evangelhos, anteriores às epístolas, e estas, ao Apocalipse, de João, o Evangelho Segundo Mateus anterior ao de Marcos, e assim por diante.A análise científica demonstrou de modo irrefutável o caráter perfeitamente artificial dêsse esquema, conservado com o fim único de salvaguardar a autoridade de cada palavra do Nôvo Testamento. Na verdade, o mais antigo dos evangelhos, como assinalamos anteriormente, é o Evangelho Segundo Marcos, e não o de Mateus. No que diz respeito às epístolas, F. Baur, fundador da Escola de Tubingue, já tinha demonstrado que elas são anteriores aos evangelhos. Segundo êle, outros historiadores puderam estabelecer que a parte principal do Apocalipse de João datava do ano 68, sendo êste escrito, portanto, o mais antigo do Nôvo Testamento. Assim, pouco a pouco, foi sendo mostrado que a ordem cronológica da composição dos livros do Nôvo Testamento não corresponde de modo algum ao esquema da Igreja, que os Evangelhos, em particular, são cronolàgicamente mais recentes do que a maioria dos outros escritos.As pesquisas dos representantes da Escola de Tubingue mostraram que, tendo o dogma cristão surgido muito tarde, não pode servir de argumento no que diz respeito ao estabelecimento da data da composição de tal ou qual parte do Nôvo Testamento. O único critério válido neste domínio deveria ser encontrado fora dêsses escritos. Pràticamente, poder-se-ia utilizar as obras exatamente datadas de certos apologistas cristãos, os dados fornecidos pelos antigos papiros, à medida que fôssem sendo descobertos.O autor mais antigo que fala dos evangelhos, sem contudo empregar essa palavra, foi o filósofo Justino, apologista cristão3 Procurando demonstrar que os historiadores do cristianismo fixam a composição dos evangelhos em data cada vez mais próxima dos acontecimentos que êles descrevem, DANIEL-ROPS nota que, se STRAUSS achava que os evangelhos não eram anteriores ao ano de 150, RENAN já os situava no último quarto do século 1, e HARNACK, entre 50 e 75. Mas, êle esquece, e conscientemente, que muitos outros historiadores con temporâneos, Alfred LOISY, por exemplo, afirmam, ao contrário, que os sinóticos datam da primeira metade do século II. Vários representantes da escola mitológica consideram, doutra parte, que os sinóticos apa receiam muito mais tarde ainda.

Page 36: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

40A ORIGEM ,bO CRISTIANISMOqüe escreveu a partir do ano 150 e cujas obras chegaram até nós. Não conhecendo ainda o Nôvo Testaménto, Justino apenas fala em «Recordações dos Apóstolos», e, fazendo alusão às sentenças de jesus, êle informa que elas são «curtas e lacônicas», o que está longe de corresponder ao estilo freqüentemente prolixo dos evangelistas.Os quatro evangelhos canônicos são citados como tais, pela primeira vez, por Irineu. A maneira como ‘êle fala, a referência a êsses evangelhos no fragmento de Muratori’4, que é um pouco posterior, e o silêncio de Justino a respeito dêles, parece provar também que êles não poderiam ter sido compostos antes dos meados do século II. Doutra parte, numerosos heréticos consideravam como falsos tais ou quais escritos canônicos, particularmente o Evangelho Segundo João. As heresias do século II defendiam, em geral, as idéias do cristianismo primitivo, das quais se distanciava a Igreja Episcopal, em curso de formação; é por isso que as suas declarações a respeito. do caráter não autêntico de tal ou qual escrito evangélico são habitualmente levadas em consideração enquanto argumento probante de que êles foram compostos mais tarde. Tais são os motivos que obrigam os pesquisadores a encarar os evangelhos como sendo os livros menos antigos do Nôvo Testamento.Os Atos dos Apóstolos, situados no Nôvo Testamento imediatamente depois dos quatro evangelhos, expõem a predicação do cristianismo entre os judeus e entre os pagãos pelos «discípulos de Jesus Cristo», Pedro e, sobretudo, Paulo. Sendo êste escrito uma espécie de continuação dos evangelhos, alguns teólogos católicos declaram que êle foi composto por volta do ano 50, mas semelhante afirmação não resiste à menor análise. Justino ignora totalmente os Atos Apostólicos e não diz uma palavra sôbre Paulo. A comunicação da Igreja a respeito do desenvolvimento vertiginoso do cristianismo nos países orientais do Mediterrâneo em meados do século 1 não é confirmada por qualquer documento digno de fé. Os Atos dos Apóstolos expõem principalmente o conteúdo de 14 epístolas atribuídas a Paulo, e incluídas no cânone. Trazidas para Roma no ano 140 por Marcião, contemporâneo de Justino, essas epístolas não puderam ser adotadas imediatamente pelos cristãos locais, e isso demonstra que os Atos, êles também, não podem ser anteriores aos meados,, ou melhor, à segunda metade

4 Documento cristão que data aproximadamente do ano 200 e que dá uma lista de escritos cristãos reconhecidos como “sagrados”; essa relação compreende 22 dos 27 livros do Nôvo Tessamento, além de alguns apócrifos. Ludovico MURATORI, historiador italiano do século XVIII, descobriu éste fragmento entre os manuscritos da Biblioteca Ambrosiana de Milão.

Page 37: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMOdo século II. O quadro da vasta difusão da nova fé na parte oriental do Mediterrâneo, descrito nos Atos, corrresponde mais ou menos à essa época, não ao século 1.As 14 epístolas do apóstolo Paulo são endereçadas aos romanos,, aos coríntios, aos galatas etc. . . Elas ainda não expõem o relato evangélico da vida de Jesus, mas já o apresentam como um deus encarnado num homem. O Cristo já adquire nêles alguns traços humanos, nasceu de uma mulher, sofreu o martírio. Jesus morre para resgatar os pecados dos homens: tal é o leitmotiv dessas epístolas. Mas, não se encontram nelas os numerosos detalhes próprios ao mito evangélico do Cristo. Segundo o parecer de Engels, as epístolas ditas de Paulo, «pelo menos na sua redação atual, são 60 anos posteriores ao Apocalipse.»5 E, coisa característica, muitos dos cristãos adversários da Igreja oficial no século II se recusavam a reconhecer as epístolas de Paulo. Tal era o caso dos ebionitas e dos severianos como Eusebio o diz na sua História Eclesiástica (III, 27; IV, 29) e como Irineu o confirma. Justino, apologista cristão, apesar da sua ortodoxia, silencia a respeito dêsse apóstolo. Não foi, portanto, por acaso que, há mais de 30 anos,A. Harnack, chefe dos teólogos protestantes, teve de admitir que os cristãos romanos dos fins do culo 1 e dos começos do século II ignoravam as epístolas paulinianas.O mais antigo dos escritos canônicos é o Apocalipse de João, que encerra o Nôvo Testamento. Seu autor conhecia sô. mente sete comunidades cristãs da Ásia Menor. O nome de Jesus nêle figurava apenas identificado, segundo parece, ao Cordeiro, que nada tem de comum com o Homem-Deus dos evangelhos. O Cordeiro do Apocalipse possui «sete cornos e sete olhos» (V, 6), foi imolado «desde a fundação do mundo» (XIII, 8). Diferentemente dos outros livros evangélicos, que pregam o princípio segundo o qual «é preciso dar a César o que é de César», o Apocalipse de João ferve num ódio inconciliável contra «a grande cidade que exerceu a realêza sôbre os reis da Terra» (XVII, 18), e prediz o fim de Roma num futuro próximo.O essencial do Apocalipse foi composto depois da queda de Nero em 68, e, portanto, êste livro é o mais antigo do Nôvo Testamento. Seu conteúdo difere extremamente do dos evangelhos e das epístolas, a língua e o estilo, ao contrário dos outros escritos do Nôvo Testamento, funde elementos emprestados ao hebraico e ao aramaico. Essas particularidades não escapam aos Padres da Igreja, e é por isso que a questão da inclusão do Apocalipse no número dos escritos «inspirados

5 Karl MARX e Friedrich ENGELS: Sai’ la Religion, d. Sociales, Paris, 1960, pág. 324.

Page 38: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

42A ORIGEM ,4J0 CRISTIANISMOpor Deus» suscitou no século IV debates apaixonados. (Eusébià, ob, cit., VII, 25 e outras.) Lutero e Zwinglio declararam mais tarde que êste escrito tinha sido incluído no cânone por engano.Vê-se, portanto, que a Igreja dispôs os livros do Nôvo Testamento na ordem inversa à do seu aparecimento. O Apocalipse, que é o mais antigo de todos, remonta ao ano de 68. Depois, vêm as epístolas (primeira metade do século II). Os quatro evangelhos não foram compostos senão em meados do século II, e deve-se considerar os Atos dos Apóstolos como o mais recente dêsses escritos. Tal é a única ordem cronológica possível se se parte não da lenda a respeito do caráter divino do cânone, mas dos dados que se encontram nas obras datadas de Justino e de Irineu.O estabelecimento da ordem cronológica real dos livros do Nôvo Testamento reveste uma alta importância sob o ponto de vista do estudo da história das comunidades cristãs primitivas e, sobretudo, da evolução da ideologia cristã. Notemos, contudo, que o esquema cronológico apresentado acima indica apenas a data da composição do texto fundamental dêsses escritos, uma vez que êles continuaram a ser remodelados pelo menos até ao século IV. Eusébio na sua História Eclesiástica (IV, 23) cita as palavras seguintes de um escritor cristão que bem caracterizam as falsificações freqüentes de então: «Compus epístolas segundo a vontade dos irmãos, mas os apóstolos do Diabo tachando-as de jnverdadeiras cortaram-lhes certas coisas, e lhes acrescentaram outras.» Irineu tomava o cuidado de endereçar o seguinte pedido aos copistas do seu livro: «Con- fronta tua cópia com êste original utilizado por ti e corrige-a cuidadosamente. Não te esqueças, também, de reproduzir na tua cópia êste pedido que te faço!» (Id. V, 20). A inclusão, por Eusébio, de duas citações dêsse gênero em sua obra é, também, muito significativa.Esta passagem da Epístola de Inácio aos Filadelfianos (Cap. VIII), que data do século ii, é igualmente muito característica das falsificações e das deformações freqüentes na época: «Ouvi alguns dizerem: Não creio no que está escrito nos evangelhos, se não o encontro nos arquivos.»6 E quando eu lhes respondia que isso lá estava dizia-me: «É preciso ainda demonstrá-lo.»O que se passou com os Atos de Pilatos não é menos significativo. Uma comunicação do Governador Romano da Judéia a respeito do fundador do cristianismo seria evidentemente a mais válida das provas de sua existência real. Os primeiros apologistas cristãos afirmavam, a princípio de um modo um pouco hesitante (Justino), depois com um tom mais

6 Outra tradução possível: “nas antigas escrituras.”

Page 39: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMO43seguro (Tertuliano), que o texto desta carta deveria estar nos arquivos imperiais, em Roma. Contudo, mesmo depois da ascensão do cristianismo à categoria de religião oficial não se pôde descobrir o menor vestígio dêsse documento. E, no século IV, os zelosos servidores da Igreja tomaram a decisão de fabricar um, em todos os seus pormenores. O próprio Daniel-Rops, apesar da sua ortodoxia, se viu na obrigação de reconhecer que tal documento é mesmo falso.7 Acrescente-se, ainda, que a «comunicação» em questão é endereçada não ao Imperador Tibério, sob o qual Pôncio Pilatos era governador, mas ao Imperador Cláudio que reinou de 41 a 34.Grandes cautelas contra as freqüentes deformações das escrituras foram conservadas no próprio texto canônico do Nôvo Testamento. É assim que João toma o cuidado de prevenir ao terminar o Apocalipse: «Se alguém acrescentar alguma coisa nisto, Deus o castigará com as penas descritas neste livro; e se alguém cortar qualquer coisa do livro desta profecia, Deus cortará sua parte na árvore da vida e na cidade santa, descritas neste livro.»Outros escritos cristãos antigos contêm advertências semelhantes, mas em vão: os imperativos da luta contra as heresias obrigaram a Igreja a «depurar» continuamente os textos canônicos de tudo que cheirasse a heresia.O texto grego do Nôvo Testamento adotado nos nossos dias remonta a dois códigos que datam dos meados do século IV: o sinaico, descoberto, em 1959, em um convento do monte Sinaí, e guardado hoje no Museu Britânico, e o do Vaticano, que só foi publicado nos fins do século passado. Compostos, tanto um, como o outro, na cidade de Alexandria, no Egito, reproduzem a redação já citada do Nóvo Testamento, devida a Hesiquius.Descobriu-se em 1931 um papiro como o mais antigo texto das epístolas de Paulo e outros escritos ainda do Antigo e do Nôvo Testamento.8 Este código remonta aproximadamente ao ano 200 e é, por conseguinte, um século e meio anterior ao código sinaico, e ao do Vaticano. O papiro em questão, fato importante, foi escrito pouco depois da composição das epístolas, que êle reproduz, notemo-lo, numa ordem diferente da do cânone: a Epístola aos Romanos é, nêle, seguida imediatamente pela Epístola aos Hebreas. Não se encontram nêle as epístolas pastorais do Nôvo Testamento (primeira e segunda epístolas a Timóteo, Epístola a Tito), cujo conteúdo, mostra-lo-emos em seguida, difere sensivelmente das outras mensagens de Paulo.

7 H. DANIEL-RoPs, ob. cit., pág. 9.8 F. G. KENY0N: The Chester Beatty Biblical Papyri, parte 1-4, Londres, 19331934.

Page 40: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

44 A ORIGEM DO CRISTIANISMOMuitas das passagens dêsse papiro são diferentes do texto canônico e, além das modificações estilísticas e erros de escrita, êste último revela mudanças de natureza dogmática: os redatores do texto canônico se afervoravam em depurar as epístolas das fórmulas que a Igreja declarava heréticas.Ao segundo grupo de fontes cristãs, que datam, em particular, da segunda metade do século II, pertencem os escritos dos apologistas Justino, Taciano, Atenágoras, Irineu, e outros. Sua data foi estabelecida com bastante precisão e êles sofreram um número bem menor de retoques, do que os evangelhos e as epístolas canônicas. As obras e os fragmentos dos primeiros apologistas cristãos são, portanto, dignos de confiança, e um grande número dêles chegou até nós.Justino, ao qual já nos referimos a propósito da data da composição dos evangelhos, estudou filosofia, e daí vem o seu cognome de filósofo. Tem-se, dêle, três obras autênticas (sem contar outros trabalhos que se lhe atribuem): Primeira Apologia, Segunda Apologia, Diálogo com o Judeu Trifônio. Nessas apologias, endereçadas aos imperadores Antonino, o Piedoso, e Marco-Aurélio, Justino sustenta que o título de cristão não déve bastar para levar alguém diante dos tribunais, que para julgar um cristão é preciso que êle tenha cometido um crime. Êsses escritos de Justino expõem, de passagem, os princípios da fé cristã, e fornecem dados preciosos a respeito de organização da vida interna das comunidades de crentes dessa época. No Diálogo, procura demonstrar o papel messiânico do Cristo, citando os profetas do Velho Testamento, que êle interpreta a seu modo. Os trabalhos de Justino são os mais antigos da apologética cristã, e nisto consiste o seu principal valor; êles foram compostos, sua Apologia, pelo menos, antes do ano 160.O Apocalipse de João é o único dos escritos canônicos que êle cita.O apologista Taciano, discípulo de Justino, escreveu no terceiro quarto do século III. Duas apenas de suas obras se conservaram: o Discurso aos Gregos e o Diatessarão. No primeiro, êle submete a rude crítica a cultura grega, notadamentë a filosofia, declarando-a emprestada das nações «bárbaras» vizinhas. Condena todos os filósofos gregos, Platão entre êles, filósofo que Justino apreciava consideràvelmente. Segundo êle, os únicos elementos do pensamento filosófico grego que tinham algum valor derivam dos escritos do Antigo Testamento.O Diatessarão (que significa: «segundo os quatro»), escrito a base dos quatro evangelhos canônicos, veio até nós na tradução siríaca, árabe, latinà e armênia. Descobriu-se em 1934, por ocasião das escavações em Doura-Europos, cidade às margens do Eufrates, um fragmento bastante longo dêste trabalho, escrito em língua grega, que foi reconhecido como anterior ao

Page 41: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMO 45ano 254, no qual Taciano omite a genealogia de Jesus e outras passagens do Nôvo Testamento, e no qual êle diz que o Cristo descendia dos reis da Judéia. O Diatessarão era muito difundido no Oriente e êle é o evangelho oficial da Igreja Síria. No século V, um bispo de Ciro retirou de sua diocese 200 exemplares do Evangelho de Taciano e os sübstituiu pelos textos canônicos. A doutrina de Taciano diferia sob muitos aspectos dos dogmas da Igreja oficial. Pertencia êle à seita cristã dos encrátitas, que se dedicavam ao ascetismo. Taciano condenava o casamento, a consumação de carne e de vinho.Atenágoras também foi discípulo de Justino. Sua Apologia Para os Cristãos, composta no ano 180, no fundo, apenas desenvolvia as idéias da Apologia do seu mestre. Como êle, Atenágoras se levantava contra a condenação dos cristãos pela imnica razão de pertencerem à nova religião, e acentua, mais ainda do que o seu mestre, a lealdade dos seus adeptos, do ponto de vista político. «Rezamos, declará êle dirigindo-se ao Imperador Marco-Aurélio e a seu filho Cômodo, pela manutenção do vosso poder, para que o reinado do pai passe, em herança, ao seu sucessor, para que o vosso poderio seja cada vez mais forte e para que todo o mundo vos obedeça.» (Apologia, 37.) Atenágoras consagra sua obra, sobretudo, à defesa dos cristãos, contra as acusações habituais de ateísmo, de incesto de massacre dos recém-nascidos.O mais importante dos escritores cristãos do século II foi Trineu, Bispo de Lião. Compôs em 180, a Exposição e Refutação da Gnose Falsamente Assim Chamada, vasto tratado contra as heresias. O texto desta obra, conservado em tradução latina, é de alta importância para a reconstituição da história do cristianismo primitivo, e da Igreja, em particular. Diferentemente de Justino, de Taciano e dos outros apologistas, irineu se detém, sobretudo, nos desvios dos dogmas que estavam a caminho de se formarem. Enumerou os evangelhos e as epístolas que, no seu tempo, já eram consideradas de inspiração divina, e elaborou a lista cronológica dos bispos de Roma, e de outras cidades. Irineu foi, portanto, o autor da primeira história sistemática do cristianismo, ainda que nela seja grande a parte da lenda e da invenção. Muitas das passagens da História Eclesiástica de Eusébio não fazem mais do que reproduzir o que é dito por Irineu em sua obra.A abundância de fontes cristãs datadas do século II, ao qual se ligam, nós vimos anteriormente, quase todos os livros canônicos e um grande número de obras dos apologistas, nos permite enfim seguir com segurança a evolução do cristianismo e da Igreja, a partir dêsse século e, mais precisamente, da sua segunda metade. Quanto às conclusões relativas ao período anterior do cristianismo, ao seu aparecimento, sobretudo, elas

Page 42: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

46A ORIGEM DO CRISTIANISMOexigem sempre um exame do conjunto de todos os dados de que se dispõe. Notemos que essas fontes não permitem, nem de longe, esclarecer de modo suficientemente circunstanciado o nascimento da religião cristã. Ë apenas do ponto de vista teológico, enfim, que todos êsses escritos expõem a história do cristianismo. Esta literatura não tem um caráter verdadeiramente histórico, é literatura edificante antès de tudo; ela deixa na sombra muitos fatos e, quase sempre, deforma a verdade.A partir de Tertuliano e de Clemente de Alexandria as fontes cristãs tornam-se muito mais numerosas, O que dissemos dos escritores cristãos do século II vale igualmente para os do século III. Seu testemunho é de uma extrema importância para estudo da evolução dos dogmas, da luta contra as heresias, das relações entre a Igreja e o poder temporal, das colisões entre tendências diversas no seio da cristandade. E preciso, contudo, encarar com o maior espírito crítico as afirmações dos escritores do século III e dos inícios do século IV: todos êles expõem a história do primeiro centenário do cristianismo de conformidade com o cânone. Porém, uma vez que os escritores cristãos dos começos e, mesmo, dos meados do século II só chegaram até nós de modo incompleto, isto nos coloca no dever de utilizar, ainda que com circunspeção, as comunicações feitas pelos autores que dispuseram dos escritos dos séculos precedentes.Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes e Eusébio foram os escritores de maior importância dêsse grupo. Tertuliano, decano da comunidade cartaginesa, desenvolveu sua atividade literária de 195 a 220. Representante da ala militante do cristianismo, atacou rudemente o gnosticismo, bem como as’ heresias judaico-cristãs, e outras. No fim da sua vida, aderiu à seita herética dos montanistas. Os trabalhos de Tertuliano, conservados em grande número, fornecem um quadro bastante fiel da vida religiosa dos cristãos da África.Clemente, contemporâneo de Tertuliano, dirigiu, a partir do ano 200, a escola de catecúmenos (neófitos) em Alexandria, nessa época, um dos centros mais importantes da nova religião, no Oriente. Em suas obras, procurou conciliar o cristianismo, com o helenismo. Declarou que a filosofia grega, tal como o Antigo Testamento, haviam preparado o Nôvo Testamento, o que nos permite deduzir que a religião cristã começava a se difundir pelas camadas melhor qualificadas da população grega. Em seu escrito Salvar-se-á o Rico?, título significativo, êle sustenta, contràriamente ao que diz os evangelhos (Marcos, X, 21-31 e alhures), que o fato dç ter riquezas não pode impedir quem quer que seja de entrar no reino de Deus.

Page 43: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRJSTIANISMO47Orígenes (185-253), discípulo de Clemente, e um dos mais fecundos escritores cristãos do século III, é o autor de comentários a todos os livros do Antigo e do Nôvo Testamento, dos quais a maioria foi conservada, bem como seus outros escritos, Seu trabalho Contra Celso é o que apresenta maior interêsse para o historiador do cristianismo primitivo porque contém citações bem longas da obra do mais antigo dos seus críticos.Eusébio (260-340, aproximadamente), Bispo de Cesaréia, entre outros livros, compôs a primeira História Eclesiástica que contém documentos muito importantes relativos ao século III, e, parcíalmente, ao século II, mas êste autor falsificava freqüentemente os documentos de que dispunha. Jacob Burckhardt, do qual não se poderia suspeitar de estar inclinado para o materialismo, refere-se a Eusébio nestes severos têrmos:«Depois das inumeráveis deformações, reticências e mentiras constatadas nos seus escritos, não se tem o menor direito de considerá-lo como uma fonte digna de confiança. Convém acrescentar a tudo isso as obscuridades intencionais, a retórica calculada, as ambigüidades sem número dêste escritor.»Os escritos dos antigos apologistas e dos Padres da Igreja constituem, portanto, com o Nôvo Testamento, o segundo grupo importante de fontes concernentes à história do cristianismo primitivo. Êstes documentos são um pouco posteriores aos escritos canônicos, mas aquêles têm sôbre êstes a vantagem, tal como já o assinalamos, de ter escapado a remodelações cuidadosas e diversas. Êste grupo de documentos é rico de informações a respeito das relações entre as comunidades de crentes e o poder temporal, a respeito da constituição da dogmática, da formação do clero, da luta contra as heresias, da estrutura das comunidades cristãs.Ao terceiro grupo de fontes cristãs pertencem os apócrifos, muito mais numerosos do que os escritos incluídos pela Igreja no cânone. Não nos resta, contudo, dessa imensa literatura, senão: 1) algumas obras relativamente extensas, e 2) fragmentos, algumas vêzes citações nas obras dos escritores eclesiásticos. Na primeira subdivisão incluem-se o Pastor de Hermas, publicado em 1883, a Diclaquê (doutrina dos doze apóstolos), as epístolas de Barnabé, de Clemente, Bispo de Roma, de Inácio, e outros escritos ainda, A segunda é constituída pelos evangelhos não canônicos, anteriormente enumerados, por diversas epístolas, apocalipses, atos compostos de ordinário por adversários da doutrina ortodoxa.Muitos dos apócrifos gozavam de um alto prestígio em certas comunidades, porém, por diversos motivos, não foram introduzidos no cânone da Igreja e conservam por essa razão traços específicos destruídos nos textos do Nôvo Testamento,

Page 44: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

48A ORIGEM DO CRISTIANISMOpelos seus redatores, O estabelecimento da data dos apócrifos está ligada, aliás, a dificuldades consideráveis, se bem que não se possa duvidar de que a maior parte dos que acabamos de citar remonte ao século II. R. Viper, inclinado, aliás, em cronologia a um criticismo exagerado, situa o Pastor e a Dida quê no século 1 e até mesmo antes da Guerra dos Judeus. E verdade que A. Ranovitch opôs argumentos de pêso a tal data, que êle considera muito recuada.A Didaquê é, de qualquer modo, um dos mais antigos escritos cristãos. Nada diz ela ainda a respeito da natureza humana do Cristo, que concebe unicamente como sendo o Filho de Deus. Não se encontra na Didaquê, fato bastante significativo, qualquer alusão à passagem do Cristo pela Terra, coisa já acontecida nesse momento segundo os Evangelhos. Seu último capítulo exorta apenas os crentes a se prepararem para a vinda do Cristo, e isso para a primeira, não para a sëgunda. Tantos indícios permitem afirmar que a Didaquê não pode ser posterior à primeira metade do século II.A Dida quê constitui, juntamente com as epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo, a principal fonte para o estudo da estrutura e da vida interior das comunidades cristãs primitivas, dos ritos e das cerimônias da religião nova. Se êste escrito não entrou no cânone foi seguramente por causa do seu silêncio a respeito da vida terrestre de Jesus. Eusébio certifica, contudo, que ela gozava de grande autoridade em muitas das comunidades cristãs.O Pastor de Hermas difere muito dos escritos cristãos. Compõe-se de três partes: as «Visões» os «Preceitos», as «Similitudes». Quanto ao estilo, lembra os romances antigos, procura despertar o interêsse do leitor pelo herói, descreve as suas aventuras. Obra quase literária, o Pastor é rico em alegorias. O arrependimento apresentado como o caminho do aperfeiçoamento moral de acôrdo com• as exigências da Igreja, tal é o tema principal dêste escrito que, sem dizer uma palavra sôbre Cristo, fala muito da Igreja. A data da sua composição não foi elucidada de modo preciso. Dando-se crédito aos dados do Fragmento de Muratori, êle deverá remontar à segunda metade do século II.É preciso citar entre os apócrifos a vasta coleção de papiros gnósticos descobertos em 1946 nas vizinhanças do território em que se encontrava outrora Chenobosquiom, antiga cidade egípcia situada a cêrca de O quilômetros ao norte de Lucsor.9 Esta coleção compreende 44 escritos em diversos dialetos da língua copta, perfeitamente conservados na sua maioria e fàcilmente legíveis. A época da composição dêsses

9 Ver 1. FRANTSEV: As Fontes da Religido e do Ateísmo, pág.464 da edição russa de 1959.

Page 45: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMO49papiros foi situada entre meados do século III e meados do século IV. Recordemos, a título de comparação, que o texto mais antigo da Bíblia, diz o Código do Vaticano, data do século IV, ou seja, da mesma época. Os papiros foram descobertos numa caverna, encerrados em um cofre com outros objetos, tendo sido aí escondidos já sob Constantino, sem dúvida para escapar às perseguições da Igreja.Uma parte dêsses papiros reproduz justamente os escritos contra os quais polemizavam Irineu, Orígenes, e outros Padres da Igreja. Datam, portanto, do século II. O conteúdo dos outros não encontra qualquer reflexo nas obras dos escritores eclesiásticos da Antigüidade que, segundo parece, não conheceram êsses documentos. Alguns títulos correspondem aos dos evangelhos apócrifos conhecidos uinicamente pelas referências dos autores eclesiásticos, tais como os apocalipses de Messe e de Zotrian, o evangelho gnóstico dos egípcios, o Evangelho Segundo Filipe, segundo Tomás, a Sabedoria de Jesus e outros escritos similares.A importância da descoberta dêsses papiros reside no fato de que em lugar dos dados incompletos e freqüentemente deformados sôbre o gnosticismo, fornecidos pelas obras dos apologistas ortodoxos, o historiador possui agora uma excelente coleção de escritos saídos da pena dos próprios autores gnósticos. Isto permite definir de modo mais adequado e preciso as relações entre o gnosticismo cristão e a dogmática da Igreja, as divergencias das diversas correntes no seio do gnosticismo.Os monumentos da cultura material descobertos por ocasião das escavações arqueológicas desempenham, de outra parte, um considerável papel no que concerne ao estabelecimento dos limites cronológicos dentro dos quais se desenrolaram as atividades das comunidades cristãs primitivas, e facilitam o estudo da evolução de sua ideologia. Atualmente, a ciência consegue estabelecer a data dêsses monumentos com aproximações de meio século e até de um quarto de século. E, como as organizações clericais se impõem o dever de financiar as escavações arqueológicas nos «lugares santos» e em outros lugares em que se espera descobrir vestígios da cristandade primitiva, as prospecções dêsse gênero são efetuadas em larga escala na Palestina, no Egito e em Roma. Contudo, não se conseguiu descobrir até hoje qualquer monumento cristão que possa ser situado, com certeza, no século 1. E certo que os guias de antigüidades cristãs consideram corno tais as pedras tumulares em que não se encontra a inscrição dis manibuslO, mas isso, evidentemente,

10 Nas províncias ocidentais do Império Romano, os epitáfios das pedras tumulares começavam freqüentemente pelas siglas DM ou DMS (dis manibus, dis manibus sacrum), que significavam a divinização da alma

Page 46: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

50A ORIGEM DO CRISTIANISMOnada prova. Os mais antigos epitáfios cristãos que se conhecem datam do século II apenas.Em todo caso, porém, isto não impede que a imprensa do Ocidente anuncie, de tempos em tempos, sob títulos sensa cionais, a pretensa descoberta de monumentos cristãos que remontam, se não à primeira metade, pelo menos aos meados do século 1.Eis alguns exemplos. Em 1920 foi descoberto em Filadélfia, no Egito, um papiro com um decreto do Imperador Cláudio datado do ano 41 e no qual, referindo-se aos conflitos e colisões ocorridos em Alexandria entre os judeus e os gregos, êle ameaça os primeiros de punição por «terem provocado certa doença no mundo inteiro.» Isto bastou para que vários historiadores franceses e italianos declarassem que se tinha ali a prova da difusão do cristianismo já durante a primeira metade do século 1. Essas perturbações foram descritas amplamente nas obras de Filon de Alexandria nas quais não se encontra, contudo, como nesse papiro, qualquer alusão aos cristãos.A «inscrição nazarena» que se publicou em 1929, e cuja data presumida foi fixada entre Augusto e Cláudio (do ano 31 antes de nossa era, ao ano 54 de nossa era), continha uma disposição imperial que interditava as exumações e qualquer profanação dos túmulos; num relance vários escritores viram nesse documento um eco da ressurreição de Jesus!Em 1947, foram descobertos perto de Coumrã, a noroeste do Mar Morto, numerosos rolos de couro com textos, em hebraico, dos profetas do Antigo’ Testamento, e alguns escritos apócrifos. Num dêsses rolos encontra-se, à guisa de comentários aos textos do profeta Habacuc, a descrição das perseguições contra uma seita judia, notadamente a execução do seu chefe denominado, nesse texto, «Mestre da justiça». Imediatamente, uma multidão de artigos apareceram na imprensa de vários países «demonstrando» que êsse chefe era justamente Jesus, e que êsses papiros eram os monumentos mais antigos do cristianismo. Divergências bastante sérias apareceram, contudo, entre os historiadores, quanto à idade dêsses papiros, que poderiam datar do século ii, à época das cruzadas. Depois de ulteriores escavações, efetuadas a partir de 1932, e da análise dos restos orgênicos dos rolos com os métodos modernos, pôde- se estabelecer que alguns dêles remontam do século 1. Os escritos descobertos em Coumrã são, portanto, muito impor-

dos defuntos e provavam, com efeito, que se tratava de uma sepultura pagã; mas a ausência dessas siglas absolutamente não prova tratar-se de uma tumba cristã. As fórmulas DM e DMS não aparecem senão a partir da época de AUGUSTO, a partir do ano 31 da nossa era, e era, a princípio de emprêgo bastante raro...

Page 47: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

A5 FONTES DO CRISTIANISMO51tantes para o estudo da pré-história do cristianismo; êles esclarecem a ideologia das antigas seitas judias radicais que já anunciavam a aparição das comunidades cristãs primitivas, mas êles não contêm dados que possam confirmar a existência terrestre de Jesus.Por iniciativa de Pio XII, efetuaram-se escavações sob as criptas do Vaticano em 1940 e, sobretudo, durante os anos que se seguiram à guerra. Nos fins da década de 40 dêste século, a imprensa ocidental, a católica em primeiro lugar, fêz um grande alarde em tôrno das escavações de Roma dizendo que, enfim, elas tinham sido coroadas de êxito, que tinha sido descoberto o sepulcro de S. Pedro e, até mesmo, seus restos. Isso confirmaria que êle não era apenas um mito, e, ao mesmo tempo, que êle teria vivido algum tempo em Roma, assim como S,. Paulo, tal como o quer a tradição da Igreja. Todo êsse falatório tinha apenas um fim: fortalecer a autoridade do Vaticano e do Papa enquanto «sucessor direto» dêsses dois «discípulos de Jesus».A análise objetiva dos resultados das escavações vaticana’ mostrou que nada havia de verdadeiro em tudo isso. E com tanta evidência que o próprio Pio XII foi obrigado a reconhecer, em dezembro de 1930, em discurso radiodifundido, a impossibilidade de se afirmar com certeza que essas ossadas pertenciam a S. Pedro. De fato, apenas tinham sido encontrados três sepulcros anônimos, datados do século 1, e, em um dêles, uma telha da época de Vespasiano, imperador romano de 69 a 79, enquanto que, segundo a tradição da Igreja, o apóstolo Pedro teria morrido em 66. Nada se descobriu capaz de provar que êsses túmulos encerravam restos de cristãos e, muito menos, de um dos apóstolos.Entre as moedas encontradas nas criptas cristãs, uma pertence à época de Antonino, o Piedoso, imperador romano de 138 a 161, seis são datadas do ano de 168 ao ano de 185, e mais de quarenta remontam aos fins do século II e aos começos do IV. Isso atesta a existência de uma comunidade cristã primitiva em Roma já no século II. O estabelecimento nas criptas vaticanas do altar cristão que, segundo uma versão posterior, se levanta sôbre o lugar em que os apóstolos estavam enterrados, remonta visivelmente a meados dêsse século. Tal foi, no que se refere aos dois primeiros séculos de nossa era, o único resultado das escavações do Vaticano.”

11 H. T0RP: “The Vatican Excavations and the Cult of St. Peter”, ia Acta Archeolo gira, XXIV, 1953, págs. 27-66; confira R. T. O’ CALLAGHAN: “Vatican Excavations and the Tomb of Peter”, in Biblical Archaeologis. , XVI, 1959, n 4, págs. 70-87.

Page 48: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

52A ORIGEM DO CRISTIANISMOEm 1947, arqueólogos israelitas publicaram os resultados das escavações que realizaram perto de Jerusalém.12 E. Sukenik, que dirigia êsses trabalhos, afirmava que havia descoberto vestígios extremamente antigos do cristianismo na Palestina. A cripta desenterrada por êle pertencia a uma família judia muito próspera; data do século 1, o que foi confirmado pela descoberta, no seu interior, de uma moeda do tempo de Agripa II, que reinou durante a segunda metade dêsse século. A cerâmica lá encontrada também é da mesma época. Além disso, Sukenik lá encontrou duas inscrições gregas que se compunham de duas palavras sômente com o nome de Jesus, e vários emblemas que apresentavam duas linhas cruzadas. Segundo a opinião dêsse arqueólogo, tratava-se aí de Jesus Cristo e do sinal da cruz. Semelhante suposição, desde que se demonstrasse ser exata, teria o valor de urna descoberta da mais alta importância, pois não se tinha encontrado até então qualquer monumento cristão, arqueológico ou epigráfico, do qual se pudesse afirmar, sem a menor hesitação, que êle datava do século 1. E tanto mais valiosa seria a descoberta por ter ocorrido na Palestina, considerada pela Igreja como o berço do cristianismo.Mas, os resultados das escavações em Jerusalém não justificavam de nenhum modo a precipitação com que E. Sukenik formulou tais conclusões. Êle próprio diz que esta cripta fôra pilhada na Antigüidade. A data das incrições pode, portanto, não coincidir com a da inumação dos primeiros despojos., Não se tem também qualquer razão para identificar o nome do Jesus que figura nas inscrições, com o Cristo dos evangelhos. O emblema que Sukenik toma pelo sinal da cruz é talvez a única circunstância a favor da sua hipótese. Sabe-se, porém, que a cruz, enquanto símbolo, só foi adotada pelos cristãos a partir do século IV. Estas reservas, que o próprio Sukenik levanta, em parte, no seu artigo militam contra sua interpretação dos achados arqueológicos de Jerusalém como sendo cristãos •1 3Apesar da extraordinária envergadura das escavações, não se pôde descobrir qualquer vestígio de monumentos cristãos datando do século 1, e isso prova bastante bem que êles não existem. E isso é natural: as primeiras comunidades cristãs formaram-se, seguramente, durante a segunda metade do século 1, sobretudo depois da Guerra dos Judeus, mas elas não praticavam então qualquer rito, como o veremos mais adiante, fato êsse

12 E. L. SUKENIIC: «The Eearliest Recordl of Christianity”, in Ameyican Journal of Archaeology, 1947, n 4, págs. 351-365.13 C. F. POULSEN: The Two Earliest Jesus Inscriptions, Studies Presented to D. M. Robinson, V. II, São Luís, 1953, pág. 119. (Ver a exposição das objeções de WILLOWGBY a SuKENIK.)

Page 49: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMOque nos permite presumir que delas nunca se encontrarão vestígios.A ausência de vestígios materiais do tempo dos apóstolos patenteia a inconsistência da versão oficial da Igreja a respeito da pretensa difusão-relâmpago do cristianismo, a partir do seu aparecimento. Para sair da dificuldade, os arqueólogos católicos classificam um grande número de achados dos séculos 1 e II na categoria especial dos moflumentos criptocristãos, tais corno epitáfios, pinturas murais, e até túmulos que não podem ser considerados com certeza como cristãos. Os epitáfios sem a sigla DM, sôbre os quais falamos anteriormente, são igualmente colocados nessa categoria.Do ponto de vista da investigação científica, nada justifica semelhante categoria. Os teólogos afirmam que as autoridades romanas proibiam os primeiros cristãos de realizarem ritos fúnebres, mas isso não é verdade. Sabe-se que as medidas repressivas das autoridades romanas contra os fiéis da nova fé atingiram o auge no século III e começos do IV. Ora, existe um grande número de túmulos indubitàvelmente cristãos, que datam justamente dêsse período, nas catacumbas de Roma, na Ásia Menor, na África, e em outras regiões. No multinacional Império Romano, não se exigia a renúncia a tal ou qual culto, mas provas de lealdade política da parte da população. As perseguições religiosas só ocorriam espordicamente, e por motivos de ordem política. Além disso, os funcionários do Império nunca se envolviam nos ritos fúnebres. A criação da categoria de monumentos criptocristãos atesta, uma vez mais, que o cristianismo começou a se difundir muito mais tarde do que o pretende o dogma da Igreja.Tal é o quadro no que concerne aos monumentos cristãos arqueológicos, epigráficos e papirográficos do século 1 e dos começos do século II. Ële se modifica a partir do segundo quarto dêsse último século: o número de papiros e monumentos incontestàvelmente cristãos que datam dêsse período vai aumentando pouco a pouco. O mais antigo dos documentos desta série é o fragmento de um manuscrito a respeito de um papiro de. origem desconhecida, cujo texto coincide, no essencial, com o do Evangelho Segundo João (XVIII — 31-33, 37-38).’4 Se o julgarmos por sua redação, poderemos situar a data de sua composição em meados, ou, mesmo, no primeiro têrço do século II. O fragmento de um evangelho desconhecido que se guardou no British Museum é um pouco posterior ao que acabamos de nos referir. Os textos dêsses dois papiros, cuja

14 C. H. ROBERTS: 4n Unpublished Fragment of the Fourih Gosp l ia th Joba Rylands Library, Manchester, 1935.

Page 50: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

54A ORIGEM DO CRISTIANISMOdata está fixada entre o ano de 125 e o ano de 165 15 foram publicados em 193516Descobriram-se, doutra parte, entre os papiros desenterrados em Oxirincus (Egito) fragmentos de evangelhos desconhecidos outrora, assim como várias sentençasl7 atribuídas a Jesus. Recordemos a êsse respeito que o apologista cristão Justino se referiu a uma coletânea que denomina, precisamente, «Sentenças de Jesus».De acôrdo com o plano da arqueologia cristã, foram ef etuadas sistemàticamente escavações em Roma desde os meados do século passado, por iniciativa de Giovanni Baptista de Rossi. Os materiais recolhidos no decorrer de um século dão uma idéia bem nítida do caráter dos antigos monumentos da comunidade cristã de Roma. Os que foram descobertos nas catacumbas de Lucina, de Domitila e de Calixto parecem remontar aos mais recuados tempos. Estas catacumbas, galerias subterrâneas de vários andáres, encerram grande número de túmulos, alguns dos quais, note-se isto, pertenciam também a pagãos.As mais velhas sepulturas cristãs se encontram nas catacumbas de Lucina e de Domitila (século II). Elas são excessivamente modestas e suas inscrições, lacônicas, tais como «Paz à tua alma», «À bemaventurada Sabina». Encofitramos aí emblemas, âncoras sobretudo, algumas vêzes a imagem de um peixe, símbolo preferido pelos primeiros cristãos: seu nome em grego, ictis, se compõe das iniciais das palavras «Jesus-Cristo, Filho de Deus, Salvador», em grego igualmente. Sem nenhuma dúvida, nessas catacumbas também se enterravam pagãos.Bem diferentes são as catacumbas de Calixto (Bispo de Roma nos começos do século III). Ësse cemitério dos cristãos da época em que ocorreram as mais encarniçadas perseguiç&s é cheio de imagens de peixes, de cordeiros, do Bom Pastor, dos sacramentos do batismo, da eucaristia, da confissão e de diversos assuntos bíblicos. Descobriram-se nestas catacumbas vários túmulos de bispos romanos.A simples comparação ‘das catacumbas de Lucina com as de Calixto basta para dar uma idéia da profunda evolução da comunidade cristã de Roma, no espaço de apenas um século. Vê-se aí, doutra parte, que as repressões contra os cristãos dessa

15 H. J. BELL: Cults and Cs’eeds in Greco-Rornan Egypt, Liverpool,1954, pág. 80.16 H. J. BELL e T. C. SKEAT: Fragmenis of an Unknown Gos,bel and O.ther Early Chrisiian Papyri, Londres, 1935.17 G. GRENFELL e A. HTJNT: Sayings of Oco’ Lord, 1897; G. GRENFELL, L. DREXEL e A. HUNT: New Sayings of Jesus and Fragmeu: of a Los; Gospel, 1904.

Page 51: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMO55época de nenhum modo impediam que êles observassem seus ritos fúnebres.Grande parte dos monumentos encontrados por ocasião das escavações vaticanas remontam ao século III. Em 1952, foi descoberto em Roma o rico sarcófago do cristão Valérius Vasatulus sôbre o qual se vê um desenho, assinado por Petrus, representando dois homens, e o texto de uma prece pela salvação da alma dos cristãos. Êsse sarcófago data do ano 280.Acabamos de examinar, de um modo muito geral, os grupos principais de fontes concernentes ao cristianismo primitivo. Desde que se as estude com espírito crítico, poder-se-á nelas distinguir o que pertence às diferentes épocas, e, sôbre esta base, seguir as fases do desenvolvimento da ideologia, das formas de culto e da estrutura interna das comunidades cristãs primitivas, determinando sua composição ética e social, e caracterizando sua atitude em face das outraa religiões e da aparelhagem estatal do Império Romano.Notemos que os mais antigos monumentos cristãos de que dispomos, tanto literários, como arqueológicos e papirográficos, datam, em sua maioria, dos meados do século II, e fornecem informações da extrema pobreza sôbre o primeiro século da nova religião. Os monumentos arqueológicos relativos ao cristianismo primitivo datam dos meados do século II, e os papiros os precedem de um ou dois decênios apenas. Nada mais do que esta circunstância nos faz duvidar, e vigorosamente, de que a composição dos evangelhos date dos meados cIo século 1, tal como o afirma o dogma ortodoxo. O exame das fontes judias e greco-romanas nos vai mostrar como o cristianismo nascente aparecia aos olhos do mundo circundante.2. FONTES NÃO CRISTÃSNão se encontra qualquer alusão aos adeptos da nova fé nas fontes não cristãs que datam do século 1. A maioria das informações a respeito dêles deveria provir, dir-se-á, dos autores judeus da época. As obras dêstes oferecem com efeito muitos dados relativos à pré-história do cristianismo, às condições sob as quais a ideologia cristã se constitui e começou a se desenvolver. Sob êste aspeto, são êles muito importantes, é rerto, mas não contêm qualquer informação direta sôbre os cristãos. O aparecimento de uma nova seita na Palestina, os milagres de Jesus, as peripécias dramáticas de sua vida, tal como é descrita nos evangelhos, e, finalmente, a irradiação e difusão rápida da nova religião deveriam ter atraído, forçosamente, a atenção dos escritores judeus dêsse tempo, escritores que nos legaram uma crônica minuciosa de acontecimentos até mesmo insigniicantes ocorridos então no pequeno país que era a Judéia.

Page 52: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

56A’ ORIGEM DO CRISTIANISMOOra, seu silêncio é total a êsse respeito. Isto só se pode explicar pelo fato de o relato dos evangelhos sôbre os primeiros passos do cristianismo na Palèstina datar do séculõ II, e não de antes.Conhecemos três autores judeus do século 1: Filon de Alexandria, Flávio Josefo e Justo de Tiberíade. De Filon e de Flávio Josefo possuímos não poucas obras, e se estas chegaram até nós foi, certamente, e antes de tudo, por causa de sua importância para a história do aparecimento do cristianismo.Filon de Alexandria (nascido em 30 antes de nossa era, e morto em 54 da era atual) pertencia a uma família sacerdotal. Fiel à religião judaica, era, ao mesmo tempo, um grande admirador da cultura grega. Filon consagrou tôda a sua atividade literária à síntese do judaísmo com a filosofia helenística. Depois das violentas perturbações entre judeus e gregos em Alexandria, em 38, foi êle quem presidiu a delegação judaica enviada a Roma.Pode-se formular como se segue sua concepção filosófica e religiosa: Deus é um ser absoluto, que sempre existiu, sendo eterno e todo-poderoso. Dirige o mundo por intermédio de seu Filho, o Logos (o Verbo), que intercede junto de Deus, a favor dos homens. O homem marc’ado pelo pecado original só consegue sua salvação libertando-se da vida material. O Logos o associa a Deus.Salta aos olhos a semelhança entre a idéia do Logos dêsse filósofo e o papel atribuído pela teologia cristã a jesus, Homem- Deus. Isto não escapou aos Padres da Igreja. Um dêles, Santo Ambrósio (século IV), sentia tanta admiração por Filon, que estêve a pique de classificar êsse judeu entre os fundadores da religião do Cristo. Tendo as opiniões de Filon servido de ponto de partida para a constituição da ideologia cristã, não nos devemos espantar com o fato de a maioria dos seus escritos se terem conservado enquanto desapareceram tantas .obras da Antigüidade. Os livros do judeu de Alexandria, que Engels tão bem qualificou de «pai do cristianismo», pertencem dêsse modo às fontes do Nôvo Testamento, que, segundo os teólogos, seria de inspiração divina.As afinidades entre as idéias de Filon e a ideologia cristã dão mais significação ainda à ausência de qualquer menção direta ao cristianismo nos seus escritos. Se as comunicações dos evangelhos a respeito das atividades de Jesus na Judéia fôssem verdadeiras, Filon, que escreveu várias obras depois do ano 40, não teria -podido silenciar sôbre o predicador palestino cujas opiniões coincidiam a tal ponto com as suas.O segundo historiador judeu do século 1, Flávio Josefo (nascido em 37, morto em 100) viveu na Palestina até a destruição de Jerusalém no ano 70, excluindo-se uma estada de três anos

Page 53: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMO57em Roma. Descendia também de uma família sacerdotal e aristocrática. Educado dentro do espírito religioso, Flávio Josefo participou da Guerra dos Judeus. Segundo seu próprio relato foi capturado pelos romanos, e declarou a Vespasiano, futuro imperador e, então, general das legiões romanas, que a predição dos profetas hebreus sôbre a vinda do Messias se referia a êle, Vespasíano.A Guerra dos Judeus e as Antigüidades Judaicas são as duas obras capitais dêsse escritor. Na primeira, depois de um breve apanhado consagrado ao passado da Judéia, Flávio Josefo expõe de modo circunstanciado os acontecimentos que provocaram a guerra em questão, e a própria guerra, até a queda de Jerusalém. A segunda obra descreve a história da nação judia desde a sua constituição até a época em que vivia o escritor, e os três últimos capítulos são dedicados particularmente a seu século.Flávio Josefo permaneceu, durante tôda a sua vida, fiel à fé dos seus ancestrais, o que não o impediu, contudo, de servir lealmente aos imperadores romanos que haviam devastado sua pátria. É óbvio que nada tinha em comum com os adeptos da nova religião. Seus escritos, no entanto, constituem uma fonte preciosa para o estudo da história da Palestina no primeiro século da nossa era. Nas Antigüidades Judaicas, Flávio Josefo relata, sem omitir qualquer detalhe, os acontecimentos ocorridos em sua época, em seu país; fornece informações muito importantes a respeito dos essênios e de outras seitas da Judéia. A profusão de dados de tôda espécie que se encontra nesta obra torna ainda mais eloqüente eu total silêncio sôbre os cristãos.Mas, os doutores da Igreja, percebendo claramente que a essência de qualquer alusão na obra de Flávio Josefo desacreditava totalmente o mito evangélico, não recuaram diante de uma falsificação grosseira. Nos manuscritos das Antigüidades Judaicas está escrito (XVIII, 3, 3) que, sob Pôncio Pilatos, viveu «Jesus, um homem sábio, se é que se pode, todavia, considerá-lo como um homem, pois foi autor de atos maravilhosos, mestre de homens que, com alegria, receberam dêle a verdade; êle atraiu muitos judeus, e, também, muitos gregos. Foi o Cristo. Quando, por denúncia daqueles que eram os primeiros entre nós, Pilatos o condenou à cruz, aquêles que, desde o princípio, o amaram continuaram procedendo assim; pois, êle lhes apareceu três dias depois, ressuscitado de nôvo. E os divinos profetas haviam previsto isto e dez mil outras maravilhas sôbre êle. Hoje, ainda não desapareceu a seita dos cristãos, nome êsse que deriva do dêle.» Porém, se se levar em conta a fidelidade de Flávio Josefo à religião judaica e, também, o fato de êle considerar Vespasiano como o Messias,

Page 54: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

58A ORIGEM DO CRISTIANISMOde modo algum se poderá aceitar que tenha dado tal título a Jesus também. Segundo a opinião geral dos historiadores, essas linhas não passam de uma interpolação posterior, devida a um copista, tão ingênuo, quanto piedoso.Graças a um feliz acaso, é mesmo possível estabelecer a data dessa intercalação. Um dos Padres da Igreja, Orígenes, polemizando contra Celso, crítico do cristianismo, acusa Flávio Josefo de não ter querido admitir que Jesus era o Messias. Eusébio, que compôs a sua História Eclesiástica no século IV, pouco depois da vitória do cristianismo, já reproduz as linhas que foram acrescentadas, o que dá lugar à crença de que a passagem citada foi intercalada nos textos de Flávio Josef o entre os fins do século III e os começos do século IV. Trata-se de uma interpolação tão manifesta que muitos dos teólogos católicos não mais ousam negá-la.Em outra página das Antigüidades Judãicas (XX, 9), Flávio Josefo fala da condenação de certo «Pedro, irmão de Jesus, chamado o Cristo, e de alguns outros.» Em meados do século III, Orígenes, em diversas ocasiões, referiu-se a essa passagem que, à primeira vista, parece muito mais digna de fé do que a que citamos anteriormente. Mas, como admitir que essas palavras são da pena de Flávio Josefo, uma vez que êsse mesmo Orígenes o acusou de duvidar de que Jesus fôsse o Messias (o Cristo)? Pode ser que o original se referisse a outro Jesus. É evidente, em todo o caso, que esta passagem também traz vestígios da intervenção de copistas cristãos. Nos escritos de Flávio Josefo nada mais se encontra que se relacione com o cristianismo.Apesar da ausência de referências ao cristianismo nas duas obras de Flávio Josef o, tanto urna como outra são indispensáveis ao estudo do problema que nos ocupa, sendo, com efeito, a única fonte de que dispomos sôbre a história da Palestina antes da Guerra dos Judeus, e a principal fonte sôbre a história dessa guerra. Se bem que o cristianismo tenha nascido entre hebreus que viviam fora do seu país, os acontecimentos na Palestina não deixaram de exercer sôbre êles uma grande influência, onde quer que vivessem, no Egito, ou na Ásia Menor. É preciso não esquecer, doutra parte, que os autores dos livros do Nôvo Testamento obtinham dados históricos sôbre a Palestina nos escritos de Flávio Josefo: vários detalhes dos evangelhos foram emprestados das Antigüidades Judaicas.Justo de Tiberíades, terceiro historiador judeu do século 1, adversário político de Flávio Josefo, escreveu várias obras, mas nenhuma delas chegou até nós. Fócio, escritor bisantino do século IX, Patriarca de Constantinopla, cita, de passagem, sua Crônica dos Reis Judeus (de Moisés até a morte de Agripa II no ano 100) e acrescenta que Justo silenciou a respeito de

Page 55: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

A FONTES DO CRISTIANISMO59<muitas das coisas de primeira importância e, como judeu, não falou do Cristo, de seus milagres.» É, portanto, claro que, no tempo de Justo, o mito de Jesus ainda não existia. 18Entre as outras antigas fontes judaicas apenas o Talmud cita o nome de Jesus. Mas, êle o une a personagens e acontecimentos que se localizam nos primeiros 25 anos do século primeiro antes da nossa era, portanto, a um século anterior ao dos evangelhos. Esta parte do Talmud foi composta no século III, e não há a menor dúvida de que apresentaria muito mais informações concretas sôbre Jesus, se êste tivesse existido realmente. Uma menção no Talmud (Jesus é aí habitualmente chamado de Ben-Pandira) não pode de modo algum servir de argumento a favor da historicidade de Jesus. Esta obra data do século III, quando o cristianismo, já há muito tempo existente, mantinha uma luta encarniçada contra o judaísmo; o que os redatores do Talmud dizem de Jesus foi colhido na literaturacristã, e não na judaica.Acabamos de ver que os autores judaicos, cujos escritos se conservaram em grande quantidade, não fornecem a menor prova da existência de Jesus. Teriam êles podido ignorar de urna maneira tão completa o fundador do cristianismo se no relato dos evangelhos houvesse uma parcela que fôsse de verdade histórica? Seu silêncio atesta que o mito de Jesus, Homem-Deus, só foi concebido no século II.As obras de Sêneca (nascido no ano 4 antes de nossa era, morto em 65), filósofo estóico dos mais eminentes, contam-se entre aquelas dos escritores greco-romanos que desempenharam um grande papel na formação da ideologia cristã. Preceptor de Nero, sua influência foi grande durante os primeiros anos do reinado dêste último. Tendo sido alvo das generosidades de Nero, Sêneca enriqueceu-se fabulosamente.Nos seus numerosos escritos filosóficos, enuncia êle a idéia de um Deus absoluto e todo-poderoso, donde a necessidade da resignação ante os golpes do destino, uma vez que tudo acontece segundo a vontade do Altíssimo. Classificava os homens em duas categorias: os sábios, que desprezam os bens terrestres, e os tolos, sequiosos de poder e de riqueza. Contudo, sua vida parecia desmentir suas teorias. - - Engels, que chamou Sêneca de «tio do cristianismo», caracteriza como segue o contraste entre os seus costumes e a sua filosofia: «Êste estóico, que pregava a virtude da abstinência, foi um intrigante de

18 O silêncio de Justo sôbre Jesus tem embaraçado muitos dos partidários da historicidade de Jesus. DANIEL-ROPS afirma que se trata de “um silêncio intencional e revelador”, da mesma natureza que o de PLÁVXO JOSEFO, que êle acusa, sem o provar, de ter obedecido, no caso, a um cálculo de oportunista.

Page 56: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

60 A ORIGEM DO CRISTIANISMOmarca maior na côrte de Nero, e realizava sua tarefa com grande servilismo; foi dêsse modo que conseguiu ganhar muito dinheiro, bens, jardins, palácios, e apesar de propor um pobre Lázaro como modêlo, era êle, na realidade, o rico da parábola evangélica. »19Apesar das diferenças entre as concepções de Sêneca e a ideologia cristã (o filósofo romano não reconhecia o pecado original e admitia o suicídio), o cristianismo tomou emprestado dêle muitas coisas. Também os Padres da Igreja, Tertuliano e S. Gerônimo, o consideravam como um dos seus.Não se encontra nos escritos de Sêneca, nem nos de outros escritores greco-romanos do século 1, qualquer alusão a Jesus, ou aos cristãos. Nos começos do século seguinte, a situação muda um pouco: Tácito e Suetônio já se referem aos adeptos da fé cristã. Nos Anais (XV, 44) de Tácito fala-se que Nero, depois do incêndio de Roma, em 64, desejando «emudecer aquêle rumor que o acusava [do incêndio] substituiu os acusados e infligiu as mais refinadas torturas a homens cujas abominações os tornavam odiosos, e que o vulgo chamava de cristãos. O responsável por êsse nome, Cristo, tinha sido condenado ao suplício sôbre o reino de Tibério pelo procurador Pôncio Puatos ( . ..). Começou-se pela prisão daqueles que se confessavam cristãos, e depois, durante os seus depoimentos, prendeu-se uma imensa multidão que estava menos convicta de ter incendiado Roma, do que de odiar o gênero humano.»Os Anais foram escritos no ano 115 aproximadamente. Nesse momento, o cristianismo já existia, e o mito do Cristo já começava a se formar. A passagem citada deixa entrever a hostilidade do historiador para com os cristãos, sentimento muito natural num representante da velha aristocracia romana. Isto parece confirmar a autenticidade dessas linhas e, se elas são verdadeiramente do célebre historiador, fizemos, com elas, uma importante aquisição: êle sabia da existência dos cristãos. Teria podido saber disso enquanto exercia o proconsulado na Asia Menor, de 112 a 113. Mas, sua afirmação sôbre a «imensa multidão» de cristãos em Roma no ano de 64 está em contradição com tôdas as fontes de que dispomos quanto a êste período. Ela não corresponde à verdade e, fato mais importante ainda, só é encontrada no texto de Tácito porque provém de uma fonte cristã muito posterior. A referência a Pôncio Pilatos revela igualmente a fonte de inspiração cristã, porque, apesar de ter desempenhado um papel de primeiro plano no relato evangélico, Pilatos não era senão um miúdo personagem na escala do Império Romano.

19 K. MARX e F. ENGELS: Sur la Religion, ditions Sociales, Paris, 1960, pág. 198.

Page 57: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMO 61As minúcias sôbre os acontecimentos reproduzidos nesse fragmento também despertam dúvidas. O historiador não as teria podido encontrar nos arquivos, uma vez que sua crônica é dirigida contra Nero, então no poder. Não se fica sabendo de que eram considerados culpados os cristão detidos. Do incêndio?! O título de «cristão», por outro lado, não apareceu senão no século II. E preciso, portanto, admitir-se que esta passagem, apesar de ser devida a pena de Tácito, foi composta por êle segundo a tradição cristã, se bem que interpretada contra os cristãos. A versão sôbre a participação dos cristãos no incêndio de Roma, versão negada pelo próprio historiador romano, foi naturalmente inventada em todos os seus aspetos. Quanto à existência de grupos cristãos, ou melhor: judaico- cristãos, em Roma, em 64, nada há de impossível nisso, especialmente se levarmos em conta que o Apocalipse de João remonta ao ano de 68. Mas, no seu conjunto, o Anais oferecem muito poucas informações dignas de fé sôbre a história do cristianismo original.Suetônio, contemporâneo de Tácito, autor de Os Doze Césares, compostos sob Adriano, durante o segundo quarto do século II, fala também das perseguições de que os cristãos tinham sido vítimas da parte de Nero. «Entregaram-se aos suplícios os cristãos, espécie de gente que se dedica a uma superstiçãci nova e malfazeja.» (Nero, XVI.) No Cláudio (XXV), Suetônio comunica: «Como os judeus se sublevassem continuamente, instigados por certo Crestos, êle os expulsou de Roma.» Aqui, trata-se de judeus, não de cristãos, e a coisa se passa em Roma. Conhecendo a língua grega, gramático cheio de erudição, Suetônio não poderia de modo algum confundir Crestos, nome de escravo bastante difundido e que significa «zeloso, útil», e Cristo, do grego Cristos, oint, o Messias. Não se pode admitir, finalmente, a existência de um número elevado de cristãos em Roma sob Cláudio (41-54). E claro, portanto, que essa segunda informação de Suetônio não se refere aos cristãos.Se as passagens citadas de Tácito e de Suetônio são autênticas, é necessário considerá-las como testemunhas de grande valor no que concerne à difusão do cristiaiismo durante a primeira metade do século II; elas indicam que mesmo certos representantes das altas camadas romanas já conheciam o cristianismo em suas linhas gerais. Porém, nem o primeiro, nem o segundo dêsses historiadores nos dão uma única informação a respeito de ideologia cristã no século 1.O primeiro testemunho inegável a respeito do cristianismo como tal nos vem de Plínio, o jovem, escritor romano, nascido em 62, morto depois de 113. Tendo exercido a pró-pretoria em Bitínia, na Ásia Menor, de 111 a 113, mantinha corres-

Page 58: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

62 A ORJGEM 00 CRISTIANISMOpondência regular com o Imperador Trajano, e suas cartas assim como várias respostas de Trajano chegaram até nós. Em uma vasta mensagem (X, 96), Plínio pergunta como deve proceder em relação aos cristãos. Trajano (X, 97) responde que não é necessário adotar medidas especiais a êsse respeità, bastará punir aquêles que, acusados de professar a nova fé, não a quiserem renegar. A missiva de Plínio revela vestígios evidentes de interpolações que revelam o grau de propaganda do cristianismo na Bitínia nessa época, os costumes virtuosos dos cristãos etc. Mas, não parece que ela seja totalmente falsa: Tertuliano já se refere a ela no século II, assim como à resposta de Trajano.Pode-se considerar as duas cartas em questão como o primeiro documento importante de origem não cristã sôbre os cristãos.20 A correspondência entre Plínio e Trajano nos informa a respeito da atitude dos círculos governamentais do Império Romano em relação aos cristãos, bem como sôbre a ação judiciária empregada contra êles, a composição e a estrutura das comunidades cristãs, ainda que tenham sido acrescentadas intercalações manifestas exatamente a essas passagens.Esta correspondência contém, doutra parte, muitos dados sôbre a situação em uma província da Ásia Menor onde o cristianismo ir-se-ia difundir muito depressa. As outras cartas de Pumnia, o jovem, e sobretudo as de Trajano, mostram que as autoridades romanas não estavam muito inclinadas a perseguir os cristãos, por suas convicções religiosas.Outros testemunhos de origem não religiosa sôbre o cristianismo só começam a aparecer depois de um intervalo de vários decênios, a partir da segunda metade do século II. Encontram-se comunicações lacônicas sôbre os cristãos nos escritos de Marco Aurélio, imperador-filósofo que reinou de 161 a 180. Luciano e Celso atacaram os cristãos, em suas obras.O primeiro, nascido em 125 e morto em 195, foi um dos mais brilhantes escritores gregos da Antigüidade. Atribuem-se- lhe aproximadamente 80 escritos conservados; de pequena extensão, na sua maioria, têm, geralmente, a forma de diálogos. «Luciano de Samosata, escreveu Engeis, o Voltaire da Antigüidade, que mantinha uma atitude igualmente cética a respeito de tôda espécie de superstição religiosa, e que, por conseguinte, não tinha motivos — nem por crença pagã, nem por política— para tratar os cristãos diferentemente de qualquer outra associação religiosa. Ao contrário, censura a todos por sua

20 O Acadêmico R. Viraz, em Roma e o Cristianismo Primitivo, sustenta que esta carta, assim como muitas outras, não é de PLÍNI0. A. RANOVITCH, em Províncias do Império Romano, manifesta opinião diferente dessa.

Page 59: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES 00 CRISTIANISMO 63superstição, tanto aos adoradores de Júpiter, como aos de Cristo. »21Em a Morte de Peregrino, Luciano fala dos primeiros cristãos com conhecimento de causa, e com muitos detalhes. No opúsculo Alexandre, ou o Falso Profeta, menciona-os também, mas de passagem apenas. Estes dois escritores assinalam, com um tom irônico, certos traços próprios às comunidades cristãs dos meados do século II. A Assembléia dos Deuses, curta cena satírica de Luciano, caracteriza bem o sincretismo religioso nas regiões orientais do Império Romano. Suas obras, no seu conjunto, constituem uma das melhores fontes para o estudo das diversas crenças religiosas em sua época.Celso, contemporêneo de Luciano, compôs na década dos 70 do século II seu Discurso Verdadeiro, que conhecemos apenas pelos fragmentos citados por Orígenes em sua obra Contra Celso. Para criticar as teses de Celso, Orígenes as reproduz e, assim, permite-nos ter uma idéia bem completa de sua obra. Esta comportava quatro partes, a primeira das quais continha a crítica do cristianismo, do ponto de vista do judaísmo, a segunda, do ponto de vista da filosofia e da história, a terceira, a crítica de certos dogmas da religião, e a última procura demonstrar a possibilidade de conciliar o cristianismo, com os outros cultos do Império.Contràriamente a Luciano, Celso criticava o cristianismo não das posições do materialismo antigo, mas das posições da religião greco-romana oficial. Contudo, seus excelentes conhecimentos da literatura cristã e do estado das coisas no seio das comunidades de cristãos conferem aos seus escritos um grande valor histórico. A obra de Celso é indiscutIvelmente uma fonte indispensável para o historiador do cristianismo do século II.O escrito intitulado Coecilius datando, segundo parece, dosfins do século II, e a obra capital de Porfiro Contra os Cristãos(sécuin III) se assemelham ao Discurso Verdadeiro de Celsopor seu espírito e por sua argumentação. Assim como outrasobras anticristãs, estas não chegaram até nós senão pelas citaçõesincluídas nos escritos dos apologistas cristãos. O livro dePorfiro suscitou particularmente a ira dos representantes daIgreja e foi objeto, em 448, de um edito especial do Imperador,que proclamava: «Queimar tudo que Porfiro, impelido pelaloucura, escreveu contra a santa fé cristã, por tôda parte emque seus escritos sejam descobertos.» (Código Justiniamo,1,1,3.)

21 Karl MARx e F. ENGELS, ob. cit., pág. 313.

Page 60: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

A ORIGEM DO CRISTIANISMO 64Tiremos algumas conclusões dêste rápido apanhado das fontes cristãs.Para prosseguirmos na análise do problema das origens cristãs, é preciso classificar as fontes em ordem cronológica. Êsse é um ponto de primeira importância, pois não se pode, sem isso, passar ao estudo sistematizado da ideologia do cristianismo primitivo, da sua composição social, das suas formas de organização e da sua propagação. Sômente êsse método histórico de abordar a questão nos permitirá seguir as fases da gênese e do desenvolvimento inicial da religião cristã, a mais influente entre as três religiões universais.Vimos, páginas atrás, que os meados do século II marcam uma mudança no que concerne ao número dos documentos relativos ao cristianismo; Quais são, portanto, as fontes anteriores a essa época? O documento mais antigo, não apenas da literatura cristã primitiva, mas também da cristandade em geral, é o Apocalipse de João, do qual pelo menos os temas maiores remontam ao final da década dos 60, do século 1. Depois do Apocalipse vêm, com algumas dezenas de anos de intervalo, as primeiras epístolas de São Paulo e, datando dos primeiros anos do século II, os Anais de Tácito e a correspondência de Plínio, o jovem, com Trajano. Ao segundo quarto do século 11 se ligam as epístolas paulinianas seguintes, a breve relação de Suetônio, e vários pequenos fragmentos evangélicos em papiros.Dispomos, além disso, de uma série de documentos cristãos primitivos cuja data exata não está estabelecida, mas que, em todo caso, remontam à primeira metade do século II. São êles a Dida quê, grande parte das epístolas do Nôvo Testamento atribuídas a outros apóstolos e, evidentemente, uma parte das epístolas não apostólicas. A êste último grupo pertencem a primeira epístola de Clemente, Bispo de Roma, as epístolas de Inácio, e outros documentos menos importantes. Os mais antigos monumentos cristãos descobertos durante escavações nas catacumbas de Roma datam também dêste período. E, encerrando a série, temos as obras de Justino, primeiro apologista cristão, escritos por volta do ano de 150, as Sentenças de Jesus e as Recordações dos Apóstolos, coletâneas hoje perdidas, mas que forneceram a matéria prima para o Evangelho Segundo Marcos.O segundo grupo de fontes, provenientes da segunda metade do século II, é muito mais abundante. Luciano e Celso, críticos do cristianismo, escreveram de 150 a 175. Os evangelhos introduzidos no cânone da Igreja, as epístolas pastorais de Paulo, os escritos de Taciano, discípulo de Justino, também pertencem a êsse período.

Page 61: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS FONTES DO CRISTIANISMO 65Por volta de 180, Irineu escreveu seu tratado contra as heresias, e Hermas, o seu Pastor. Os Atos dos Apóstolos, o escrito mais recente do Nôvo Testamento, foram redigidos defi nitivamente nesta época também. As primeiras obras de Tertuliano e de Clemente de Alexandria datam dos fins do século II.Da primeira metade do século III, temos muitos escritos devidos a êsses autores e a outros Padres da Igreja, Orígenes particularmente. Seus dados são completados por numerosas descobertas arqueológicas e papirográficas, pelas alusões aos cristãos que encontramos numa série de obras antigas não cristãs, por testemunhos das mais diversas origens. A partir desta época, dispomos já de uma quantidade mais ou menos suficiente de documentos que tratam do nosso problema.A abundância relativa, a partir dos meados do século II, de escritos cristãos, assim como o aparecimento de obras dirigidas contra o cristianismo, atesta que êste último já era uma corrente religiosa relativamente poderosa, que já havia atingido certa maturidade há alguns decênios. Esta circunstância nos faz duvidar, por si só, da justeza da tese do Acadêmico R. Viper, segundo a qual o cristianismo acabava, nesse momento, de surgir.A nítida desproporção entre a pobreza das fontes cristãs do século 1 e a profusão de documentos cristãos e anticristãos do s&ulo seguinte não pode ser explicada pelo acaso, ou pela súbita difusão da nova religião. Com tôda evidência, a cons tituição da Igreja desempenhou nisto um papel decisivo. A criação do episcopado, o fortalecimento das ligações entre as comunidades crista.s, os imperativos da luta contra as heresias ditaram a necessidade de santificar certo número de escritos. Outro fator não menos importante foi o aniquilamento, pela igreja, dos escritos cristãos dos primeiros tempos, contrários ao espírito dos seus dogmas. Ela nisso se afervorou particular- mente depois da vitória do cristianismo, quando a máquina do Estado foi posta a seu serviço. Êste estado de coisas se refletiu na passagem anteriormente citada do Código Justiniano a propósito dos escritos de Porfiro, na história dos papiros gnósticos de Chenobosquion, na confiscação do Diatessarão de Taciano. E óbvio que as obras cristãs pouco agradáveis para a Igreja eram sobretudo as mais antigas, profundamente diferentes, por seu espírito combativo, não, sàmente, da ideologia clerical oficial, mas, também, dos escritos cristãos que datam dos meados e da segunda metade do século II. Ë por isso que eles eram destruídos ou remodelados de acôrdo com as cxiências da Igreja triunfante.Sendo a ordem cronológica do aparecimento dos primeiros escritos cristãos diametralmente contrária à ordem de sua disposição segundo a tradição ortodoxa, a história do nascimento

Page 62: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

A ORIGEM DO CRISTIANISMO 66e do desenvolvimento inicial do cristianismo à luz da ciência difere radicalmente do esquema teológico adotado pela Igreja, que é tão velho como a História Eclesiástica de Eusébio. A análise objetiva dos documentos da literatura cristã primitiva e sua interpretação pelos escritores religiosos se opõem a cada passo no que concerne às questões, tanto gerais, como particulares, da história do cristianismo.

Page 63: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

CAPÍTULO IIO IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO 1. PREMISSAS ECONÓMICAS E SOCIAIS DO CRISTIANISMO.O cristianismo apareceu no século 1, entre os judeus da diáspora, país onde se fixavam após a dispersão. Difundiu-se muito ràpidamente nas províncias orientais do Império Romano, na Ásia Menor e, particularmente, no Egito. Nos começos do século seguinte, a nova religião penetrava na Grécia. Durante a primeira metade dêsse século, ela já tinha fiéis em Roma, durante a segunda, na Gália, na África do Norte, particular- mente em Cartago cuja comunidade cristã era uma das mais consideráveis da época. No século III, a Igreja, tornada uma fôrça política, começou a se impor aos podêres romanos; legalizado nos começos do século IV, o cristianismo não tardou a vir a ser a religião oficial do Império. Assim, três séculos após seu nascimento, êste culto que - foi tão combatido no início se transformou em religião dominante em Roma.Três séculos são um período muito longo, mesmo se levarmos em conta a lentidão da evolução histórica durante a Antigüidade. O islamismo, por exemplo, levou dois séculos para se expandir por um território muito vasto. Recordemos, doutra parte, que a difusão do cristianismo não seguiu sempre uma linha ascendente; durante êsses trezentos anos, a nova religião conheceu períodos em que sua popularidade subia a pino, e outros em que o número de seus fiéis diminuia catastr ficamente. Seu conteúdo mudava também muito ràpidamente. O triunfo espetacular do cristianismo sôbre as outras religiões da Antigüidade não deixa de ser, contudo, um acontecimento de primordial importância e exige como tal uma explicação estritamente científica.Para apreender as razões do êxito do culto cristão, é necessário, inicialmente, analisar a situação social e política das regiões do Império Romano em que êle nasceu e se desenvolveu, e sômente depois, as formas religiosas dêsse culto, que correspondem, no fundo, às relações reais. Tal é o único método materialista nesta ocorrência, portanto, o único verdadeiramente científico.No decorrer de dois séculos (dos - meados do III, à segunda metade do 1 antes da nossa era), o Estado Romano, que, a princípio, se extendia nicamente à Península Itálica, tornou-se a primeira potência do mundo antigo. Englobou, progressivamente, a totalidade dos países mediterrâneos, limi67

Page 64: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

68A ORIGEM DO CRISTIANISMOtando-se a Leste, pelo Eufrates, ao Norte, pelo Danúbio e o Reno, a Oeste, pelas margens do Atlântico, ao Sul, pel@ Deserto de Saara e as cataratas do Nilo. Todos os centros culturais da Antigüidade cairam sob o poder romano, com exceção da India, da Partia e da China.A aglutinação dos países da bacia mediterrânea sob o signo do Império foi o resultado de uma série de causas. A principal foi a escravidão, muito mais antiga nos países conquistados, do que em Roma, e que havia provocado a decadência dêsses países. Os escravos não estavam de modo algum interessados em elevar a produtividade do trabalho. Nessas sociedades, o trabalho físico era desprezado; era considerado indigno do homem livre. A única exceção era a agricultura. Como o trabalho dos escravos ia substituindo o trabalho dos homens livres, isso frenava o desenvolvimento das fôrças produtivas. Durante a Antigüidade, os Estados escravagistas em decomposição caiam freqüentemente sob a dominação de outros, mais poderosos precisamente porque a escravidão nêles era menos desenvolvida, e porque dispunham de uma vasta camada de cultivadores livres que fornéciam combatentes de boa têmpera. A Grécia, por êsse motivo, foi conquistada pela Macedônia, reduzida, por sua vez, a província romana. Uma vez que ambas «repousam elas próprias sôbre a escravidão — notouF. Engeis no Anti-Duhring — houve inicamente um deslocamento do centro, e o processo se repete num nível superior.»1A constituição do Império Romano foi justamente uma repetição dêsse processo num nível superior, e, nos seus quadros, as relações escravagistas se estenderam a um imenso território.A constituição do poderio romano mediterrâneo modificou a economia, tanto da Itália, como de suas províncias. No decorrer dos séculos II e 1 antes de nossa era, o número de escravos na Itália aumentou consideràvelmente. As guerras quase incessantes forneciam ao Império centenas de milhares de novos escravos. Se bem que pouco produtivo, o trabalho dos escravos concorria com o dos produtores livres, com algum êxito. E eis por que. A concentração das massas de escravos pertencentes a um único senhor assegurava as vantagens próprias à simples cooperação, permitiam estabelecer entre êles uma divisão do trabalho ainda que primitiva, favorecia a especialização. Os escravos, por outro lado, levavam uma vida miserável, não tinham, em geral, uma família para manter, e os gastos necessários à sua manutenção eram, portanto, muito inferiores àqueles exigidos pelos trabalhadores livres. A feroz exploração de que êles eram vítimas os esgotava terrivelmente, e raros eram aquêles que conseguiam viver mais de dez anos em estado

1 F. ENGELS: Anti-Dühi’ing, c1itions Sociales, Paris 1950, pág. 389.

Page 65: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO I69de escravidão. Mas, êles custavam tão pouco, que podiam ser fàcilmente substituídos por outros mais jovens.Para servir no exército, os cultivadores livres eram afastados durante longos anos de suas terras. As guerras exteriores e, sobretudo, as guerras civis que causavam estragos na Itália traziam grandes prejuízos às pequenas economias camponesas, enquanto os ricos senhores de escravos se recuperavam muito fàcilmente. Tôdas essas circunstâncias, sem ter determinado a desaparição completa dos médios e dos pequenos cultivadores, contribuíram, contudo, para diminuir consideràvelmente o seu número.O trabalho dos escravos era também largamente empregado no artesanato, sem atingir, todavia, as proporções que êle tinha nas cidades evoluídas da Grécia. O trabalho manual e o artesanato eram considerados em Roma como ocupações incompatíveis com o exercício dos deveres do cidadão romano. Sômente as profissões «intelectuais» gozavam de certa consideração. Em meados do século 1 antes da nossa era, centenas de milhares de romanos viviam graças a distribuições graciosas de alimentos.A implantação das relações escravagistas provocou na Itália profundas perturbações sociais tais como a redução catastrófica do número de produtores livres no artesanatõ e, sobretudo, na agricultura, e o aparecimento de enormes contingentes de desclassificados que viviam à custa da sociedade, isto é, graças ao trabalho dos escravos do Império. Em conseqüência, as condições de vida das massas laboriosas da Itália se agravaram sensivelmente.A conquista romana não era menos trágica para as provmncias. - Era acompanhada de terríveis destruições das fôrças produtivas. Os conquistadores levavam para a escravidão centenas de milhares de cativos. Nenhum historiador romano esquece de mencionar quantas libras de ouro ou de prata tal ou qual general trazia consigo no seu retôrno triunfal a Roma. As guerras, fonte de enriquecimento para os generais e legion rios de sorte, deixavam atrás delas rumas. Os escritores da antiga Roma o constatam mesmo na Grécia, onde os conquistadores se mostraram contudo menos ferozes do que em outros lugares. «Quàndo do meu retôrno da Ásia, escrevia a Cícero um dos seus amigos, fui de barco, de Egina, a Megara, e pus-me a observar as costas. Atrás -de mim, estava Egina; na frente, Megara; à direita, o Pireu; à esquerda, Corinto; essas cidades, Outrora florescentes, encontram-se hoje completamente devas. tadas.» Estrabão, geógrafo grego que escreveu no limiar de. nossa era, nota que, em Esparta, de cem cidades apenas umas trinta subsistiam após a invasão. Plutarco (século II.°) diz que no seu tempo, a Grécia não podia opor ao inimigo mais que três mil hoplitas (soldado de infantaria pesadamente

Page 66: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

70A ORIGEM DO CRISTIANISMOarmado), enquanto que outrora a pequena Megara teria podido, ela só, equipar tal número.Êstes fatos mostram que, depois das operações militares, outros fatôres intervieram e impediram durante centenas de anos o soerguimento das regiões conquistadas pelos romanos. Nos países vencidos, em lugar das legiões e, muitas vêzes, antes de sua partida, chegavam os famosos publicanos, coletores dos dinheiros públicos, e tôda sorte de usurários que completavam a obra de destruição. Um dos exemplos mais eloqüentes da pilhagem que os governadores romanos realizavam nas províncias é dado por Caius Verres, Protetor da Sicília, que, do ano 73 ao ano 71 antes de nossa era, embolsou a colossal soma de40 milhões de sestércios pela violência, pelo impôsto sôbre o vinho, pelo roubo, e assim por diante. Depois dessas suas investidas, a metade, aproximadamente, das terras aráveis foram abandonadas e em muitos lugares a população baixou de dois terços. Um sistema complexo e ruinoso de impostos, de contribuições e de outras exações absorvia a seiva vital das cidades subjugadas por Roma. As taxas da usura se elevavam ordinàriamente a 12% de juros anuais, freqüentemente a 24% e, às vêzes, a 4896. Não é por acaso que, nos evangelhos, os publicanos, recebedores dos impostos, figuram entre os pecadores mais inveterados. Os devedores que não podiam pagar suas dívidas eram vendidos no mercado de escravos.As massas dos países conquistados já não eram livres antes da instauração do poder romano, mas, agora, depois da vitória de Roma, o eram ainda menos. A linha política dos conquistadores consistia em não se imiscuir nos negócios religiosos, apoiando invariàvelmente as classes possuidoras, contra a população sôbre a qual passava, então, a pesar um duplo jugo, o dos dominadores estrangeiros, e o dos opressores indígenas. Nos países em que existiam cidades autônomas, os romanos conservaram os conselhos urbanos e outras instituições locais, mas isso era apenas formal porque, na realidade, todo poder pertencia aos funcionários romanos. É por isso que, depois da conquista da Grécia, a vida política tão intensa das cidades- estados anemiou-se cada vez mais, até extinguir-se finalmente de uma vez.A colonização romana desempenhou por seu lado um papel importante na desagregação da antiga ordem de coisas. Para evitar o descontentamento das camadas pobres da República, as autoridades romanas fundavam colônias nos países conquistados e davam aos cidadãos de Roma os melhores lotes das terras confiscadas à população local. Essas colônias, especialmente as do Oeste, eram não apenas bastiões da hegemonia romana, mas tornaram-se com o tempo centros da vida eco-

Page 67: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O IMPERIO ROMANO NO SÉCULO 171nômica. Os colonos implantavam em tôrno dêles o regime escravagista.O processo judiciário era outra arma de fortalecimento da dominação romana. Julgava-se em tôda parte segundo a lei romana, sem levar em conta a legislação local. A distinção entre homens livres e escravos, proclamada continuamente pelo direito romano, favorecia o desenvolvimento da escravidão antiga nos novos lugares. Os privilégios de que gozavam os cidadãos romanos produziam o mesmo efeito.As nações submetidas ao poder de Roma só se beneficiavam de uma vantagem: a de uma paz relativa. No decorrer dos dois primeiros séculos depois da fundação do Império, isto é, do reinado de Augusto (a partir do ano 31 antes da nossa era), até o início do reinado de Marco Aurélio (no ano 161 de nossa era) esta circunstância desempenhou seguramente um papel positivo, favorecendo a consolidação das relações econômicas entre as províncias, o progresso do comércio e, parcialmente, o dos ofícios.A paz não era conhecida antes da constituição do Império. Considerando-se apenas a parte oriental do que seria mais tarde o Império, e não se levando em conta os conflitos menores, essa região foi, sàmente durante os primeiros 70 anos do século 1 antes de nossa era, arena de três guerras mitridáticas de extrema violência, de guerias contra os piratas, de choques sangrentos entre as tropas de César e as de Pompeu, entre republicanos e partidários do segundo triunvirato, entre os soldados de Otávio, e os de Antônio. A população dessas províncias orientais era, de cada vez, vítima de pesadas contribuições, impostas por um, ou por outro vencedor.As conseqüências econômicas e políticas das conquistas romanas exacerbavam no mais alto grau as contradições sociais. O último século da República Romana, desde os Gracos (113 antes de nossa era), até a instauração da ditadura de Otávio (31 antes de nossa era) viu movimentos revolucionários maciços, tanto na Itália, como nas províncias, movimentos que congregavam os escravos, os cidadãos pobres, e as nações oprimidas. O comêço dêsse século foi marcado pela primeira rebelião dos escravos sicilianos, pelo levantamento dos escravos e dos pobres dii Ásia Menor dirigido por Aristônico, pelas rebeliões de escravos em Delos e na Ática, por choques armados entre partidários da aristocracia e os adeptos dos Gracos, na própria Roma. Éstes acontecimentos foram seguidos, desde a aegunda insurreição dos escravos sicilianos, pela guerra entre romanos e italiotas, pela grande insurreição de escravos chefiada por Espártacá, e por outros movimentos menos importantes. A guerras mitridáticas a leste do império revestiram-se tambdm, de certo modo, de um caráter libertador. Na Península

Page 68: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

72A ORIGEM DO CRISTIANISMOIbérica, os fberos mantiveram durante dezenas de anos lutas violentas contra seus opressores.Os grupos sociais que participavam dêsses movimentos anti- romanos permaneciam isolados, não agiam de acôrdo, daí sua fraqueza. Os contatos eram raros entre os pobres e os escravos, entre os movimentos populares do centro da bacia mediterranea, e os das regiões fronteiriças; as legiões romanas conseguiam bater os rebeldes, uns após os outros.Em certos momentos, porém, a vaga popular parecia estar a ponto de aniquilar os conquistadores. A velha máquina de opressão de Roma, a cidade-estado, tornava-se inoperante contra as massas. A base social da República Romana mostrava-se muito estreita, pois a única classe dominante em Roma era o patriciado: aristocracia proprietária de terras e escravagista. Ëste estado de coisas suscitou descontentamento não apenas dos senhores de escravos, nas províncias, mas também de outras camadas das classes possuidoras, em Roma. Para conservar o seu poder, a classe dominante foi, portanto, obrigada a renunciar às formas republicanas de govêrno, e a passar a outros métodos. E o Império Romano nasceu no decorrer de uma luta política e social das mais encarniçadas.Apoiando-se nas mais amplas camadas escravagistas e, antes de tudo, no exército, os imperadores romanos, exercendo uma ditadura militar, esmagaram finalmente os movimentos revolucionários das massas, consolidando assim, e por longo tempo, o poder da classe escravagista. Do primeiro século do Império, até aos últimos anos do reinado de Nero, as insurreições populares cessaram quase que completamente. Esta calmaria foi interrompida pela guerra civil de 68 a 69, depois da qual os Flávios e os Antônios puderam reinar mais de um século, ainda nas condições de uma paz mais ou menos geral.Esta palavra não deve ser tomada muito ao pé da letra, repetimos. No decorrer dêsse período alguns motins rebentavam de tempos em tempos no seio das Jegiões, algumas revoltas ocorriam nas províncias. Mas, eram perturbações locais que, regra geral, não ameaçavam o poder imperial. Em relação ao que se tinha visto durante a crise da República Romana, o movimento das massas atravessava uma fase de refluxo.A relativa estabilização do poder imperial devia-se, em última análise, ao fato de que o modo de produção escravagista não tinha ainda esgotado tôdas as suas possibilidades quanto ao desenvolvimento das fôrças produtivas. Durante os dois séculos do Império, a produção aumentou apesar de tudo, se bem que de modo diferente e em condições diversas, a leste, e a oeste,O colonato apareceu nesta época como o principal meio de aumentar a produtividade do trabalho, na agricultura. No

Page 69: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO I73século 1 da nossa era, os ricos proprietários territoriais e senhores de escravos procuravam descobrir as razões da decadência da agricultura na Itália. Columelo, escritor romano da época de Nero, via a causa dêsse mal no aumento da escravidão. «Confiamos o cultivo da terra, escrevia êle, aos piores dos nossos escravos como a carrascos que devem punir o solo, enquanto que os nossos antepassados o trabalhavam, êles mesmos, com o maior cuidado.» Columelo acusa os escravos de causar grandes prejuízos aos campos, de alugar os bois a outros, de pastorar o gado sem nenhum cuidado, de lavrar a terrá negligentemente.Tais coisas eram, antes de tudo, manifestações da luta de classe dos escravos contra seus opressores. O colonato era considerado pelos grandes proprietários territoriais como a única saída possível para passar a novos métodos de exploração. Começaram por arrendar aos lavradores empobrecios e às pessoas qtie se achavam sob sua dependência lotes de terra, em troca de parte das colheitas. Êsses arrendatários, estabelecidos sôbre uma parcela de terra, receberam o nome de colonos. Concediam-se lotes, pecules, quase nas mesmas condições a alguns escravos. A diferença entre êsses escravos e os colonos se devanecia com o tempo; .êstes últimos, embaraçados pelas dívidas, perdiam o direito de abandonar sua parcela de terra, na qual ficavam assim enraizados.No decorrer dos dois primeiros séculos do Império Romano, o número de colonos não deixou de crescer. Convém lembrar que mesmo aquêles que estavam fixados ao solo pelas suas dívidas não eram escravos no sentido corrente do têrmo:não podiam ser vendidos em sua parcela e estavam até certo ponto interessados na produtividade do seu trabalho. Friedrich Engels achava que os colonos romanos da Antigüidade foram os predecessores dos servos da Idade Média.Sem sair dos quadros do regime escravagista encontrou-se dêsse modo um meio de aumentar provisàriamente o rendimento do trabalho rural. Esta passagem a novas formas de exploração era tanto mais necessária quanto durante êste período a afluência de escravos vindos de fora estava diminuindo sensivelmente por causa do desaparecimento quase completo das guerras de conquista.O fortalecimento econômico provisório do Império foi favorecido pela propagação da forma antigá de propriedade e de escravidão em territórios em que formas de exploração mais primitivas tinham reinado até então. Sob a República, a escravidão se difundiu sobretudo na Itália. Em seguida, começou a se estender, se bem que em escala mais reduzida, nas províncias ocidentais onde surgiam novas cidades, desenvolviam-

Page 70: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

74A ORIGEM DO CRISTIANISMOse os ofícios e a agricultura, processo que ocorria igualmente nas províncias orientais, mas sob outras formas. As velhas formas de exploração escravagista cediam o lugar, na Ásia Menor e no Egito, a uma forma mais evoluída: a antiga.A normalização da vida econômica das províncias foi favorecida também pela sua divisão em dois grupos, umas submetidas à jurisdição do Senado, outras à pessoa do Imperador. Se, na época da República, os governadores romanos eram substituidos anualmente — período durante o qual êles pilhavam sem piedade — agora, os funcionários eram nomeados por um prazo mais longo, e, graças a isso, certa ordem foi introduzida por êles na cobrança dos impostos. A criação de uma máquina administrativa das províncias, submetida ao Imperador, teve como resultado a consolidação de sua economia. Suetônio, historiador romano, relata a êsse respeito, no seu Tibério (XXXII), o seguinte: «A governadores que lhe aconselhavam aumentar os impostos de suas províncias, êle escreveu que um bom pastor devia tosquiar suas ovelhas, não esfolá-las.»O alargamento da base social do poder imperial agia no mesmo sentido. Sob a República, a classe dominante compunha-se apenas dos escravagistas de Roma. O sinal de pertencer a esta classe era o título de cidadão romano, se bem que os antigos cidadãos romanos não fôssem todos grandes escravagistas. Com o tempo, o poder imperial decidiu conceder êsse título e os direitos correspondentes aos aristocratas e aos rkos das províncias, a princípio, e depois (a partir do ano 212), a tôda a população livre do Império.O poder imperial garantiu ao povo uma paz relativamente durável, como já o assinalamos anteriormente. A Pax Roma’Ia, tão louvada pelos escritores latinos, e, nos nossos dias, pelos ideólogos do imperialismo, significava, na prática, o esmagamento sangrento de qualquer movimento de libertação. As províncias eram pilhadas pelos homens de Roma, explorava-se ferozrnente a população laboriosa, tanto das regiões fronteiriças do Império, como na Península Itálica. Esta paz criou, contudo, as condições indispensáveis à normalização da vida econômica, ao desenvolvimento das relações comerciais entre as diversas regiões do Império, e, particularmente, ao florescimento dos ofícios.A exemplo de todos os grandes impérios da Antigüidade, Roma era um conglomerado de povos e países que tinham, cada um, sua vida econômica própria. Mas, sendo a sua produção mercantil, pelo menos durante os dois primeiros séculos da nossa era, muito superior à produção das outras potências do mundo antigo, Roma pôde vencer as fôrças centrífugs, e sair da crise excepcionalmente grave que a acometeu no século III. O Império era estável; êle durou. Graças ao

Page 71: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O IMPIIRIO ROMANO NO SÉCULO 175desenvolvimento das relações comerciais, as províncias o.rientais, muito mais ligadas econômicamente entre si do que as ocidentais, puderam sobreviver a uma convulsão tão profunda e séria como as grandes invasões.Não se deve, naturalmente, exagerar a importância dcs fatos citados. No seu conjunto, não fazem mais do que explicar as causas da instauração do regime imperial, e da sua estabiliclade em ielação à ordem anterior, O Império não podia, com tôda evidência, eliminar as contradições inerentes io regime escravagista. Tôda tentativa de as recalcar devia preparar explosões ultcriores muito mais poderosas, o que efetivamente aconteceu quando o Império Romano desmoronou, e, com êle, seu modo dc produção fundado na escravidão. .itqunto que, sob a República, os movimentos revolucionários dos escravos e dos pobres seguiam cada um seu próprio curso, não coincidindo senão cronolàgicamente, sob o Império, a aparição do colonato criou condições favoráveis à ação conjugada das diversas camadas da população oprimida. A concessão dos direitos de cidadão romano, que, a princípio, tinha alargado a base social do poder imperial, tornou-se, por fim, simples formalidade. O edito do ano 212, concedendo êsses direitos a tôda a população livre do Império, foi acolhido com indiferença. Certas vantagens que as províncias tinham obtido quando da introdução da nova ordem administrativa sob Augusto no tardaram a se transformar em encargos suplementares. A medida que as dificuldades econômicas e, sobretudo, as financeiras, se agravavam, a máquina imperial, melhor organizada do que a da República, via-se na contingência de drenar todos os recursos das províncias.É preciso assinalar, contudo, que os aspectos negativos de regime imperial não apareceram imediatamente. Até os meados do século II, a situação econômica e política do Império era bastante sólida, como já o dissemos. As massas popuiares não tinham esperanças de sacudir o poder de Roma, a «grande Babilônia prostituída». Foi por isso que a luta política ativa, que caracterizava o período precedente, deu lugar à espera de um salvador que desceria dos céus e libertaria os oprimidos, bem como a ilusões místicas cada vez mais difundidas, não apenas no seio do povo, mas, também, entre os representantes das classes possuidoras. Êste estado de espírito favoreceu no mais alto grau a difusão das crenças messiânicas, inclusive do cristianismo.Estas tendências, determinadas pela evolução da formação escravagista, apareciam em todos os cantos do território mediterrâneo, mas em grau diferente, segundo as particularidades do desenvolvimento histórico e segundo o nível atingido pela es-

Page 72: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

76A ORIGEM DO CRISTIANISMOcravidão nas diversas partes do Império Romano. Aqui, a comparação é necessária, sobretudo entre as províncias oidentais, e as orientais. Enquanto em grande parte dos territórios destas ultimas a escravidão existia desde séculos, melhor, há milênios, nas províncias ocidentais, sua aparição resultou geralmente da conquista romana. Além disso, na parte oriental da bacia do Mediterrâneo, o nível dos ofícios e do comércio era mais elevado do que nas províncias ocidentais. É por isso que as possibilidades de desenvolvimento inerentes ao regime escravagista se esgotaram mais depressa a leste do Império, onde a crise do mundo antigo começou. As classes possuidoras, movidas pelo temor das massas populares, sustentavam aí o poder dos imperadores romanos com tanta crueldade quanto a dos escravagistas da parte ocidental do Império. Em conseqüência de tôdas essas circunstâncias, a opressão econômica e política fazia-se sentir mais fortemente a leste, do que a oeste do império. Seria aí, precisamente, que iria florescer, por primeiro, a tendência para o pessimismo e para o desespêro. O cristianismo era uma das principais manifestações desta crise ideológica. Nos seus começos, êle refletia, mais do que qualquer outra doutrina, o protesto das massas contra a ordem antiga, e contra a sua cultura.

Page 73: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

CAPÍTULO IIIAS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMOO aparecimento do cristianismo, corno qualquer outro f e’ nômeno histórico de primeira importância, devia ter forçosa. mente por teatro um meio social determinado. Múltiplos liames prendiam estreitamente o cristianismo nascente a tôdas as espécies de corientes religiosas e filcsóficas anteriores e, sobretudo, às da época. Nas obras não cristãs do século 1 de nossa era descobrem-se fàcilmente os vestígios de certas fontes ideológicas do cristianismo original. A maioria das modificações ulteriores da ideologia cristã primitiva refletem as transformações sofridas pelo mundo greco-romano no decorrer dos séculos II e 111. Assim, não apenas as raízes da ideologia cristã, mas, também, várias de suas partes integrantes se ligam diretamente, a princípio, ao mundo judaico e, depois, ao greco- romano.É óbvio, doutra parte, que a doutrina cristã não se formou inicamente por via de empréstimos. Acontecimento histórico de primeiro plano, ela trazia uma nova mensagem, sem a qual não teria conseguido conquistar as massas e tornar-se, finalmente, a religião dominante dos países da bacia mediterrânea. Porém, o que a mensagem cristã continha de nôvo ela o absorvia nas condições históricas bem concretas do Oriente antigo. E por isso que a análise do conteúdo ideológico da nova religião deve partir do estudo das concepções sociais e, antes dc tudo, religiosas, professadas io limiar da nossa era, pela população do Império Romano.1. RELIGIÕES E CULTOS DO IMPÉRIO ROMANOA formação do Império marcou não sômente o início de uma fase nova do desenvolvimento econômico dos países mediterrâneos, mas foi também mudança política na vida do Estado Romano. Depois da queda de César, que tinha tentado instaurar a ditadura, seu sucessor, o Imperador Otávio Augusto, procurou conservar pelo menos a aparência da ordem repu1 ,lican. O Senado, os magistrados elegíveis, até mesmo as assembléias de cidadãos, não foram abolidas durante os primeiros tempos do Império, mas o poder real era exercido pelos imperadores. Êles se apoiavam nas legiões, exploravam o anseio de paz manifestado pelas camadas possuidoras do Império.77

Page 74: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

78A ORIGEM DO CRISTIANISMOAs paixões políticas do último século da Reptiblica foram, pouco a pouco, substituídas por outro estado de espírito. Nas altas esferas da sociedade, o desamor a respeito da atividade política era acompanhado, de uma parte, da glorificação das «benfeitorias» dos imperadores, da aspiração à carreira administrativa e às riquezas, e, doutra parte, de uma indiferença crescente pelos negócios públicos, de uma tndência a se refugiar na vida privada; sistemas filosóficos e religiosos surgiram pregando o desprêzo pelas coisas terrenas.A instauração do regime imperial provocou uma trans formação não menos séria na mentalidade das massas popuiares Fortalecido o poder da classe dos escravagistas, e sufocada a vida política nos países subjugados por Roma, o misticismo religioso começou a se difundir, cada vez mais, no seio do povo. No século 1, a influência dos cultos orientais e das crenças messiânicas espalharam-se ràpidamente pelo Império. A esperança de abrandar as duras condições de vida em lugar de ser ligada à luta das massas, associava-se à idéia de um Salvador enviado do céu, que estabeleceria o reino de Deus na Terra. Era sômente nas províncias mais distantes, na J udéia, na Gélia e ao noroeste da África, onde se esperava ainda conseguir a vitória pelas armas, que se davam sérias revoltas, mas as legiões romanas as esmagavam sem grandes esforços.A ideologia de uma parte das camadas superiores da sociedade romana, cujo papel não foi dos últimos na formação e no desenvolvimento da ideologia cristã, encontrou brilhante expressão nas obras de Sêneca. Estóico, representava a escola filosófica a que Cícero, que vivera vários decênios antes dêle, havia acrescentado muitas coisas. E é isso que torna mais significativa ainda a diferença entre as opiniões políticas dêsses dois ilustres filósofos romanos. Cícero achava que devíamos tomar parte na vida da sociedade. A luta política, os conflitos, na Capital e nas províncias, impressionavam-no vivamente; êle propunha o seu próprio programa, visando a transformação da República. A vasta correspondência deixada por Cícero mostra a que ponto os acontecimentos da época o apaixonavam.De Sêneca, temos também muitas obras, e sua correspondência. Ainda que preceptor de Neto, e, depois, seu ministro, mostra-se indiferente à política; declara que não existe pior quinhão para o homem que o de manter causas judiciárias, de participar das intrigas políticas, de escrever requerimentos. Segundo êle, o sábio, obrigado a trabalhar pelo bem da pátria, deve aspirar, em primeiro lugar, ao aperfeiçoamento moral, pensar em Deus, consagrar-se às meditações.Até mesmo em suas últimas obras, as Consolações, por exemplo, Sêneca proclama que tudo é vão neste mundo, e

Page 75: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO79procura inculcar no leitor a idéia de qae a morte é o bem supremo. Afirma que, depois da morte, a alma do justo vai para o céu, onde a felicidade o aguarda. A resignação diante do destino seria, a dar-se-lhe crédito, a maior sabedoria do mundo efêmero em que vivemos, o único meio, aliás, de ser, feliz. A luta contra os reveses da sorte é indigno de um sábio.Considerando irrevogáveis os decretos do destino, Sêneca chega a uma conclusão importante e nova para o seu tempo:a igualdade de todos os homens, estando compreendidos entre êles os escravos, em face do destino. Escreveu: «Todos nós somos formados dos mesmos elementos; temos todos a mesma origem (.. . ) A natureza nos prescreve sermos úteis a todos os homens sem distinção, sejam êles livres ou escravos, nascidos de pais livres ou libertos.» (Da Vida Feliz, 24.) Desenvolvendo êste pensamento numa de suas Cartas a Lucilius (n.° 47), diz: «Êles são escravos. Mas, homens. São escravos. Mas, vivem sob o nosso teto. Escravos? Não. Nossos companheiros de escravidão, se se pensa no poder do destino, tanto sôbre nós, como sôbre êles.» Concebe-se fàcilmente que êsses apelos para que se tratem os escravos como homens eram suscitados pelo mêdo que as massas subjugadas inspirávam aos escravagistas. Aliás, a idéia de renunciar ao trabalho dos escravos nunca passou pela mente de Sêneca, e seus ardorosos discursos contra a cupidez não lhe impediram de acumular uma fabulosa fortuna, sem recuar diante de intrigas de tôdas as espécies, e do mais humilhante servilismo. Isto não anula a importância, note-se, da sua defesa do princípio de igualdade dos homens em face do destino ou diante de Deus, apesar do seu caráter puramente abstrato e especulativo. Esta tese de Sêneca iria ser desenvolvida mais tarde pelos ideólogos do cristianismo. As palavras dêste filósofo, que citamos, coincidem perfeitamente com êstes têrmos atribuídos ao apóstolo Paulo: «Fomos todos, com efeito, batizados num só espírito, para formar um só corpo, sejam judeus, sejam gregos, sejam escravos, sejam livres.» (Corz’ntios, XII, versículo 13.)É característico que o reconhecimento da igualdade dos homens não levou Sêneca a reclamar a libertação dos escravos; tal como o cristianismo, êle se limitou também a enunciar êsse princípio apenas em teoria. Os ideólogos cristãos concebiam a igualdade diante de Deus, sem daí tirar qualquer conclusão prática.Nos seus últimos escritos, Sêneca formula pensamentos que, apesar de desenvolverem os que acabamos de expor, diferem radicalmente das concepções do mundo clássico da Antigüidade, no qual o patriotismo era a pedra angular da CidadeEstado. Na sua obra Da Ociosidade (Cap. IV), introduz Cícero uma distinção entre «a grande e a pequena república.»

Page 76: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

80 A ORIGEM DO CRISTIANISMO«Existem duas repúblicas: uma grande e verdadeiramente pública que abarca os deuses e os homens; nela, não nos confinamos em tal ou qual recanto particular, e a cidade em que habitamos não tem outros limites, senão os do Sol; a outra república, aquela a que nos prende o. acaso do nascimento (seja Atenas, Cartago, ou qualquer outra cidade), não inclui mais todos os homens, mas um grupo de homens determinado.» O dever do sábio consiste justamente em servir à grande república.Vê-se, portanto, que o filósofo romano não tinha qualquer simpatia pelo patriotismo local. Mais ainda: era também indiferente ao patriotismo em relação ao Império. A «grande república» de Sêneca, dirigida pelos justos, engloba, em teoria naturalmente, todo o gênero humano. Esta idéia do filósofo foi retomada e desenvolvida pelo cristianismo, que nega, em princípio, qualquer importância às diferenças étnicas e sociais. Neste ponto, tal república iria corresponder à «Igreja universal» e ao «reino de Deus».As afinidades entre as idéias de Sêneca, e as das epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo saltam aos olhos de muitos dos ideólogos do cristianismo. Não é por acaso que os primeiros escritores cristãos o declaram um dos «seus», tal como Herádito e Sócrates (ver Tertuliano e outros). Em seguida, os autores eclesiásticos foram ainda mais longe, fazendo Sêneca figurar entre os Padres da Igreja. S. Gerônimo (IV e V século) fala dêle nessa qualidade, ao se referir à correspondência, forjada em tôdas as suas peças, entre o filósofo romano, e o apóstolo Paulo, e que chegou até nós. Para provar que ela é falsa, basta dizer que nela não fazem mais do que trocar cumprimentos e se preocuparem, um com a saúde do outro; Sêneca informa que está pregando o cristianismo não sômente ao seu amigo Lucílio, mas também ao próprio Nero etc. Isso não impediu que certos escritores clericais publicassem, em época bastante recente, artigos em que tentavam demonstrar que tais cartas são autênticas.1Acabamos de ver que as idéias religiosas de Sêneca, e, sob muitos aspectos, suas idéias sociais e políticas, se antecipam àquelas que o cristianismo iria em breve proclamar. Convém, contudo, sublinhar que sua filosofia correspondia à ideologia de uma parte das elites da sociedade romana, enquanto que o cristianismo, o original pelo menos, recrutava seus adeptos nas classes inferiores. Foi por isso que os ideólogos da nova religião não puderam limitar-se ao empréstimo das idéias do

1 Ver Gaston BoIssIER: La Religion Romaine d’Auguste aux An’toChas, P. Hachette, Paris, T. II, págs. 47-83; Cf. LAPIcKJ, ob. cit., pág. 10.

Page 77: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS RAíZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMOfilósofo estóico, precisaram também remodelá-las segundo as exigências do seu próprio auditório.A instauração do regime imperial suscitou também modificações importantes no domínio das crenças religiosas no seio das massas populares. No seu Ludwig Feuerbach, F. Engels sublinha que, durante a Antigüidade, «as antigas religiões de tribos e de nações, que eram constituídas de modo natural, não tinham qualquer tendência para o proselitismo, e perdiam t6da a capacidade de resistência, assim que era destruída a independência das tribos e das nações.»2 Os deuses antigos não ultrapassavam, com efeito, o quadro das tribos, e os próprios crentes não lhes conferiam o caráter universal qüe se tornou o atributo obrigatório de Deus segundo a teologia contemporânea. Os gregos, os romanos e os judeus da Antigüidade acreditaram sempre que seus deuses apenas protegiam sua nação, e que o poder de cada um dêles não se estendia para além do seu território. A guerra entre nações era considerada como uma guerra entre deuses. E os vencedores carregavam muitas vêzes, à guisa de troféus, as imagens dos deuses do povo vencido.A constituição do poderio romano no Mediterrâneo, e, depois, do Império, deu um golpe fulminante nos antigos cultos; era inevitável. Os povos e as tribos vencidas percebiam a impotência dos seus deuses à luz trágica da perda de sua lIberdade.Porém, a religião dos vencedores iria sofrer também, no mesmo grau, a influência dêsse acontecimento. As antigas divindades romanas, como as das outras nações do mundo antigo, tinham sido talhadas, de acôrdo com a expressão de Engels, seguindo a medida de uma comunidade pouco numerosa, neste caso o agrupamento que povoava as margens do Tibre. Para dar-se uma idéia da tenacidade das sobrevivências religiosas, basta lembrar que, até a aurora de nossa era, os romanos estabeleciam uma nítida distinção entre di indigetes (deuses locais) e di novensides (deuses adventícios). À primeira categoria pertenciam as divindades que simbolizavam as fôrças da natureza ligadas à agricultura e ao pastoreio, dos quais as mais importantes eram Júpiter, Juno e Marte, que eram colocadas,conseqüentemente, à testa do panteão romano. Isso determinoucerta modificação nas suas funções. Marte, originàriamente deus das plantas, e Júpiter, deus das chuvas e, portanto, daabundância, tornaram-se respectivamente o deus da guerra (as campanhas começavam ordinàriamente na primavera, em março)e o deus supremo de Roma, análogo ao Zeus dos Gregos. Ao

2 F. ENGEL5: Ludwig Feuerbach ei la Fia de la Philosophie Classi4llemandø, Ëd. Sociales, Paris, 1946, pág. 26.81

Page 78: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

82A ORIGEM DO CRISTIANISMOsegundo grupo de divíndades (novensides) pertenciam Minerva, Mercúrio, Apoio etc. Os deuses familiares desempenhavam também um importante papel nas crenças dos antigos romanos, tais como os làres e os penates, prõtetores do lar doméstico, e os manes, almas divinizadas dos mortos. Seu culto revelou-se extremamente resistente: continuou a ser professado muito tempo depois do triunfo do cristianismo.No que concerne aos cultos religiosos, os romanos tomaram muito de empréstimo aos povos vizinhos, particularmente aos etruscos e aos gregos da Itália meridional. Aos etruscos, quase tôdas as cerimônias rituais, notadamente das divinações que eram muito consideradas em Roma; aos gregos, os cultos dos deuses helênicos, com os quais identificaram os seus: Júpiter, a Zeus, Juno, a Hera, Minerva, a Atenas, Mercúrio, a Hermes, e assim por diante. Doutra parte, à medida que as fronteiras do Império se alargavam para o Oriente, as religiões orientais vindas do Egito, da Ásia ocidental e da Judéia iam-se difundindo em Roma.O crescimento do número de deuses refletia o conflito entre as concepções religiosas nascidas nos quadros relativamente restritos da antiga Roma, cidade-estado, e a necessidade de uma nova religião melhor adaptada às vastas dimensões do Império, O principal obstáculo à difusão da religião romana encontrava-se no fato de os seus deuses serem, apesar de helenizados, muito pouco atraentes aos olhos da população laboriosa dos países subjugados. Simbolizando a opressão estrangeira, eram quase sempre odiados pelos povos conquistados.A política religiosa dos primeiros imperadores seguia duas direções. De uma parte, Otávio Augusto, de acôrdo com a tendência conservadora, cercava de honrarias as funções sacerdotais e restaurava os velhos tempos. Chegou a condenar a propagação dos cultos orientais decretando particularmente a interdição de se construírem templos a deuses egípcios dentro dos limites da Cidade Eterna. Procurando fazer reviver o prestígio da religião romana tradicional, Otávio conferiu-se entre outros títulos o de Pontífice Supremo.Por outro lado, considerando a impopularidade dos deuses romanos e, ao mesmo tempo, a necessidade de cercar o nôvo regime de uma auréola mística, os representantes do poder não economizam esforços para impor o culto dos imperadores. Nas províncias orientais do Império, onde a divinização dos reis locais era praticada desde longa data, êsse culto não tardou a se impor. Colégios augustinianos eram nelas organizados com êsse fim, e nelas se elevaram numerosos templos, dois e até três em uma única cidade. Já em 29 antes da nossa era, isto é, dois anos apenas após a vitória de Otávio sôbre Antônio, êste culto era instituído em Efeso e em Pérgamo, cidades da Ásia

Page 79: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO83Menor. Nas inscrições, Otávio Augusto é freqüentemente chamado de «Filho de Deus» ou «Salvador», epitetos aplicados, mais tarde, como se sabe, à Jesus Cristo.A divinização do Imperador não tardou a ganhar adeptos também nas províncias ocidentais. Na Itália, professava-se o culto do gênio de Augusto, em cuja honra levantavam-se templos. Depois dêle, outros imperadores romanos promoveram sua própria divinização. Suetônio guardou esta frase característica de Vespasiano, ao morrer: «Que desgraça! Acreditei que me tornaria deus! » Durante os curtos anos do seu reinado, Calígula era considerado como a encarnação de Hélio, Deus do Sol. Filostrato informa que, sob Tibério, um homem foi acusado de sacrilégios por ter espancado seu escravo no momento em que êste tinha na mão uma moeda com a efígie do Imperador.Mas, o culto do Imperador, independente de sua personalidade e de sua conduta, muito distantes dos ideais, não podia se transformar em religião universal pelas mesmas razões que impediam a universalização da religião romana. O Império era objeto de um ódio tão profundo, mesmo da parte da população livre, sem falar já dos escravos, que o culto do Imperador que o personificava conseguia conquistar apenas a diminuta camada da aristocracia, sobretudo a provincial.Diferentemente dêste culto impôsto do alto e que só tinha influência sôbre as classes superiores da sociedade, as diversas religiões orientais, durante os dois primeiros séculos da nossa era, gozaram de um prestígio crescente em tôdas as camadas da população, particularmente nas classes médias. A afluência a Roma e a outras cidades recentemente fundadas na parte ocidental do Império, de grande número de pessoas oriundas do Egito, da Grécia e da Judéia, fêz aparecer também aí adeptos dos cultos egípcios, sírios e, igualmente, judaicos. Tais adeptos encontravam-se tanto entre os escravos das províncias orientais, como também, e em grande número, entre os artesãos e os comerciantes que tinham deixado Seus lugares de nascimento por esta ou aquela razão. Era Roma, sobretudo, que os atraía. Os novos cultos, por outro lado, eram trazidos pelos legionários romanos que retornavam da fronteira oriental do Império. Isto se deu, particularmente, com o culto persa de Mitra. — Os cultos orientais começaram a penetrar em Roma desdeO Béculo III antes da nossa era. Sua influência se acentuou fortemente durante o período de crise da República. O estabelecimento do Império deu nôvo impulso à sua difusão. E sees cultos não eram professados apenas pelos indivíduos originários do Oriente. A renúncia à atividade política e a tendência ao misticismo criaram um clima extremamente favorável a esses cultos, mesmo entre os naturais da metade ocidental

Page 80: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

84 A ORIGEM DO CRISTIANISMOdo Império, primeiramente nas cidades. Seus habitantes, não sômente os escravos e os pobres, mas também as classes médias, encontravam nas religiões orientais, com sua mitologia, seus mistérios, seus ritos teatralizados, uma saída, ainda que ilusória, para suas vidas sem esperança. Doutra parte, a fé na imortalidade da alma, inculcada por essas religiões, particularmente, pelo mitraísmo, pelo culto de Isis, e, depois, pelo cristianismo, desempenhou então um grande papel.A influência das crenças orientais aumentava com tal intensidade que os imperadores, fiéis em geral a sua política de não-intervenção nos assuntos religiosos, se viram, mais de uma vez, obrigados a se oporem à propaganda dêste ou daquele culto oriental, É assim que Suetônio relata, na sua biografia de Tibério, que êste imperador teve o cuidado de proibir os ritos egípcios e judaicos, em Roma. Medida que se revelou vã, como o atesta a existência de editos posteriores análogos, de outros imperadores romanos.

Uma cena da Assembléia dos Deuses de Luciano apresenta um interêsse muito especial sob êste aspecto. Os velhos deuses do Olimpo nela decidem «purificar» o céu «considerando que grande número de estrangeiros ( . . . ) tonseguiram inscrever-se em nossos registros, e insinuar-se, não se sabe como, entre os deuses, atravancando o céu a tal ponto que o banquete do Olimpo tornou-se uma barafunda, um ajuntamento confuso de gente que fala mil gírias diversas; considerando que o nectar e a ambrosia consumidos por essa multidão de bêbados tornam-se rarós e caros.» É tomada a resolução de verificar-se os títulos de família dos deuses, sob pena de os remeter de volta aos túmulos dos seus ancestrais na Terra e, também, a de atribuir um único emprêgo a cada deus, o que prova o grande desenvolvimento do sincretismo religioso, já no século II.O culto de Isis e de Osíris, divindades egípcias, era muito difundido nas margens do Mediterrâneo, durante os dois primeiros séculos de nossa era. Segundo o mito, Osíris e [sis, sua irmã e mulher, reinavam no Egito, onde êste deus itroduziu a agricultura. Êle foi morto pèrfidamente pr seu irmão Set, que cortou seü corpo em 14 pedaços e os dispersou pelos quatro cantos do mundo. [sis, depois de ter vagueado por muito tempo com seu filho Horus, consegue reunir os membrrs do seu espôso e êste ressuscita para tornar-se o soberano do Reino dos Mortos. Finalmente, Set é vencída por Horus. Temos aqui uma entrc as muitas variantes existentes do mito do deus moita e ressuscitado.Celebravam-se solenemente, todos os anos, mistérios em honra de isis e de Osíris. Na primavera, procedia-se a consagração do barco em que Isis devia partir em busca dos restos do seu divino espôso. No outono, realizavam-se os mistérios

Page 81: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS RAÍZES iDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO 85consagrados às peregrinações de [sis e à ressurreição de Osíris. Os sacerdotes que se dedicavam ao culto da deusa dividiam-se em várias categorias das quais a mais alta era a dos místicos, iniciados nas práticas dos mistérios.Na época imperial, êste culto era muito popularizado, dum canto a outro do Império. As escavações arqueológicas têm revelado milhares de inscrições em honra de [sis, não só no Egito e na Síria, como também nos Balcãs, na Itália, no território da Alemanha atual, e até na Inglaterra. No cé1ebrr romance de Apuleu, as Metamorfoses, o protagonista Lúcio, depois de ter sido transformado em asno, retorna à condição humana graças, principalmente, à intervenção de ísis.A medida que se difundia, o culto desta deusa sofria profundas modificações. Se, no Egito, a versão inicial do mito de Osíris, que morria e ressuscitava, simbolizava a renovação anual das fôrças criadoras da natureza, posteriormente êsse sen tido foi esquecido e Isis foi colocada no primeiro plano do culto. Em uma inscrição datada do século II, ou do III (Buletin de Correspondance Heilenique, 1927, pág. 378), Isis é chamada de rainha de tôda a Terra, inventora da escrita, legisladora. Segundo esta incrição, foi ela que separou a Terra, do céu, traçou as órbitas dos astros, fundou a navegação marítima, aboliu o poder dos tiranos, e é ela que comanda os rios, os ventos e as vagas dos mares.Aparece aqui, nitidamente, o sincretismo religioso, característico do Império Romano. Se, outrora, cada deus tinha funções bem delimitadas, nesta época, Isis, como o prova a inscrição citada, substitui já quase tôdas as divindades. Os escritores clericais não cessam de afirmar que o judaísmo e o cristianismo, dêle nascido, são superiores às outras religiões, justamente porque são monoteístas. De fato, a tendência para o monoteísmo nos começos da nossa era se manifestava até mesmo entre pagãos tão autênticos quanto os adoradores de [sis.O culto de ísis e de Osíris era análogo ao de Adonis e de Astartê, divindades sírias, ao de Cibele e de Átis, em voga na Asia Menor, ao de Tamus, deus babilônico, e a muitos outros. Êsses cultos, em que os sofrimentos, a morte e a ressurreição das divindades desempenhava um papel consider vel, ganhavam cada dia maior número de fiéis, tanto na parte oriental, como na ocidental do Império.Atraindo enormes multidões, as festas ligadas a êsses cultos, notadamente ao de Isis, muito favoreciam sua difusão. Eis a descrição de uma delas por Apuleu em Metamorfoses, XI, 9:«Mulheres vestidas de branco, coroadas de guirlandas primaveris e tendo tôdas, com ar alegre, diferentes funções, juncavam c’orn pequenas flôres o caminho por onde avançava o cortejo

Page 82: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

86 A ORIGEM DO CRISTIANISMOsagrado. Outras carregavam nas costas brilhantes espelhos ( . . .Algumas empunhavam pentes de marfim (. . .), faziam o gesto de pensar, de ajeitar os cabelos da sua rainha. Outras, enfim, derramando gôta a gôta um bálsamo precioso e diversos perfumes, iam regando abundantemente todos os lugares. Em seguida, uma numerosa multidão, de ambos os sexos, carregava lanternas, tochas, velas ( . . ..) com o fim de serem favorecidos ( . . . ) pela deusa dos astros que brilham no firmamento. Vinham, depois, sinfonias deliciosas, canudos e flautas que produziam os mais doces acordes.»A religião cristã nascente imitou em muitos aspectos o culto de Isis. A virgem com o Jesus menino nos braços é apenas uma cópia de uma imaem muito mais antiga de Isis com o pequeno Horus. Maria fugiu às perseguições de Herodes, carregando Jesus sôbre um asno, exatamente como [sis diante da cólera de Set. A Santa-Virgem deve assim muitos de seus traços à deusa egípcia, da mesma forma que se reconhece o deus egípcio no mito de Jesus, cujos criadores se inspiraram em particularidades comuns a Osíris e a Horus.Notemos que, nos começos da nossa era, o mito de Osíris muda de conteúdo: simbolizando, a princípio, os fenômenos da natureza, segundo o sentido inicial do mito, adquire êle, no decorrer dos séculos, aspectos sociais. Sua morte toma pouco a pouco a significação de um sacrifício expiatório, de um resgate dos pecados dos homens, e sua ressurreição torna-se a garantia da beatitude futura dos que crêem nos céus. Foi interpretado dêsse modo que o mito de Osíris serviu de protótipo a um dos elementos maiores da ideologia cristã.A imitação dó culto de [sis, e de outras religiões da Antigüidade, pelo cristianismo, nada tem de excepcional.._, Nenhum sistema religioso nasceu da cabeça do seu fundador, nem foi o fruto de uma revelação divina, como o querem os padres. Êles são muito estreitamente ligados às condições históricas existentes no momento de sua aparição, ao meio em que cada um dêles conseguiu expandir-se. Na luta contra as religiões rivais, temam dos sistemas religiosos precedentes os métodos e os meios mais atuantes para a conquista de fiéis. Foi o que se deu com o cristianismo. Suas semelhanças com outras religiões, seus empréstimos de outros cultos provam, apenas, que nada há de sobrenatural na aparição da ideologia cristã, que seus dogmas se explicam inteiramente pelas circunstâncias que presidiram ao seu nascimento e à sua evolução.O culto iraniano de Mitra era também muito popular nessa época. Segundo as crenças religiosas dos persas, o mundo é perpètuamente a arena de um combate entre Auramazda (Ormus), deus do fogo e da luz, e Angramainiu (Arimã), divin dade cruel das trevas. O primeiro é secundado por seu filho

Page 83: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMOMitra, espírito do Bem e da Justiça, e, ao mesmo tempo, mediador entre a humanidade, e Auramazda. Lutando herôicamente contra Angramainiu, e suportando tôdas as formas de sofrimentos, Mitra deveria ser enviado um dia à Terra, para vencer as fôrças do Mal, e fundar, depois disso, o reino milenar de Deus, sôbre a Terra. O mitraísmo, mais do que o culto de Isis, desenvolvia a doutrina da vida no além, e a do fim do universo.Esta religião apareceu no Império Romano nos fins do século 1 antes de nossa era. Em sua biografia de Pompeu (Cap. 24), Plutarco relata que os piratas sicilianos foram os primeiros a celebrar em Roma os mistérios de Mitra, e o. historiador atesta que tais mistérios se celebravam ainda no seu tempo. Os vestígios mais antigos do culto de Mitra foram descobertos por ocasião das escavações arqueológicas em Ostia, pôrto da antiga Roma. A imagem mural de Mitra que aí foi encontrada data do século 1.Durante o período imperial, o mitraísmo penetrou nos países mediterrâneos por três vias. Foi difundido, em primeiro lugar, .pelos mercadores que vinham do Oriente, nas cidades marítimas do . Império. Em segundo lugar, pelos legionários romanos recrutados na Ásia Menor que deixaram muitos monumentos do culto de Mitra nos locais em que se fixavam depois de desmobilizados. Em terceiro lugar, êste culto contava com numerosos adoradores entre escravos e libertos oriundos das mesmas províncias orientais. Possuem-se dados que atestam a existência, no século II, de comunidades mitraístas ao longo do Danúbio e do Reno, assim como da fronteira nórtica das colônias romanas na Inglaterra. O culto a Mitra era professado em templos subterrâneos e era acompanhado de banquetes rituais com pão e vinho, análogos às refeições em comum dos cristãos. No século III, por ocasião da crise do Império, o mitraísmo começou mesmo a ser implantado por representantes do poder imperial.O culto sírio do Sol Invencível (Sol Invictus) apresentava numerosas semelhanças com o de Mitra, e se caracterizava, como êle, por seu espírito guerreiro. Sob Aureliano (270-275),o Sol foi declarado oficialmente deus supremo; protetor do Império. O Imperador tornou-se o Grande Pontífice dêsse culto.Os cultos de Mitra e do Sol Invencível eram rivais perigosos para o cristianismo. E, se êste pôde conseguir a vitória to ràpidamente, foi justamente porque apropriou-se de muitas coisas, tanto de um, como do outro. Assinalemos, a título de exemplo, apenas algumas correspondências entre o cristianismo e o ,mitraísmo. O Natal é celebrado em 25 de dezembro, dia do solstício de . inverno. A cruz cristã existia também no87

Page 84: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

88 A ORIGEM DO CRISTIANISMOculto mitraísta, no qual era o emblema do Sol radiante. O leão, o touro, a águia, símbolos mitraístas, designam na literatura cristã primitiva os evangelistas Marcos, Lucas e João. Nas imagens antigas que representam a crucificação de Jesus encontram-se o Sol e a Lua, características do culto de Mitra. O ritual do mitraísmo, exatamente como o do cristianismo, empregava pias batismais, água benta, refeições em comum, e consagrava o domingo, a Deus. As duas religiões inculcavam as mesmas crenças sôbre a imortalidade da alma, a vida no além com o inferno e o paraíso, a ressurreição, o juízo final.É óbvio que não se pode atribuir apenas ao acaso tantas coincidências, e os primeiros apologistas cristãos o compreenderam perfeitamente. Um dêles, Justino, via nisso um ardil do Maligno... Uma vez que se possui a prova da existência dêsse culto no território do Império muito antes do nascimento do cristianismo, a única explicação plausível é a de que a religião cristã, ao criar sua simbologia e o seu ritual, valeu-se de elementos emprestados do culto em voga no século II, do mitraísrno, particularmente. Lembremos, por outro lado, que a transformação dos templos pagãos, em igrejas, e dos deuses, em santos, e até mesmo em mártires cristãos, era uma tática muito corrente, sobretudo, depois do triunfo do cristianismo. Foi assim que os Dioscuros gregos vieram a ser os santos Cosme e Damião. Tal como os irmãos Dioscuros, Castor e Polux, êstes santos são os protetores dos doentes e, sobretudo, dos marinheiros em perigo. Outro exemplo: os cristãos freqüentavam, tal como os pagãos, um templo de Esis, perto de Alexandria, onde se consultava o oráculo; Teófilo, bispo dessa cidade, apressou-se a erguer ao seu lado uma igreja, onde se depositaram os restos de vários santos, e onde também se anunciavam profecias. Esta flexibilidade foi seguramente uma das razões da rápida popularidade da nova religião nas províncias orientais do Império.Na parte ocidental do Império, o cristianismo apareceu com seus dogmas já definidos quanto ao essencial, e com um ritual em vias de formação. Aqui, recrutou, nos começos, seus adeptos entre os originários do Oriente, os judeus notadarnente. Somente por volta do ano 150, Justino, a quem acabamos de nos referir, notou que os cristãos de origem pagã eram mais numerosos, do que os, de origem judia. No oeste do Império, a nova religião serviu-se muito menos dos cultos locais. Além da antipatia de que êsses cultos eram objeto por parte da população, tôda uma série de outras circunstâncias também favoreciam aí a difusão do cristianismo. A evolução das idéias religiosas seguiu por tôda parte a mesma direção, apesar de certas diferenças bastante profundas entre o ocidente e o oriente da bacia do Mediterrâneo.

Page 85: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMOConvém notar aqui, antes de tudo, os elementos de um sincretismo cada vez mais evidente. Apesar do politeísmo oficial,vê-se desenvolver nos começos de nossa era, no Ocidente também, a tendência a confundir as funções dos deuses. Tal foi, por exemplo, o caso do culto de Hércules, adorado não só como filho de Zeus, mas também como deus protetor das cidades, dos ofícios, e até do Estado, fundador dos refúgios para evadidos, inclusive os escravos, deus do lucro, dos guerreiros, das colheitas, vencedor das fôrças do Mal etc. A mesma tendência aparece no poder atribuído a Telus, personificação da Terra, que urna inscrição proveniente da Gália chama de Mãe da Natureza, que dá origem às divindades e às nações, rainha e deusa dos deuses. Isto se liga ao Priapo que, de deus pouco importante da Fecundidade, tornou-se criador do mundo e da natureza; a Silvano, deus das florestas e dos campos, que ascende à categoria de deus do universo material, e recebe ainda, inopinadamente) o título de «Invencível».O sincretismo tinha menor influência, é certo, sôbre os velhos deuses do primeiro plano tais como Júpiter e Marte, cujas funções tinham recebido a sanção dos tempos. Mas, isso põe ainda mais em evidência a evolução das divindades inferiores como Priapo, Telus, Silvano. Nas províncias ocidentais do Império, esta evolução é semelhante àquela do culto de Esis no Oriente, e que encontrou sua expressão mais acabada no monoteísmo cristão.A evolução das idéias a respeito da vida futura preparou também o caminho para o cristianismo, O epitáfio seguinte sôbre a tumba de uma escrava caracteriza o que pensava pre. cedentemente sôbre êsse assunto: «Primitiva, adeus; e tu, caminhante, quem quer que sejas, sê feliz; eu não existia, não existo mais, e isso pouco me importa.» O mesmo tom desolado nos é dado por esta inscrição sepulcral que se refere a um menino escravo de seis anos: «A vida foi para mim um suplício, e não a morte, que me deu a paz.» Nesses dois epitáfios a morte é encarada não como uma passagem para a outra vida, mas como uma libertação da escravidão. Nenhum alusão aqui imortalidade da alma, nem à recompensa no paraíso.Estas concepções mais ou menos materialistas logo iriam ser substituídas por outras, próximas do cristianismo. Epit fios um pouco posteriores exprimem já a esperança de que as virtudes e vida laboriosa dos humildes preparam sua beatitude futura na mansão dos deuses. Descrevem minuciosamente a felicidade nos céus, prevêem até mesmo a transformação dos homens virtuosos em divindades, e pedem aos justos que J4 morreram que protejam aquêles que a êles se vão reunir. Um dos dogmas maiores do cristianismo, o do reino celeste, .urgla assim espontâneamente, apoiando-se na evolução das89

Page 86: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

90 A ORIGEM DO CRISTIANISMOconcepções religiosas nas províncias ocidentais do Império Romano.O desenvolvimento do cristianismo era ainda favorecidopelo apêlo à resignação e, em particular, à paz entre senhorese escravos. Já assinalamos, páginas atrás, essa predicação nasobras de Sêneca, que a endereçava, note-se isto, apenas •às ca madas superiores. A mesma moral de submissão diante dos poderosos é pregada, coisa característica, nos provérbios e nas fábulas em curso nos começos da nossa era. Provérbios tais como os seguintes: «Tu és escravo se obedeceres de má vontade; tornar-te-ás o auxiliar do teu senhor se o fizeres voluntàriamente» e «O jugo pesa mais sôbre um pescoço insubmisso», refletiam, menos os interêsses dos senhores, do que a situação sem saída dos escravos. E esta filosofia, como se sabe, tornou-se parte integrante da nova ideologia cristã.Os dados que acabamos de fornecer a respeito da parte ocidental do Império foram todos obtidos em fontes não cristãs. Êles atestam que a evolução geral das idéias morais e religiosas da população dessas regiões, particularmente das classes inferiores, criou um clima favorável à difusão das doutrinas cristãs sôbre o reino celeste, à não-resistência aos poderosos dêste mundo etc. Aqui, a diferença em relação aos cultos orientais residia tinicamente no fato de que o cristianismo, ao aparecer nas províncias ocidentais, já era uma religião mais ou menos formada graças aos numerosos empréstimos feitos aos cultos da Asia Menor, o que o tornou muito menos sensível à influência das crenças difundidas nas províncias dessa parte do Império.Procuramos mostrar a tendência do desenvolvimento das idéias religiosas no Império Romano durante os dois primeiros séculos de sua existência. A situação geral era então indiscutvelmente favorável aó triunfo do cristianismo. Muitos elementos dos cultos oríentais entraram no arsenal ideológico desta religião:a crença em um deus ressuscitado depois da morte, a crença na vida no além, na luta eterna entre o Bem e o Mal, e assim por diante. Errar-se-ia, porém, se se acreditasse que o cristianismo não foi mais do que uma tecitura de empréstimo de outros cultos. Êle trouxe elementos qualitativamente novos, que o distinguiam de tôdas as outras religiões da Antigüidade e que lhe asseguraram, finalmente, a vitória sôbre os cultos rivais. Eis alguns dêsses elementos. O cristianismo, durante seu período inicial, pelo menos, renunciou a tôda espécie de sacrifícios, a todos os ritos. F. Engeis vê nisto uma mudança revolucionária. Diferentemente das outras religiões da Antigüidade, o cristianismo fazia tabula rasa das diferenças étnicas

Page 87: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO91no domínio da fé, endereçava-se a tôdas as nações e a todos os povos, sem exceção. As separações sociais não existiam para êle, em matéria de religião. Endereçando seus sermões a todos os homens — aos judeus e aos gregos, aos cidadãos livres e aos escravos — os discípulos de Jesus eram ouvidos e seguidos sobretudo pelos humildes, pelos escravos, e pelos pobres, o que distinguia nkidamente o cristianismo das outras religiões dessa época. Outro aspecto importante neste plano:o cristianismo nestas condições de desagregação do regime escravagista denunciava àsperamente a ordem antiga e sua cultura, qualificando-as de pagãs. Isso lhe permitiu escapar à sorte das outras religiões da Antigüidade, que foram arrastadas pela queda da formação escravagista.Êstes traços específicos do cristianismo serão examinados nos capítulos dêste livro consagrados aos diversos escritos cristãos dos primeiros tempos.2. O CRISTIANISMO E O JUDAISMOAo examínarmos as noções religiosas da população do Império Romano, nada dissemos sôbre o judaísmo. Ora, o cristianismo lhe deve mais do que a tôdas as outras religiões. Basta dizer que esta religião nasceu entre os judeus, da diáspora evidentemente, e não da Palestina. Os primeiros cristãos eram fiéis à lei mosaica, e com conhecimento de causa. Sàmente um século após o aparecimento do cristianismo é que o apologista Justino pôde declarar que os cristãos de origem pagã eram mais numerosos do que os de origem judia. Os escritores greco-romanos do comêço do século II consideravam ainda os cristãos como uma das seitas judaicas. Recordemos, finalmente, que o cristia- nismo adotou a Bíblia judia. A expressão Antigo Testamento, que designa os livros sagrados dos judeus, foi concebida para os distinguir dos livros sagrados pràpriamente cristãos, incluídos no Nôvo Testamento.Os teólogos judeus e cristãos declaram que, se o judaísmo desempenhou tal papel na formação do cristianismo, foi graças ao fato de os judeus, contràriamente aos outros povos\ da Antigüidade, terem sido sempre monoteístas, não admitirem senão um único deus. Segundo a sua opinião essa foi a causa decisiva da difusão e da vitória da religião cristã sôbre as outras religiões pagãs. Mas, isso não é justo, não corresponde à realidade. Se o cristianismo nasceu do judaísmo, não foi por causa do caráter monoteísta dêste último, mas como conseqüência da situação política e social geral da metade oriental do Império Romano em meados do século 1. No que respeita ao monoteísmo, enquanto traço específico do judaísmo, é preciso dizer, primo que tôdas as outras religiões da época manifestavam

Page 88: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

92A ORIGEM DO CRISTIANISMOa mesma tendência para o monoteísmo, e, secundo, que o judaísmo não foi sempre monoteísta.O sistema filosófico e religioso de Sêneca não era menos monoteísta do que o judaísmo. A ampliação das funções de Isis, deusa egípcia, de Mitra, deus mazdeano, e até mesmo de uma divindade romana como Telus mostra que a tendência ao monoteísmo era comum a tôdas as religiões da época. Uma religião monoteísta era, no fim das contas, a que melhor convinha a uma potência mundial como o Império Romano.O monoteísmo só predominou no judaísmo depois de demorada luta. A Bíblia está repleta de relatos em que se apresentam os judeus adorando tôdas as espécies de divindades além de Jeová, o Eterno. Êste teve durante muito tempo, como concorrentes, a Serpente de Bronze, o Bezerro de Ouro etc. As desgraças sofridas pelos antigos hebreus são explicadas na Bíblia pela desobediência do povo eleito, que criava fdolos, apesar dos mandamentos de Jeová. O monoteísmo só se impôs definitivamente aos judeus a partir do século V antes da nossa era.O Antigo Testamento teve uma grande importância naformação da ideologia cristã. Daí, a necessidade de se examinaro seu conteúdo e, principalmente, as conclusões de sua críticaà luz da ciência, tanto mais que os métodos desta crítica sãoigualmente válidos para os escritos do nôvo.O Antigo Testamento se compõe do Pentateuco, dos Profetas e de outros livros. O Pentateuco expõe a criação do mundo e a história do povo hebreu antes de sua chegada à Palestina. Os Profetas contêm anais e discursos atribuídos a profetas que viveram em diversas épocas até o século V antes de nossa era. Os livror comportam escritos religiosos e edificantes pertencentes a gêneros diversos.A peça mestra da Bíblia é o Pentateuco. Os escritos dos profetas, em que as esperanças messiânicas encontraram sua mais brilhante expressão, são também de alta importância no que concerne ao estudo da pré-história do cristianismo.No Pentateuco encontra-se, em primeiro lugar, a exposição da cosmogonia judaica, adotada inteiramente pelo cristianismo, cosmogonia que durante quinze séculos embargou terrivelmente o desenvolvimento das ciências. Em nome de sua conservação, a Igreja perseguiu Copérnico, e condenou Galileu; em 1925, com o mesmo objetivo, o Professor Scopes foi levado a barra dos tribunais nos Estados Unidos da América do Norte, acusado simplesmente de ter ensinado o darwinismo aos seus alunos.Grande parte do Pentateuco descreve a atividade de Moisés, reformador relevante do mito, eleito de Deus, que recebeu de Jeová o Decálogo e os princípios do código judaico. As páginas do Pentateuco consagradas a Moisés so consideradas

Page 89: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO93particularmente sagradas aos olhos dos teólogos judeus e doscristãos.A crítica científica privou êste escrito de sua auréola desantidade. Já no sécuio XVII, os filósofos materialistas Spinosae Hobbes demonstraram que o Pentateuco não podia ter sidocomposto no segundo milênio antes de nossa era, como o quera tradição. Denunciando os numerosos anacronismos e contradições desta parte da escritura, Spinosa assinalou, com razão,que ela não poderia ser anterior ao retôrno dos hebreus doseu cativeiro na Babilônia. (Século VI antes de nossa era.)O exame crítico do texto do Pentateuco mostrou que êlese compõe de, pelo menos, quatro partes fundamentais, cheiasde repetições e de contradições. Não sendo os escritos doAntigo Testamento, aos olhos dos teólogos, tão sagrados comoos do nôvo, a crítica racionalista dêles defrontou-se com menosobstáculos, e, pôde, mais fâcilmente, impor suas conclusões,que, aliás, foram inteiramente confirmadas pelas escavaçõesarqueológicas feitas na Palestina.Distinguem-se no Pentateuco quatro fontes principais: osrelatos javeísta e eloísta, o Deuteronômio e o código sacerdotal.A primeira, que é a mais antiga, remonta ao começo doprimeiro milênio antes de nossa era. As duas primeiras fontesdevem seu nome ao fato de, em certas partes do Pentateuco,l)eus ser chamado Eloim, e, em outras, javé ou Jeová. Comparando as passagens do relato do dilúvio, na Bíblia, em queDeus é designado pelo nome de Eloim, com aquelas em queêle é chamado de Javé. os historiadores puderam distinguirduas narrações completamente independentes. Tudo leva acrer que os redatores da Bíblia que chegou até nós procuraramconservar o mais possível tanto o texto da fonte eloísta comoo da fonte javeísta.Pode-se dividir do mesmo modo o relato bíblico da criação,que se inspira, êle também, em duas fontes paralelas. (Gênese,caps. 1 e II, e cap. II, a partir do versículo 4.) E as duasversões, coisa significativa, são freqüentemente contraditórias.Na primeira, Adão e Eva são criados ao mesmo tempo; nasegunda, o Eterno criou a mulher de uma costela do primeirohomem. Na primeira, o homem aparece depois dos animais;na segunda, antes. O Antigo Testamento também dá duas versõescontraditárias da venda de José, e de outros acontecimentos.O quadro é idêntico no que concerne à fonte deuteronô• mica, do nome do último livro do Pentateuco, que reproduzquase tôda a legislação dos livros precedentes. O Deuteronômio,como está dito no segundo livro dos Reis (Cap. XXII), surgiuem fins do século VII antes da nossa era, tendo sido desco

Page 90: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

berto «por acaso» em um templo de Jerusalém, simples subterf gio da parte dos sacerdotes dêsse templo, desejosos de revestir

94A ORIGEM DO CRISTIANISMOa nova legislação com a autoridade do Moisés. O Deuteronômiu, tal como as leis expostas no Êxodo, não pode de modo algum datar da época em que os hebreus vagavam pelo deserto, uma vez que tôdas elas se endereçam não a nômades, mas a agricultores estabelecidos definitivamente. Notemos, por outro lado, que grande número de leis do Pentateuco foram tomadas à legislação do rei babilônico Hamurabi, que é um milênio mais antiga.O código sacerdotal, última fonte do Pentateuco, veio à luz na Babilônia, em meados do século IV antes da nossa era. Êle preconiza o monoteísmo com bastante nexo e, coisa característica, deformando profundamente os fatos históricos. Isto se manifesta, notadamente, no que concerne ao rito da circuncisão. Êste rito era próprio não apenas aos hebreus, mas, também, aos egípcios, aos árabes e a muitos outros povos da Antigüidade, e é praticado ainda hoje por crentes de várias nações. Ora, nessa fonte, êle é apresentado como o símbolo da aliança entre Jeová e o povo eleito. Semelhante inter.. pretação não seria possível, a não ser em um país em que não se conhecesse a circuncisão, na Mesopotâmia neste caso.O seguinte exemplo ilustra mais claramente ainda a maneira pela qual se redigiu o Pentateuco. A expulsão de Adão e Eva do Jardim do Eden é nêle ligada, como se sabe, à árvore da vida e do conhecimento do Bem e do Mal. Na Bíblia, essa expulsão se explica pela desobediência do primeiro homem e da primeira mulher. Nas tábuas em caracteres cuneiformes descobertas em Ras Shanra, na Síria, está escrito que êles foram expulsos do paraíso porque os deuses temiam que Adão e Eva, tendo comido o fruto da árvore da vida, pudessem tornar-se iguais a êles. Achando certamente tal temor indigno de Jeová, os redatores dor Génese modificaram essa passagem no seu relato, apesar de terem conservado alguns vestígios dela, como se vê no versículo 22 do capítulo III.As conclusões da crítica racionalista do Pentateuco, as quais nem mesmo os mais encarniçados defensores da religião ousam refutar, são de alta importância, e mostram os métodos que é preciso adotar para estudar a literatura cristã prôpriamente dita. A análise científica de qualquer texto religioso revela sempre vestígios de crenças mais antigas. As escrituras «inspiradas por Deus» aparecem, à luz da ciência, como estreitainente ligadas às concepções religiosas de povos vizinhos. A pretensa fundação de um culto por um ser sobrenatural acaba assim por revelar o que ela, de fato, é: uma mistificação. No que cencërne ao Antigo Testamento, isto é reconhecido hoje por todo mundo. E se os teólogos nãõ cedem ante a crítica racionalista do Nôvo Testamento, não é porque esta crítica seja menos vigorosa, mas exclusivamente porque a tradição cristã

Page 91: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO95encontra-se sob a proteção da Igreja e das clases dominantes dos países capitalistas, profundamente interessados em envolver em mistério o aparecimento do cristianismo. Sem essas barreiras, as conclusões da crítica científica dos evangelhos seriam, nos nossos dias, admitidas em geral, do mesmo modo que aquelas relativas ao Antigo Testamento.Os livros dos Profetas desempenharam também um considerável papel na fundação da ideologia cristã nascente. A literatura burguesa do Ocidente gosta de apresentar êsses profetas como ideólogos das massas laboriosas da Antigüidade, e, até mesmo, como precursores do socialismo moderno. Os livros do Antigo Testamento, atribuídos a Isaias, Jeremias e outros contêm, com efeito, e razoàvelmente, palavras vigorosas contra os nobres e os ricos, que enfraquecem a capacidade de defesada nação, porque oprimem cruelmente as massas laboriosas. Malditos sejam os que acumulam casa à casa — lê-se em Isaias(V, vers. 8) — e que ajuntam campo ao campo, até que nãohaja mais espaço, e que habitem sós no meio do país! » E em Miqueas, (II, vers. 1-2): «Malditos sejam os que meditam a.iniqüidade e que forjam o mal nos seus leitos! Ao amanhecer, êles o executam quando têm o poder nas mãos. Cobiçam as terras e delas se apoderam, e as casas, e as roubam; lançam sua violência contra o homem e sôbre sua casa, sôbre o homem e sua herança.» Estas passagens e muitas outras do mesmo gênero mostram como a situação do povo hebreu era aflitiva, refletem sem nenhuma dúvida o protesto das massas contra o jugo das classes possuidoras, mostram que a diferenciação social entre os antigos hebreus era já profunda. Mas, os profetas• no exortam à luta contra os exploradores. Êles põem tôdas as esperanças apenas em Deus.A crítica racionalista dos textos bíblicos demonstrou hámuito tempo que os escritos atribuídos a tal ou qual profeta contêm textos pertencentes a épocas tão distanciadas uma dasoutras que não se pode admitir que sejam obra de um só autor. Isto se refere particularmente ao livro de Isaias, em cujo início se diz que Isaías profetizava nos tempos de vários reis de Judá no século VII antes de nossa era; contudo, a partir do capítulo XLI trata-se já, inegàvelmente, de Ciro, Rei da Pérsia que, no ano de 538, permitiu o retôrno dos hebreus à Palestina, após seu cativeiro babilônico. O estudo do texto de Isaías deixou claro que êste livro se compõe pelo menos de três partes independentes, das quais a primeira e a segunda rio, às vêzes, chamadas de Proto-Isaias ou Deutero-Isaías. Os livros dos outros profetas podem ser analisados de maneira análoga.O principal fim visado pelos livros dos profetas hebreus era a atenção das contradições de classe no seio do povo

Page 92: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

96A ORIGEM DO CRISTIANISMOjudeu. Seus autores, sem apelar para a luta contra os nobres e os ricos, limitam-se a censurar os opressores. Não esperam socorros senão de Jeová. Contudo, os livros dos profetas diferem essencialmente da posição do corpo sacerdotal de Jerusalém por sua forte tendência messiânica, que o cristianismo adotará depois, apesar de a modificar e a desenvolver. A salvação do povo hebreu, a derrota dos seus inimigos, a queda dos deuses estrangeiros e a instauração do reino de Jeová estão ligados, nos profetas, à vinda à Terra do próprio Jeová ou de um messias divino, por êle enviado. A palavra messias, do hebraico machiac, ungido, traduzida em grego dá precisamente cristos, o Cristo.Os evangelhos canônicos e os apócrifos contêm quase tôclas as declarações dos profetas do Antigo Testamento sôbre o Messias, declarações que serviam de argumento maior para os primeiros propagandistas do cristianismo que desejavam demonstrar que Jesus era o messias esperado. Mais ainda: os autores dos evangelhos tiraram dos livros dos profetas quase todos os detalhes da vida de Jesus. Basta ler o Diálogo com o judeu Trifônio, composto por Justino, apologista cristão, no momento em que se formava o mito evangélico, para se ver que as profecias do Antigo Testamento sôbre o Messias serviram de ossatura para a biografia de Jesus nos evangelhos. A origem de Jesus, seu nome, o lugar do seu nascimento, a fuga parao Egito e muitos outros detalhes de sua vida contidos nos sinóticos são constantemente acompanhados das seguintes palavras: «a fim de que se cumprisse o que tinha sido anunciado pelos profetas.»Os destinos históricos do povo hebreu distinguiam-se dos das outras nações da Antigüidade pr uma particularidade essencial. A Palestina se encontrava numa encruzilhada do Egito e da Mesopotâmia. Os choques armados entre a Babilônia, e depois da Assíria, dé um lado, e o Egito, do outro, se desenrolaram durante vários séculos. A Palestina era um campo de batalha permanente entre duas potências quase iguais. Ela conservou durante muito tempo uma independência que não foi totalmente ilusória, e nunca caiu sob uma dominação tão longa que determinasse a extinção do povo hebreu. Foi isso que permitiu a algumas tribos judaicas manter-se firmes duiante todo um milênio antes da nossa era, sem perder sua fisionomia própria.Tôdas essas circunstâncias deram nascimento, entre os hebreus, a um gênero literário particular, ao mesmo tempo político e religioso: os apocalipses. A herança de uma intervenção de Jeová, que não poderia abandonar o povo eleito, aumentava por ocasião de cada desgraça nacional e, sobretudo, após elas. Os autores dos apocalipses acreditavam que as

Page 93: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS RAíZs IDEOLÓGICAS DO CR1SrIANISlO97desgraças de Israel não eram senão provações impostas pelo Eterno. Os escritos judaicos mais importantes dêsse gênero são o livro de Daniel e o livro de Eno que, que não foi incluído na Biblia (século II antes da nossa era), o livro dos Jubileus. uma parte dos livros sibilinos e os Salmos de Salomuio (século 1 antes de nossa era). A apocaliptica cristã proveio da judaica.Uma outra particularidade, ainda, do destino histórico dos antigos hebreus iria favorecer enormemente a difusão do cristianismo primitivo, Temos em vista a dispersão dos Judeus fora da Palestina, a partir da ascenção da dinastia persa dos Aquemenídios, Grande parte dentre êles preferiu permanecer «nas paragens babilônicas», ao invés de retornar à pátria. Possuem provas da existência, sob os Aquemenídios (séculos VI e IV antes de nossa era), de uma numerosa colônia judaica em Elefantina, Ilha do Nilo, ao sul do Egito. Na época helenística, que se distinguiu pela fundação de muitas cidades, já havia muitos judeus em Alexandria (Egito) e nas cidades da Asia Menor. Ptolomeu 1 exilou para Alexandria grande número de judeus da Palestina, depois da submissão desta. nviou provàvelmente quase cem mil para a Cirenaica. Outros monarcas helenistas agiram da mesma maneira. Por fim, as conquistas romanas fizeram afluir massas consideráveis de prisioneiros judeus para a parte central da bacia do Mediterrâneo, principalmente para Roma. Certo número desses escravos judeus, rendo ol?tido a liberdade ao cabo de certo tempo, fixou-se nas cidades, principalmente como artesãos. Assim apareceu a diáspora, conjunto de comunidades de judeus que viviam fora da judéia, depois da dispersão. No século 1 sua população judia era várias vêzes superior à da Judéia. Segundo cálculos aproximativos dos historiadores, o Império Romano contava, no século 1 da nossa era, com quatro a quatro milhões e meio de judeus, dos quais apenas 700 mil na Palestina 3 Em Meandria, os judeus constituíam aproximadamente 40% da população. Em todo o Egito, seu número atingia a mais de um milhão; em Roma, viviam várias dezenas de milhares, sta dispersão dos judeus em um território imenso e nas grandes cidades muito favoreceu o crescimento do cristianismo, sobretudo durapte sua fase inicial.Entre a população judia da diás para, as culturas judaicas e helenistas se influenciaram reclprocamente e se fundiram, e asse processo desempenhou um papel de grande importância

3 A. DONINI apresenta resultados das últimas pesquisas súbre op6mero dêles no comêço de nossa era, segundo as quais constitumain êles10% da população cio Império Romano. Os judeus totalizavam, nessaé)oca, sete milhões, dos quais quatro milhões na diáspo’a. Ver, também,Ch. GUIGNEEERT: Le Monde Jnif Vers le Temps de Jéjus, Paris, 190,273-278.

Page 94: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

98A ORIGEM DO CRISTIANISMOno aparecimento da religião cristã e nas primeiras fases da sua evolução. As comunidades judias de Alexandria, de Roma e das cidades comerciais da costa ocidental da Ásia Menor sofreram, durante muito tempo uma forte influência da cultura grega. Em todos êsses centros, muitos judeus conheciam o grego e o latim, liam os filósofos da Grécia e se convenceram da superioridade da cultura greco-romana sôbre o judaísmo, que, na escala do Império Romano, não passava de uma cultura provincial. Grupos influentes de intelectuais da diáspora, sem se levar em conta o pequeno número de judeus inteiramente ássimilados, procuraram obter, de qualquer forma, uma síntese do judaísmo, com a filosofia grega.Um dos mais notáveis representantes do judaísmo helenizado foi Fion, de Alexandria, já citado, ao qual se deu o nome de «pai do cristianismo». Achava que se devia observar à risca os ritos judaicos, considerava sagrados todos os livros do Antigo Testamento, e condenava os judeus que negavam a necessidade de obedecer formalmente a todos os preceitos da Lei Mosaica. Acentuando que os livros sagrados dos hebreus continham tôcla a sabedoria do mundo, Filon ajuntava que a mesma luz divina iluminava as obras dos pensadores gregos.Não seria necessário dizer que as tentativas de colocar uma ponte entre o sistema religioso judaico, nascido no seio das tribos judias da Palestina, com seus usos e costumes particulares, e as doutrinas filosóficas gregas só se poderia fundar em construções escolásticas desprovidas da lógica mais elementar.•A interpretação alegórica dos escritos do Antigo Testamento era o método preferido de Filon. Percebia um sentido místico oculto em cada palavra dêsses escritos. As plantas úteis simbolizavam nêle, segundo seu parecer, as virtudes humanas, as plantas nocivas, os vícios; as flôres, a inteligência; os frutos, as capacidades do homem; Adão, a Terra; Eva, a vida, e assim por diante. O relato bíblicn da viagem de Abraão, da Ur caudaica, para a Judéia, simbolizava, para Filon, a evolução do sábio, passando do conhecimento das coisas terrestres, para a contemplação das esferas celestes; o êxodo dos judeus, a fuga do mundo dos sentidos, para o mundo espiritual; representava o Egito, na sua opinião, a sensualidade, porquanto suas terras são molhadas, não do alto, pelas chuvas, mas, por baixo, pelas águas do Nilo... Semelhantes raciocínios não mereciam a menor atenção se êste método do filósofo de Alexandria não tivesse sido adotado por dois Padres da Igreja do século II e do comêço do século III: Clemente, de Alexandria, e Orígenes. Fundadores da teologia cristã, tanto um como o outro o aplicaram à análise do Nôvo Testamento.A influência diretas das concepções filonianas se faz sentir em certos escritos canônicos, particularmente, no Evangelho Se-

Page 95: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS RAfZ!S IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO99gundo João, na Epístola aos Hebreus, atribuída a Paulo, e nas epístolas do apóstolo João. Os autores dêsses escritos, do primeiro em particular, emprestaram de Filon não tanto seu método alegórico, mas sua idéia do Logos, mediador entre oshomens, e Deus.Desejoso de adaptar o judaísmo ortodoxo aos sistemas filosóficos gregos, Filon não apresentava Jeová como uma divindade nacional da Israel do Antigo Testamento, mas o elevava à categoria de Senhor Supremo do Universo, de um Ser transcendente. Os homens eram incapazes de concebê-lo, e êle só os toca graças às potências que dêle emanam, das quais a principal é o Logos, o primeiro servidor de Deus, junto do qüal êle intercede em favor dos homens, o criador do mundo, à Messias. É fácil perceber-se que a doutrina cristã do Filho de Deus não é senão uma variante da idéia do Logos, adotada, e depois desenvolvida, pela nova religião. No Evangelho Segundo João, Jesus é francamente identificado ao Logos.Convém não esquecer, contudo, que «o cristianismo proveio das representações emprestadas de Filon, e popularizadas, e não diretamente dos escritos de Filon. . . »4 Pode-se ilustrar isso assinalando tendências análogas em alguns escritos judaicos apó. crifos. O autor do Livro IV dos Macabeus declara, por exemplo, que a Lei de Moisés está de acôrdo com a natureza. Ora, a idéia da harmónia entre os decretos divinos e a ordem natural caracteriza mais de um sistema filosófico da antiga Grécia. Na Sabedoria de Salomão, a serpente tentadora do Eden é interpretada como uma alegoria do Diabo; as trevas egípcias, como o símbolo do remorso, e assim por diante. A epístola apócrif a de Aristeu tenta dar uma explicação racional para o ritual judaico: a proibição de comer carnes de aves de rapina significaria que a violência avilta a alma humana, enquanto que a permissão de comer carne de ruminantes seria devida ao fato de a ruminação simbolizar as preces reiteradas a Deus. Todos esses apócrifos pré-cristãos desempenharam um papel importante na formação das crenças religiosas dos primeiros cristãos.A propaganda do nôvo culto era favorecida, doutra parte, pela organização das colônias judias da diáspora em tôrno das sinagogas onde se concentravam tanto a vida religiosa, como a vida social. Os judeus ali se reuniam aos sábados para exercer o culto, e também para discutir os assuntos correntes da comunidade. A ligação entre as sinagogas nãó era regular e só se fazia por intermédio de viajantes. Estas formas foram conservadas pelos judeus-cristãos do comêço do cristianismo, e, depois da separação dêste do judaísmo, as primeiras comunidades cristãs

4 K. MARX e F. ENGELs: Sur la Reirgion, Ëditions Sociales, Paris, 1960, pág. 195.

Page 96: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

100A ORIGEM DO CRISTIANISMOse organizaram, quanto ao essencial, segundo os mesmos princípios. Isto é atestado pelos Atos dos Apóstolos, ainda que não se lhe possa dar muita fé no que concerne à reconstituição da história dos primeiros cristãos: êles vêm, cronolàgicamente, depois de todos os outros escritos do Nôvo Testamento. As informações que nêles se encontram sôbre as relações entre os predicadores errantes do cristianismo, e as comunidades judias, parecem contudo verídicas.Apesar dos esforços empregados pelo corpo sacerdotal de Jerusalém, notadamente pelos grandes padres, para concentrar em suas mãos o poder, tanto religioso, como temporal, jamais o conseguiram. Flávio Josefo traça nas suas Antigüidades Jucltiicas um quadro colorido da áspera luta política e religiosa na Palestina, desde o século II antes de nossa era, até a sua época.Duas seitas, sobretudo, deram-se um combate encarniçado, apresentando cada uma delas um programa político bem definido. Uma, a dos saduceus, recrutava seus adeptos nas altas esferas da casta sacerdotal. Apesar de se manterem fiéis à lei judaica, os saduceus se levantavam contra a observação muito estrita das prescrições do ritual, tendiam para estabelecer contatos com a cultura helênica e se puseram a pregar, como conseqüência, o estabelecimento de relações amistosas com as autoridades romanas. Êste grupo representava os interêsses das camadas ricas da nação judia.Os fariseus eram adversários intransigentes dos saduceus. Esta seita exigia a estrita observância dos ritos, estigmatizava qualquer compromisso, qualquer relaxamento nesse plano. «Havia então entre os judeus — lê-se nas Antigüidades Judaicas (XVII, 2, 4) — pessoas que se orgulhavam de observar rigorosamente a lei dos ancestrais e que se acreditavam, por isso, particularmente amadas por Deus. Eram sobretudo as mulheres que mais se ligavam a êles. Tinham tais pessoas uma grande fôrça, e conseguiam apõr-se à vontade do Rei. Mostravam-se muito prudentes aliás, e esperavam sempre uma boa ocasião para incitar a revolta.» Os evangelhos descrevem os fariseus como hipócritas orgulhosos e cúpidos.Duas outras seitas ligavam-se a êles, os zelotas e os essênios. Se bem que fôssem numèricamente inferiores aos saduceus e aos fariseus, 4esempenharam todavia um papel importante na aparição do cristjanismo. Falaremos mais adiante dos essênios. Quanto aos zelotas, representavam a ala extrema-esquerda dos fariseus, Segundo Flávio Josefo (Antigüidades Judaicas, XVIII, 1, 6), os zelotas só reconheciam um chefe e um só senhor: o Eterno. Condenavam a passividade dos fariseus no domínio político, e, na esperança de serem ajudados pelas potências celestes, exigiam a luta armada contra os romanos. Inimigos das camadas

Page 97: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

101AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMOricas da nação judia, que eram favoráveis a um compromisso com os romanos, os zelotas matavam freqüentemente os ricos, donde seu apelido de sicóríos, de sica, punhal em latim. As crenças messiânicas foram professadas por esta seita desde o princípio.Depois da queda do reino dos Selêucidas, no ano de 63 antes da nossa era, a Judéia viu-se sob a dependência de Roma. Esta incentivou ainda mais a luta entre fariseus e saduceus. Depois da morte do Rei Herodes 1, que reinou do ano 37 ao ano 4 antes de nossa era, e ao qual os evangelhos atribuem. sem nenhum fundamento a matança dos inocentes, a Judéia foi transformada em província romana. Tôdas as tentativas de insurreição fracassavam. Mas, a situação na Palestina tornava-se cadá vez mais tensa. Em 66 estourou a Guerra dos Judeus. Durou vários anos, e terminou com a destruição do templo de Jeová, em Jerusalém, que era o centro religioso da Palestina.O cristianismo era, desde o comêço, nitidamente hostil aos saduceus e, mais particularmente, aos fariseus. A ideologia dos primeiros, apanágio das altas classes da sociedade judia, era estranha para os judeus-cristãos. Os fariseus mostravam-se tão anàticamente presos à letra do judaísmo, que a menor tentativa de reformar a «lei» não podia deixar de suscitar entre êles una enérgica oposição. Ora, os primeiros cristãos, independentemente de suas intenções subjetivas, ultrapassavam os quadros do judaísmo ortodoxo, e foi por isso que seu conflito com os ariseus tornou-se inevitável. Daí, o tom brutal dos primeiros escritos cristãos contra êles. No que concerne aos zelotas, os adeptos da nova religião se aparentavam com êles pela esperaaídente da vinda do Messias. Mas, a Guerra dos Judeus tevecomo resultado a desaparição dos zelotas como corrente política. A questão das relações entre o cristianismo e quarta seitaJudia, os essênios, é muito mais complexa. Enumerando as seitas judias, Flávio Josefo assinala que os essênios esmeravam-se«precisamente em praticar uma vida venerável.». (A Guerra dosjudeus, II, 8, 2.) Éles já existiam no século II antes da nossaera. Na época de Filon e de Josefo, seu número se elevava a quatro mil aproximadamente. Viviam em vilarejos nas margensdesérticas do Mar Morto. Ao aderirem a esta seita, seus novosadeptos punham seus bens à disposição da comunidade no seioda qual êles se nutriam, e onde reinava uma estrita disciplina.Os essênios faziam o juramento de «nada ocultar aos membros da seita, e de nada revelar a outros que não êles.» Agricultorescores, artesãos, era-lhes vedado dedicar-se ao comércio e fabricararmas. A escravidão não existia entre êles. Do ponto de vistareligioso, aceitavam inteiramente o judaísmo, mas recusavam-sea oferecer sêres vivos em sacrifícios. Sua doutrina estava fixada em livros pr6prios.

Page 98: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

102A ORIGEM DO CRISTIANISMOTais são as informações que Flávio Josefo, Fion de Ale xandria e Plínio, o Velho, fornecem a respeito desta seita. Sua veracidade despertou dúvidas e suscitou discussões entre os historiadores: alguns acham que Filon e Josefo idealizaram o modo de vida dos essênios, para o fazer contrastar com os costumes grego-romanos da época. Verificam-se, doutra parte, diferenças sensíveis entre as comunicações de Josefo e as de Fion a êste respeito. Os manuscritos descobertos em Coumrã, aos quais já nos referimos anteriormente, relacionar-se-iam, precisamente, com esta seita, apesar de certas diferenças entre os seus dados, e aquêles de que se dispunham até então.Para o estudo da pré.história do cristianismo os mais importantes dêsses manuscritos são o comentário aos dois primeiros capítulos do profeta Habacuc, e a Regra da Comunidade. No comentário, as professias são aplicadas alegàricamente a acontecimentos recentes da época. Diz-se nêle que um padre ímpio se encarniçou contra o Eleito de Deus, o Mestre de Justiça, e os homens do seu conselho, e o fêz executar. Por cansa dessa iniqüidade, Deus abandonou o Padre às mãos dos seus inimigos, e Jerusalém caiu sob a dominação dos Citim, povo conquistador. Depois dêsses acontecimentos, o Mestre de Justiça deve aparecer uma segunda vez para julgar Israel e todos os povos, estando a salvação reservada apenas aos crentes. Como se vê, os temas dêste escrito lembram muito de perto os do cristianismo primitivo.No que concerne à Regra, êste documento insiste, sobretudo, a respeito da comunidade dos bens, que implica também na entrega dos salários quotidianos nas mãos do questor. Os membros da comunidade se dividem, segundo a Regra,, em padres e simples irmãos, achando-se a direção nas mãos dos primeiros cujo título é hereditário. A admissão na comunidade exige dois anos de provas prévias. As infrações à Regra, por parte dos irmãos, determinam, segundo o caso, redução da ração alimentar, expulsão provisória, que pode atingir a dois anos, expulsão definitiva. A Regra centraliza, sobretudo, sua atenção sôbre a comunidade dos bens e, a observação do ritual religioso. Coincidindo, assim, com as informações dos escritores da Antigüidade sôbre os essênios, êste documento não se liga todavia ao crístianismo original: por sua forma, lembra as fórmulas do regime monástico, mas sabe-se que os claustros cristãos apareceram muito mais tarde.Outro documento descoberto em Coumrâ, a Guerra dos Filhos da Luz, Contra os Filhos das Trevas, também não se assemelha de modo algum aos monumentos do cristianismo primitivo. Dá uma descrição tipicamente judaica do combate dos justos contra o «exército de Belial». Êles são dirigidos por padres, suas tropas se dividem em milhares e em centenas de

Page 99: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS RAÍZES IDEOLÓGICAS DO CRISTIANISMO103homens etc., segundo a idade e a arma. As operações militares aí se desenrolam ao som das trombetas dos padres. Segundo a opinião geral dos pesquisadores, êste documento é um eco longínquo da guerra libertadora da época dos macabeus.As escavações arqueológicas no local em que se descobriram os manuscritos de Coumrã revelaram que ali se situava outrora o centro de uma vasta comunidade religiosa. As dimensões da construção principal e das cavernas vizinhas indicam que ç número de seus habitantes era relativamente pouco elevado, mas descobriram-se mais de 1 100 túmulos no cemitério situado muito perto, o que leva a crer que todos os membros da comunidade ali eram enterrados, independentemente do lugar em que vivessem. A presença de fragmentos de centenas de manuscritos e de rolos preparados para escrita parece atestar que era lá também o centro dos essênios. As moedas encontradas em Coumrã permitem situar esta colônia de essênios no século II antes de nossa era até a revolta de Bar-Cocheba (do ano 132 ao ano 136). O número dessas moedas. se eleva a mais de 200, mas elas se encontravam apenas na habitação principal, nas cavernas das proximidades nenhuma foi achada, prova suplementar da comunidade de bens na colônia.Além do que já sabíamos sôbre os essênios segundo os autores da Antigüidade, aprendemos, pois, que um dos seus chefes, o «Mestre de Justiça», foi levado à morte por um padre ímpio, e que êles acreditavam na sua ressurreição. Porém, não se pode identificar esta seita com as comunidades cristãs mais antigas; primeiro, porque os principais documentos encontrados em Coumrã se referem a um período muito anterior ao aparecimento do cristianismo, e a comunicação sôbre o Mestre de Justiça, particularmente, data da primeira metade do século 1 antes de nossa era; segundo, porque o modo de vida estrictamente regrado, monástico, dos membros da comunidade de Coumrã não corresponde aos dados de que dispomos a respeito do modo de vida das primeiras comunidades cristãs; finalmente, porque a seita de Coumrã ,se fundava em princípios teocráticos, tinha padres como chefes, enquanto que o clero cristão só apareceu no século II, como veremos em seguida. Tais são as razões que nos impedem de aceitar a’ opinião de A. Donini, e de alguns dos seus partidários, sôbre a pretensa ideologia «tlpicamente cristã» da seita das margens do Mar Môrto. Que alguns dos elementos da ‘ideologia da comunidade de Coumrã tenham podido passar para os primeiros cristãos, apesar de terem sido ulteriormente modificados por êles, isso é outra coisa.As crenças messiânicas começaram a se manifestar entre os judeus sobretudo a partir do século II antes da nossa era. Se, entre os antigos profetas, o Messias será um rei da Judéia, obrigatàriamente saído «do ramo de David», no Livro de Daniel

Page 100: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

104A ORIGEM 1)0 CRISTIANISMO(século II antes da nossa era) já se vê surgir um nôvo personagem revestido desta missão: o Filho do Homem (VII, versículo 13), têrmo que acentua sua natureza terrestre, e não celeste, seus traços humanos, e não divinos. No Livro de Daniel, êste personagem não é ainda o próprio Messias. A síntese dessas duas concepções ëncontrou sua expressão um pouco mais tarde no livro apócrifo de Enoch, em que o Filho do Homem aparece com o aspecto de um ser sobrenatural que existia desde a criação do mundo, e que seria enviado à Terra para cumprir os desígnios de Deris. A seguir impõe-se a opinião segundo a qual o Messias, sem descender obrigatàriamente de reis, poderia ter por pais pessóas simples escolhidas pelo Altíssimo; Notemos que no Escrito de Damas, anuncia-se que o Messias não përtencerá à casa de Dávid, mas à família sacerdbtal de Aarão e de Israel. O mesmo pensaménto é sustentado nos Testamentos dos Doze Patriarcas. Uma versão pàsterior do Talmud, que data do final do século II, fala de Messias; um, filho de Jcisé ou Efraim, que encontrará a morte lutando contra õs inimigõs, e, outro, filho de David, que triunfará depois da derràta do seu predecessor. Esta variante talmúdica visava claramente harmonizar as diversas crenças messiânicas difundidas entre ó povo. Não se ecclui a hipótese de qüe tenha ela surgido para contrabalançar a doutrina cristã sôbre êsse assunto. Convém assinalar ainda que, antes do aparëcimento do cristiai±mo, e paralêlaiientê a êlê, ós judeus admitiam um Messiasmártir, uma ëspéde de bode expiatório qe devia pagar os pecados de Israel.’ Vimos, portanto, que alguns dós elementos da imagem de Jesüs aparêciam já na literatura judàica apócrifa, muito antes da época m que a tradição da igreja situa a vida tei±&re do Cristo.O judaísmô fõi, assim, a principal fonte do cristianismo. Éste reonhêàu o Aiuigõ Testamento como revelação divina e, em partirular, adotou a cósmogonia bíblica. Dêle tirou também a idéia messiânica, úuito modificada, é certo, não de acôrdõ com o Antigo Testamènto, mas com os ëscritos apÓcrifos.A novã religião só se distanciou do judaísmo progressivatuente. O principal ponto dêste último, que ela de modo algum Õderia aceitar, referia-se à sua estreiteza étnica: a afirmação segundo a qual os hebreus seriam o povõ eleito de Deus. O cristianismo nascente teve de proclamar, em primeiro lugar, quê os adeptos de Jesus eram a «verdadeira IsraeL. Isto ocasionou, por sua vez, a necessidade de renunciar às prescrições do ritual judaico, obstáculo à difusão do nôvo culto entre os que não eram judeus.

5 Consultar a êste respeito a obra citada de Ch. GUIGNEBERT,pgs. 162-202.

Page 101: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

CAPÍTULO IVO APARECIMENTO DO CRISTIANISMOEntre o século II e o III, Tertuliano definiu como se segue o credo cristão: «Nós cremos num Deus único, criador do mundo, que êle tirou do nada, com sua palavra engendrada antes dos séculos. Acreditamos que esta Palavra é o Filho de Deus que, por muitas vêzes, apareceu aos patriarcas sob o nome de Deus, inspirou os profetas, desceu por obra do Espírito Santo no ventre da Virgem Maria, nêle se encarnou, e dela nasceu; cremos que esta Palavra é Nosso Senhor Jesus Cristo, que pregou a nova aliança e a nova promessa do reino dos céus. Cremos que Jesus Cristo realizou numerosos milagres, foi crucificado, ressuscitou dos mortos e subiu ao céuAssim, segundo a tradição, nos começos da nossa era, a Virgem Maria deu à luz Jesus, Filho de Deus, o Messias cuja vinda tinha sido anunciada desde há muito tempo pelos profetas. Realizando milagres, êle demonstrou que era o enviado do céu para salvar o gênero humano, mergulhado na impiedade e corrõído pelos vícios. Crucificado em Jerusalém, por ter combatido o judaísmo oficial, Jesus resgatava com sua morte os pecados dos homens. Os primeiros cristãos estavam coüvencidos de que jesus Cristo não tardaria a retornar para instalar o reina de Deus sôbre a Terra.Segundo a mesma tradição, os apóstolos, discípulos de jësus, consolidados em sua fé graças ao milagre da ressurreição, começaram a preconizar a palavra de Deus, primeiramente entre os judeus palestinianos, depois, entre os pagãos, particular. mente por iniciativà do apóstolo Paulo, convertido ao cristianismo um pouco mais tarde. A crer-se no Nôvo Testamento, trinta anos após a crucificação, já existiam comunidades cristãs, tanto na Judéia e regiões vizinhas, como também em todos os países do leste do Mediterrâneo. Esta tradição diz que nova religião não deixou de progredir também durante a segunda metade do século 1. Ela teria alcançado, no decorrer dêsse século dito apostólico, vitórias incríveis. Por essa época j ëxistiriam todos os escritos do Nôvo Testamento. A fé cristã teria conseguido um êxito ininterrupto durante o século II mbém, no fim do qual Tertuliano pôde declarar, cheio de êtguraiiça, aos seus adversários: «Somos de ontem, e já enchemos a Terra e tudo que era vosso: as cidãdes, as ilhas, os stos fortificados, os municípios, as vilas, as cidades fortificadas, os próprios campos, as tribos, as decúrias, os palácios,105

Page 102: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

106 A ORIGEM DO CRISTIANISMOo Senado, o foro; nós vos deixamos apenas os templos! » (Apologética, 37).Parece que tudo foi calculado nesse esquema, adotado tanto pela Igreja Católica como pela Igreja Ortodoxa, para o tornar o mais verossímil possível. Milhares de teólogos o examinaram a fundo, atentos a cada uma de suas afirmações, para delas eliminar qualquer contradição. Durante tôda a Idade Média, quando as letras estavam quase que monopolizadas pela Igreja, e todos os manuscritos históricos encontravam-se nos monastérios, qualquer escrito que se afastasse por• pouco que fôsse dêsse esquema era impiedosamente destruído. Quanto às fontes que, por esta ou por aquela razão, não podiam ser destruídas, não exitavam em corrigi-las no sentido desejado. Não intercalaram no manuscrito do judeu ortodoxo Flávio Josefo a afirmação de que Jesus era... o Messias?O esquema exposto proclamava, sobretudo, êstes três pontos: 1) a existência histórica de Jesus, Homem-Deus, cuja passagem pela Terra está descrita nos evangelhos; 2) a pureza e a continuidade da doutrina cristã anunciada pessoalmente pelos discípulos do suposto fundador da nova religião, expressas nas palavras que se lhe são atribuídas; 3) a existência da Igreja desde o círculo de apóstolos, no momento do nascimento do cristianismo, até os nossos dias. Êste último ponto desempenha um papel particularmente importante na doutrina católica, segundo a qual os papas romanos seriam os sucessores diretos dos apóstolos Pedro e Paulo.Há 50 anos que a crítica das fontes do cristianismo original vem alcançando êxitos notáveis, graças ao progresso geral da ciência histórica; essa crítica desferiu um golpe fulminante na tradição ortodoxa. Qual é atualmente a concepção científica a respeito da aparição •do cristianismo e das primeiras comunidades cristãs?Que o esquema da Igreja, mesmo sem falar de. milagres, seja inaceitável, demonstra-se claramente à luz dos quatro argumentos seguintes:1. A ordem cronológica dos escritos canônicos é a inversa daquela em que estão dispostos no Nôvo Testamento; mostramos, no capítulo consagrado a esta questão, como se chegou a estabelecer as várias datas em causa.2. Até o comêço do século II não se encontra qualquer informação sôbre os cristãos na literatura judia e greco-romana anterior a êsse período.3. Nos escritos cristãos, há uma manifesta solução de continuidade entre a descrição detalhada do nascimento do cristianismo, e a atividade dos apóstolos, de um lado, e o silêncio total sôbre o desenvolvimento ulterior da nova religião

Page 103: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

o APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 107até os meados do século III, de outro, o que não pode ser explicado senão pelo fato de a literatura evangélica sômente ter aparecido no século II.4. Não se encontra na literatura cristã, nem mesmo nos antigos escritos, qualquer informação sôbre uma igreja sàlidamente constituída na Judéia desde a segunda metade do século 1.Diante dêsses fatos, pode-se perguntar: seria possível, em / geral, reconstituir objetivamente a história do nascimento do cristianismo? Uma vez que se rejeita o dogma da Igreja e se recusa a reconhecer a autenticidade dos escritos evangélicos, muito posteriores aos acontecimentos visados, o pesquisador parece ficar encurralado num bêco sem saída, por causa da ausência de fontes não cristãs relativas ao período em questão. E o problêma encarado neste plano é verdadeiramente espinhoso. Em face das dificuldades que êle apresenta, o acadêmico R. Viper, por exemplo, tomou o partido de proclamar que o cristianismo só apareceu por volta do meado do século II, não tendo o período precedente relação senão com a pré-história dessa religião. Ë preciso dizer, contudo, que o problema, apesar de sua grande complexidade, não é insolúvel, pelo menos quanto ao essencial.Não dispomos de qualquer informação digna de confiança sôbre o cristianismo, durante a primeira metade do século 1. Os evangelhos foram compostos muito mais tarde, e, o que é mais importante ainda, o relato que êles apresentam da vida do pretenso fundador do cristianismo não prova que Jesus tenha existido; mostra, ao contrário, que êsse personagem nada tem de histórico, questão sôbre a qual retornaremos. (Ver. Capítulo VI, 2.)O mais antigo monumento da literatura cristã primitiva é o Apocalipse de João, que deve datar dos começos da segunda metade do século 1. Algumas de suas passagens denunciam interpolação e correções que remontam aos fins dêsse século, mas não há dúvida de que o seu conteúdo essencial se relaciona com o período da Guerra dos Judeus. Quatro aspectos do Apocalipse autorizam a situá-lo entre os escritos cristãos mais antigos, e a tomá-lo, além disso, como prova de que na época em que êle foi composto o cristianismo começava apenas a se destacar da religião judaica, a saber: 1) a fraca difusão da nova fé, que testemunha; 2) seu estreito parentesco com o judaísmo; 3) sua ignorância quase completa da dogmática cristã; 4) seu silêncio sôbre a vida terrestre de Jesus. O Apocalipse contém passagens que contradizem manifestamente os dogmas da Igreja, e, no. seio desta, feriram-se encarniçados debates quando se tratou de sua introdução no cânone. Isto . confirma, se bem que indiretamente, sua antigüidade.

Page 104: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

108 A ORIGEM DO CRISTIANISMOD’outra parte, o fato de que, apesar de tudo, o induíram no Nôvo Testamento mostra que suas concepções se aproximavam das do cristianismo original.Nenhum escrito do Nôvo Testamento suscitou tantas controvérsias entre os teólogos, como o Apocalipse de João. O balanço dêsses desacordos, muito incompleto, ainda que bastante circunstanciado, foi elaborado por Eusébio, primeiro historiador do cristianismo. (História Eclesiástica, III, 24, V, 8 e, sobretudo, VII, 25.) Êle notava, ainda no século IV: «A opiníiío sôbre o Apocalipse não cessa, mesmo nos nossos dias, de pender de um u de outro lado.» Irineu, que escreveu a partir do ano 175 aproximadamente, achava que o Apocalipse datava «do final do reino de Domiciano», isto é, de 95, aproximadamente. (Comparar o que diz Eusébio na obra citada, V, 8.)S. Dionisio, Bispo de Alexandria no século III, ao assinalar que alguns dos seus predecessores «rejeitavam completamente e refutavam de todos os modos possíveis» o Apocalipse, cita uma versão em curso entre o clero, segundo a qual êle teria sido composto pelo heresiarca Cerinto, que pregava «o reino terrestre do Cristo.» Quanto ao próprio S. Dionísio, êle confessa que «não ousa refutar êste livro, respeitado por muitos dos nossos irmãos.» Acrescenta que o estilo e a língua do Apocalipse, diferentemente dos dos evangelhos, «não sãO puramente gregos, mas misturados com dialetos estrangeiros e incorretos em certos aspectos.» A última observação é absolutamente justa, e milita igualmente em favos da antigüidade dêste escrito.claro que a dificuldade para a Igreja não residia nas particularidades do estilo do Apocalipse: o que a irritava era seu conteúdo, incompatível com o espírito dos outros escritos do Nôvo Testamento. O reino terrestre do Cristo que êle anuncia contradiz nitidamente o reino celeste no outro mundo, proclamado pelos evangelhos, O ódio ao poderio romano, e a sede de vingança de que as páginas do Apocalipse estão cheias não se enquadram de modo algum na linha política adotada pela Igreja. E se esta o incluiu, apesar de tudo, no cânone, foi sàmente por causa do prestígio que êsse documento extremamente antigo da literatura cristã tinha aos olhos de «muitos dos irmãos. *A primeira questão que o historiador se propõe refere-se ao lugar em que o cristianismo apareceu. Segundo a tradição evangélica, êle nasceu na Judéia, e está ligado naturalmente a Jerusalém. Provindo do judaísmo, a nova religião devia, aliás, reconhecer como sua pátria «a terra de nossos pais.» Não é o Antigo Testamento a história dos hebreus da Palestina? As profecias bíblicas constantemente evocadas pelos primeiros

Page 105: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 109escritores cristãos, lembram sem cessar que o lugar de ação do Messias seria justamente a Judéia, Jerusalém, a «cidade santa». Os evangelhos, inspirando-se nas professias do Antigo Testamento, fazem remontar a genealogia de Jesus ao Rei David, o que tornava obrigatório situar os primeiros passos do cristianismo na Judéia.Depois das descobertas arqueológicas em Coumrã, lança-se de nôvo a idéia na literatura marxista de que o cristianismo teria aparecido de fato na Palestina. Como argumento maior invoca-se a insistência da tradição cristã primitiva sôbre êste ponto. Aqui, é preciso notar que esta tradição liga o nascimento do cristianismo e o lugar de sua aparição às atividades de Jesus Cristo. Desde que se reconhece a Jesus a qualidade de personagem histórico, deve-se aceitar, como conseqüência, que a religião da qual êle teria sido fundador deu seus primeiros passos na Palestina. Porém, semelhante concepção cai automàticamente, segundo nossa opinião, desde que se lhe negue a premissa. Que restará dessa idéia se nos colocarmos no ponto de vista da evolução da imagem de Jesus-Deus, para a de Homem-Deus? No que concerne aos documentos da seita de Coumrã, mostramos no capítulo precedente que o cristianismo não saiu desta seita; então, tudo quanto a ela se refere não pode ser maís utilizado para definir o local do aparecimento do cristianismo.Muitas razões militam contra a versão tradicional. Notamos já a ausência de informações sôbre os cristãos nos autores hebreus do século 1. Não se dispõe de qualquer relatório a respeito da participação dos adeptos da nova fé nos acontecimentos ligados à Guerra dos Judeus, descrita com grande luxo de detalhes por Flávio Josefo, e da qual se encontram ecos nas obras dos escritores greco-romanos. Josefo teria inegàvelmente falado da posição de uma comunidade cristã, ainda que pouco numerosa, durante a Guerra dos Judeus. Seu silêncio sôbre isso não pode ser de modo algum atribuído ao acaso. Fato ainda mais sintomático: a literatura cristã também emudece a respeito do destino dos cristãos de Jerusalém depois da destruição da cidade, e o pouco que ela diz sôbre o período anterior encontra-se sobretudo nos escritos canônicos menos antigos, tais como os Atos dos Apóstolos, e os evangelhos. Isto significa que as alusões dos autores cristãos aos adeptos da nova fé na Judéia só aparecem quando é impossível evitá-las. Os escritos mais antigos do cristianismo não fornecem o menor dado concreto sôbre uma comunidade cristã de Jerusalém, salvo uma passagem da Epístola aos Galatas (1, 17-TI, 9), destinada a sustentar, com a autoridade dos apóstolos, a predicação do cristianismo entre os pagãos, mas que não prova que esta religião fôsse difundida na Judéia.

Page 106: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

110A ORIGEM DO CRISTIANISMOPara encontrar uma saída para esta contradição, foi, muito mais tarde, entre os séculos II e IV, inventada uma lenda, segundo a qual os cristãos de Jerusalém, «obedecendo a uma ordem do céu» (Eusébio: História Eclesiástica, III, 3), teriam deixado a cidade antes de sua destruição pelos romanos, para se fixarem num país vizinho. Porém, êste piedoso subterfúgio não pode salvar os zelosos defensores da versão tradicional, porque não existe qualquer relato sôbre o destino ulterior dessa comunidade.Isto pôsto, quando os monumentos arqueológicos descobertos em Coumrã foram publicados, êles deviam interessar no mais alto grau aos meios eclesiásticos. As escavações posteriores iriam revelar• que a comunidade de Coumrã existia naquele local, do século 1, até a Guerra dos Judeus. Isto bastou aos teólogos das diversas igrejas para proclamar que êsses rolos eram precisamente os mais antigos documentos do cristianismo, escritos em língua hebraica por testemunhas oculares da ativividades de Jesus Cristo. Quando essas afirmações revelaram-se destituídas de qualquer fundamento, avançou-se a conjectura, não menos inconsistente, de que os manuscritos de Coumrã pertenciam a uma seita judaico-cristã, a dos ebionitas. Como única prova para apoiar tal hipótese referiam-se à utilização reiterada, no texto da Regra, da palavra ebionim, «pobres», em hebreu.Tôdas essas razões nos obrigam a nos restringirmos a conclusões bem limitadas: a versão tradicional sôbre o nascimento do cristianismo na Palestina não é digna de fé; as informações mais verossímeis sôbre as comunidades cristãs mais antigas nos levam à Ásia Menor sem, todavia, nos dar a certeza de que foi por lá que elas apareceram em primeiro lugar; o problema do lugar de nascimento do cristianismo deve, visivelmente, ficar em suspenso até a descoberta de novas fontes.1Um argumento de pêso a favor do nascimento do cristianismo entre os judeus da diáspora, e não na Palestina, reside no regime teocrático estritamente centralizado da Judéia, onde tudo estava submetido ao poder da aristocracia sacerdotal do templo de Jerusalém, e onde a população se encontrava sob a férula das múltiplas prescrições do judaísmo. Nessas condições, é difícil conceber o aparecimento, na Palestina, de uma seita que ousava elevar-se, desde o comêço, contra os dogmas oficiais do judaísmo, diante dos quais se inclinavam tôdas seitas que conhecemos, dos essênios, aos saduceus.

1 Ver 1. P,. FRANTSEV: Das Fontes da Religião e do Ateísmo, Moscou, págs. 425-487. (Edição russa)

Page 107: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

o APA1ECIMEI DO CRISTIANISMO111Na diáspora, ao contrário, beneficiavam-se os judeus de uma liberdade de consciência mais ampla, e sofriam, além disso, a influência das religiões locais; as condições eram, portanto, mais favoráveis ao aparecimento de um nôvo culto. Não foi por acaso que o sistema filosófico e religioso de Filon de Alexandria, um• dos mais destacados predecessores da ideologia cristã, apareceu no Egito, não na Judéia. Isto vale, com muito maior razão, para o cristianismo, pleno de concepções judaicas e filonianas, ao qual ainda se misturaram numerosos elementos emprestados das diversas religiões da Ásia Menor. A população judia da diáspora era, sem dúvida, um terreno ideal para a eclosão da nova religião.O autor do Apocalipse de João, o documento mais antigo da literatura cristã, conhecia apenas sete comunidades cristãs na Ásia Menor, que êle enumera várias vêzes: as de Efeso, de Smirna, de Pérgamo, de Tiátire, de Sardes, de Filadélfia, e de Laodicéia. (1, 11 e em outros lugares.) Essas cidades eram próximas umas das outras. Segundo o testemunho de Plínio, o jovem, existiam comunidades cristãs bastante populosas nos começos do século II a nordeste da Ásia Menor, na Bitínia. A Epístola aos Gálatas fala igualmente da Ásia Menor como um dos centros mais antigos do cristianismo.Possuímos, doutra parte, informações sôbre o aparecimento do cristianismo no Egito, em época bastante recuada (no comêço do século II). Como na Ásia Menor, existiam ali comunidades judias bastante numerosas. Os livros do Nôvo Testamento não fazem qualquer menção a comunidades cristãs no Egito, e são, em geral, muito avaros de informações sôbre êsse país, mas os mais antigos monumentos da arqueologia cristã foram descobertos justamente no Egito, como o vimos anteriormente. O silêncio da literatura eclesiástica sôbre as comunidades cristãs primitivas nesse país é devido talvez ao fato de encontrarem-se essas comunidades, desde a primeira metade do• século II, sob a influência do gnosticismo, corrente declarada herética depois da constituição da Igreja. Outros indícios atestam ainda o aparecimento de comunidades cristãs no Egito em época mais recuada do que aquela.Apesar das obscuridades do estilo, o Apocalipse de João apresenta um quadro bem claro do estado de espírito, das esperanças e, mesmo, da ideologia dos antigos cristãos ou, melhor, das primeiras comunidades judaico-cristãs. Êste escrito foi magistralmente analisado há mais de meio século por Friedrich Engels.2 Bastar-nos-á, aqui, recordar suas principais conclusões, que conservam todo o seu valor científico.

2 K. MARX e F. ENGELS: Ser la Religion, d. Sociales, Paris,1960, págs. 310-338.

Page 108: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

112 A ORIGEM DO CRISTIANISMOO autor do Apocalipse se dirige sàmente às sete comunidades da Ásia Menor, comunidades cujo nome, em grego eclesia, significava, na época clássica, «assembléia popular», e que o Nôvo Tesçamento utiliza tanto para designar as comunidades cristãs locais, como também a Igreja em seu conjunto.3 O autor do Apocalipse serve-se dêsse têrmo apenas no primeiro sentido. Fala de sete «Igrejas» cristãs «que estão na Ásia», em Éfeso, em Smirna etc., e é evidente que êle não reconhece qualquer forma de união entre essas comunidades, e não tem qualquer noção de Igreja universal.As sete comunidades enumeradas no Apocalipse de João situavam-se todos em cidades do oeste da Ásia Menor, na encruzilhada das vias comerciais, e tinham uma população multinacional, em que o elemento judaico não era o menos numeroso. O número 7 não era fortuito aqui; êle tinha um sentido cabalístico, tanto entre os antigos hebreus, como entre os outros povos da Antigüidade; no Apocalipse êle reaparece muitas vêzes, não sàmente no plano terrestre, mas também no celeste. Tem-se a impressão de que o autor dêste escrito, que conhecia apenas sete comunidades cristãs, atribuía a tal fato uma alta importância.O traço mais característico das comunidades cristãs citadas no Apocalipse era a luta verdadeiramente darwiniana pela existência, que elas mantinham entre si, segundo a justa expressão de Friedrich Engels. Os capítulos segundo e terceiro do Apocalipse descrevem em poucas palavras o estado de coisas que vigora no seio de cada uma delas. Descobrem-se, assim, na comunidade de feso, criaturas «que se dizem apóstolos, e que não o são; mentirosos, apenas» (II, 2), e ainda certos nico. laítas dos quais se constata também a presença na comunidade de Pérgamo. O autor do Apocalipse censura a vários cristãos por abandonarem a fé, e os exorta a se arrependerem. (Cap. II, versículo 5 e outros.) Ële verifica que os membros das comunidades de Smirna e de Filadélfia são caluniados por «aquêles que se dizem judeus, e que não o são.» (II, v. 9 e III, v. 9.) Condena os fiéis de Tiátire por deixarem «a mulher Jezabel, que se diz profetiza, ensinar e seduzir os servidores de Deus [os cristãosj, para que êles se abandonem à impudicícia e comam carnes sacrificadas aos ídolos.» (II, 20.) O relato das querelas sem fim entre os diversos grupelhos religiosos é acompanhado, no Apocalipse, pela descrição dos castigos do céu que esperam os renegados da verdadeira fé.

3 Donde a palavra Igreja, em francês. Os teólogos, tirando partido do seu duplo sentido em grego, procuram provar, dessa maneira, que a Igreja nasceu com o cristianismo. Na versão russa do Nôvo Ter tarnenso o têrmo grego é sempre traduzido por “igreja”.

Page 109: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 113É bastante significativo que o autor do Apocalipse qualifique de renegados até mesmo os representantes da corrente que, em seguida, assumiu a chefia do cristianismo. Tal é o caso quando fulmina aquêles «que se dizem judeus, e não o são», palavras perfeitamente aplicáveis aos redatores de várias epístolas paulinianas que, em nome do apóstolo, nelas se declaram melhores judeus, do que os fiéis do judaísmo oficial.O conteúdo do Apocalipse difere muito do conteúdo dos outros escritos do Nôvo Testamento. Enuncia opiniões que a Igreja iria condenar posteriormente, e não foi fortuitamente que sua introdução no cânone suscitou uma resistência tão encarniçada. O Apocalipse concebe o cristianismo apenas como parte integrante do judaísmo. Mais ainda, seu autor considera-se no dever de acentuar que só os cristãos é que são judeusautênticos. Antes de descrever os castigos reservados aos incrédulos, êle previne que essas desgraças serão poupadas a «cento e quarenta e quatro mil (homens) de tôdas as tribos dos filhos de Israel.» (Apocalipse, VII, 4 e XXI, 12.) E não se pode duvidar que êle tem em vista não aos cristãos em geral, mas, explicitamente, aos judeus-cristãos, porquanto êle precisa que êsses justos pertencem às doze tribos israelitas atribuindo êsse título «àqueles que não se macularam com mulheres, pois êles são virgens; êles seguem o cordeiro por onde êle vá; foram resgatados entre os homens. » (Apocalipse,XIV, 4.) Tudo leva a crer que, nessa época, a predicaçãocristã não se realizava senão entre os judeus; portanto apenas uma parte dêles podia esperar, segundo o autor do Apocalipse, a salvação e o reino de Deus. Êste escrito é, portanto, também judaico, até certo ponto.Convém notar, contudo, que êste documento cristão, dos mais antigos entre todos, já difere muito dos outros escritos judaicos dêsse gênero e, primeiramente, por sua fé em Jesus, o enviado de Deus; fé que é proclamada desde as primeiras linhas: «Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servidores as coisas que devem acontecer brevemente. » O texto seguinte retorna várias vêzes a Jesus, mas aqui êle de modo algum se assemelha ao personagem evang lico. O Apocalipse não diz uma única palavra sôbre a sua vida terrestre.4 Trata-se de uma figura cósmica, o «alfa e

4 Sômente duas passagens do Apocalipse (1, 5 e XI, 8) apresentam certa coincidência com a versão evangélica, falando, a primeira, “daquele que nos livrou dos nossos pecados com o seu sangue”, e, a segunda, da “região de uma grande cidade chamada, em um sentido espiritual, Sodoma e Egito, lá mesmo onde o Senhor foi crucificado.” Mas, essas passagens contradizem inumeráveis outros testemunhos do Apocalipse sôbre Jesus, e são, incontestàvelmente, interpolações posteriores. Ver A. L0IsY, ob. cit., pág. 37.)

Page 110: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

114A ORIGEM DO CRISTIANISMOo ômega», o primeiro e o último (1,8). O autor do Apocalipse dá dêle a seguinte imagem: «Êle tinha em sua mão direita sete estrêlas. Da sua bôca saia uma espada aguda, de dois gumes; e sua face era como o Sol quando êle brilha no seu esplendor. Seus olhos eram como chamas, seus pés eram semelhantes aõ bronze ardente, como se êie tivesse sido abrasado numa forna1ha. (Apocalipse, 1-14-16.)Além de Jesus, o Apocalipse descreve minuciosamente, e põe igualmente no primeiro piano, outro ser cósmico, o Cordeiro, «que lá estava como imolado» e «tinha sete cornos e sete olhos, que são os sete espíritos de Deus» (V-6), único ser digno de abrir o livro selado com sete selos. Em seguida, um menino faz sua aparição no Apocalipse, e êle deve «apascentar tôdas as nações com uma vara de ferro» (XII, 5). Foi concebido não pela Virgem Maria, mas por «uma mulher envolvida pelo Sol, tendo a Lua sob os seus pés, e uma coroa de doze estrêlas sôbre a fronte» (XII, 11). Entre os personagens dêsse escrito, há um cujo nome é a Palavra de Deus que «é seguido pelos exércitos que se encontram nos céus sôbre cavalos brancos» (XIX), e outro que estava «assentado sôbre uma nuvem» e que «assemelhava-se a um filho de homem» (XIV, 14). A profusão de figuras cósmicas no Apocalipse explica-se pelos abundantes empréstimos feitos de outros apocalipses judaicos.Êste escrito ignora ainda o dogma fundamental do cristianismo, relativo à Santíssima Trindade: O Pai, o Filho e o Espírito Santo. Êle chega mesmo a contradizê-io em várias ocasiões, tal como no capítulo XV, versículo 3, em que afirma que sete anjos «cantam o cântico de Moisés, o servidor de Deus, e o cântico do Cordeiro.» Aqui, Jesus não é o Filho de Deus do texto canônico, é apenas um servidor, da mesma hierarquia que Moisés. O Apocalipse não menciona em parte alguma um Espírito Santo único, mas refere-se muitas vêzes aos « sete espíritos de Deus. »Os outros dogmas maiores do cristianismo brilham igualmente pela ausência no Apocalipse. Nada é dito aí sôbre o batismo, por exemplo. «Não faças o mal à terra, lê-se no capítulo VII, vçrsículos 3-4, nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado com o sêio a fronte dos servidores do nosso Deus. E ouvi o número daqueles que tinham sido marcados com o sêlo, cento e quarenta e quatro mii, de tôdas as tribos dos filhos de Israel.» Ao enumerar essas doze tribos, o autor acrescenta para cada uma delas: doze mil «marcados com o sêloi Êle teria dito «batizados», incontestàvelmente, se o sacramento do bastismo já existisse no seu tempo. Há no Apocalipse uma dezena de passagens em que se poderia esperar encontrar alusões ao batismo, mas nada há sôbre êle.

Page 111: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO115Também não se encontra nêle qualquer palavra sôbre a eucaristia, ou sôbre a justificação pela fé, que já ocupa um lugar primordial nas mais antigas epístolas, nada sôbre o pecado original resgatado pelo sangue do Cristo. Êsse silêncio quanto aos aspectos mais importantes da religião cristã não é devido ao acaso, resulta do fato de ter êste escrito vindo à luz muito antes da constituição dêsses dogmas.Sabemos que no centro das divergências no seio das comunidades cristãs encontrava-se a questão dos sacrifícios aos ídolos (como se vê no capítulo II do Apocalipse), questão que não deixou de ter um grande papel na história do cristianismo primitivo, até a sua transformação em religião oficial do Império Romano. Os sacrifícios eram parte integrante e essencial de tôdas as religiões da Antigüidade. Aquêle que participava dessas cerimônias, notadamente comendo as carnes sacrificadas aos ídolos, dava, com isso, de qualquer modo, uma prova de lealdade política. O caráter político dêsse ritual acêntuou-se mais ainda na época em que um nôvo culto começou a se difundir: o dos imperadores. Sendo os sacrifícios usuais entre os adeptos de quase tôdas as religiões da Antigüidade, aquêles que se exigiam em honra do Imperador não suscitavam qualquer oposição.Contudo, no que concerne aos judeus, a situação se complicava. Ao evoluir para o monoteísmo, sua religião impusera um ritual minucioso de sacrifícios a Jeová, e foi por isso que aquelas cerimônias não levantaram qualquer objeção entre êles. Mas, era necessário ainda reconhecer o caráter divino do Imperador, e aí se apresentava a dificuldade para os fiéis do judaísmo. Recusando-se, por essa razão, a oferecer sacrifícios aos soberanos romanos, representavam êles aos olhos da polícia de Roma um elemento latente de perturbações. Mas, a reconhecida antigüidade do judaísmo obrigava o Govêrno a tolerar êsse comportamento da parte dos judeus.O cristianismo, porém, era uma religião nova. Vinda do judaísmo, recusava-se, como êle, a reconhecer a natureza divina dos imperadores romanos, e, por conseguinte, a lhes oferecer sacrifícios, o que apontou imediatamente os cristãos à desconfiança das autoridades romanas. Os ideólogos do cristianismo compreenderam, por outro lado, e bem depressa, que para o difundir entre os pagãos era necessário primeiramente rejeitar o ritual judaico tradicional e, com êle, os sacrifícios em geral. Ora, como o sublinhou Engeis, «desembaraçar-se dos sacrifícios era a condição primeira de urna religião universal.»5

5 K. MARX e F. ENGELS: Sur la Religio7i, fld. Sociales, Paris,1960, pág. 322.

Page 112: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

116A ORIGEM DO CRISTIANISMOMas, a ruptura do cristianismo, com o judaísmo, não foi súbita, naturalmente. Os escritos canônicos conservam vestígios da luta prolongada e penosa da nova religião visando a ultrapassar as sobrevivências judaicas que impediam suá propagação. O primeiro passo, o passo decisivo nesse sentido, foi a renúncia aos sacrifícios, e êsse passo foi dado desde o comêço, já no Apocalipse, como o leitor acaba de ver.Nas religiões anteriores, o ritual servia, sobretudo, para unir estreitament os fiéis, separando-os dos incrédulos. Essas religiões não se propunham a objetivo de conquistar todos os homens, acima das barreiras étnicas, sociais e outras; seus ritos desempenhavam sua função, que consistia em manter a união dos fiéis, e apenas dos fiéis. Mas, êles, dêsse modo, impediam a conquista de novos prosélitos. O cristianismo, ao contrário, ao abolir os sacrifícios e o ritual, facilitou consideràvelmente sua própria tarefa de propaganda.Nos primeiros escritos cristãos, o Apocalipse em primeiro lugar, a questão dos sacrifícios está ligada à da «impudicícia», têrmo que tinha duas significações, subentendendo, de um lado, a liberdade do amor fora do casamento, e, do outro, o casamento entre adeptos de religiões diversas. O Apocalipse parece empregar o têrmo no primeiro sentido. Seu autor levanta-se muitas vêzes contra o que êle qualifica de impudicícia (II, 14, 20 etc.); vê o traço distintivo e a virtude dos 144 000 justos na sua virgindade, e assim por diante. Diferentemente das outras religiões, o cristianismo não cessou, mesmo subseqüentemente, de considerar o amor carnal, e até a vida familiar, como qualquer coisa de inconveniente para um verdadeiro cristão. Foi a contragosto que se resignaram à necessidade de dar continuidade ao gênero humano.. . O furor contra a «impudicícia» foi particularmente acentuado durante a primeira fase da nova religião, quando ela se encontrava inteiramente sob a influência das crenças ëscatológicas.6O Apocalipse fala com insistência do Juízo Final e do triunfo total da verdadeira fé em data muito próxima, e tem o cuidado de prevenir, desde as primeiras linhas, que «as coisas que êle vai revelar devem acontecer logo.» (Apocalipse, 1, 1.) Diz, várias vêzes, em nome de Jesus: «Eis que virei muito breve!», «o tempo está próximo!» etc. (XXII, 12 e noutros lugares.) Depois de cada uma dessas advertências, acrescenta que se dará a cada um «segundo o que é sua obra.»O Apocalipse de João, como os apocalipses devidos a outros autores, dedica-se a descrever, e com o maior número possível de detalhes concretos, as punições que o céu reserva aos incrédulos, a luta contra os demônios, as cenas do Juízo Final, e,

6 Escatologia, doutrina sôbre o fim do mundo.

Page 113: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 117finalmente, a beatitude dos fiéis na nova Jerusalém, «descida do céu.»Ësse era um meio extremamente atuante de propaganda religiosa, tanto para estimular a fé dos cristãos, como para converter os pagãos. Quanto mais próximo parecia o dia do Juízo Final, mais adeptos conquistava a predicação do cristianismo...Os primeiros cristãos nutriam a esperança de ser reçompensados ainda durante sua vida, por sua fidelidade aos ensinamentos do Cristo. Esta esperança da recompensa para os justos, e de castigo para os pecadores, representados por Roma e suas classes exploradoras, num futuro próximo, tornava o cristianismo primitivo radicalmente diferente das religiões precedentes.O primado dos temas escatológicos no Apocalipse de João e sua descrição circunstanciada do fim do mundo distingüem-no de todos os outros escritos do Nôvo Testamento, e lhe asse guraram uma voga extraordinária no seio das diversas correntessectárias surgidas no decorrer da história posterior do cristia nismo. Durante a Idade Média, e até mesmo na moderna, as seitas que, por causa do seu radicalismo, eram objeto de cruéis perseguições, não sómente da parte da Igreja, mas, também,do poder temporal, compreendiam muito bem os sentimentos do autor do Apocalipse a respeito da «grande prostituída, Babilônia», e transpunham para o seu tempo as visões apocalípticas.O quiliasma, crença no advento do reino milenar do Cristo antes do último combate entre os exércitos do céu e os do inferno, constituía um aspecto particular da doutrina escatológica do autor do Apocalipse. Segundo êle, a êsse reinado de mil anos seriam associados aquêles que «tinham sido decapitados pela causa do testemunho de Jesus e pela causa da palavra de Deus» e «aquêles que não tinham adorado a besta, nem sua imagem, e que não tinham recebido a marca sôbre a fronte e sôbre a mão.» (Apocalipse, XX, 4.)O quiliasma foi muito popular durante a fase inicial do cristianismo. Os apologistas Papis e Justino eram quiliastas. Esta doutrina era professada largamente pelas seitas heréticas, notadamente pela dos montanhistas, o que constitui uma prova da sua antigüidade. Esta doutrina traçava uma nítida linha demarcatória entre os cristãos ricos, inclinados às acomodações com os detentores do poder, e os adversários intransigentes dsse baixo mundo.» O quiliasma era um excelente meio de propaganda entre os cristãos expostos à repressão e às perseguições, mas situava os mártires do cristianismo abaixo do clero que tendia para um compromisso com o poder imperial. Foi por isso que a Igreja o condenou.

Page 114: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

118 A ORIGEM DO CRISTIANISMOAs crenças messiânicas e escatológicas não eram próprias apenas do cristianismo primitivo: elas se encontram, sob um ou outro aspecto, no judaísmo e na literatura latina, na quarta égloga das Bucólicas de Virgffio, por exemplo, em que o poeta anuncia o nascimento de um menino de natureza divina, cuja vinda seria o sinal do retôrno à idade do ouro. 7 Porém, se os versos virgilianos deviam glorificar o poder imperial, a escatologia cristã agia no sentido inverso. O Apocalipse de João anuncia o advento do Cristo em data muito próxima. E não é por acaso que o número mágico 666, o da besta, dá, decifrado, o nome de Nero, e a alusão a êle é clara quando o autor se ocupa dos cinco reis, no versículo 10 do capítulo XVII.A doutrina escatológica assume no Apocalipse um caráter nitidamente anti-romano. Nêle se prediz em várias passagens:«Ai, ai daquela grande cidade, que estava vestida de linho fino, de púrpura escarlata; e adornada com ouro, pedras preciosas e pérolas! Em uma hora apenas tantas riquezas foram destruí- das!» (XVII, 16 e também os versículos 10 e 19.) O autor dêsse escrito se rejubila com as lágrimas e as lamentações, não apenas dos romanos, mas, também, de todos aquêles cuja sorte estava ligada à da Capital do Império: reis submetidos a Roma, ricos mercadores, donos de naves. Foi preciso todo um século de adaptaçãà do cristianismo aos interêsses dos altos meios para substituir o grito cheio de ódio contra os opressores:«Ela caiu, ela caiu, Babilônia, a grande prostituída! » (XVIII, 2), pela máxima açucarada dos evangelhos: «Dai, pois; a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.» (Mateus, XXII, 21.)O autor do Apocalipse ergue-se àsperamente não só contra as autoridades, mas também contra todos os representantes das classes superiores. Êle condena «os reis da Terra», que se dedicaram com Roma à impudicícia, e os negociantes, que «se enriqueceram pelo poçier do seu luxo.» (Apocalipse, XVII, 3.) Sem condenar diretamente a riqueza, dá a entender que ela é nociva para a salvação da alma. Nas mensagens à comunidade cristã de Ismirna e, sobretudo, à de Laodicéia, o autor do Apocalipse estigmatiza, ainda que indiretamente, a sêde de riquezas que era própria, é preciso admiti-lo, de muitos dos cristãos também.Não possuímos dados sôbre a composição social das comunidades cristãs da Ásia Menor. Mas, a ardente espera do fim do mundo, o ódio às autoridades romanas e seus cúmplices, o apêlo ao martírio em nome da fé, demonstram de modo

7 Estas questões são abordadas por N. MACFIQUINE em sua ‘Escatologia e Messianismo Durante o Ultinio Período da República Romana’, in Anais da Academia de Ciências da U R S. S., Moscou, 1946, no 5

Page 115: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO 119incontestável que os membros dêsses agrupamentos pertenciam às massas laboriosas.O Apocalipse dá algumas informações, multo incompletas, é certo, a respeito das formas de organização dos primeiros grupos de cristãos. Já assinalamos anteriormente que não se encontra neste escrito o menor vestígio da existência de uma Igreja única, nem mesmo de um organismo diretor das comunidades que tenha servido de ponto de partida para a constituição da Igreja no sentido atual dessa palavra. O Apocalipse não conhece bispos nem diáconos. Certas comunidades eram dirigidas, segundo parece, por presbíteros, anciãos. O autor do Apocalipse fala várias vêzes de 24 velhos assentados diante do trono de Deus, que lhe cantam louvores. Segundo as primeiras epístolas, as comunidades têm anciãos por chefes, e muitopossível que tais fôssem as funções dos 24 velhos do Apocalipse. Sômente duas categorias de fiéis se clistinguiam da massados crentes: os apóstolos e os profetas. Quanto aos primeiros, já reproduzimos linhas atrás a passagem em que êles são qualificados de mentirosos. Notemos que no Apocalipse, como, aliás, em outros escritos cristãos, aplica-se o têrmo «apóstolos» não aos doze discípulos legendários de Jesus, mas aos mensageiros, conforme a significação dessa palavra grega, e êles o eram, de fato, pois iam de comunidade a comunidade pregando a nova fé. Estigmatizando os falsos apóstolos, o Apocalipse fala ao mesmo tempo, com grande respeito, dos «santos apóstolos» (XVIII, 20). Fazem-se nêle freqüentes referências a profetas e profecias. Ëste escrito é uma verdadeira tecitura de predicações, e o seu autor considera-se a si mesmo como profeta (X, 11). As primeiras epístolas revelam que as profecias desempenharam efetivamente um papel muito importante nas comunidade cristãs primitivas. «Eu fui arrebatado em espírito no dia do Senhor», declara o autor do Apocalipse para apoiar suas profecias, e isso bastava, segundo parece, ao seu crédulo auditório. As mulheres também podiam ser profe. tizas. Havia uma na comunidade cristã de Tiatíra, e se o autor do Apocalipse a condena, o faz imicamente porque considera que ela sedüz os crentes.Não é inutil notar aqui que a linha nitidamente anti- romana do Apocalipse coincide com a estrutura democrática das comunidades cristãs mais antigas que conhecemos. Isto uão era efeito de mero acaso. Veremos, subseqüentemente, que a tendência cada vez mais acentuada a compor-se com o poder imperial, os apelos de submissão às autoridades romanas são paralelos e são determinados em grande parte pela aparição, e, depois, pelo fortalecimento gradual do episcôpado monárquico, até o momento em que os cristãos, «uma vez seu culto tornado religião do Estado», já se tinham «esquecido» das «ingenui

Page 116: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

120A ORIGEM DO CRISTIANISMOdades» do cristianismo primitivo e do seu espírito democrático revolucionário.8 Vemos no Apocalipse o ponto de partida dêsse processo, o aparelho clerical ainda não existe, e todo o relato revela o ódio contra as classes dominantes do Império Romano.Pode-se dizer que o autor do Apocalipse não chegou a se opor ao judaísmo e a êle permaneceu fiel, de fato, sob muitos aspectos. Êle dirige-se aos judeus apenas, e promete a felicidade na Jerusalém celeste, sômente aos eleitos entre êles. As imagens apocalípticas dêste escrito são em grande parte empres- tadas da anterior literatura judaica do mesmo gênero. Engeis acentua que o Apocalipse «nos traz em sua integridade o que o. judaísmo, fortemente influenciado por Alexandria, legou ao cristianismo. Tudo aquilo que lhe é posterior é acréscimo ocidental, greco-romano.»9Portanto, o Apocalipse não é um escrito puramente judaico, más judaico-cristão: êle já fala de um Jesus-Cordeiro, que foi imolado e resgatou com seu sangue os crentes (V, 9). O Cordeiro aí aparece na qualidade de principal mèdiador entre Deus e os homens. A descrição do advento de Jesus Cristo ocupa o lugar central. Tudo isso distingue êste antigo monumento do cristianismo, da literatura judia de idêntica natureza. Precisemos, contudo, que «o cristianismo de então, que ainda não tinha consciência de si, estava ainda muito distante da religião universal, dogmàticamente fixada pelo Concílio de Nicéia». 10 O Cordeiro do Apocalipse não se assemelha ao Homem- Deus dos evangelhos. O Apocalipse ignora a Santíssima Trindade, o batismo e o pecado original. A ideologia judaico- cristã era, assim, apenas o embrião de uma nova religião que ainda não tinha rompido suas ligações com o judaísmo. Isto quer dizer que, se os argumentos já apresentados não bastassem para estabelecer a data exata da composição do Apocalipse, seu conteúdo nos levaria, pelo menos, à conclusão de que êle constitui o documento mais antigo do cristianismo.R. Viper em Nascimento da Literatura Cristã chama a atenção para a alternância, no Apocalipse, do nome de Jesus e do Cordeiro. O nome de Jesus nêle figura nos três primeiros capítulos e nos últimos; o Cordeiro só aparece no V e desempenha o principal papel na parte central, não sendo identificado em nenhuma parte dêsse escrito a Jesus, enquanto que nos outros textos cristãos êste último recebe continuamente a alcunha de «Cordeiro de Deus». Isto parece indicar que

8 V. LENINE: L’Ëtai ei la Révolzaion, Ëd. em Línguas Estrangeiras, Moscou, 1958, pág. 48.9 MARX e ENGELS: Sur la Religion, d. Sociales, Paris, 1960, pág.338.10 MARX e ENGELS, ob. cit., pág. 322

Page 117: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O APARECIMENTO DO CRISTIANISMO121se tentou, no Apocalipse precisamente, pela primeira vez e muito desajeitadarnente, atribuir os traços do Cordeiro ao Cristo pré-evangélico. Êsses dois personagens só são apresentados simultêneamente no capítulo XII, versículos 10-11:«Agora a salvação chegou, e o poderio, e o reinado do nosso Deus, e a autoridade do seu Cristo. -. Eles venceram [o diabo], graças ao sangue do Cordeiro.» Vemos, por conseguinte, que, na única passagem do Apocalipse em que essas duas figuras aparecem juntas, suas funções são nitidamente distintas: um é declarado filho de Deus e o outro é imolado, e não no comêço de nossa era, mas «desde a fundação do mundo.» (Apocalipse, XII, 8.)Uma só conclusão é possível depois disso: o Apocalipse comporta duas partes. A principal, consagrada ao Cordeiro, ferve de ódio contra «a grande prostituída, Babilônia»; ela remonta, com efeito, à época da Guerra dos Judeus, enquanto que o comêço e o fim dêsse escrito foram compostos mais tarde. O texto inteiro cio Apocalipse, tal como o conhecemos, data aparentemente do tempo de Domiciano, tal como o indica Irineu. (Ver pág. 108.)É útil comparar, para têrmos uma idéia mais exata do cristianismo nascente, a ideologia e os costumes das comunidades cristãs primitivas segundo o Apocalipse, com os dados dos documentos descobertos em Coumrã. As informações fornecidas por essas duas fontes têm muito de comum. Mostram, ambas, que as primeiras comunidades eram formadas de judeus, que se desligavam do judaísmo, que elas professavam crenças messiânicas e o desprêzo pelas coisas terrenas, que seus adeptos pertenciam visivelmente às camadas deserdadas da população. É de se crer, além disso, que tanto os essênios, como os cristãos do tempo do Apocalipse, eram hostis à escravidão.Apesar dessas semelhanças, os essênios distinguiam-se dos adeptos do cristianismo primitivo em vários aspectos essenciais. Pondo de parte a prática dos sacrifícios, os primeiros permaneciam inteiramente fiéis ao judaísmo ortodoxo, com suas múltiplas prescrições religiosas; as sete comunidades da Ásia Menor, apesar de se consideraram ligadas ao judaísmo, colocavam acima de tudo a fé no Messias Jesus. Entre os essênios, o Mestre de Justiça era um homem santo que iria ressuscitar depois de sua execução; no Apocalipse, Jesus e o Cordeiro são sêres cósmicos. Os essênios fugiram do mundo; o autor do Apocalipse aspira a queda da Babilônia. A Regra da comunidade de Coumrã ajuntava uma porção de prescrições ao ritual judaico; o Apocalipse de João, surgido entre os judeus da diáspora, limita-se a condenar a «impudicícia e o sacrifício aos ídolos.» Os essênios da seita das margens do Mar Morto observavam, finalmente, uma estrita disciplina, obedecendo incondicional-

Page 118: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

122 A ORIGEM DO CRISTIANISMOmente aos seus sacerdotes, enquanto que, a julgar pelo que se lê no Apocalipse, as comunidades cristãs primitivas da Ásia Menor não conheciam qualquer espécie de clero, de tal modo que, nelas, o papel principal pertencia aos «inspirados tocados pela graça», apóstolos e profetas.Por todos êsses motivos, a comunidade de Coumrã permaneceu uma seita do judaísmo, e foi condenada a desaparecer depois da queda de Jerusalém, enquanto que a ideologia expressa no Apocalipse, renegando o caráter limitado do judaísmo, pôde transformar-se, em seguida, numa religião mundial.

Page 119: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

CAI4TULO V AS COMUNIDADES CRISTÃS DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO IISegundo o Apocalipse, a evolução da nova religião reflete-se tanto nas fontes cristãs, como nas não cristãs que datam dos primeiros decênios do século II. Ao primeiro grupo pertencem as epístolas mais antigas, atribuídas a S. Paulo, algumas outras epístolas do Nôvo Testamento e a Didaquê. No outro grupo, figuram diversas passagens dos escritos de Plínio, o jovem, de Suetônio e, provàvelmente, de Tácito.O leitor sabe que, por tôda uma série de razões, não se poderia considerar como autênticas tôdas as informações sôbre o cristianismo que figuram nos manuscritos dêsses historiadores romanos. A correspondência entre Plínio, o jovem, e o Imperador Trajano revela notadamente os vestígios de uma «correção» da parte de um piedoso copista cristão (X, 96 e 97). Segundo a passagem de uma carta de Plínio, em que êle comunica que obriga as pessoas suspeitas de professar a religião cristã, a adotar a imagem do Imperador e a renegar a Jesus Cristo, lê-se, por exemplo: «Impossível levar os verdadeiros cristãos a fazer tanto uma, como a outra dessas coisas.» A interpolação é manifesta. Outra intercalação posterior é, megàvelmente, aquela em que os cristãos são caracterizados como pessoas «que se comprometiam por juramento ( . . . ) a não cometer roubo, extorsão e adultério, a nunca faltar à sua promessa, a jamais negar um depósito.» Uma opinião tão favorável aos adeptos do cristianisplo é bastante estranha em uma mensagem oficial endereçada ao Imperador, pelo Governador de uma província romana. É claro que Plínio não colocaria o problema do comportamento das autoridades romanas em relação os cristãos, se tivesse sôbre êles tão boa opinião.Isto não quer dizer que a correspondência entre Plínio e Trajano seja inteiramente falsificada como o atesta, por exemplo, R. Viper em sua obra Roma e o Cristianismo Primitivo. Êsse documento continha certamente passagens em que se fala dos cristãos, uma vez que Tertuliano a êle se refere no limiar do século III, portanto, muito antes do acesso da Igreja ao poder. Não se ‘poderia presumir, doutra parte, que, já no século II, um escrito não cristão tenha podido ser objeto de interpolações tão consideráveis. Não há dúvida, por conseguinte, de que algumas das informações sôbre os cristãos, existentes na correspondência em questão, são autênticas. Isto

123

Page 120: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

124 A ORIGEM DO CRISTIANISMOse aplica, sobretudo, às passagens das quais se encontra a confirmação em Tertuliano. Aliás, elas não são numerosas.Partindo da análise da correspondência entre Plínio e Trajano, a crítica racionalista admite habitualmente a existência de comunidades cristãs na Bitínia. Isso não é de surpreender; geogràficamente, essa província está próxima das comunidades cristãs da Ásia Menor, citadas no Apocalipse. Notemos, contudo, que as comunicações sôbre o grau de propagação da nova religião na Bitínia, naquela época, são manifestações exageradas. As informações sôbre a flutuação dos contingentes de fiéis, sôbre as formas rituais, sôbre as assembléias noturnas dos cristãos, parecem corresponder à verdade. As duas diaconisas submetidas à tortura por Plínio eram, certamente, escravas, pois, segundo a lei, as pessoas livres não podiam ser torturadas. isto prova, doutra parte, que, na aurora do cristianismo, as mulheres exerciam nas comunidades cristãs funções que se lhes tornaram impossíveis depois da constituição da Igreja.O aspecto mais importante da mensagem de Plínio, e da resposta de Trajano, encontrase no fato de que elas caracterizam a atitude das autoridades romanas em relação aos adeptos da nova religião. E significativo que Plínio já nada diga sôbre os laços entre o cristianismo e o judaísmo. Diferentemente de Trajano, êle não vê no primeiro senão uma superstição absurda.O Imperador mostra a Plínio que não vale a pena andar atrás especialmente dos fiéis do Cristo, que não se deve levar em conta as delações anônimas contra êles, que é preciso punir iinicamente os crentes que, obstinadamente, se recusam a renegar sua fé. Tudo prova que o cristianismo não era então considerado como perigoso pelos homens do poder.A atitude dé outros escritores contemporâneos de Plínio era aproximadamente a mesma. Isto se aplica igualmente a Tácito, que fala dos cristãos num tom muito mais desdenhoso do que o de Plínio. Como êste, êle vê no cristianismo uma simples superstição, opinião corrente entre os romanos cultos da época, e da qual se encontra um reflexo nas obras um pouco posteriores, de Celso.Os escritos não cristãos dêste período não fornecem senão informações muito pobres sôbre a nova religião. Porém, atestam o fato importante de certa difusão do cristianismo sôbre o território da Ásia Menor, durante os primeiros decênios do século II, e relatam como os funcionários romanos se portaram em relação aos cristãos. As fontes cristãs oferecem muito mais dados para o estudo da ideologia do cristianismo primitivo, e, o que é principal, para o conhecimento da composição e da estrutura das primeiras comunidades cristãs.Ao examinar êste grupo de documentos, é preciso levar em conta que, por essa época, e mesmo um pouco mais tarde,

Page 121: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÃS... 125o cristianismo não era ainda uma doutrina acabada com o seu credo, seu sistema de dogmas, sua organização clerical tal como nos séculos seguintes. Tôdas as espécies de seitas e grupelhos chamavam-se, então, cristãos, e mantinham entre si uma luta das mais encarniçadas. As relações com o judaísmo, o problema de saber se se devia pregar a fé entre os pagãos, se era preciso observar as prescrições do culto judaico, a data do advento do reino de Deus, e a maneira pela qual os crentes, para êle, deveriam-se preparar, problemas tais como o da comunidade dos bens entre os cristãos, a abolição da escravatura, a admissão de um segundo casamento, a permissão ou não de comer carnes sacrificadas aos ídolos etc., tudo isso era motivo para ásperas discussões. O único traço de união entre os cristãos era, nesse tempo, a fé na divindade de Jesus, ou, para empregar a terminologia antiga, a crença de que Jesus era o Cristo, isto é, o Messias. Contudo, mesmo êste ponto essencial provocava graves divergências entre êles. Enquanto alguns cristãos admitiam que Jesus era um ser celeste, outros insistiam na sua origem terrestre, e grupos intermediários bastante numerosos, procurando conciliar os extremos, falavam da dupla natureza, divina e humana, de Jesus. Havia mesmo seitas, como os docetos (do grego doquein, aparecer), que, em geral, negavam a existência terrestre de Jesus, afirmando que êle tinha sido apenas uma visão.As epístolas paulinianas, que datam da primeira metade do século II, refletem a evolução da ideologia de uma das numerosas correntes cristãs, aquela que, posteriormente, triunfou sôbre as outras, e lançou os fundamentos da Igreja. Quanto às opiniões religiosas, políticas e sociais das correntes cristãs, cujo papel foi nesta época tão importante quanto o paulinísmo, são elas bastante menos conhecidas. Encontram-se alguns dados sôbre elas na Dida quê e em várias epístolas não paulinianas do Nôvo Testamento. Sôbre as múltiplas e muito interessantes tendências do cristianismo primitivo não dispomos senão de raras informações colhidas particularmente nos escritos de Irineu (ano 180, aproximadamente) e de Tertuliano (fim do século II e comêço do III), e isso nos obriga a lhes dedicar muito menos espaço do que à análise do paulinismo.A crítica racionalista dos escritos do Nô-vo Testamento demonstrou, já no fim do século XIX, que as 14 epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo não são devidas a um só autor, e não podem absolutamente remontar aos meados do século 1, época em que se situa, segundo a tradição cristã, a atividade dêsse apóstolo. É significativo que, mesmo durante a Antigüidade, hesitava-se em atribuir êsse grupo de epístolas a um só autor. A comunidade cristã de Roma, por exemplo, recusava-se a reconhecer em Paulo o autor da Epístola aos Hebreus.

Page 122: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

126A ORIGEM DO CRISTIANISMOE, aproximadamente no final da primeira metade do século II, o herético Márcio afirmava que êsse apóstolo tinha composto apenas as dez primeiras epístolas que lhe são atribuídas.As longas e pacientes pesquisas realizadas sôbre êste assunto permitiram estabelecer que as epístolas ditas de Paulo podem ser subdivididas em três grupos principais; o primeiro dêles compreende as mais antigas, que são endereçadas aos romanos, aos coríntios e aos gálatas, e que datam, visivelmente, do final do século 1, ou dos começos do II; o segundo, as epístolas um pouco posteriores endereçadas aos efesianos, aos fiipinos, aos colossianos, aos tessalônicos; o terceiro, as epístolas pastorais endereçadas a Timóteu, a Tito e a Filemon, que datam dos meados do século II. Quanto à Epístola aos Hebreus, difere ela radicalmente das outras, tanto no que concerne ao estilo, como ao conteúdo, pois ela foi composta diretamente sob a influência das idéias filosóficas de Fion, de Alexandria.É inútil dizer que tôdas essas epístolas, notadamente as mais antigas, sofreram muitas vêzes retoques que objetivam eliminar tudo o que era inaceitável segundo o ponto de vista da teologia cristã ulterior. Em certos casos, essas correções são fàcilmente discerníveis; em outros, são apenas perceptíveis. Porém, mesmo o texto canônico conservado das epístolas nos permite acompanhar a evolução do cristianismo e, em particular, apreender a gênese dos dogmas, bem como as mudanças, da composição social e da estrutura internas das comunidades cristãs, no decorrer da primeira metade do século II.1. A SEPARAÇÃO DO JUDAÍSMOO principal problema que se apresentava ao cristianismo nos fins do século 1 e começos do II consistia em saber se êle era um ramo do judaísmo, ou uma nova religião independente. A resposta a esta questão devia decidir se êle permaneceria como uma das múltiplas seitas do judaísmo, ou se romperia com êste, recusando-se a ver nos judeus o «povo eleito», para endereçar amplamente sua predicação aos pagãos. Sàmente esta segunda solução abria o caminho para a transformação do cristianismo em religião universal.O problema de escolher o caminho a seguir apresentava-se ao cristianismo objetivamente, histôricamente. A tendência que preconizava a ruptura com o judaísmo só triunfou depois de um largo e áspero combate entre diversos agrupamentos no seio da cristandade. Ëste divórcio liga-se, na literatura eclesiástica, ao nome de S. Paulo, que o Nóvo Testamento chama freqüentemente de «apóstolo dos pagãos.» (Epístola aos Romanos, XI, 13; XV, 16; Epístola aos Gálatas, II, 2 etc.) Contudo, mesmo nas epístolas paulinianas, verificam-se muito

Page 123: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÀS...127fàcilmente mudanças de atitude, flutuações em relação ao judaísmo.A ruptura definitiva entre as duas religiões teve lugar visivelmente em meados ou na segunda metade do século II, período com o qual se relaciona a composição dos Atos dos Apóstolos, que é o mais recente dos escritos do Nôvo Testamento. É de então que data a legenda da metamorfose miraculosa de Saul, cruel perseguidor dos cristãos, em Paulo, zeloso predicador da nova religião. Os relatos de seus conflitos com os representantes da comunidade de Jerusalém e de sua atividade de missionário a leste do Mediterrâneo não passam de mito, tal como a história do Jesus, mas isto de modo algum impede que êsses relatos reflitam fielmente êste problema crucial para a nova religião: a necessidade de se separar do judaísmo.Consumar-se-ia a separação, de um lado, pela crítica da religião judaica e, do outro, pela criação de uma nova dogmática, a cristã. As fontes diversas e bastante numerosas de que se dispõe sôbre êste período permitem discernir não apenas a tendência geral do desenvolvimento do cristianismo original, mas, também, a evolução das idéias, as flutuações e as caracrísticas da polêmica, nas diferentes categorias dos seus fiéis.Neste plano, o mais importante aspecto das primeiras epístolas se relaciona com a evolução da imagem do Jesus. No Apocalipse, Jesus, ou o Cordeiro, é apenas o Fiho de Deus, um chefe do «exército celeste», isento de traços humanos. As epístolas mais antigas já o apresentam na qualidade de Homem- Deus, sublinhando fortemente, todavia, o lado divino de sua natureza. Já adquire nelas traços humanos, mas ainda estamos longe do relato evangélico sôbre o fundador do cristianismo. Não se encontra, nas primeiras epístolas, a menor alusão ao nascimento de Jesus na Palestina, ao conteúdo de sua pregação, às suas parábolas. Apesar de repetirem com freqüência o nome de Jesus, as quatro primeiras epístolas não fornecem senão as seguintes informações, de extrema pobreza, sôbre sua existência terrestre: «nasceu de uma mulher, nasceu sob a lei» (Epístola aos Gálatas, IV, 4), «morreu por nossos pecados» (...), «ressuscitou no terceiro dia» e apareceu aos apóstolos e a muitos crentes (1, Coríntios XV, 3-7). Não se encontra nessas epístolas nenhuma das numerosas sentenças atribuídas a Jesus nos evangelhos.1Êste silêncio sôbre a vida terrestre de Jesus não pode ser fortuito, pois tôdas as epístolas começam e acabam dese-

1 Só a Epstola aos Coríntios é que reproduz palavras de Jesus quecoincidem inteiramente com o texto correspondente dos sinóticos, quando diz que o vinho e o pão que se come são seu sangue e seu cõrpo. (Co. ríntios, XI, 24, 25.) provável que tenha havido aqui uma interpolação.

Page 124: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

128 A ORIGEM DO CRISTIANISMOjando a graça e a paz em seu nome, e são consagradas aos seus ensinamentos. Tudo leva a crer, portanto, que elas foram compostas antes da biografia evangélica do Cristo.Jesus, Deus feito homem, apesar de ser considerado como o Messias, o Salvador anunciado pelos profetas hebreus, aparece nas epístolas sob uma forma nitidamente distinta da do Messias dos dogmas judaicos. No Antigo Testamento, êle é habitualmente apresentado como o enviado de Deus encarregado de estabelecer seu reino sôbre a Terra. A nova doutrina cristã contradizia esta versão, ao afirmar que o advento do Messias já tinha ocorrido sem ter sido notado. Por outro lado, a situação do povo hebreu cuja sorte, segundo os profetas, deveria melhorar depois da vinda do Messias, ia de mal a pior, durante e após a Guerra dos Judeus.Nascido no seio da nação judia, o cristianismo se chocou desde o comêço com a resistência obstinada do judaísmo. E esta oposição devia inevitàvelmente aumentar, à medida que o cristianismo assimilava certos elementos de outras religiões.Uma forte tendência para a separação aparecia simultâneamente nas comunidades cristãs, e isso por uma série de outras razões, dentre as quais a onda de repressões dos romanos contra os judeus depois do fracasso da segunda e última revolta judaica sob a direção de Bar-Cocheba, entre os anos 132 e 136.No lugar do santuário de Jeová, os romanos elevaram em Jerusalém um templo a Júpiter Capitolino, impondo aos judeus impostos especiais em proveito dêsse templo. E as comunidades cristãs procuraram naturalmente separar-se dos perseguidos. O judaísmo, por outro lado, traçava uma nítida linha de demarcação entre os judeus de origem, e os recenconversos, relegados a categoria inferior, o que tornava muito improvável o êxito da predicação da lei judaica entre os pagãos.Para vencer, o cristianismo devia primeiramente rejeitar os traços do judaísmo que eram objeto das caçoadaá dos pagãos e que provocavam, mesmo entre êles, um sentimento de repugnância. Tratava-se, no caso, de um conjunto de prescrições meticulosamente elaboradas, designadas no Nôvo Testamento pela palavra «lei», e, em primeiro lugar, do rito da circuncisão. Segundo o dogma judaico, a observação da «lei» era a condição essencial da salvação. Os pregadores da nova religião achavam, ao contrário, que era preciso renegar a «lei» para se salvar a alma.As reticências e as contradições sôbre êste assunto são perceptíveis já nas quatro primeiras epístolas mais antigas. O autor da Epístola aos Romanos declara no comêço: «Não são os que ouvem a lei que são justos diante de Deus, mas são os que a põem em prática que serão justificados.» (Epístola aos Romanos, II, 13.) E um pouco mais adiante é dito que

Page 125: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNWADES CRISTÃS.. 129a circunsição só se aplica aos judeus de origem: « Se, portanto, o incircunciso observa os mandamentos da lei, não será sua incircuncisão reconhecida como circuncisão?» (Idem, II, 26.) É claro que o autor dessas palavras não pede ainda aos judeus que renunciem à lei e à circuncisão, Mas, a epístola seguinte já declara: «A circuncisão nada é, e a incircuncjsão nada é, mas a observância dos mandamentos de Deus é tudo.» (1 Coríntios, VII, 19.) A «lei», têrmo preciso, é substituída aqui pela noção mais vaga de «mandamento». A Epístola aos Gálatas usa finalmente uma linguagem muito diferente, qualificando a «lei» de «jugo da servidão» (V, 1), e renegando categôricamente o rito da circuncisão: «Eis que, eu Paulo, vos digo que, se vos fazeis circuncisar, Cristo não vos servirá para nada. » (Epístola aos Gálatas, V, 2.)Esta epístola anuncia uma tese nova em relação ao pensamento religioso da época: «... não é pelas obras da lei queo homem é justificado, mas pela fé em Jesus Cristo. » (Idem,lI, 16.) As exigências de tôdas as religiões anteriores aocristianismo concentravamse principalmente na prática de numerosos ritos, cuja estrita observação era órdenada aoscrentes. O ritual constituía o principal meio de unir os fiéis,separando-os dos adeptos de outros cultos. Mas, êie tornavaao mesmo tempo extremamente difícil a pregação entre osadoradores de deuses diferentes. A renúncia a todo ritual,notadamente às mil prescrições da «lei». única condição propostaaos adeptos do nôvo culto, e a fé em que Jesus era o Cristo,o Messias, iriam facilitar grandemente a transformação docristianismo em religião universal.A refutação da «lei» nas primeiras epístolas revestia-seainda de um outro aspecto. O autor do Apocalipse anunciavaque a «Jerusalém celeste» aguardava apenas cento e quarentae quatro mil filhos das tribos de Israel; contràriamente, porém,a Epístola aos Romanos já declarava: «... todos aquêles quedescendem de Israel, não são Israel» (IX, 6), e acrescentavamais adiante: «Não há qualquer diferença, com efeito, entreo judeu e o grego, porquanto todos êles têm um mesmoSenhor.» (Epístola aos Romanos, X, 12.) Tal idéia era absolutamente nova, e, em seguida, a propaganda cristã não cessoude a acentuar, coisa particularmente importante, não só noplano étnico, como também no social: «Fomos todos, comefeito, batizados num único Espírito, por um só corpo, querjudeus, quer gregos, quer escravos, quer livres.» (1 Coríntios,XII, 13.) «Não há mais escravo nem livre.» (Gálatas III, 28.)São precisamente aquelas duas particularidades do cristiaismoprimitivo — o abandono do ritual e o apêlo a todos os homenssem distinção e, sobretudo, às camadas inferiores da sociedade

Page 126: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

130A ORIGEM DO CRISTIANISMO— que permitem caracterizá-lo como «uma fase absolutamente nova da evolução religiosa, destinada a tornar-se um dos elementos mais revolucionários na história do espírito humano».2Lembremos uma vez mais, contudo, que o cristianismo, mesmo em sua fase inicial, nunca reivindicou a libertação dos escravos: as declarações sôbre a igualdade de todos os homens, livres ou não, assumiam um caráter abstrato, não tinham em vista senão a igualdade em relação a fé e diante de Deus. A religião cristã não exigia mesmo dos senhores que libertassem seus escravos, cristãos como êles. As palavras mais radicais do cristianismo sôbre a escravidão foram as seguintes: «Fôste chamado? Não te inquietes; mas se podes tornar-te livre, aproveita-te disso antes: Porque o escravo que foi chamado pelo Senhor é um liberto do Senhor; e, da mesma maneira, o homem livre que foi chamado é um escravo de Cristo. Fôstes comprados por um grande preço; não vos tomeis escravos dos homens. » (1 Corz’ntios, VII, 21, 23.)Em vez de redamar categôricamente a libertação dos escravos, o autor desta epístola se limita, portanto, a aconselhar vagamente a êstes últimos que escolham de preferência a liberdade, quando tal escolha é possível... Era isso, no fundo, resignar-se com a escravidão. A proclamação da igualdade dos escravos e dos homens livres não passava do plano religioso, mas, apesar disso, não deixou de favorecer a difusão da nova religiãõ entre as camadas laboriosas, entre os deserdados, cuja grande massa se compunha de escravos.A evolução da atitude do cristianismo primitivo em relação ao poder imperial é, do mesmo modo, muito significativa. A literatura da Igreja apresenta habitualmente o cristianismo comoo defensor da liberdade dos escravos, e também como o inimigo implacável dos imperadores romanos, mergulhados nos vícios, e rubros do sangue dos mártires cristãos. Os escritores eclesiásticos se esforçam até mesmo para apresentar o famoso «Dai a César o que é de César, e a Deus, o que é de Deus» (Mateus XXII, 21), não como uma forma de compromisso com o poder temporal, mas, ao contrário, como uma negação de tal poder. Dão a impressão de ignorar que já a primeira epístola proclama sem o menor equívoco: «... não há autoridade que não venha de Deus, e as autoridades que existem foram instituídas por Deus. E por isso que aquêle que se opõe à autoridade resiste à ordem que Deus estabeleceu. Não é por uma boa ação, mas por uma má, que devemos temer os magistrados (. .. ). O magistrado é servidor de Deus ( . . ). É, pois, necessário sujeitar-se não sômente por temor da punição, mas,

2 MAIuc e ENGBLS: Sur la Religian, d. Sociales, Paris, 1960, pág. 322.

Page 127: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÂS...131também, por motivo de consciência,» (Epístola aos Romanos,XII, 1-5.)Não se nota aqui como certos meios religiosos se mostravam conciliantes em relação ao poder imperial nos começos do século II? Com que espantosa rapidez o cristianismo renunciou à santa cólera do Apocalipse contra Roma, «a grande prostituída», e se pôs a afirmar que ela servia a Deus, e que os crentes deviam prestar-lhe obediência não por temor, mas em sã consciência,A ordem dada por Traj ano de não se perseguir em vão aos cristãos, e a atitude benevolente de Plínio a respeito dêles,em data que coincide muito aproximadamente com aquela em que as primeiras epístolas foram compostas, mostram claramente que o conflito entre o Império e o cristianismo foi extremamente exagerado nos escritos dos apologistas posteriores. A passagem acima citada atesta, além disso, como a tradição clerical se distancia da verdade no que concerne às perseguições de que teriam sido vítimas os primeiros cristãos. O convite à obediência aos podêres constituídos não poderia ter sido formulado senão no clima de tolerância religiosa que caracterizou o período dos Antoninos (século II).Observa-se igualmente nas principais epístolas, atribuidas ao apóstolo Paulo, uma mudança muito acentuada nas tendências escatológicas. No Apocalipse, essas tendências se fazem notar por seu espírito rebelde; o advento do reino de Deus estava nêle ligado estreítamente à queda de Roma, que se considerava iminente. As primeiras epístolas paulinianas já oferecem outros matizes. Elas ainda não renunciam, é certo, às visões escatológicas, proclamam que a vida sôbre a Terra não é senão sofrimento passageiro (Romanos, VIII, 18), anunciam que o fim está próximo, que «o tempo é curto» (1 Coríntios, VII, 29), assinahim: «O Deus da paz esmagará logo Satanás sob vossos pés» (Epístola aos Romanos, XVI, 20). Mas, agora, elas prometem o reino de Deus, não na Terra, mas nos céus. A pregação cristã será marcada nos séculos seguintes pela seguinte declaração: «... se esta tenda em que moramos na Terra fôr destruída, teremos no céu um edifício que é obra de Deus.» (II Coríntios, V, 1.)Diferentemente do Apocalipse de João, que não apresenta quase nenhuma informação sôbre a composição e a estrutura interna das comunidades cristãs, as primeiras epístolas constituem a melhor fonte de que se dispõe sôbre êsse assunto, O traço principal de sua vida continua sendo sempre as incessantes disputas entre diferentes grupos descritos no Apocalipse. (1 Coríntios, 1, 12, cf. III, 5.) O autor da segunda Epístola aos Cormn tios considera-se no dever de acentuar: «. . nós não falsificamos a palavra de Deus, como o fazem muitos.» (II

Page 128: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

132A ORIGEM DO CRISTIANISMOCormntios, II, 17.) No cap. XI, versículo 4, censura certos crentes por sua complascência para com aquêles que pregam «outro Jesus», «outro Espírito», «outro Evangelho». A Epístola aos Gálatas mantém o mesmo tom: «Espanta-me que vos afasteis tão prontamente daquele que vos chamou pela graça do Cristo, para passar a outro evangelho.» (Epístola aos Gálatas, 1, 6.) As epístolas falam freqüentemente de falsos apóstolos (II Corz’ntios, XI, 13) e falsos irmãos (Gálatas, II, 4), acusando-os de deformar a verdade dos evangelhos. Trata-se aí, em todos êsses casos, não de uma luta entre cristãos, e adeptos de outras religiões, mas de querelas e de desacordos no seio das comunidades cristãs. A existência de um grande número de seitas, as modificações constantes dos escritos evangélicos, as divergências quanto ao credo atestam que os cristãos não dispunham -nessa época de evangelhos canônicos reconhecidos por todos.A virulência dos conflitos entre os cristãos aparece nesta advertência enérgica (1 Corz’ntios, VI, 1): «Ousa qualquer de vós, quando há alguma diferença com outro, ir a juízo perante os injustos? » Isto leva a presumir que as querelas entre crentes diziam respeito não sàmente aos bens materiais, mas também aos problemas religiosos, sem o que não se poderia compreender esta interdição categórica aos cristãos de se dirigirem aos tribunais.A passagem seguinte da primeira Epístola aos Corz’ntios (VIII, 5), sôbre a qual os teólogos silenciam, mostra de um modo eloqüente a confusão ideológica que reinava nas comunidades cristãs primitivas: «. . . existem realmente vários deuses e vários senhores, contudo para nós não há senão um Deus ( ..e um só Senhor, Jesus Cristo.» Aqui, reconhece-se sem equívoco o politeísmo em oposição ao credo canônico, e não apenas na Terra, mas também nos céus. A expressão «Há sêres chamados deuses», empregada um pouco antes no mesmo texto, não passa, com tôda a evidência, de uma interpolação posterior, e não faz mais do que acentuar quanto essa passagem sob a sua forma inicial é contrária ao dogma ortodoxo.Estas citações das primeiras epístolas paulinianas provam que as comunidades cristãs dos começos do século II, bem como as que existiam meio século antes, encontravam-se longe da concórdia e da unidade descritas na história eclesiástica. Unânimes em sua fé no advento de Jesus, as diversas seitas cristãs interpretavam, cada uma a seu modo, os dogmas da nova religião, pregavam evangelhos diferentes, e, o que é ainda mais característico, passavam fàcilmente de uma doutrina a outra. No decorrer da luta, duas tendências se constituíram entre as seitas que se consideram cristãs; uma delas, ligada ao nome do apóstolo Paulo, assumiu a chefia de numerosos grupos cristãos, e lançou as bases da fundação da Igreja episcopal; a outra per

Page 129: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

133AS COMUNSOADES CRISTÃS..maneceu, -quanto ao essencial, nas posições do Apocalise, dando nascimento subseqüente a numerosas heresias judaico-cristãs.A composição social das comunidades cristãs primitivas, a julgar-se pelas primeiras epístolas paulinianas, era ainda bastante homogênea nos começos do século II. Os adeptos da nova religião se recrutavam então quase que inteiramente nas camadas inferiores da sociedade. Constatando que não havia entre os «chamados» muitos «sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos nobres», o autor da primeira Epístola aos Corz’ntios (1, 26-28) declara que Deus escolheu «as coisas vis do mundo e as desprezíveis para reduzir a nada êsses poderosos e êsses nobres. Semelhante reflexão teria sido impossível, naturalmente, se os ricos fôssem numerosos entre os fiéis de Cristo.Eis ainda outro traço a êsse respeito. A primeira Epístola aos Corín tios dedica longo trecho à maneira de se celebrar a ceia ao Senhor, que encerrava as assembléias dos cristãos, e, em seguida, nota com indignação (cap. XI, versículos 21 e 22):«Quando estão à mesa, cada um começa por tomar sua própria ceia, de -sorte que um tem fome, e outro se embriaga.» Acentua que aquêles que assim procedem «envergonham os que nada têm». Os cristãos que não matavam sua fome eram numerosos nessa época, segundo parece. -A profecia era também um traço distintivo da vida das comunidades cristãs primitivas. A Igreja e o clero não existiam ainda, de modo que os profetas desempenhavam um papel importante na época. Caíam em êxtase nas assembléias de fiéis, e quanto mais caóticos e ininteligíveis eram seus discursos, mais se acreditava estarem êles inspirados pela «graça de Deus». A Igreja iria ensinar mais tarde que a «graça» era privilégio do clero. Nas primeiras epístolas, os profetas ainda são bastante considerados, e a única coisa que se exige é que tudo «se faça decentemente, e com ordem.» (1 Cormntios, XIV, 40.)No decorrer do meio século que separa as primeiras epístolas paulinianas, do Apocalipse, a composição étnica das comunidades cristãs, diferentemente de sua composição social, modificou-se muito. Isto é confirmado pela polêmica com o judaísmo oficial, já assinalada anteriormente, assim como pelas reiteradas afirmações das apístolas sôbre a igualdade entre crentes de origem, tanto judia, como pagã. Mesmo na passagem citada sôbre os profetas, o autor da primeira Epístola aos Cori’ntios sente-se no dever de defender aquêles que «falam em línguas» (XIV, 39), apesar de muitos auditores não os compreenderem.Convém ter em conta, para dar a essa passagem seu justo valor, que a população urbana, notadamente a leste do Império, não era homogênea. Além dos gregos e dos romanos, existia nas cidades um considerável número de grupos étnicos e lin

Page 130: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

134A ORIGEM DO CRISTIANISMOgüísticos: judeus, egípcios, sírios, germanos etc. A massa cristã, composta sobretudo de escravos e de pobres, era particular- mente heterogênea do ponto de vista étnico. Caindo em êxtase, os fiéis exprimiam-se naturalmente em sua língua natal. Tudo isso revela que, na época em que as primeiras epístolas atribuídas a Paulo foram escritas, as comunidades cristãs primitivas se compunham já em grande escala não só de judeus, mas também de pagãos.Já assinalamos anteriormente que não se encontra no Apocalipse nenhuma alusão a uma forma qualquer de união das diversas comunidades cristãs, ou a uma direção geral. Só os profetas e os apóstolos é que se destacavam um pouco dos fiéis comuns. Na época das primeiras epístolas, esta situação começa a mudar: elas falam muitas vêzes dos pregadores errantes. (1 Coríntios, IV, 11, por exemplo.) Os autores dessas epístolas consagram muita atenção às coletas, e previnem mesmo que cada cristão deve pôr de parte o que possa «no primeiro dia da semana» para a manutenção dos «santos» errantes. (1 Corz’ntios, XVI, 2; II Cormntios, VIII - XII. ) Alguns dêstes «santos» andavam providos, segundo parece, de cartas de recomendação. (II Cort’ntios, IV, 1.) As queixas de Paulo a respeito da fome, da sêde e da nudez (1 Corz’ntios, IV, 11) que seriam o quinhão dos pregadores do cristianismo deviam despertar a piedade nos corações dos crentes, e levá-los, assim, a desatar suas bôlsas.Nas epístolas já se encontram índices de um clero nascente. A primeira Epístola aos Cori’ntios apresenta êste esbôço de hierarquia clerical: «E Deus estabeleceu na Igreja primeiramente os apóstolos, em segundo lugar, os profetas, em terceiro, os doutores, em seguida, aquêles que têm o dom dos milagres, finalmente, os que têm os dons de curar, de socorrer, de governar, de falar diversas línguas.» (1 Corz’ntios, XII, 28.) Reencontra-se essa mesma escala hierárquica, um pouco modificada, na Epístola aos Romanos, XIII, 5-11, passagem que certamente não foi corrigida posteriormente; do contrário não se teria deixado de nela evocar o episcopado, que desempenhou um papel cada vez mais importante no aparato da Igreja, a partir dos meados do século II. Notemos, contudo, que a palavra «Igreja» no texto que acabamos de citar é ainda empregada no sentido de «comunidade cristã».O divórcio cada vez mais pronunciado entre os chefes das comunidades, e a massa dos crentes, aparece numa declaração extremamente franca do autor da segunda Epístola aos Coríntios (XI, 20): «Se alguém vos põe em servidão, se alguém vos devora, se alguém é arrogante, se alguém vos bate no rosto, vós deveis suportar.» Trata-se aí, segundo o contexto, das relações no seio das comunidades cristãs da época.

Page 131: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÃS..135O conteúdo das primeiras epístolas paulinianas nos permite, assim, compreeder certos traços distintivos da evolução ideológica e das mudanças de estrutura das comunidades cristãs, no decorrer do seu primeiro meio século de vida. A tendência geral é a ruptura gradual com o judaísmo, a transformação de Jesus, divindade, em Homem-Deus, a ardente espera do Juízo Final, e, finalmente, a inexistência de qualquer ritual.A linha politica e social da pregação cristã não estava determinada ainda em grande escala pela composição social dos adeptos da nova religião: a difusão desta, quase que exclusivamente entre as massas laboriosas, obrigava os autores das epístolas a colocar, êles próprios, de qualquer forma, o problema da atitude que era preciso adotar em relação à riqueza, à escravidão, e, inicialmente, ao poder romano. Depois de um curto período de negação do poder imperial, o cristianismo passou ao reconhecimento da autoridade de Roma e, em seguida, à paz com o Império.No comêço, a composição social das comunidades cristãs era ainda bastante homogênea, uma vez que os seus adeptos eram recrutados quase que inteiramente entre os escravos, os libertos, os artesãos e tôda espécie de elementos das camadas pobres das cidades. É por isso que as primeiras epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo exprimem desprêzo pelos bens terrestres, condenam a cupidez e simpatizam com o escravo, A espera do fim do mundo também fortalece esta tendência,o que não levou contudo, sublinhemos, o cristianismo primitivo a reclamar de modo categórico a abolição da propriedade privada e da escravidão.2. FORMAÇÃO DA IDEOLOGIA CRISTAA tendência que acabamos de definir se acentuou a partix do segundo quarto do século II. O segundo grupo de epístolas paulinianas (aos efésios, aos filipenses, aos colossenses e as duas epístolas aos tessalônicos) nos permite descobrir neste plano numerosos pontos novos. A pregação cristã nelas se caracteriza, em primeiro lugar, pelo chamamento a tôdas as camadas da população sem qualquer distinção étnica ou social. Ela proclama: «Não há (.. .) nem grego, nem judeu, nem circunciso, nem incircunciso, nem bárbaro, nem sita, nem escravo, nem livre; mas Cristo é tudo e em todos.» (Colossenses, III, 11.) O capítulo precedente desta epístola (II, 16) rejeita as interdições concernentes ao comer e ao beber e, também, as celebrações da Lua nova, do sábado etc. Tendo rompido com o judaísmo, e não possuindo ainda seu próprio ritual, o cristianismo original não exigia dos fiéis a renúncia às cerimônias religiosas às quais estavam habituados há tanto tempo.

Page 132: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

136A ORIGEM DO CRISTIANISMONeste ponto, precisamente, residia a diferença radical entre o cristianismo primitivo e os cultos anteriores. Esta circunstância nos permite, por outro lado, concluir que o cristianismo não tinha elaborado seu próprio ritual até os meados do século II. -O fato de a pregação cristã endereçar-se a tôdas as tribos e a todos os povos provocou uma exacerbação de sua polêmica com o judaísmo. Se as primeiras epístolas marcam, o que não fazia o Apocalipse, o comêço da ruptura com o judaísmo, as que reunimos no segundo grupo lhe são francamente hostis.Sua atitude em relação ao rito da circuncisão é probante a êsse respeito. A Epístola aos Romanos declarava a circuncisão necessária para os cristãos de origem judaica, e obrigatória a observância da lei mosaica para todos. (Epístola aos Romanos, II, 13 e 25.) Nas epístolas do segundo grupo, muda-se o tom sôbre êsse assunto. Expressões tais como as seguintes:«Cuidado com os cães, cuidado com os maus trabalhadores, cuidado com os falsos circuncisos» (Filipenses, III, 2) não figuram em qualquer texto das primeiras mensagens paulinianas. O tom da primeira Epístola aos Tessalônicos é mais violento ainda. Ela formula contra os judeus, pela primeira vez, a acusação de terem causado a morte de Jesus Cristo e dos profetas, e de serem «inimigos de todos os homens.» (1 Epístola aos Tessalônicos, II, 15.) Foi apoiando-se nessas acusações que os representantes da Igreja perseguiram os judeus durante tantos séculos. As palavras «inimigos de todos os homens». nos autorizam, por outro lado, a situar, de modo bastante preciso, esta epístola na época da insurreição de Bar-Cocheba (132-136), ou um pouco mais tarde. Daí se pode ainda tirar a conclusão de que nessa época o cristianismo já se tinha destacado do judaísmo, e que sua difusão era grande entre os pagãos.No que concerne à evolução da imagem de Jesus, o segundo grupo de epístolas paulinianas apenas nos permite acrescentar um ou dois traços importantes. As linhas acima citadas mostram que, nessa época, já se formava um dos elementos maiores do mito evangélico de Jesus: o relato do seu martírio e de sua morte em Jerusalém. A referência às perseguições dos profetas atesta que o autor da primeira Epístola aos Tessalônicos conhecia o conteúdo das mensagens paulinianas do primeiro grupo, a Epístola aos Gálatas, por exemplo.Algumas passagens do segundo grupo de epístolas apresentam também outros pontos de grande importância: encontram-se nelas alguns elementos do mito de Jesus que não foram incluídos nos evangelhos. Na Epístola aos Filipenses diz-se que Jesus «aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens.» (Filípenses, II, 7.) Trata-se, aqui, de um pormenor extremamente importante, que

Page 133: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÃS137revela uma das fases da formação do mito conhecido. Sabe-se que os evangelhos não dizem em parte alguma que o Cristo apareceu sob o aspecto de um servo, de um escravo. Conclui-se, pois, que a epístola em questão conserva os traços de uma das variantes apócrifas da lenda sôbre o fundador do cristianismo. E é preciso dizer que semelhante versão era muito útil à propaganda desta religião entre os escravos, para conquistá-los para a nova fé. Esta versão não encontrou lugar nos evangelhos, porque, a partir da segunda metade do século II, as camadas superiores da população começaram a desempenhar um papel cada vez mais importante no cristianismo, e a imagem de um Deus-Escravo não era de feitio agradável para elas.Eis ainda outra passagem do segundo grupo de epístolas que traz as marcas dos escritos cristãos dêste período e que não foram incluídos no cânone. Na Epístola aos E/e’sios lê-se (V, 14): «Foi por isso que se disse: Desperta, tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te esclarecerá.» A fórmula: «É por isso que se disse» é aplicada no Nôvo Testamento aos textos do Antigo Testamento e dos evangelhos. As palavras «levanta-te, sê esclarecido» figuram no Livro do Projeta Isaías (LX, 1). Não há dúvida de que a outra parte da frase foi tirada de um evangelho apócrifo. Tudo leva a crer que alguns escritos que se consideravam como santos no momento em que a Epístola aos E/ésios foi composta não foram incluídos por qualquer razão, nem no Antigo Testamento, nem no Nôvo Testamento. Os casos dêsse gênero não são raros.As epístolas do segundo grupo dedicam muita atenção às esperanças escatológicas. No Apocalipse, elas estavam sobretudo marcadas por um ódio mortal contra Roma, enquanto que nas primeiras epístolas paulinianas a predicação de que «o tempo é curto» é simplesmente acompanhada da promessa da instauração do reino de Deus. Contudo, as pregações sôbre a iminência do Juízo Final, a punição dos ímpios e a recompensa dos justos continuou sendo durante muito tempo ainda um instrumento de propaganda cristã.. Por outro lado, a protelação do fim do mundo, de geração em geração, minava a fé na verdade das profecias anunciadas no Apocalipse de João e em outros escritos cristãos dos primeiros tempos. O grupo de epístolas aqui examinado já procura achar uma saída para esta contradição.O autor da segunda Epístola aos Tessalônicos declara a êsse respeito: «Quanto à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e nossa reunião com êle, nós vos rogamos, irmãos, . que não vos deixeis fàcilmente afastar do vosso bom senso, e não vos perturbeis, seja por qualquer inspiração, seja por qualquer palavra, seja por qualquer carta que digam escrita por nós, como

Page 134: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

138A ORIGSM DO CRISTIANISMOse o dia do Senhor estivesse já perto.» (II Tessalônicos, II, 1.) ËIe explica que o dia do Senhor só chegará quando a iriiqüídade atingir seu apogeu. Em contrapartida, descreve sem poupar detalhes os sinais do dia do Senhor: a voz de um arcanjo, o som da trombeta de Deus, os crentes arrebatados sôbre nuvens e assim por diante. (1 Tessalônicos IV, 16.) O reino de Deus é definitivamente protelado, e passa-se a acentuar a beatitude que aguarda os crentes no outro mundo.Compreende-se que semelhante modificação não podia ser aceita de improvíso por tôdas as comunidades cristãs. A êsse respeito, a súplica que Paulo endereça aos crentes, exortando-os a não se deixarem perturbar por cartas que diriam vindas dêle, é bastante interessante, assim como passagens tais como a da Epístola aos Filipenses, em que êle se levanta contra os que «pregam o Cristo por inveja e por espírito de disputa.» (Fuipenses, 1, 15.) O comêço desta epístola é também bastante característico. Seu autor começa como de costume na primeira pessoa, mas passa, siibitamente, à terceira, no texto que chegou até nós, a partir do sexto versículo do primeiro capítulo onde se diz: «. . . aquêle que começou em vós esta boa obra a tornará perfeita até ao dia de Jesus Cristo», o que não o impede de continuar, depois, falando em nome do apóstolo Paulo. Pode-se crer que as palavras que acabamos de citar se referiam, no texto inicial, ao autor da epístola, que estaria convencido de que sobreviveria até o «dia do Senhor», pelo menos. Posteriormente esta passagem foi redigida de modo a salvar a autoridade do apóstolo.A esperança na vinda do Senhor se dissipava, e, inevitàvelmente, cedeu o lugar à tendência para um acomodamento com os detentores do poder. Isso determinou, em particular, a ulterior evolução da atitude do cristianismo em relação escravidão.Os primeiros escritos cristãos proclamavam a igualdade de todos os sêres humanos, abstratamente é certo, e diante de Deus apenas: «Fôstes resgatados por um alto prêço; não vos tomeis escravos dos homens.» (1 Corz’ntios, VII, 23.) Agora, a pregação cristã punha no primeiro plano a resignação como um dever dos escravos: «Servos, obedecei aos vossos senhores com temor e tremor, na simplicidade do vosso coração, como a Cristo.» (Efésios, VI, 5.) O autor desta epístola aconselha a servir os senhores não apenas «sob os seus olhos», mas ainda de «bom coração», e identifica inteiramente a obediência aos senhores, com a que se deve a Deus. A Epístola aos Colossenses (III, 22 etc.) prega a mesma coisa.Dos senhores, o cristianismo não reclama, em contrapartida, senão isto: « . . concedei aos vossos servos o que é justo e equitativo.» (Colossenses, IV, 1.) Verificamos, portanto, que,

Page 135: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

139 AS COMUNIDADES CRISTÃS...antes mesmo da constituição da Igreja, o cristianismo já se tinha decidido pelo reconhecimento da escravidão e que a sua pregação não visava a obter a libertação dos escravos, ou, ao menos, uma sensível melhoria da sorte dêles, mas, sim, a convencê-los da necessidade de obedecer cegamente aos seus senhores.Contudo, seria errado crer que, já durante a primeira metade do século II, o cristianismo era a religião das classes possuidoras de Roma. O reconhecimento da escravidão e o apêlosubmissão endereçado aos escravos testemunham, de preferência, uma manifestação de lealdade para com o Império, e não o aparecimento nas comunidades cristãs de um influente contingente de senhores de escravos.A composição social das comunidades era ainda bastante homogênea, e comportava, além dos escravos, artesãos e trabalhadores urbanos. Não é por acaso que no segundo grupo de epístolas paulínianas se encontram freqüentemente apelos a «trabalhar com suas próprias mãos» (1 Tessalônicos, IV, 11)respeitar os trabalhadores, a fazer «com suas próprias mãosque é direito.» (E/e’sios, IV, 28.) O célebre preceito: «Se alguém não quiser trabalhar, que não coma também» (II Tessalônicos, III, 10) só poderia ter surgido evidentemente num meio laborioso. A maioria das exortações são dirigidas contra os «falsos profetas», que erravam de comunidade em comunidade, e que abusavam da boa fé dos crentes. A freqüente repetição dêsses apélos prova suficientemente que a massa dos cristãos pertencia à população laboriosa. O autor de uma dessas epístolas declara, em conseqüência, a propósito da atitude quepregadores devem observar: «Não temos comido gratuita- mente o pão de ninguém; mas com trabalho e fadiga, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vóz. » (II Tessalônicos, III, 8.Neste grupo de epístolas encontra-se, pela primeira vez,palavra grega eclesia, «assembléia», tomada no sentido de «Igreja»: Jesus é proclamado «a cabeça da Igreja» (Colossenses,18), que é «seu corpo». (Colossenses 1, 24 e Efésios, V, 23.) No caso de essas passagens não serem interpolações posteriores, isto significa que, ja durante o segundo quarto do seculo II, a idéia da unidade começava a se impor às comunidades cristãs, até então isoladas. É preciso crer, contudo, que o aparato da Igreja só foi constituído muito mais tarde. Notemos, ainda, que, na Epístola aos Ef e’sios, a palavra «evangelista» aparece pela primeira vez, não no sentido ordinário de pregador da vinda do Cristo, mas no de autor ou pregador dos evangelhos. (Efésios, IV, 11.) Lembremos a êsse respeito que os papiros mais antigos que contêm fragmentos dos evangelhos remontam predsamente ao segundo quarto do século II, isto e’, à época

Page 136: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

140A ORIGEM DO CRISTIANISMOem que a Epístola aos Efésios foi composta. É claro que a palavra «evangelistas» aqui não designa os autores dos evangelhos incluídos no Nôvo Testamento. A Epístola aos Fuipenses (1, 1) fala, é certo, de «bispos e diáconos», uma única vez, aliás, mas, segundo a opinião geral, trata-se, aqui, de uma interpolação posterior, pois, tanto as primeiras epístolas paulinianas como as do segundo grupo, ignoram completamente o episcopado.Assim, o segundo grupo de epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo nos permite constatar vários aspectos novos no cristianismo. Durante o segundo quarto do século II, a religião cristã derruba tôdas as barreiras étnicas e sociais, e rompe definitivamente com o judaísmo. Ela evita a anunciação do fim iminente do mundo; procura um meio de entendimento com o poder. Tendo proclamado a igualdade de todos os sêres humanos diante de Deus, trata de pregar aos escravos a submissão aos seus senhores. Quanto à composição social, as comunidades cristãs permanecem mais ou menos homogêneas; suas fileiras continuam sendo constituídas por elementos pertencentes às camadas pobres e laboriosas da população. A idéia da Igreja convocada para unir sob o seu signo as comunidades cristãs parece surgir igualmente durante êste período.3. O PAPEL DO CLERO SEGUNDO AS EPISTOLAS PASTORAISClassificam-se no último grupo de mensagens paulinianas as duas epístolas a Timóteo e a epístola a Tito, bastante dif e- rentes de tôdas as precedentes. Estas epístolas são endereçadas aos chefes de comunidades, enquanto que as mensagens dos dois primeiros grupos o eram às comunidades em seu conjunto. Elas têm por tema, sobretudo, definir as regras de conduta dos bispos; só esta circunstância já nos permite situá-la depois das outras: no comêço da segunda metade do século II, data que coincide mais ou menos com a dos evangelhos canônicos. Ainda que êste grupo de epístolas seja posterior ao período tratado no presente capítulo, é útil assinalar aqui os traços mais característicos, pois êles refletem nitidamente o ponto atingido pelo cristianism? ao cabo de um século de evolução.O aparecimento, nas epístolas pastorais, do clero separado da massa dos fiéis é o seu traço mais característico. Encontramos nelas, pela primeira vez, êste personagem: o bispo, considerado não sômente como chefe de tal ou qual comunidade cristã, mas, ainda, de uniões de comunidades. Assim, Tito, Bispo de Creta, é encarregado de «estabelecer anciões em tôdas as cidades.» (Tito, 1, 5.)A primeira Epístola a Timóteo enumera de modo detalhado as funções dos bispos, dos diáconos, dos anciãos e de

Page 137: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÃS...141outros membros do clero. Em particular, nela se informa que não se deve «receber acusação contra um ancião, se ela não se firmar no depoimento de duas ou de três testemunhas.» (1 Timóteo, V, 19.) Segundo o contexto, compreende-se que essas acusações emanavam dos cristãos, e pode-se delas concluir que os conflitos entre os fiéis agrupados, e o clero, eram então bastante freqüentes. As constantes exortações do autor das epístolas aos bispos e aos diáconos a serem desinteressados, a não buscarem proveitos sórdidos (1 Timóteo, III, 3 e 8, Tito, 1, 7) levam também a crer que êsses conflitos eram devidos, muitas vêzes, à apropriação, pelo clero, dos bens das comunidades.A se julgar pelas epístolas pastorais, o aparato clerical estava destinado, em primeiro lugar, a lutar contra as falsas doutrinas. Encontram-se nelas, a cada passo, advertências até mesmo contra a tentação de discutir com os cristãos não ortodoxos. O autor da segunda Epístola a Timóteo suplica-lhe em nome de Jesus «a evitar as disputas de palavras» que apenas servem para prejudicar aquêles que as escutam. (II Timóteo, II, 14.)As epístolas pastorais dão mais um passo no caminho da evolução ulterior do cristianismo em relação ao poder temporal, proclamando que os cristãos não são inimigos dêsse poder, e ordenando, mesmo, aos crentes rezar «. .. pelos reis, e por todos aquêles que são elevados em dignidade. » (1 Timóteo, II, 2.) A submissão às autoridades, aos grandes dêste mundo, torna-se assim um dos principais deveres dos, fiéis. Um único século bastou para fazer com que o cristianismo passasse, do• ódio contra a «grande prostituída de Babilônia», à santificação do mesmo poder imperial.No que concerne à escravidão, essas epístolas continuam, no essencial, nas posições das do segundo grupo: os escravos devem obedecer aos seus senhores, não por temor, mas «de bom coração». E acrescentam isto, ponto importante: os escravos cujos senhores são cristãos, em vez de os desprezarem, são obrigados, ao contrário, a servi-los «melhor, porquanto são fiéis e bem-amados que se dedicam a fazer-lhes o bem. » (1 Timóteo, IV, 2.) Nas epístolas anteriores enumeravam-se os deveres recíprocos dos escravos e dos senhores. Aqui, não se limita o autor a silenciar sôbre as obrigações dos senhores para com seus escravos, mas condena, além disso, os que «ensinam falsas doutrinas», os que pensam diferentemente, como pessoas infladas de orgulho, que nada sabem, e são tolas etc. Vê-se, aqui, como se passou, do convite «não vos tomeis escravos dos homens», à consagração da escravidão, que é acrescida ainda mais pelo dever que se impõe aos escravos cristãos de amar seus senhores cristãos, proclamados «seus benfeitores». É vi-

Page 138: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

142A ORIGEM DO CRISTIANISMOsível que, a partir da segunda metade do século II, as camadas possuidoras da população começam a desempenhar um papel decisivo no seio das comunidades cristãs, e, primeiro que tudo, na Igreja.A curta Epístola a Filemon permite, igualmente, caracterizar a atitude do cristianismo primitivo em relação à escravidão. Trata-se, nela, de certo Onésimo, escravo de Filemon, que viveu durante muito tempo na casa do autor da epístola, e que retorna ao seu senhor depois de se ter convertido ao cristianismo como êle. Paulo não propõe diretamente a Filemon que liberte êsse escravo. Pede-lhe, apenas, que o receba como se êle fôsse o próprio Paulo. O problema das relações entre senhores e escravos cristãos coloca-se, nesta epístola, apenas no plano da fraternidade religiosa. A simpatia pelos oprimidos não impedia ao cristianismo primitivo de tolerar a escravidão, até mesmo nas fileiras dos seus adeptos. Esta posição continuou a ser a da Igreja, posteriormente.Não há a menor dúvida de que as epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo não são tôdas devidas a um só homem. Elas se contradizem continuamente, e podemos observar, nelas, diferenças muito sensíveis de estilo e de linguagem. A melhor maneira de se explicar tudo isso consiste em atribuir as epístolas a diferentes autores, classificando-os em grupos que representam, cada qual, uma fase determinada na evolução da ideologia cristã. Semelhante método permite elaborar um quadro bastante completo das modificações sofridas pela nova religião, no decorrer do primeiro século da sua existência.Que as contradições abundam nas epístolas paulinianas, até mesmo os escritores eclesiásticos não podem deixar de o reconhecer. Procurando justificá-las, êsses escritores dizem que o apóstolo compôs umas, quando jovem, e outras, durante sua velhice.3 Esquecem, contudo, que, segundo a tradição da Igreja, o período cristão da vida de Paulo não durou mais do que trinta anos. É impossível admitir-se que o cristianismo tivesse podido passar durante tão curto lapso de tempo, da estigmatização do poder temporal, à injunção aos fiéis de rezar pelos reis e dignatários, da negação da escravidão, à exortação aos escravos cristãos, para que obedecessem aos senhores igualmente cristãos. Até mesmo num período de um século, semelhante metamorfose parecia extremamente rápida, sobretudo se

3 A. Lojsy, obra citada, pág 9, nota, irônicamente, que, pala explicar “a incoerência doutrinal” das diversas epístolas paulinianas e, muitas vêzes, no texto de uma mesma epístola, ter-se-ia podido imaginar “uma explicação melhor do que a mobilidade de espírito da qual era superabundantemente dotado o apóstolo Paulo, segundo se é ordinàriamente obrigado a admitir.”

Page 139: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÃS.143se leva em conta a lentidão do desenvolvimento histórico sob o signo da escravidão.No seu conjunto, as epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo constituem um dos documentos mais importantes da evolução inicial do cristianismo. Elas refletem de modo mais ou menos fiel a tendência histórica do desenvolvimento do cristianismo original, a partir do Apocalipse de João, até os evangelhos, isto é, a partir de uma das seitas judaicas, até uma religião independente, se bem que não ainda definitivamente cristalizada.Seguimos a evolução da ideologia cristã num único grupo de fontes: as epístolas paulinianas. O conteúdo das outras epístolas do Nôvo Testamento mostra igualmente que diversas tendências se degladiavam encarniçadamente no seio das comunidades cristãs, no decorrer do primeiro século do cristianismo. Esta luta aparece antes de tudo nos Atos dos Apóstolos, cujos temas giram em tôrno das atividades nitidamente opostas de Pedro e de Paulo. O leitor verá em seguida que se tratava aí não de uma luta entre pessoas, mas de duas linhas de desenvolvimento do cristianismo. O choque entre essas duas correntes cristãs opostas, do qual os Atos dão uma idéia bastante clara, apresenta-se com certo realce nas mensagens não paulinianas do Nôvo Testamento, que analisaremos nas páginas que seguem.4. A TENDÊNCIA .TLJDAICO-CRISTÃNAS EPíSTOLAS DO NÔVO TESTAMENTOAlém das epístolas atribuídas a Paulo, o cânone do Nôvo Testamento comporta sete epístolas apostólicas, das quais uma é atribuída a Tiago, duas a Pedro, três a João e uma a Judas. Diferentemente das mensagens paulinianas, êstes escritos são bem curtos e, considerados em conjunto, ocupam menor espaço do que, por exemplo, as duas epístolas aos coríntios, de Paulo. Seu conteúdo é, por outro lado, bastante homogêneo. Compostas por um grupo de correligionários, não apresentam contradições surpreendentes comà as que assinalamos nas epístolas de Paulo. Em conjunto, representam uma tendência bem definida e distinta daquela das mensagens paulinianas. Tal fato é reconhecido até mesmo por seus autores numa passagem do Nôvo Testamento, em que se condenam abertamente outros escritos canônicos. Na segunda Epístola de Pedro diz-se que «tôdas as cartas» do «irmão Paulo» contêm «pontos difíceis de compreender, que as pessoas ignorantes e inconstantes torcem, como os das escrituras, para sua própria perdição.» (Pedro, III, 15-17.) O autor desta epístola põe os crentes em guarda contra o perigo de serem arrastados ao êrro pelos ímpios, e os exorta a permanecerem firmes em sua fé. Êsse tom polêmico, brutal, contra uma parte tão importante dos escritos do Novo

Page 140: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

144A ORIGEM DO CRISTIANISMOTestamento revela quão ásperas eram as contradições entre os cristãos.Os debates que a questão da justificação pela fé suscitavam na cristandade são outro exemplo do conflito entre as duas tendências. Segundo a Epístola aos Gálatas, «não é pelas obras da lei que o homem é justificado, mas pela fé em Jesus Cristo», e «nenhuma carne será justificada pelas obras da lei.» (Gálatas, II, 16.) Em contrapartida, mais da metade da Epístola de Tiago é consagrada a afirmar o contrário: «Assim também a fé; se ela não tiver as obras, está morta em si mesma.» (Tiago, II, 17 e 26.) O fundo desta polêmica não residia, naturalmente, na oposição abstrata entre a «fé» e as «obras», mas decorria do fato de êste último têrmo subentender a observância de ritos judaicos como a circunscisão, a celebração do sábado, e outros preceitos aos quais a Epístola aos Gálatas se referia francamente, enquanto que a Epístola de Tiago prefere sôbre êles silenciar.Necessário é dizer aqui que a Epístola aos Gálatas traça uma linha de demarcação bastante nítida entre Paulo, a quem «o evangelho para os incircuncisos foi confiado» (II, 7), e Pedro, a quem a mesma missão foi destinada em relação aos circuncisos. Um pouco mais abaixo, nos versículos 12-14, Pedro é acusado de «judaizar». Os evangelhos sinóticos não se esquecem de descrever minuciosamente como Pedro, por três vêzes, renegou Jesus. Isto não impede a Mateus de dizer a respeito dêsse apóstolo que êle é a pedra sôbre a qual a Igreja será construída, e que o Cristo lhe dará as chaves do reino dos céus. (Mateus, XVI, 18.)Todos êsses fatos atestam a presença no No’vo Testamento de pelo menos duas tendências claramente opostas. O principal ponto de divergência entre elas diz respeito à sua respectiva atitude em face do judaísmo e dos judeus. A linha pró-judeu ou, melhor, judaico-cristã das epístolas não paulinianas aparece em várias questões. Assim, o autor da Epístola de Tiago se endereça sàmente «às doze tribos que andam dispersas» (1, 1), portanto, micamente aos judeus estabelecidos fora da Palestina, e não a todos os cristãos. A primeira Epístola de Pedro, do mesmo modo, é dirigida «àqueles que são estrangeiros e dispersos no Ponto, na Galácia, na Capadócia, na Asia e na Bitínia, e que são os eleitos segundo a pré-ciência de Deus, o Pai» (1, 1) isto é, apenas aos judeus da Ásia Menor. As epístolas não paulinianas nunca se endereçam aos cristãos de origem pagã. Há, portanto, motivos para se crer que seus autores, à semelhança do autor do Apocalipse de João, não concebiam o cristianismo senão como um ramo do judaísmo. Diferentemente das epístolas paulinianas, estas nunca atacam os judeus e o judaísmo.

Page 141: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

145AS COMUNIDADES CRISTÂ,s...Apesar das divergências entre as epístolas do No’vo Testamento no que concerne ao judaísmo, seu acôrdo é quase completo quanto aos outros artigos da fé cristã. Os autores das mensagens não paulinianas acham que Jesus é o Messias. (1 Epístola de João, II, 1 e 22.) Essas mensagens chegam a declarar que aquêles que negam Jesus como Filho de Deus, negam por isso o Pai, e tornam-se descrentes. (Ibidem.) Segundo essas epístolas, Jesus teria nascido em Jerusalém, e ressuscitado dos mortos. (1 Pedro, 1, 21.) No versículo 20 do mesmo capítulo diz-se que Jesus «é o cordeiro predestinado antes da fundação do mundo, e manifestado no fim dos tempos.»Ëste grupo de epístolas nos permite acompanhar a elaboração da dogmática e do ritual cristãos. Na primeira Epístola de João encontra.se já o dogma da Santíssima Trindade, se bem que formulado de um modo não muito ortodoxo: «Porque três são os que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue, e os três estão de acôrdo.» Esta fórmula já não é mais judaica. O mesmo grupo de mensagens já faz alusão ao batismo. (1 Pedro, III, 21.)A espera da vinda do Cristo é expressa aqui com mais vigor do que nas epístolas paulinianas, e de modo quase tão claro como no Apocalipse. A Epístola de Tiago diz: «... a vinda do Senhor está próxima, ( . . . ) eis que o juiz está à porta.» (Tiago, V, 8.) E as de João (1 João, II, 18) e de Judas (Judas, 1, 18) proclamam: «É já a última hora», «os últimos tempos». Tal é o motivo central que retorna sem cessar neste grupo de epístolas. À semelhança das mensagens paulinianas, elas se interrogam sôbre o retardamento da segunda vinda do Senhor, que deveria trazer aos fiéis a compensação por seus sofrimentos. Àqueles que dizem: «Onde está a promessa de sua vinda? Porque desde que os pais morreram tôdas as coisas permanecem como desde o princípio da criação. . . » (II Pedro, III, 4), o autor não encontra outra coisa para responder, fraca consolação, senão que «diante do Senhor, um dia é como mil anos», e que, se êle tarda, é por que usa de paciência para dar ao gênero humano tempo para que chegue ao arrependimento.

Protelava-se, dêsse modo, para uma data indeterminada, o cumprimento das promessas escatológicas, às quais a massa cristã, composta de trabalhadores, ligava a esperança de se livrar da miséria, e de ver os opressores punidos.Diferentemente do Apocalipse de João, mas, em plena conformidade com as epístolas paulinianas, as mensagens dêste grupo pregam a integral submissão ao poder. A segunda Epístola de Pedro (II, 10) condena enèrgicamente, sobretudo aquêles que, «audaciosos e arrogantes, desprezam a autoridade, e não temem injuriar as dignidades.» A Epístola de Judas os

Page 142: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

146A ORIGEM DO CRISTIANISMOcompara aos pecadores de Sodoma e de Gomorra. (Judas, 1, 8.) Assim, o ódio contra Roma e contra os opressores é substituído pela pregação da submissão aos governantes e da renúncia à luta, em nome da esperança ilusória da segunda vinda em uma data que se perde no indeterminado. Êstes apelos de obediência e submissão às autoridades nos dois grupos de epístolas do Nôvo Testamento revelam não apenas a acentuação da tendência à conciliação com o poder imperial, mas, também, a persistência no seio do cristianismo das tradições anti-romanas do Apocalipse.O reconhecimento das autoridades determinava a aceitação da escravidão, fundamento do regime social do Império. O siogan «Teriiei a Deus; honrai o Rei» (1 Pedro, II, 17) é seguido, sem transição, dêste conselho: «servos, sujeitai-vos com todo o temor aos vossos senhores, não sàmente aos que são bons e humanos, mas também àqueles que são rigorosos.» A tartuf ice do autor desta epístola é posta inteiramente a nu por sua argumentação: «com efeito, que glória existe em suportar maus tratamentos, por ter cometido faltas? Mas, se suportais o sofrimento, quando fizestes o bem, isso é agradável a Deus. » (Versículo 20.) Vemos, aqui, claramente, a natureza dos princípios sociais do cristianismo primitivo que lhe asseguram a tolerância dos podêres romanos, e, finalmente, sua vitória sob Constantino.É necessário dizer, contudo, que os autores dêste grupo de epístolas estabelecem ainda certa diferença entre o reconhecimento do poder dos ricos e da escravidão, de um lado, e sua atitude moral em relação à riqueza, do outro. A Epístola de Tiago consagra largo trecho à condenação dos ricaços, nestes têrmos: «Agora é a vossa vez, oh, ricos! Chorai e pranteal por causa das desgraças que vos hão de vir (...) Vosso ouro e vossa prata se enferrujaram; e a sua ferrugem dará testemunho contra vós, e comerá vossa carne como um fogo (...) Eis o salário dos trabalhadores que ceifaram vossos campos, que não foi pago por vás; e os clamores dos que ceifaram entraram nos ouvidos do Senhor dos exércitos.» (Tiago, V, 1-4.) Estas palavras atestam inequlvocamente que as comunidades cristãs primitivas se compunham principalmente de pobres e de pessoas que ganhavam o pão com o suor do seu rosto. Tiago considera-se no dever de prevenir que não é necessário aceitar personalidades nas assembléias cristãs e distinguir um homem «com anel de ouro e vestes magníficas», de um «pobre miseràvelmente vestido», e lembra: «Não são os ricos que vos oprimem e vos arrastam diante dos tribunais?» (Tiago, II, 2-6.) Não há dúvida de que a composição social das comunidades cristãs primitivas, nas quais a Epístola de Tiago gozava de

Page 143: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

As COMUNIDADES CRISTÃS..147grande audiência, era absolutamente idêntica à composição das comunidades de Tessalônica e de Éfeso.A estrutura e a forma de organização das primeiras comunidades judaico-cristãs não se distinguiam em nada da estrutura e forma das comunidades descritas nas epístolas paulinianas; nestas, como naquelas, um grande número de grupos professavam as crenças mais diversas, e se opounham uns aos outros. As mensagens que se lhes enviam são cheias de advertências contra os falsos profetas, os falsos pregadores e tôdas as espécies de falsas doutrinas funestas para a salvação dos crentes. A terceira Epístola de João (1, 9) acusa certo Diotrefes de querer ser o primeiro entre os irmãos, e, também, de não ter querido receber João e outros pregadores ambulantes.As comunidades judaico-cristãs não possuíam ainda um clero. Seus dirigentes recebiam o nome de «anciãos» (Tiago, V, 14; Pedro, V, 1), mas suas funções não são claramente definidas, a não ser que lhes compete a tarefa de rezar pelos doentes, e de «pastorear o rebanho de Deus.» (1 Pedro, V, 2.)Notam-se, assim, no segundo grupo de escritos do Nôvo Testamento, afinidades com as epístolas paulinianas e, ao mesmo tempo, um protesto aberto contra a pregação cristã entre os pagãos, e contra a tendência de conservar os liames entre o cristianismo e o judísmo. Esta linha condenava a nova religião ao reduzido papel de seita judaica, mas seria a corrente pauliniana que iria vencer nesta luta.Não se imagine, contudo, que, já durante a primeira metade do século II, a corrente pró-judaísmo e a corrente pauliniana se apresentassem como absolutamente inconciliáveis. Até mesmo os evangelhos canônicos, compostos mais tarde, procuravam de diversas maneiras estabelecer um compromisso entre as duas tendências que, aliás, coincidiam em muitos pontos. Ambascoexistiam no seio das ornunidades cristãs, como é atestadopela Dida que’.5. A DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOSA Dida quê, «doutrina dos doze apóstolos», monumento da literatura cristã primitiva, que, durante muito tempo, se acreditou perdido, só foi descoberta em 1873, e não tardou a ser publicada. Éste escrito foi composto muito antes da aparição dos evangelhos canônicos. Êle remonta aproximadamente ao comêço do século II e tinha por fim comunicar os dogmas da nova religião ãôs seus adeptos.A Didaquê compõe-se de três partes, a primeira das quais (capítulos 1-VI) compara «dois caminhos, o da vida com o da morte»; a segunda, (capítulos VII-X) descreve o ritual e reproduz as orações; a terceira (capítulos XI-XVI) expõe os

Page 144: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

148A ORIGEM DO CRISTIANISMOprincípios de organização das comunidades cristãs, e os deveres dos seus dirigentes.Para não se afastar do «caminho da vida», o crente deve observar os mandamentos, resistir às tentações, à cólera, à concupiscência, não deve mentir etc. Ao lado dêsses preceitos, que também são encontrados em outras religiões, a Didaquê dedica especial atenção aos ensinamentos especificamente cristãos, tais como: «Abstém-te de qualquer manifestação de descontentamento, porque o descontentamento leva à cólera, ( .sê dócil, paciente, benévolo, pacífico, caridoso. » (Dida quê, III, 6-8.) Ela roga aos cristãos que «não virem as costas aos pobres», que ponham tudo em comum com seus irmãos, sem nunca dizer «isto me pertence», que, estando encolerizados, não dêem ordens aos seus escravos, os quais põem suas esperanças no mesmo Deus, «para que êles não deixem de temer a Deus.» (Didaquê, IV, 8-9.) O Capítulo V da Didaquê, em que se trata do «caminho da morte», adverte os crentes contra os ímpios, entre os quais figuram aquêles que «dão as costas aos pobres, que procuram supliciar com o trabalho aquêle que já foi supliciado, os que adulam os ricos e são juízes injustos para os miseráveis. » (Dida quê, V, 2.)Êstes ensinamentos mostram que a Dida quê se endereçava a representantes das classes laboriosas no seio das quais a condenação dos ricos e predicação da virtude e do amor do próximo não podiam deixar de ter uma grande ressonância. O que mais atraía as pessoas dessas classes era a esperança de salvação e o reino de Deus em caso de observância dos preceitos cristãos. Concebe-se que o ódio aos opressores e a idéia, ainda que vaga, da comunidade de bens só poderia manifestar-se no seio das camadas deserdadas da população. Porém, a comunidade de bens não era concebida como uma abolição da propriedade privada: o autor da Dida quê se abstém de exigir, mas, também, de aconselhar a libertação dos escravos cristãos, quando mais não fôsse, pelos senhores que professavam a mesma fé. A libertação dos escravos era, contudo, a primeira condição para se chegar à comunidade de bens. A Didaque se limita a convidar os senhores de escravos a serem brandos com êles, e isso r’inicamente em atenção à religião.A segunda parte da Dida quê trata do sacramento do batismo, reproduz diversas orações, notadamente aquelas que se pronunciam durante a eucaristia. No que concerne ao batismo, encontra-se nela a mais antiga fórmula da literatura cristã, forma essa que contém duas referências à Santíssima Trindade. Êste escrito dá muita atenção ao jejum que deve ser seguido antes do batismo e, além disso, duas vêzes por semana, porém, obrigatôriamente nos dias em que os «hipócritas», isto é, os judeus ortodoxos, não o observam. Quanto às orações, os cristãos não

Page 145: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÃS...149devem mais rezar corno os «hipócritas» (Didaquê, VIII, 1.) A Dida quê apresenta uma antiga variante da oração dominical, um pouco diferente da evangélica. Outras preces reproduzidas neste escrito, e que devem ser pronunciadas antes e depois das refeições, chamam Jesus de «Filho de Deus». (Didaquê, IX-13.)Esta parte da Dida quê distingue-se por seus elementos relativamente elaborados, que ela apresenta do ritual da nova religião, e dos quais não se descobre qualquer vestígio nos escritos canônicos. E êsse ritual, coisa característica, se bem que constituído por oposição ao do judaísmo, revela, contudo, numerosas coincidências com êle. O vinho, por exemplo, chama- se na Didaquê «vinha sagrada de David». (Didaquê, IX, 2.) Este é chamado de filho de Deus, como Jesus, e nenhuma diferença nela se estabelece entre ambos. As orações reproduzidas neste escrito rogam a Deus que reúna os «eleitos» dispersados nos quatro cantos do mundo, prece legítima na bôca de judeus da diáspora, ansiosos de retornar à Palestina, mas inconcebível, por exemplo, nas mensagens de Paulo, nas quais o caráter universal do cristianismo é sublinhado a cada passo. O que caracteriza, antes de tudo, a Didaquê, é, pois, o fato de ser uma curiosa amálgama de temas judaicos e de temas cristãos.Sua terceira parte é menos específica, e tem, sobretudo, como tarefa prevenir os crentes contra os «falsos profetas» e os «falsos apóstolos». Notemos, entre parênteses, que, neste escrito, os apóstolos também não são os discípulos de Cristo dos evangelhos, mas simples mensageiros das comunidades cristãs. Segundo a Didaquê, reconhecem-se os «falsos pregadores» pelo fato de importunarem os crentes pedindo-lhes dinheiro, e por procurarem ficar o maior tempo possível na mesma comunidade vivendo à custa dos seus membros. Ela recomenda aos crentes que lhes dêem na hora da partida apenas pão, e isso êinícamente «até à noite», isto é, o que seria necessário para subsistir até a comunídade vizinha. Tudo parece indicar que entre êsses pregadores ambulantes encontravam-se personagens semelhantes àqueles que Luciano descreveu em seus cantos satíricos. No que concerne à permanência nas comunidades cristãs, a Didaquê excetua apenas os artesãos itinerantes:«se se tratar de um artesão, e se êle quiser viver em vossa casa, deixai-o trabalhar e comer ( . . . ). Se êle não concordar, será um traidor de Cristo.» (Didaquê, XII, 3-5.)O papel de dirigente nas comunidades cristãs descritas na Didaquê pertence aos profetas inspirados, sujeitos ao carisma. O clero não existia. A ligação entre os agrupamentos cristãos era efetuado pelos pregadores itinerantes, e é por isso que se tratava cuidadosamente de os identificar. Os conselhos do autor

Page 146: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

150A ORIGEM DO CRISTIANISMOda Didaquê, a êsse respeito, lembram muito as recomendações contidas no segundo grupo de epístolas paulinianas. O único traço original é a característica dos bispos e diáconos que, neste escrito, não são objeto de muito grande consideração. O autor da Didaquê acha que êles devem ser escolhidos entre «os irmãos afáveis, não agarrados ao dinheiro, honestos, experimentados»: êles eram designados pelos cristãos de maior hierarquia, e não pelas autoridades eclesiásticas, como se o fêz mais tarde. A Diria quê não deixa de lembrar aos crentes que êles não devem desprezar os bispos, que têm direito às mesmas deferências que os «profetas e os doutores», aos quais são, assim, igualados. Conclui-se, daí, portanto, que era necessário exercer certa pressão sôbre a massa dos cristãos, para os obrigar a respeitar os bispos. Esta circunstância por si só autoriza a considerar a Dida quê como um dos mais antigos documentos cristãos.O capítulo final dêste escrito é consagrado ao problema de se saber quando chegará o reino de Deus, e a resposta que êle dá é idêntica àquela da epístola do Nôvo Testamento. Seu autor limita-se a dar tôdas as espécies de sinais fantásticos, como a ressurreição dos mortos, a trombeta do arcanjo etc.Tal é o conteúdo de um dos mais importantes documentos cristãos dos primeiros tempos. Aquilo que nêle não figura não é menos importante do que o que êle diz, convém assi. nalá-lo. Não se encontra em qualquer das partes da Didaquê o ensino destinado aos novos fiéis convertidos ao cristianismo, a menor alusão à vida de Jesus Cristo, isto é, à sua primeira vinda. Tal ocorrência é o maior dogma da religião cristã, e é claro que o silêncio da Dida quê a seu respeito não pode ser fortuito. A Didaquê ignora também a crucificação de Jesus. Ainda se espera, nela, a primeira vinda de Cristo, o que indica, de um lado, sua antigüidade, e, do outro, que, no comêço do século II, os cristãos viam em Jesus não um personagem real que tivesse existido, mas o Messias esperado. A imagem de Jesus na Dida quê está mais próxima do Apocalipse de João, do que das epístolas paulinianas, mesmo as mais antigas. Jesus é citado neste escrito não como o Filho único de Deus, mas como um dêles, à semelhança de David e, até mesmo, de Moisés.

A Didaquê não condena nitidamente o judaísmo. Seu autor procura desligar-se dos dogmas oficiais dessa religião, mas, ao fazer isso, não deixa de se considerar como um representante da «verdadeira Israel». Nem mesmo supãe que o cristianismo venha a ser uma religião universal. Segundo seu parecer, êle não é senão a «boa nova», destinada sômente aos eleitos, O «caminho da vida» traçado na Didaquê lhe parece tão árduo, que o autor se apressa em precisar que não é

Page 147: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÃS...151preciso segui-lo estritamente, mas, que se deve segui-lo apenas na medida do possível.A descrição do «caminho da vida» na Dida quê revela certas afinidades entre êste escrito e os manuscritos descobertos em Coumrã, com a seguinte diferença radical: os essênios de Coumrã exigiam a observância rigorosa de suas Regras, enquanto que os primeiros cristãos não viam em seus preceitos senão um ideal mais ou menos abstrato, o que facilitava grandemente a conquista de novos prosélitos. A seita dos essênios nunca esteve em condições de se tornar um movimento de massa.A Dida quê nada diz sôbre a atitude dos cristãos em relação a Roma. Seu autor se limita a proibir categàricamente qualquer manifestação de descontentamento contra as autoridades. Sem nenhum sentimento de ódio contra o poder romano em particular, condena em geral a menor oposição à política das classes dominantes. Neste escrito, os apelos do cristianismo à luta foram substituídos pela pregação da resignação, da submissão incondicional aos governantes. O conselho evangélico de apresentar a face esquerda àquele que nos bate na direita já é enunciado na Diria quê, sem que, então, se faça menção ao nome de Jesus.Tudo isso nos autoriza a concluir que, apesar dos numerosos temas comuns à Diria quê e aos dois grupos de epístolas do Nôvo Testamento, êste documento parece representar uma terceira tendência do cristianismo primitivo. Veremos mais adiante que muitas das coisas da Didaquê foram incluídas no cânone, na segunda metade do século II.6. AS PRIMEIRAS HERESIASAté aqui, examinamos apenas as tendências do cristianismo primitivo que precederam e determinaram diretamente a constituição da dogmática ortodoxa. O estabelecimento de suas particularidades não foi muito espinhoso, porque as fontes correspondentes vieram até nós, se bem que tenham sofrido, de vez em quando, correções. Elas remontam, além disso, à primeira metade do século II e se relacionam, portanto, com o período que acabamos de considerar.Pior é a situação no que concerne às fontes relativas aos movimentos heréticos da Antigüidade. A própria noção de heresia, como doutrina condenada pela Igreja, é posterior, por certo, à aparição das heresias, porque ela foi formulada por ocasião da elaboração do cânone, e depois da constituição da Igreja. Além disso, as fontes mais antigas sôbre êste assunto remontam à segunda metade do século II. Trata-se dos escritos de Justino, de Taciano e, notadamente, de Iririeu, Examinaremos mais adiante o papel social das heresias, e o seu

Page 148: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

152A ORIGEM DO CRISTIANGMOconteúdo ideológico. Por ora, vamos nos limitar a breves indicações sôbre aquelas das quais se conhece a existência durante a primeira metade do século II.Apesar do elevadíssimo número de heresias no decorrer dêste período, podem elas ser divididas em três grupos principais: heresias judaico-cristãs, montanistas e gnósticas. Não há dados sôbre o primeiro grupo, até os meados do século II. Mas, acabamos de ver que já no comêço dêste último, a luta no seio do cristianismo desenrolava-se sobretudo em tôrno da atitude a tomar em relação ao judaísmo, questão que constitui, prôpriamente falando, o fundo do paulinismo. Quando êste passou a ser a ideologia oficial da Igreja, seus adversários, que permaneceram nas posições do Apocalipse de João e, mesmo, na da Dida quê, viram-se enquadrados automàticamente entre as seitas judaico-cristãs, das quais a principal era a dos ebionitas.A julgar-se pelas declarações de Irineu (1, 23, 2), a doutrina desta seita renegava o apóstolo Paulo, exigia a prática da circuncisão e a observância dos preceitos da lei mosaica. Os ebionitas achavam que Jesus era um dos mais antigos profetas hebreus, mas não o Messias. Tudo leva a crer que esta seita já existia nos começos do século II. Ë até mesmo possível que, durante o período em que o cristianismo se desligava do judaísmo, a massa fundamental das comunidades cristãs professasse crenças ebionitas ou, pelo menos, judaico-cristãs.O montanismo (nome tirado do de um dos seus fundadores: Montanus) foi, em meados do século II, um sério adversário da Igreja episcopal. Entrou na liça aproximadamente no décimo nôno ano do reinado de Antonino, o piedoso (136 a 161), mas esta data talvez se relacione não com a aparição desta heresia, mas com o comêço da separação entre os montanistas e a Igreja Romana. Os adeptos do montanismo atacavam o episcopado e tinham em alta estima os profetas cheios de Espírito Santo. O essencial em suas doutrinas era a espera do próximo retôrno de Jesus, que, segundo êles, devia se dar em Pepuza (Ásia Menor), centro de suas atividades. Os montanistas exortavam os fiéis a abandonar seus bens, a renunciar às coisas terrenas, a observar os jejuns rituais, o celibato etc. Dando um acentuado destaque aos temas escatológicos e, também, aos quiliáticos, exigiam a mortificação da carne como o único meio de se instaurar o reino de Deus na Terra.- A tendência ascética do «caminho da vida» da Didaquê reaparetecia mais vigorosa ainda com o montanismo.A ideologia montanista não fazia outra coisa que não fôsse desenvolver o programa social e político do Apocalipse de João. Em oposição ao dogma da Igreja, que protelava sine die o esta-

Page 149: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

As COMUNIDADES CRISTÃS..153belecimento do reino de Deus e situava êSte último no além, os montanistas esperavam êsse reino num futuro próximo, não no céu, mas na Terra. Isto revela estreitos liames entre os montanistas e as vastas massas oprimidas e deserdadas. Sua pregação era acolhida com maior boa vontade nas diversas pro víncias romanas da Ásia Menor.Segundo os documentos de que se dispõe, o gnosticismo apareceu na religião cristã durante o segundo quarto do século II. Seu centro foi o Egito. Os gnósticos se levantavam contra o dogma da Igreja relativo à natureza ao mesmo tempo divina e humana de Jesus; não aceitavam senão seu lado divino, negando, assim, sua origem terrestre. Esta seita se dividia em um número imenso de grupos, a maioria dos quais era resolutamente hostil ao judaísmo, e considerava Jeová como o Príncipe do Mal. Os gnósticos procuram conciliar as crenças cristãs com as doutrinas filosóficas do mundo greco-romano, mas seus discursos confusos e muito sutis não tinham influência sôbre as massas. Algumas das seitas gnósticas revelavam uma grande tendência para o ascetismo. Constatam-se muitas contribuições do gnosticismo ao No’vo Testamento e, sobretudo, ao Evangelho Segundo João. Notemos que os primeiros gnósticos, entre os quais Márcio, exerceram, em dado momento, uma grande influência sôbre a comunidade cristã de Roma.Acabamos de examinar ràpidamente as principais tendências existentes no seio do cristianismo durante a primeira metade do século II. Essas correntes subdividiam-se ao infinito, as mais encarniçadas querelas não cessavam nunca entre elas e, segundo as condições locais e a composição social e étnica das comunidades, ora uma, ora outra dominava. Enquanto os cristãos discutiam e se acusavam interminàvelmente, os evangelhos e as epístolas eram retocadas várias vêzes, tal como Celso, antigo crítico do cristianismo, o notou com razão. Amputavam-se dêsses textos as passagens que se julgavam vulneráveis, acrescentavam-se nêles detalhes tirados muitas vêzes de escritos não cristãos.Esta luta pela existência determinava, pouco a pouco, o triunfo das doutrinas que melhor se adaptavam às condições históricas da época. O grupo cristão que se lançou neste caminho com maior senso do futuro foi aquêle cuja ideologia encontrou sua expressão nas epístolas paulinianas. O cristianismo separava-se nelas, resolutamente, do judaísmô, desenvolvia o mito de Jesus, Homem-Deus. Ao mesmo tempo, não economizou esforços para manter a idéia, extremamente atuante, sôbre as massas, do reino de Deus, que significava a recompensa reservada para os justos e para os crentes, mas tirando-lhe o caráter político e social muito acentuado que ela revestia no

Page 150: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

154 A OaIGSM DO CEISTIANISMOApocalipse. Foi assim que, nos meados do século II, a dogmática da Igreja começou a se formar por via da «seleção natural»e de alguns compromissos entre as tendências mais influentes / do cristianismo.7. OS ESCRITOS DO APOLOGISTA JUSTINOO processo que acabamos de descrever se faz sentir claramente, antes mesmo do estabelecimento do cânone no Nôvo Testamento, nas diversas obras dos primeiros apologistas cristãos e, em particular, nas de Justino, de quem grande número de escritos chegou até nós. Seus textos mostram de modo palpável como o mito evangélico do Cristo foi constituído no decorrer das lutas intestinas do cristianismo, e de que elementos se compõe o personagem central desta lenda.Justino é o primeiro dos escritores cristãos do qual se possuem informações biográficas dignas de fé. Nasceu na Síria Palestiniana. Seu pai chamava-se Priscus, seu avô Baquios (Apologia, 1, 1); isso indica que não era de origem judia. Em seu Diálogo com o Judeu Tri/ônio, Justino conta para começar como concebeu o plano de se dedicar à Filosofia, e como se pôs a estudar sob os auspícios dos filósofos das mais diversas escolas. Os sistemas dos seus mestres não o puderam satisfazer, porque os considerava presos às coisas dêste mundo: alguns dentre êles pediam-lhe que pagasse duas lições adiantadamente. A única doutrina filosófica pela qual Justino experimentou algum respeito foi a de Platão. Um dia, estabeleceu conversação com um velho cristão e êste o conquistou para a fé cristã. Justino renunciou à filosofia, explicando êsse comportamento da seguinte maneira: «Os profetas se encontram acima dos filósofos, porque são inspirados pelo Espírito Santo. Abstêm-se de propor provas, porque se encontram acima de qualquer demonstração. Os milagres realizados por êles, tomam-nos dignos de fé.» (Ob. cit., Cap. VII.) As referências aos ditos dos profetas servem a Justino como o único argumento de apoio para a divindade de Jesus.É claro que o caminho pelo qual Justino chegou ao cristianismo não foi o da grande massa dos adeptos da nova religião. Éstes eram atraídos não pelas profecias sôbre o Messias, enunciadas no Velho Testamento, mas pela esperança da punição dos ricos e da felicidade que aguardava os humildes no reino de Deus. Os pobres e os escravos buscavam no cristianismo o reconhecimento de seus direitos humanos, uma igualdade ainda que ilusória. Os sermões sôbre a redenção dos pecados dos homens, pelo martírio do filho de Deus, tocava, por outro lado, a imaginação das massas. No que concerne a Justino, foi a decepção pela filosofia antiga que o impeliu para o cris-

Page 151: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÃS... 155tianismo, tal como aconteceu com outros representantes das classes possuidoras.Os argumentos que Justino avança em favor da religião cristã são de uma incrível pobreza. Não acha nada a censurar aos pitagóricos, por exemplo, a não ser a exigência que faziam de se estudar Matemática, antes de se passar às meditações sôbre Deus. A preferência de Justino pelos profetas traduzia apenas sua renúncia ao raciocínio lógico. Êle não admitia a menor dúvida a respeito da realidade dos milagres realizados pelos profetas do Antigo Testamento. Essas perorações de Justino dão a medida da profunda degradação do pensamento filosófico no século II.Nas suas Apologias, Justino diz que não se deve levar um cristão à barra dos tribunais umicamente por êle ser cristão, que é preciso, para isso, que êle tenha violado as leis, e êle explica, minuciosamente, em seguida, os dogmas da nova religião. Seu Diálogo Com o Judeu Trilônio, outra obra dêste escritor que chegou até nós, descreve sua conversão, fala da atitude dos cristãos em relação ao Nôvo Testamento, que é apresentado como uma aliança provisória, referente a um ónico povo, enquanto que o cristianismo é proclamado como uma nova aliança eterna, trazida para tôda a humanidade. Esta obra de Justino tem por tema principal a interpretação das profecias do Antigo Testamento, visando a demonstrar que Jesus Cristo foi efetivamente o Messias anunciado. Na parte final do Diálogo, tenta provar que os cristãos são a «nova Israel.»O que os escritos de Justino têm de mais característico, notadamente seu Diálogo, é a possibilidade que êles nos dão de aprender um dos últimos elos da gênese do mito evangélico do Cristo. Justino conhecia a compilação das Sentenças de Jesus (Apologia, 1, 14), documento que não foi conservado, e que parece corresponder aos papiros encontrados em Oxirincos. É muito significativo que a maioria das máximas citadas por Justino figure igualmente nos evangelhos. Porém, o que é mais importante ainda, é que êle cita outras sentenças de Jesus, das quais não se encontra o menor vestígio nos evangelhos. No Diálogo, por exemplo, Justino reproduz a sentença seguinte (Cap. 47): «Eu vos julgarei por aquilo que hei de ver em vós.» Êle diz que, sendo carpinteiro, Jesus fabricava cangas e arados (Cap. 88), e que êle foi atacado no alto do Montedas Oliveiras (Cap. 103), informações que não figuram nos textos canônicos.Isto impõe duas importantes conclusões: 1) os escritos de Justino são anteriores à canonização dos evangelhos, sem o que êles não se afastariam um til do seu texto, o que snostra que os evangelhos não foram compostos antes dos

Page 152: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

156A ORIGEM DO CRISTIANISMOmeados do sécuio II; 2) os evangelistas não foram testemunhas das supostas atividades de Jesus, mas o que escreveram está sômente baseado nas máximas que se lhe atribuíam, e nas profecias correspondentes do Antigo Testamento. No que concerne às primeiras, preferiam ignorar algumas delas por diversas razões: nos escritos de Justino e nos manuscritos de Oxirincos encontram-se algumas das sentenças que não são citadas em nenhuma parte dos evangélicos canônicos. As conclusões que acabamos de formular são ainda reforçadas pelo fato de Justino ser o único dos escritores cristãos da Antigüidade que empregou a expressão «recordação dos apóstolos» em lugar de «evangelhos». Basta lembrar que uma das heresias mais importantes, o arianismo, apareceu como conseqüência de uma disputa por causa de uma única letra do texto da escritura, para se compreender que Justino não teria podido utilizar a palavra «recordação», em lugar de «evangelho», por mera negligência.Encontram-se nos escritos de Justino numerosos detalhes reproduzidos no relato evangélico. Êle fala da fuga para o Egito (Diálogo, cap. 78), da matança dos inocentes (Ibidem), dos magos (Ibidem, cap. 77), de Pôncio Pilatos (Apologia, 1, 13). Porém, sua obra contém igualmente contradições com os evangelhos. Segundo êle, por exemplo, Jesus nasceu numa caverna (Diálogo, cap. 78), e não numa mangedoura (Lucas, II, 7). Nos sessenta capítulos do Diálogo consagrados a Jesus, justino não se refere jamais à genealogia que remonta ao Rei David. Dissemos já que Taciano, discípulo dêste autor, no seu Diatessarão, evangelho que êle compôs no final do século II, não quis introduzir no seu texto a genealogia de Jesus que figurava nos Evangelhos Segundo Mateus e no Evangelho Segundo Lacas. Temos aqui outro elo, e êste posterior a Justino, da criação do mito de Jesus.O conteúdo do Diálogo Com o Judeu Trifânio nos permite compreender melhor não sàmente aquilo que se atribuía a Jesus durante o período de elaboração dos evangelhos, mas, também, como o faziam. Desejoso de convencer seu interlocutor, de que Jesus era o Messias anunciado pelos profetas, Justino cita numerosas passagens do Antigo Testamento, interpretando-as de um modo que não poderia ser mais extravagante. Vê, por exemplo, o símbolo da cruz na passagem em que está escrito que Moisés assistiu a uma batalha com os braços estendidos horizontalmente, e foi precisamente esta circunstência que, segundo êle, decidiu a vitória. Segundo Justino, o próprio nome de Jesus seria simbólico (significa em hebréico «Deus Salvador»), e teria pertencido a um judeu apenas, antes dêle:Josué, filho de Num, chefe do povo de Israel depois da morte de Moisés. Considera êste argumento tão decisivo, que não hesita em pôr as seguintes palavras na bôca de Trifônio,

Page 153: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

As COMUNIDADES CRISTÃS157que o ouve: «O nome de Josué dado ao filho de Num me dispõe a aceitar isso», isto é, que Jesus era o Cristo, o Messias.Assim, todos os detalhes pseudo-históricos do mito evangélico de Jesus, seu nome inclusive, não fariam mais que confirmar o que os profetas do Antigo Testamento tinham anunciado. Se se tëm em conta que as mais antigas fontes nada dizem, em geral, sôbre a vida terrestre de Jesus, a única conclusão possível é que a «biografia» evangélica do Cristo nãofoi constituída por lembranças relativas a personagem que realmente tivesse existido; ela apenas corresponde, em última análise,a uma escolha de profecias do Antigo Testamento sôbre oMessias esperado, donde resultou sua imagem nos evangelhos.É igualmente característico que, apesar do grande númerodetalhes que coincidem em Justino, e nos evangelhos, êsteautor veja em Jesus um ser antes celeste do que terrestre.Uma das teses essenciais da Apologia é a seguinte: «OVerbo tornou-se carne, tomou o aspecto de um homem, e o nome de Jesus Cristo.» (Apologia, 1, 5.) No Diálogo, Justinodeclara: «Deus engendrou a partir de si mesmo uma fôrça racional nomeada de diversas maneiras: ora Filho, ora Anjo, ora Senhor, ora Verbo.» (Diálogo, cap. 61.) Afirma, dêsse modo, a pré-existência de Jesus, vivendo antes da criação do mundo.Justino conhece apenas um escrito do Nôvo Testamento:O Apocalipse de João. Desenvolvendo suas teses, chama a Jesus: «Cordeiro pascal imolado», «Cordeiro que simboliza os sofrimentos ( . . . ) que aguardavam o Cristo.» (Diálogo, cap. 40.) Encontramos aqui, dêsse modo, um dos elos da evolução gradual do Jesus-Deus, para o Homem-Deus dos evangelhos, permanecendo, ainda em Justino, os traço humanos do Cristo muito mais apagados dos que os traços divinos.A atitude de Justino em relação ao judaísmo é dúplice. De um lado, reconhece sem reservas o Velho Testamento, considera Jeová como Deus-Pai, e acentua que os profetas hebreus eram incomparàvelmente superiores a qualquer. dos filósofos gregos.De outro lado, êste apologista não oculta sua hostiidade contra os judeus enquanto nação, acusa-os de difundir calúnias absurdas contra os cristãos, de maldizer êstes últimos em suas sinagogas etc. Segundo Justino, a lei judaica perdeu sua autoridade depois do advento de Jesus, idéia essa que coincide inteiramente com o espírito das primeiras epístolas paulinianas. Ele emitiu esta importante opinião: « Sabemos que os cristãos de origem pagã são muito mais numerosos e mais zelosos do que os de origem judia.» (Apologia, 1, 83.)Justino parece, contudo, levado a um beco sem saída por esta pergunta repetida por Trifônio: «Mas, se alguém quer

Page 154: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

158A ORIGEM DO CRISTIANISMOviver segundo a lei mosaica e, ao mesmo tempo, crer nesseJesus crucificado e reconhecer que êle é o Cristo enviado por Deus, será que tal indivíduo também poderá ser salvo ?» Depois de muitas hesitações, Justino acaba por dizer que essas pessoas podem ser salvas, com a condição de não exigirem a circuncisão para os cristãos de origem pagã. Aqui, chegamos ao ponto mais vulnerável da argumentação do apologista. Ao fazer essa pergunta, Trifônio tinha em vista os ebionitas, uma das mais importantes seitas judaico-cristãs do período inicial do cristianismo. Justino não se decide a condenar os ebionitas, porque, para sei conseqüente, deveria negar também o Apocalipse. Porém, êle também não os podia defender porque isso teria dado certa vantagem à corrente judaico-cristã, e teria trazido um grande prejuízo para a propagação do cristianismo entre os pagãos. É precisamente por isso que o compromisso por êle proposto foi estigmatizado ulteriormente pela Igreja, como sendo uma heresia.As declarações dos apologistas contra o judaísmo deviam levar inevitàvelmente à elaboração e à consagração da dogmática cristã, dogmática cujos elementos já apresentam contornos bem nítidos nas obras de Justino. Assinalamos já a importância que êle atribuía ao sinal da cruz. Acrescentemos que êle. dava muita importância ao sacramento da eucaristia, e via nêle o «sangue e o corpo» de Jesus. (Apologia, 1. 67.) Faz alusão, também, ao batismo, que ainda chama de «ablução». (Apologia, 1, 61, Diálogo, cap. 13.) Dando-se conta das afinidades entre certos ritos cristãos e os mistérios da religião Mitra que êles imitam, Justino declara que aí se trata de «um ardil do Malígno. . .» (Apologia, 1, 66.) Éle já nos dá um esbôço do credo cristão: «Éle nasceu da Virgem, recebeu o nome de Jesus, foi crucificado e, ressuscitando depois de sua morte, subiu ao céu.» (Apologia, 1, 52.) Menciona a Santíssima Trindade. (Ibidem, 13.) Da ressurreição da carne, fala com certa dúvida: «Nutrimos a esperança de ver reaparecer nossos corpos transformados em pó, julgando que não há nada impossível para Deus.» Éste homem, que se julgava filósofo, permitia-se admitir semelhante coisa, contrária ao bom senso e à evidência, invocando a onipotência de Deus. Um dos antigos críticos da nova religião notou, com muito espírito, a êsse respeito: «O Altíssimo não pode fazer com que dois mais dois sejam cinco, ao invés de quatro! »Os escritos de Justino foram um grande passo no caminho do desenvolvimento da dogmática e do ritual cristãos. Se bem que inacabada, a nova doutrina nêle aparece já quase formada.- O estabelecimento dos dogmas do cristianismo implicava inevitàvelmente na sua ruptura não apenas com o judaísmo, mas, também, com as seitas judaico-cristãs. É por isso que

Page 155: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÃS..159não nos devemos espantar com o nascimento das heresias no decorrer dêsse processo. E Justino não se limita apenas a enumerar as heresias em suas obras. Mostra-se francamente hostil em relação a elas. Além dos ebionitas, dos quais não refere o nome aliás, Justino faz constantes alusões aos marciofitas, aos valentinianos, aos saturnilianos etc. (Diálogos, 35, Apologia, 1, 25, 38.) Confessa que muitos cristãos seguem o heresiarca Márcio.Os temas escatológicos ocupam grande espaço nos escritos de Justino. Fala muitas vêzes do «último dia», crê na Jerusalém celeste, à semelhança do autor do Apocalipse, e convida os cristãos, de conformidade com as esperas quiliásticas, a se prepararem para o reino milenar de Deus, escrevendo no Diálogo: «Com outros cristãos lúcidos, sei que os cadáveres ressuscitarão, e que o milênio terá lugar na Jerusalém que se edificará gloriosa e bela.» Ële nota, contudo, que o quiliasma não é professado por todos os cristãos. Contendo muitas das idéias próprias do cristianismo original, esta crença foi condenada posteriormente pela Igreja.Justino foi o primeiro a falar dos dois adventos do Senhor, um já ocorrido, em que o Cristo desempenha o papel de um. mártir impotente, conspurcado, crucificado, e o outro, que é esperado, quando Jesus descerá do céu, fulgurante de glória. (Diálogo, 110.) O apologista foi levado a expressar-se dêsse modo pelo desejo de conciliar as afirmações contraditórias dos profetas do Antigo Testamento, que descreviam o futuro Messias, ora como vencedor, ora como vítima.Os escritos de Justino fornecem informações importantes sôbre a estrutura e a composição das comunidades cristãs. Na parte final de sua primeira Apologia, comunica que em tôdas as cidades os cristãos se reúnem aos domingos para celebrar êsse dia (e não mais o dia de sábado). E sàmente em Roma que os fiéis do Cristo se ajuntam por quarteirões, sendo a comunidade desta cidade, segundo parece, a única bastante numerosa. Nas outras cidades importantes, as comunidades cristãs se agrupam no mesmo lugar. As informações de Justino deixam entrever igualmente que os cristãos se encontravam então em uma situação semilegal. Durante suas assembléias, pronunciavam orações, comungavam com pão e vinho, ouviam a leitura das santas escrituras etc. Justino fala por essa ocasião dos diáconos encarregados dos negócios administrativos das comunidades e dos anciãos cuja missão consistia em dirigir os diáconos e presidir as reuniões dos crentes. Éste escritor ignora ainda, fato significativo, o episcopado. Quanto aos anciãos a que se refere, tudo indica que se tratava de personagens que eram eleitos.

Page 156: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

160A ORIGEM DO CRISTIANISMONotemos, para terminar, que, diferentemente das epístolas paulinianas, os escritos de Justino guardam um silêncio quase que completo sôbre os escravos. Sàmente ao terminar o Diálogo, é que êle declara, de passagem, que «os homens de todos os países, livres ou escravos, se fôrem adeptos do Cristo), saberão que com êle estarão no reino do céu, e beneficiar-se-ão de uma herança eterna e imperecível. » (Diálogo, cap. 139.) Assim, no que concerne à escravidão, êste apologista, que desempenhou um papel tão importante durante o período de constitução do cristianismo, professa, desde o comêço, o ponto de vista que vai triunfar em seguida no seio da Igreja. Em lugar da liberdade e da igualdade na Terra, promete aos escravos a beatitude no outro mundo...A obra de Justino marca uma nova fase no desenvolvimento da ideologia cristã. Nos meados do século II, o cristianismo já aparece como uma religião completamente separada do judaísmo, possuindo seus dogmas, seu próprio ritual e sua organização, se bem que esta última ainda esteja longe do grau de centralização que ela irá adquirir posteriormente. Os escritos de Justino são de grande importância, e esclarecem as fontes do mito evangélico de Jesus. Sob êste aspecto, eles precedem imediatamente os evangelhos canônicos.O primeiro século do cristianismo foi um período excepcionalmente importante da sua história. De seita judaica, transformou-se no decorrer de uma centena de anos em uma religião independente, quase definitivamente constituída, e contando com numerosos prosélitos. Foi durante êsse lapso de tempo que o mito do Deus tornado homem começou a se formar e a evoluir. De Ser celeste (Apocalipse de João e Didaquê), e passando por uma série de fases intermediárias (epístolas de Paulo), Jesus toma os traços do divino carpinteiro de Nazaré, que resgatou sôbre a cruz os pecados dos homens. (Justino.) N0E começos da segunda metade do século II, a «biografia»•terrestre do Cristo, fundada nas profecias do Antigo Testamento, foi, enfim, teminada nos evangelhos. Nesse momento, começam a se formar os dogmas e o ritual cristãos (Dida quê), a escatologia cristã se elabora, transferindo para o outro mundo e para um futuro indeterminado a punição dos ímpios e a recompensa dos justos. Tal evolução de um dos temas principais do cristianismo primitivo embotava sua acuidade política, e foi a premissa ideológica que facilitou em seguida a acomo. dação da Igreja, com o poder imperial.A composição e a estrutura das comunidades cristãs sofreram nessa época importantes modificações. Puramente judaicas

Page 157: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÃS...161no comêço, quanto ao seu elemento étnico (Apocalipse de João, Didaquê), essas comunidades são cada vez mais completadas por fiéis de origem pagã (epístolas de Paulo), até o momento em que Justino pôde, enfim, constatar que os pagãos eram muito mais numerosos. No decorrer dêste período, o cristianismo mantém-se como religião dos oprimidos e dos deserdados, fato êste que é confirmado por tôdas as fontes da época. Os cristãos pertencentes às classes superiores eram então muito raros. Quanto às pessoas simplesmente livres, parece que seu número nas comunidades cristãs começou a aumentar apenas no fim do período que examinamos.Êste lapso de tempo se caracteriza pela ausência da igreja, competindo o papel dirigente nas comunidades cristãs aos profetas iluminados. (Dzaa quê e primeiras epístolas de Paulo.) O aparecimento dos bispos e a constituição da futura hierarquia clerical começam sõmente nos meados do século II. Não se constatam ainda, então, ligações sistemáticas e organizadas entre as diversas comunidades, cujos contatos são assegurados apenas pelas viagens ocasionais dos pregadores errantes. Era isso muito natural, por causa da luta encarniçada que existia entre as várias seitas da nova religião. As bases do futuro cânone só puderam ser lançadas, e a Igreja só pôde se constituir ao cabo de um longo período de conflitos e disputas exacerbadas.O cristianismo renuncia ràpidamente à sua oposição às autoridades, e se resigna com a escravidão. Em lugat de reclamar a libertação real dos escravos, o que teria estado de acôrdo com sua proclamação da igualdade de todos os homens, independentemente de sua origem e de sua situação social, êle se limita a acentuar que, se -os homens são iguais, isso acontece por êles serem, todos, pecadores, e promete o fim da opressão e da escravidão não neste inundo, mas no outro. A atitude da religião cristã em relação à riqueza evolui no mesmo sentido. O desprêzo dos bens terrenos cede lugar, pouco a pouco, aos apelos à caridade, isto é, à esmola.Que foi que favoreceu a difusão do cristianismo durante êste período? As causas disso diferem muito das que asseguram o triunfo do nôvo culto nos começos do século IV. O cristianismo do tempo de Constantino, com sua organização clerical e seus dogmas fixados no Nôvo Testamento, distinguia-se muito daquele que aparece nas fontes citadas anteriormente. As causas do compromisso entre a Igreja e o Império Romano no século IV nada têm a ver com as causas que permitiram aõ cristianismo conquistar os espíritos durante os primeiros séculos da nossa era.A principal razão do êxito do cristianismo durante sua fase tnicial foi a seguinte: as idéias por êle proclamadas correspondiam ao máximo ao estado de espírito das massas na época da desa

Page 158: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

162A ORIGEM DO CRISTIANISMOgregação do sistema escravagista. Apesar das tendências conciliadoras do cristianismo, êle era, então, entre tôda as religiões, a que protestava da maneira mais violenta contra a ordem escravagista, e contra a cultura antiga. A luta ativa contra o poderoso aparato do Império Romano, baseado na escravidão, não apresentava qualquer perspectiva real; assistia-se à difusão do misticismo, da indiferença pela coisa pública, do desejo de refugiar-se na vida privada, tendências que correspondiam aos cultos orientais. Na competição com as religiões rivais, era o cristianismo que tinha as maiores probabilidades de vencer, e isso porque, pelo menos nos seus começos, se distinguia de tôdas as outras por sua oposição à ordem antiga. Produto da desagregação do sistema escravagista, a religião cristã não podia utilizar em seu proveito a agravação da crise dêste último.Diferentemente das outras religiões, o cristianismo se eudereçava em primeiro lugar aos deserdados. Por causa disso, foi êle freqüentemente tratado com escárneo pelos escritores da Antigüidade, porém longe de ser uma fraqueza, isso constituiu seu lado forte. Foi justamente o apoio de que gozava o cristianismo junto às massas oprimidas que obrigou, no fim das contas, os imperadores romanos a reconhecerem a nova religião, com o fim de utilizar sua influência para revigorar seu poder.O êxito obtido pelo cristianismo entre as massas foi determinado pela solução, se bem que ilusória, que êle indicava às massas submetidas a sofrimentos sem nome. Nas condições concretas dos séculos 1 e II, enquanto não existia solução real para a situação calamitosa da população, a exaltante promessa do reino de Deus não podia deixar de encontrar um eco profundo. Quanto mais piorava o estado das camadas laboriosas, mais os apelos escatológicos do cristianismo se impunham às multidões.As afirmações dos apóstolos cristãos sôbre a igualdade de «todos em Cristo», tanto os judeus, como os gregos, tanto os escravos, como os homens livres, não contribuiram menos para a difusão do cristianismo entre os escravos e os pobres.A nova religião não reivindicava a libertação dos escravos, mas êstes sentiam-se iguais aos homens livres nas comunidades cristãs. Apesar do caráter legendário das listas de bispos romanos, não é por acaso que os primeiros tinham nomes de escravos. Isto quer dizer que os fiéis desta condição podiam ascender nas comunidades cristãs a postos inacessíveis para êles em outro meio. Não se pode duvidar de que esta igualdade entre crentes exercia também uma grande atração sôbre as massas laboriosas.Outra razão do êxito da nova religião consistia no fato de que ela não se endereçava a tal ou qual grupo étnico, mas a

Page 159: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

AS COMUNIDADES CRISTÃS...163todos os homens sem exceção, coisa particularmente importante no Império Romano, que era multinacional. Isto levou, por outro lado, o cristianismo a renunciar às cerimônias rituais e aos sacrifícios. Os elementos do ritual descritos na Didaquê foram estabelecidos 1nicamente para marcar a diferença entre a nova religião e o judaísmo, o que favorecia também a propagação do cristianismo entre os pagãos.O cristianismo soube, finalmente, utilizar ao máximo as tendências da época para o sincretismo. Religião nova, independente dos cultos já formados, ela tomou emprestado dêstes seus elementos mais atuantes sôbre as multidões, donde a preeminência que acabou adquirindo sôbre tôdas as religiões rivais.É o conjunto dêsses fatôres que explica a popularidade do cristianismo durante o primeiro século da sua existência.

Page 160: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

CAPÍTULO VIO CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II1. O IMPËRIO ROMANO SOB MARCO AURLIO E CÔMODOA partir dos meados do século II e durante alguns decênios sàmente, a Igreja episcopal se fortaleceu, os evangelhos foram compostos, o cânone do Nôvo Testamento estava a ponto de ser constituído. E isso no decorrer de uma das mais ásperas lutas, não apenas contra outras religiões, mas, também, contra diversas tendências cristãs. Nesta época, o mito de Jesus de Nazaré, o Homem-Deus, assumiu sua forma definitiva. Exposta nos evangelhos, canonizada pela Igreja, esta lenda não iria mais sofrer qualquer modificação. A coincidência de tôdas essas circunstâncias autoriza a dizer que foi durante êste período, relativamente breve, que o cristianismo se cristalizou, tanto do ponto de vista ideológico, como quanto às suas formas de organização.O rápido desenvolvimento da religião cristã nesta época foi determinado por uma série de razões, das quais uma das principais foi o agravamento das contradições inerentes ao Império Romano, um sensível enfraquecimento do poder imperial. No comêço de nossa era, Roma não tinha sofrido, durante século e meio, qualquer invasão estrangeira que oferecesse algum perigo. As campanhas levadas a cabo pelo Império não foram tão exaustivas quanto as operações militares sob a República. Alguns movimentos de libertação nacional, tais como a Guerra dos judeus, por exemplo, desenrolaram-se nas regiões fronteiriças, mas foram fàcilmente dominadas pelas legiões romanas. Os conflitos entre pretendentes ao título de Imperador eram raros; o único verdadeiramente importante foi a guerra civil do ano 68 a 69. Ésses choques, sem o concurso das massas, terminavam depois de uma ou duas batalhas. A Pax Romana, proclamada pelo poder imperial, assegurou, assim, uma longa trégua às classes possuidoras do Império.Mas as contradições políticas e sociais que tinham levado à instauração do regime imperial não foram realmente resolvidas, foram recalcadas apenas. O acesso de ricos senhores de escravos à categoria da nobreza senatorial romana ampliou a base social do Império sem, todavia, abrandar sensivelmente a exploração das províncias. O fortalecimento do aparêlho administrativo determinava o aumento dos impostos que sangravam as cidades165

Page 161: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

166A ORIGEM DO CRISTIANISMOe os campos. A política de nivelamento praticada pelo poderimperial, o crescimento das concentrações urbanas de tipo antigo,a introdução do direito romano nas províncias, e, em seguida,a ampliação da prática da usura foram outros tantos fatôresque contribuíram para a rápida desaparição das sobrevivênciaspatriarcais, cujo papel era ainda grande em muitas regiões doImpério. Ao mesmo tempo que as relações escravagistas,assistia-se à difusão da opressão e da arbitrariedade, e cresciaa ruma das massas laboriosas, O desenvolvimento da produçãomercantil conduzia à intensificação da exploração do trabalho. Mas, se os romanos se beneficiavam de uma trégua, umavez que os combates cessaram quase que totalmente nas fronteiras do Império, exceptuadas as campanhas de Trajano contra os dácios no comêço do século II, os povos vizinhos tiravam igualmente partido dessa situação, desenvolviam suas fôrças produtivas, formavam federações. Durante um século, a relação das fôrças entre o Império Romano e os países vizinhos se modificou inegàvelmente em detrimento do primeiro.As contradições, tanto internas como externas, assumiram um caráter particularmente grave sob Marco Aurélio, êsse « sábio entronizado», que reinou do ano 161 ao ano 180. Dêsses 19 anos, 17 foram marcados por guerras contínuas. Inicial- mente, foram os partas que irromperam nas províncias orientais do Império, e, quebrando a resistência das guarnições romanas, prosseguiram em sua marcha até a Síria. Para conter, e, depois, esmagar o adversário, foi necessário enviar ao Oriente quase tôdas as legiões estacionadas no Reno e no Denúbio. A guerra com os partas durou cinco anos e se transformou em um conflito ainda mais longo e mais perigoso com os marcomanos e outras tribos germânicas, e também com as tribos trácias e sarmatas do Danúbio, conflito êsse que durou até a morte de Marco Aurélio. Esta guerra devastou, não as longínqüas províncias orientais, como se deu anteriormente, mas os centros vitais do Império, inclusive a península itálica que, durante dois séculos e meio, não tinha sido arena de qualquer invasão. Os historiadores da Roma antiga comparam a guerra contra os marcomanos à invasão da Itália por Anibal que pôs em perigo a própria existência do Estado Romano. Esta guerra exigiu tal tensão de tôdas as fôrças, que as autoridades se viram mesmo obrigadas a recrutar gladiadores e escravos. Por outro lado, uma epidemia de peste, trazida do Oriente, vitimou o próprio Marco Aurélio, e causou perdas imensas.Foi sob o reinado dêste imperador que as guerras contra outros povos coincidem, pela primeira vez, com o aparecimento dos movimentos de libertação. No ano de 172, explodiu no Egito a revolta dos bucoles. Destruindo total e râpidamente tôda uma legião romana, êles puseram em perigo Alexandria,

Page 162: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SéCULO 11 167capital egípcia. Avidius Cassius, um dos maiores generais romanos da época, só os pôde conter com duros esforços. Quase na mesma época desta insurreição, outra estalou no norte da África, na Mauritânia. Os rebeldes conseguiram ocupar quase todo o território de sua província e, atravessando o estreito de Gibraltar, devastaram várias regiões da Espanha. No ano de 175, teve lugar a rebelião dirigida por aquêle mesmo Cassius que, nesse meio tempo, concebera o plano de se fazer proclamar imperador. O Govêrno Romano só conseguiu esmagar esta revolta depois de uma luta encarniçada.Todos êsses acontecimentos comprometeram terrivelmenteo prestígio do poder imperial. Durante o reinado do filho de Marco Aurélio, Cômodo (180-192), as relações entre o Senado, que representava os interêsses da nobreza escravagista, e o Imperador, se envenenaram consideràvelmente. Até então, os Antoninos tinham procurado governar o Império apoiando-se no Senado, para dar, pelo menos, a impressão de que a antiga ordem constitucional era observada, mas Cômodo, ao contrário, deu preponderância às tendências absolutistas, e o poder imperial se foi transformando em ditadura militar aberta. Cômodo se apoiava principalmente em sua guarda pretoriana. No ano de 192, os conspiradores conseguiram matá-lo, e, com êle, extinguiu-se a dinastia dos Antoninos, que foi substituída pela dos Severos, depois de uma curta guerra civil.As pesadas conseqüências de tôdas essas guerras, as revoltas populares e a agravação das contradições no seio das classes dominantes provocaram o enfraquecimento do poder imperial e exigiram, com urgência, a ampliação e o fortalecimento de sua base política. Por essa ocasião, alguns meios já viam no cristianismo um sustentáculo potencial para o Império, é o que Celso deixa transparecer claramente em seu Discurso Verdadeiro. Quanto ao cristianismo, o crescimento ininterrupto do número de seus adeptos no decorrer do século II, assim como a lógica de sua evolução, o impeliam inevitàvelmente para a reconciliação com o poder imperial.Os elementos das camadas possuidoras, das quais uma parte, abalada pela crise, aderira à nova fé, começam então a desempenhar um papel cada vez mais importante nas comunidades cristãsque não cessam de aumentar. É das suas fileiras precisamente que saíam os bispos e outras personagens do clero em via de formação. A constituição do episcopado acelerou a aproximação entre a Igreja e o poder. De sorte que tôda uma série de circunstâncias agiam, tanto de um lado como do outro, em favor da aliança entre o cristianismo, e o Império.Notemos, contudo, que muitos obstáculos se opunham ainda ao reconhecimento do Império pela Igreja e à santificação do poder imperial por sua autoridade. E preciso não esquecer que

Page 163: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

168A ORIGEM DO CRISTIANISMOnos meados do século II, menos de cem anos tinham decorrido désde o aparecimento do cristianismo primitivo anunciandø a queda próxima da «grande prostituída, Babilônia». A popularidade da nova religião, sobretudo entre os oprimidos e os deserdados, tornavam-na também muito suspeita aos olhos dos nobres. Durante seu período inicial, o cristianismo tinha dado maior relêvo às promessas messiânicas e escatológicas, e seu programa social era nitidamente oposto ao regime.Além disso, apesar do rápido crescimento do seu número, seus fiéis eram ainda numèricamente inferiores aos adoradores de outros cultos, do mitraísmo por exemplo.Na situação histórica concreta da segunda metade do s&ulo II, poderia dar-se, no melhor dos casos, apenas uma conciliação entre a Igreja, cada vez mais poderosa, e o Império Romano, cada vez mais fraco, e não a transformação do cristianismo em religião do Estado. Ambas as partes buscavam um ponto de compreensão. As declarações dos teólogos sôbre a impossibilidade, em princípio, de conciliar o cristianismo como Império «pagão», suas descrições das brutais perseguições de que teriam sido vítimas os cristãos durante o século II são muito exageradas, e as fontes de que se dispõe não as confirmam. E certo que em algumas cidades deram-se choques entre as autoridades romanas e os comunidades cristãs. Um conflito dêsse gênero ocorreu sob Marco Aurélio, em 177, em Lugdunum (nome latino de Lyon) e foi descrito por Eusébio. (Ob. cit., V-1.) Porém, o clima geral era antes de tolerância diante tanto do cristianismo, como de tôdas as outras religiões. Não foi por acaso que, às vésperas do século III, o apologista Tertuliano qualificou Marco Aurélio de «defensor dos cristãos». (Apologétka, V.)Apresentaremos mais adiante uma série de outros testemunhos sôbre o fato de que as comunidades cristãs eram legais em muitas das cidades do Império Romano.2. O JESUS EVAGLICODurante a primeira metade do século II, verifica-se uma excessiva pobreza de fontes cristãs e um silêncio quase total dos escritores greco-romanos sôbre a nova religião, porém esta situação se modifica nos começos da segunda metade dêsse século. Os principais documentos relativos à história do cristianismo, que datam dêsses períodos, são: 1) os livros menos antigõs dc Nôvo Testamento (os evangelhos e os Atos dos Apóstolos); 2) as obras de Irineu e de Hermas; 3) os escritos de autores não cristãos (Celso e Luciano). Com tal abundância de fontes, podemos apreender não sômente a tendência fundamental da evolução do cristianismo, mas ainda a luta, em seu seio, das

Page 164: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO a169diversas correntes, freqüentemente contraditórias e hostis umas às outras. Entre êsses documentos, os evangelhos são os que devem ocupar, em primeiro lugar, nossa atenção, uma vez que o mito de Jesus, Homem-Deus, encontra nêles sua mais completa expressão, o que explica, doutra parte, o considerável papel que êles desempenharam no desenvolvimento ulterior da ideologia cristã.No capítulo consagrado às fontes, já assinalamos que os evangelhos canônicos constituem uma ínfima parte apenas das numerosas narrações sôbre a vida de Jesus, que estava em voga nas comunidades cristãs primitivas. Êsses evangelhos não canônicos contavam, cada um a seu modo, a doutrina e as peripécias da vida terrestre do pretenso fundador do cristianismo. Não são êles relatos de testemunhas oculares. Foram todos compostos pelo menos um século após os acontecimentos que pretendem descrever. Aliás, não se propunham êles a finalidade de transmitir à posteridade o relato conseqüente de acontecimentos reais: escritos religiosos eram destinados a ser ouvidos durante as assembléias dos crentes. Centralizam a atenção não sôbre os diferentes aspectos da «biografia» terrestre do Cristo, mas sôbre os «milagres» realizados por êle, e sôbre seus ensinamentos.O pesquisador objetivo, desejoso de extrair dos evangelhos canônicos o máximo de dados para a reconstituição da história do cristianismo primitivo, deve, antes de tudo, estabelecer a data do seu aparecimento. A tradição da Igreja faz remontar os evangelhos aos meados do século 1, mas tôda uma série de considerações torna esta tese inaceitável. Já mostramos anteriormente que os documentos mais antigos da literatura cristã nada dizem sôbre a vida terrestre de Jesus, e que só se encontram referências aos evangelhos, nessa literatura, no segundo quarto do século II. Se os evangelhos canônicos remontassem realmente aos meados do século 1 e fôssem, portanto, anteriores às epístolas do Nôvo Testamento, a imagem de Jesus, nestas últimas, não se encontraria em contradição com a versão evangélica. As epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo não citam, por exemplo, os provérbios e as parábolas dos evangelhos, o que teria sido impossível, se êstes últimos já existissem na época da• composição das epístolas. Endereçando-se a seus adversários, o autor das mensagens paulinianas não teria deixado, se conhecesse de fatos os evangelhos, de reproduzir as «palavras do Senhor», como argumentos em apoio às suas afirmações. A ausência nas epístolas paulinianas de referências às palavras pronunciadas por Jesus nos evangelhos é uma das mais inatacáveis provas de que êstes foram compostos depois daquelas.Os evangélicos canônicos abundam em incoerências, tanto do ponto de vista histórico, como do geográfico; êles estão

Page 165: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

170A ORIGEM DO CRISTIANISMOcheios de contradições. Os autores dêsses escritos, oriundos da Palestina, segundo a tradição da Igreja, não conheciam, com tôda a evidência, os lugares que descrevem. Mateus, por exemplo, fala do «Mar da Galiléia» (XV, 29) e Marcos diz que «grandes ondas» nêle se levantavam (IV, 37), porém, na realidade, tal mar é apenas o pequeno Lago de Genesareth. Segundo os evangelistas, levava-se a pastar, na Palestina, enormes rebanhos de porcos, de, aproximadamente, duas mil cabeças (Marcos, V, 13; Mateus, VIII, 30 etc.), mas todo mundo sabe que os judeus consideravam êsses animais impuros, e que não õs comiam. Em Mateus, a mostarda, essa pequena planta anual, é «n1aior que os legumes e torna-se uma árvore, de sorte que as aves do céu vêm se aninhar nos seus ramos.» (Mateus, XIII, 32.) Grande número de incoerências e de contradições dêsse gênero já tinham sido apontadas na Antigüidade por Porfiro, crítico do cristianismo.Os poucos conhecimentos sôbre a Palestina, que os autores dos evangelhos revelam, não lhes vieram de observações pessoais, mas da leitura do Antigo Testamento no qual êles se mostram, aliás, muito versados. Vê-se, por isso, que eram judeus da diáspora. Familiarizados com a literatura religiosa judia e possuindo noções sôbre a Palestina, absorvidas nos livros sagrados, êles a tomaram como o teatro das atividades do fundador lendário do cristianismo: segundo o dogma, o Cristo devia nascer e agir na Palestina, devendo sua biografia confirmar ao pé da letra as predições dos antigos profetas hebreus sôbre a vinda do Messias.Diferentemente dos teólogos católicos que se prendem à letra dos evangelhos, os protestantes rejeitam as contradições flagrantes e as inexatidões dêsses escritos, e procuram salvar o que lhes parece possível: a versão da existência de Jesus enquanto personagem histórica cuja predicação serviu de base à religião crístã. Afirmam, e com êles muitos dos historiadores burgueses do cristianismo, que, se não se admitisse a tese sôbre a existência de Jesus, não seria possível explicar a coincidência das informações a seu respeito nos primeiros documentos cristãos, nem o aparecimento da religião cristã. Lembram, em apoio de sua tese, o exemplo de Maomé, fundador do islamismo e personagem histórico bastante real. Se se admite isto quanto a êste, por que não se há de admitir também, dizem êles, a existência do fundador do cristianismo, que pregou e foi crucificado na Palestina? Alguns pesquisa- dores progressistas, como A. Robertson, professam aproximadamente êsse mesmo ponto de vista, apresentando Jesus como um chefe revolucionário, que tombou na luta contra o poder dos ricos.

Page 166: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

o CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II171Notemos, neste ponto, que a resposta à pergunta para se saber se o predicaclor executado em Jerusalém no comêço de nossa era existiu ou não, não deve ser considerada como o principal critério da análise marxista ou não marxista do cristianismo primitivo, tal como se faz freqüentemente nas obras de vulgarização sôbre êste assunto. Basta dizer que alguns partidários ativos da teoria mitológica (Arthur Drews, Bem jamin Smith) negam a existência real de Jesus, com o único objetivo de purificar o cristianismo, à semelhança dos representantes da Escola Teológica de Tubingue, de suas incoerências mais evidentes, e de, assim, torná-lo menos vulnerável à crítica racionalista. Substituem os velhos preconceitos por «preconceitos muito novos e também mais repugnantes e mais infames.» Foi por isso que Lenine condenou tão categ&icamente A. Drews, a respeito do qual afirmou: «É um reacionário declarado, consciente. . . »1 Ao mesmo tempo, Lenine mostrava aos comunistas a necessidadá da aliança com a parte progressista dos historiadores burgueses do cristianismo.Assinalemos, por outro lado, que Friedrich Engeis, em tôdas as suas obras sôbre o cristianismo primitivo, nunca propôs a questão da existência histórica de Jesus. A. Robertson, citado acima, admite, por seu lado, o caráter histórico do fundador do cristianismo, o que não o impede de procurar resolver o problema da origem desta religião, partindo de posições marxistas.A tarefa primordial da análise marxista do problema da origem do cristianismo consiste em estudar as causas concretas, reais, históricas do nascimento da religião cristã, em estudar as modificações sofridas pela ideologia cristã, fundando-se na evolução social e política do Império Romano, em determinar as raízes de classe dos diversos agrupamentos no seio do cristianismo, em apresentar, enfim, a crítica dos princípios sociais desta religião que «justificaram a escravidão antiga, enaltecendo a servidão medieval, e que se julgam também na necessidade de defender a opressão do proletariado, ainda mesmo que o façam com certo ar de aflição.»2 Isto não significa que o pesquisador marxista seja indiferente ao problema de se saber se Jesus existiu realmente: sua solução à luz da ciência histórica dá um golpe fulminante nos dogmas da Igreja.Depois destas observações preliminares, tratemos de avaliar os principais argumentos a favor e contra a tese da historicidade de Jesus. Seus partidários acham que, sem o reconhecimento de um núcleo real no relato da vida de Jesus, não

1 V. LENINE: Du Rôle da Mate’rialisrne Mi1tant (1922). Ver Karl Marx ei sa Doctrine, Ëd. Sociales, Paris, 1953, pág. 88.2 K. MARX e F. ENGELS: Sue la Religion, d. Sociales, Paris,1960, pág. 22.

Page 167: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

172A ORIGEM DO CEISTIANISMOse poderia compreender a gênese da tradição evangélica, e adiantam o fato de que os adversários do cristianismo, na Antigüidade, tanto do lado greco-romano, como do judaico, não emitiram a menor dúvida a êsse respeito.Antes de tudo, esta argumentação peca pelo seu método de pesquisa, radicalmente falso. Os partidários da historicidade de Jesus esforçaram-se para depurar os escritos cristãos de que dispomos de suas contradições mais evidentes e, tendo executado essa tarefa mais ou menos bem, pretendem, depois disso, que aquilo que sobrou é uma fonte digna de confiança. Procedendo dêsse modo pode-se «demonstrar», e até mesmo com mais êxito, que personagens da mitologia grega tais como Hércules e Teseu, ou Rômulo, fundador lendário de Roma, e outras figuras também «históricas», existiram realmente. Aliás, no mundo antigo, acreditava-se nessas personagens tão firmemente quanto os meios cristãos dos nossos dias acreditam na realidade de Jesus Cristo.Os teólogos protestantes, como o nota com justeza S. Lublinski, «admitem simplesmente a existência terrestre de Jesus como uma premissa, e esperam restaurar sua biografia excluindo dos evangelhos os traços mitológicos e outros acessórios. Porém, ninguém pode assegurar que tais traços não fôssem, desde o comêço, próprios da imagem de Jesus, uma vez que, nos evangelhos, não é de uma criatura humana que se trata, mas de um Homem-Deus. Diante de semelhante ousadia (Verwegenheii), a hipótese do adversário, qualquer que ela seja, empalidece. »3No centro dos evangelhos se encontra o relato da paixão e da ressurreição do Cristo. O resto não passa de acréscimo. A pregação cristã se dedicava essencialmente a comunicar a «boa nova», anunciando que Jesus resgatou os pecados dos homens com sua morte, e subiu ao céu, para se assentar à «direita de Deus. » A «biografia» do Cristo nos evangelhos é apenas uma urdidura de profecias do Velho Testamento e narrações de «milagres» por êle realizados; se se faz abstração das profecias e dessas narrações destrói-se aquela urdidura. Visto que, nos escritos cristãos mais antigos, Jesus figura não na qualidade de homem, mas na de divindade, não é claro que o relato dêsses milagres representa nos evangelhos o primeiro núcleo, enquanto que os detalhes biográficos foram acrescentados posteriormente?As alusões a Jesus nas mais antigas fontes do cristianismo e os detalhes que foram acrescentando no decorrer dos anos à sua «biografia» não podem ser explicados pela sua existência

3 S. LUBLINSKI: Die Entsiehung des Chyistentums aus dee Antiken Kultur, Jena, 191O pág. 3.

Page 168: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 173real, se assim não fôsse êsses detalhes teriam sido expostos desde o comêço naqueles escritos, Porém, foi o contrário que aconteceu; o cristianismo sofreu uma longa evolução no decorrer do primeiro século de sua existência, notadamente, a imagem de Jesu que, do Cordeiro do Apocalipse de João, foi se transformando no Homem-Deus dos evangelhos. E preciso não esquecer também que a questão da existência de Jesus nunca foi puramente teórica. Ela sempre interessou à Igreja, que monopolizou, durante séculos, os documentos antigos e o estudo dêles, não recuando diante de qualquer falsificação ad majorem Dei gloriam, pois, para a Igreja, a demonstração da historicidade de Jesus sempre foi uma questão de vida, ou de morte. Um décimo apenas dos evangelhos mencionados pelos antigos autores chegou até nós; a maior parte dos outros foi destruída pela Igreja triunfante, no século IV. Basta constatar isto, para se compreender que só foram conservados os textos conformes com a versão eclesiástica da vida de Jesus.A relativa abundância de informações sôbre Jesus em uma só e mesma fonte não pode também servir de prova de sua existência histórica, pois esta fonte mesma torna-se pouco segura, porquanto o saeculi silentium, o mutismo dos contemporâneos, dos autores judeus e greco-romanos do século 1 sôbre Jesus, constitui uma argumento muito forte contra a tese da sua historicidade.Sob êste aspecto, o paralelo entre Jesus e o fundador do islamismo é perfeitamente legítimo. Se não tivéssemos outras informações sôbre as atividades de Maomé além das do Corflo e dos relatos dos seus milagres, se o fato da sua existência não fôsse confirmado por fontes bizantinas da época, encontrar-se-iam muitos historiadores dispostos a considerá-lo como personagem real? Ë ainda muito importante não esquecer que, segundo a tradição muçulmana, Maomé é apenas um grande profeta, portanto, um ser humano, enquanto que, para o cristianismo, o Cristo é Deus. A realidade de Jesus é tão pouco demonstrada, como a de Buda.A fé dos antigos cristãos na divindade do Cristo é também um argumento irrefutável contra a suposição de que êle existiu. Os primeiros escritos do cristianismo, tais como o Apocalipse de João, as mais antigas epístolas paulinianas etc., ignoram a vida terrestre de Jesus.Ele aparece nêles na qualidade de um ser sobrenatural. Ora, é precisamente nesses escritos que deveriam ter sido conservadas as mais vivas recordações sôbre a vida do fundador do cristianismo.Tôdas essas razões autorizam a negar aos evangelhos canônicos a qualidade de fontes válidas para a «biografia» de Jesus. Isto não significa que neguemos seu valor para o estudo da

Page 169: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

174A ORIGEM DO CRISTIANISMOideologia cristã a partir da segunda metade do século II, e, notadamente, para o estudo da história da constituição definitiva do mito de Jesus. Dito de outro modo: os evangelhos não fornecem qualquer argumento válido em apoio da tese sôbre a divinização do Jesus-Homem; fornecem, ao contrário, grande número de argumentos a favor da transformação do Jesus-Deus, em homem. Comparando-se os sinóticos, com as passagens correspondentes dos mais antigos escritos cristãos, evidencia-se a última fase da gênese do mito em questão, que é um extravagante emaranhado de elementos messiânicos judaicos, e de empréstimos de diversos cultos orientais de deuses mortos e ressuscitados. Diferentemente dos primeiros escritos cristãos, os evangelhos nos permitem seguir o processo de elaboração do ritual cristão.Os dados sôbre a «vida» de Jesus, comunicados pelos evangelhos, podem ser divididos em três grupos. Ao primeiro, pertencem as citações das palavras dos profetas do Antigo Testamento, que são apresentadas à guisa de «argumentos». Ao segundo, as descrições dos milagres e, particularmente, das curas efetuadas pelo Cristo, «dados» êstes que têm lugar de destaque nos evangelhos. Ao terceiro, enfim, os episódios de sua morte, e da sua ressurreição. Para penetrar no laboratório dos mitos cristãos, procuremos, antes de tudo, analisár o primeiro e o terceiro grupo dessas «informações», tais como as encontramos, por exemplo, no Evangelho Segundo Mateus, que é o de maior autoridade para a Igreja.No primeiro capítulo, Mateus descreve o nascimento de jesus, apresentando, em primeiro lugar, a genealogia do fundador lendário da religião cristã. Segundo os cálculos do evangelista, quatorze gerações sucederam-se, desde Abraão, até David, outras tantas, desde David, até o cativeiro babilônico, e mais outras tantas, dêste cativeiro, até Cristo. O primeiro capítulo trata no final da Imaculada Conceição, e Mateus não esquece, naturalmente, de se referir a êsse respeito ao profeta Isaías: «Eis que a virgem ficará grávida, dará à luz um filho, e dar-lhe-ão o nome de Emanuel.» (Mateus, 1, 23.)Os cálculos genealógicos de Mateus visam a um objetivo bem determinado, o de demonstrar, de acôrdo com o messianismo judaico ortodoxo, que Jesus era um descendente direto do Rei David. A divisão da história dos hebreus em três períodos iguais: até o Rei David, até a destruição do primeiro templo de Jeová, até Cristo, deveria servir de prova suplementar do papel messiânico de Jesus. As quatorze gerações compreendidas em cada período não se encontram aí por acaso, pois quatorze é o dôbro de sete, e 7 era um número sagrado entre os antigos hebreus.

Page 170: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SéCULO II 175A inconsistência total dessa genealogia é evidente. Mesmo omitindo-se o fato de que ela contradiz aquela, não menos gratuita, dada por Lucas, ela não se mantém de pé, do ponto de vista da lógica mais elementar. Não se poderia dizer, por outro lado, que ela atesta a descendência de Jesus em linha reta de David, uma vez que é José, espôso de Maria, que tinha por ancestral o Rei David, enquanto que, segundo Mateus, Jesus nasceu não de José, mas graças à intervenção do Espírito Santo. O autor dêste evangelho não foi capaz, simplesmente, de fazer remontar a genealogia do Cristo por linha masculina até David e, ao mesmo tempo, atribuir-lhe uma origem divina, «imaculada». O primeiro capítulo de Mateus representa, portanto, uma tentativa de conciliar duas versões inconciliáveis da origem de Cristo: a do Antigo Testamento, segundo à qual seria êle uma descendente do Rei David, e a versão pagã, que afirmava a natureza divina do deus morto e ressuscitado.A referência à profecia de Isaías é também estropiada. A passagem citada encontra-se efetivamente no livro dêsse profeta (VII, 14), mas, no contexto, ela não anuncia a vinda do Messias. A palavra hebraica alma nessa passagem significa «mulher jovem», e não «virgem». E Isaías nada diz aí sôbreo Messias: «Mas, antes que o menino saiba rejeitar o mal, e escolher o bem, o país do qual tu temes os dois reis será abandonado.» (Isaias, VII, 16.) Isaías não atribui nada de sobrenatural ao seu nascimento, êle prediz que a criança verá a luz em uma época que precede de sete séculos a data dos evangelhos e diz, aliás, que o hão de chamar de Emanuel. Para eliminar esta contradição, Mateus pretende que um anjo visto em sonho por José lhe ordenou que desse ao menino o nome de Jesus, que quer dizer em hebreu «Deus Salvador».,Portanto, nada neste capítulo pode servir para confirmar a historicidade de Jesus. Ao contrário, sua genealogia, a concepção imaculada, a citação de Isafas, o anjo que apareceu a José, demonstram que Mateus procurou, bastante desajeitadamente aliás, juntar as profecias sôbre o Messias, e os elementos dos cultos orientais, o que nos permite discernir fàcilmente as partes constitutivas do mito de Jesus.Procurando reconstituir os diversos elos originários dêsse mito, devemos notar, de início, que o Evangelho Segundo Marcos, o mais antigo dos sinóticos, nada diz sôbre a genealogia do Cristo, nem sôbre o seu nascimento, nem sôbre a sua infância. Tudo leva a crer que, no momento da composição dêste evangelho canônico, a lenda sôbre a vida terrestre de Jesus ainda estava longe de ser terminada. Ela só foi completada nos outros sinóticos.O segundo capítulo do Evangelho Segundo Mateus dá-nos as informações seguintes: Jesus nasceu em Belém, no tempo do

Page 171: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

176A ORIGEM DO CRISTIANISMORei Herodes; seu nascimento foi anunciado pelo aparecimento de uma estrêla, e magos do Oriente vieram adorá-la; tendo sabido disto, o Rei Herodes ordenou a matança de tôdas as crianças de menos de dois anos, em Belém; José, avisado por um anjo, fugiu secretamente com sua família para o Egito, onde ficou até a morte de Herodes, depois retornou a Israel e se fixou em Nazaré.Todos êsses pormenores, ausentes em Marcos, são contraditórios, e em nada concordam com os fatos históricos conhecidos. O Rei Herodes morreu quatro anos antes da nossa era. Mateus afirma que Jesus nasceu em Belém, baseando-se na profecia de Miquéas, no Antigo Testamento, segundo a qual o Messias deveria nascer justamente lá. (Mique’as, V, 2 -O estabelecimento de José em Nazaré corresponde igualmente a outra profecia do Velho Testamento. (Juízes, XIII, 5.) A mesma coisa se dá quanto à fuga para o Egito: no Livro de Oséas (XI, 1) está dito que Deus chamou seu Filho do Egito. O episódio da fuga para o Egito foi introduzido no evangelho nicamente para adaptar a vida de Jesus às predições de Oséas. No Evangelho Segundo Lucas não se fala de magos, mas de pastores (II, 8), aos quais um anjo anunciou o nascimento do Messias; e está dito aí que êles o encontraram numa mangedoura, pormenor ausente no Evangelho Segundo Mateus.Vemos, pois, que as informações sôbre a vida terrestre de Jesus foram inventadas pelos autores dos sinóticos, com o objetivo de confirmar as profecias do Antigo Testamento. É característico que cada um dêsses «acontecimentos» é seguido da frase: «Tudo isso acontece a fim de que se cumpra o queo Senhor tinha anunciado pelo profeta.» Êste «a fim de», que é omitido na tradução sinodal russa, mostra claramente que a biografia de Jesus nos evangelhos foi construída a golpes de profecias a fim de evitar possíveis objeções da parte dos adeptos do judaísmo.As contínuas referências dos evangelhistas aos profetas do Velho Testamento atestam que êles eram bastante versados nesse domínio. Isto não os impede, coisa significativa, de modificar tal ou qual passagem do Antigo Testamento, para apoiar o que êles avançam, como no caso da referência de Mateus, a Isaías. Dá-se o mesmo com as palavras de Oséas, reproduzidas acima. Em Oséas, trata-se do êxodo dos hebreus do Egito, pelo menos segundo o contexto. Isto pôsto, as palavras «meu Filho» subentendiam não o futuro Messias, mas o povo de Israel, era uma alusão do passado, e não uma profecia. Mas, o autor do evangelho tinha necessidade de conciliar as predições sôbre Belém e Nazaré; a estada de Jesus no Egito devia, além disso, se associar no pensamento dos

Page 172: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 177hebreus, à atividade do seu lendário legislador para, dêsse modo, acentuar o papel messiânico de Jesus.O modo pelo qual os autores dos evangelhos falam de Nazaré não é menos característico. Seu nome não figura no Antigo Testamento. Os autores judeus do século 1 também nada dizem sôbre ela, se bem que êles se façam notar (particularmente Flávio Josefo) pela amplitude de suas informações sôbre o pequeno país que era a Judéia. Ouve-se falar de Nazaré, pela primeira vez, nas fontes que datam do século III. Ora, nos evangelhos, Nazaré é chamada de «cidade». (Mateus, II, 33; Lucas, 1, 26; II, 39, etc.) Não parece, portanto, que Nazaré tenha sido uma cidadezinha perdida que pudesse ser ignorada por todos os historiadores da Judéia.Porém, por que se encontra êsse nome tantas vêzes nos evangelhos? Para explicar isso, convém lembrar que no Livro dos Juízes, no Antigo Testamento, fala-se, por duas vêzes, que Sansão será o «nazareno de Deus». A raiz dessa palavra em hebráico, nazir, significa um justo cuidadoso na observância estrita de certos ritos. Os autores dos evangelhos não conheciam a Judéia senão pelos textos do Antigo Testamento e achando, visivelmente, que «nazareno» significava originário de Nazaré, deram êsse nome ao lugar do nascimento do Cristo, sem sequer suspeitar que semelhante localidade ou vila não existia na Judéia.As observações relativas aos dois primeiros capítulos do Evangelho Segundo Mateus permitem enunciar já várias conclusões bastante importantes. Se bem que o Evangelho Segundo Mateus contenha quase todos os elementos essenciais do mito de Jesus Homem-Deus, êste mito ainda não encontrou nêle sua última expressão. Êle continuou a evoluir, enriquecendo-se com pormenores ausentes neste evangelho, que é mais curto do que os outros.Os sinóticos descrevem, no início, Jesus como sendo um homem que tem o dom da profecia e da cura, e atribuem-lhe, assim, sômente as qualidades que, segundo as crenças dos judeus, eram comuns a todos os profetas. A única diferença é que em Jesus êsse dom era muito mais poderoso que nos profetas precedentes, João Batista inclusive.Só algum tempo depois, tal como Mateus apresenta a coisa (XVI, 16), é que os discípulos de Jesus, impressionados pelos milagres do seu mestre, decidiram que êle não era um simples profeta, mas o «Cristo, o Filho de Deus vivo», conclusão emitida nesse evangelho pelo apóstolo Pedro. Nos capítulos seguintes, Jesus é quase sempre chamado de Filho de Deus, e Mateus dá menos relêvo aos milagres operados por êle, do que aos elementos da religião cristã que a separam do judaísmo, tais como as predições de Jesus sôbre o martírio

Page 173: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

178 A ORIGEM DO CRISTIANISMOque o aguardava, a descrição do seu julgamento, a crucificaçãoe a ressurreição. Tudo isto era estranho ao judaísmo ortodoxo,segundo o qual’ a vinda do Messias significaria, antes de tudo,o triunfo definitivo da «fé verdadeira».Os evangelhos sinóticos revelam assim o traço distintivo da mitologia cristã: a tendência para criar uma divindade sincrética, ünindo os traços do Messias anunciado pelos profetas do Antigo Testamento, aos dos deuses mortos e ressuscitados dos cultos orientais. O adicionamento de diversos elementos à imagem de Jesus mostra que a evolução do cristianismo tendia para a transformação de Deus em um ser humano, e não para a divinização de um profeta judeu que tivesse existido realmente.A harmonização de traços tão heterogêneos estava eriçada de dificuldades cujos vestígios se discernem nos diversos evangelhos. Em Mateus, por exemplo, Jesus declara que não foi «enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel» (XV, 24), enquanto que no final dêsse mesmo evangelho êle encarrega seus discípulos de batizar «tôdas as nações» (XXVIII, 19), ainda que no capítulo X, versículo 3, êle tenha proibido aos apóstolos de «irem aos pagãos». As freqüentes referências de Mateus aos profetas hebreus do Antigo Testamento não o impedem de se rebelar enèrgicamente contra o judaísmo. Sua atitude profundamente hostil em relação aos «publicanos», recebedores de impostos (V, 46), não quadra com a afirmação de que êles «precederão a muitos outros no reino de Deus.» (Mateus, XXI, 31.) As palavras de Jesus: «Não vim trazer a paz, mas a espada» (X, 34), contradizem, com tôda evidência, estas outras palavras muito conhecidas: «Todos os que lançarem mão da espada, pela espada morrerão.» (Mateus, XXVI, 52.)As contradições que acabamos de assinalar em Mateus, e aquelas, muito mais numerosas, entre êle e os outrãs evangelhos, não podem ser explicadas pela imperícia dos seus autores. A coisa não é assim tão simples. Os evangelhos foram o complicado produto de um compromisso entre diversas tendências no seio do cristianismo. Eis por que êles conservam os traços dessas lutas.O quarto evangelho canônico, o de João, descreve a vida terrestre de Jesus de uma maneira muito diferente da dos três sinóticos. Nêle, procura-se provar a natureza divina de Jesus, não invocando a imaculada conceição, mas afirmando que João Batista viu «o Espírito descer do céu como uma pomba e parar sôbre êle.» (João, 1, 32.) Em João, Jesus é quase inteiramente isento de traços humanos; só muito raramente o chama de Filho do homem, e apenas nos primeiros capítulos.Como no Apocalipse, Jesus é chamado muitas vêzes, neste evangelho, de «Cordeiro de Deus». Mesmo à Maria, sua mãe,

Page 174: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SECULO II 179êle dirigia estas palavras: «Mulher, que tenho eu contigo?» (II, 4), e diz de si mesmo que êle é «o pão que desceu do céu (VI, 41), e que êle não é «dêste mundo». (João, VIII, 23.) Aos judeus que não crêem nêle, êle lança: «Tendes o diabo por pai» (VIII, 44), e acentua: «Eu e o Pai somos um.» (João X, 30.)No Evangelho Segundo João, o que o autor faz Jesus dizer é menos significativo, talvez, do que aquilo que êle omite. Os autores dos outros evangelhos, ao descreverem sua crucificação, atribuem-lhe a conhecida exclamação: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Mateus, XXVII, 46; Marcos, XV, 34.) Porém, João achou impossível ou inoportuno citar essas palavras. Lucas também. 1 claro que essas palavras atribuídas a Jesus nos dois primeiros evangelhos canônicos, assim como sua omissão nos dois últimos não provam absolutamente a hístoricidade de Jesus. Essas diferenças entre os evangelhos mostram sômente que seus autores, ao criarem o mito do Cristo, obedeciam, cada um por si, aos imperativos da propaganda.Assim, o quarto evangelho distingue-se dos três anteriores, em primeiro lugar, pelo fato de acentuar de tôdas as maneiras possíveis o caráter divino de Jesus. Sob êste aspecto, êle está muito mais próximo do autor do Apocalipse, do que dos três outros evangelistas.Significará isto que o Evangelho Segundo João foi composto muito antes dos sinóticos? Não. Porque muitas coisas neste texto contradizem semelhante suposição. O Evangelho Segundo João proclama, logo nas primeiras linhas: «No comêço era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. » Esta frase só se torna compreensível se se subentende que o Verbo era filho de Deus, isto é, Jesus. Êste é justamente o pensamento de João. Segundo sua opinião, Jesus não é uma criatura humana, e êle acentua por tôda parte seus traços divinos. Segundo a doutrina dos gnósticos, que muito influiu na formação da ideologia cristã, o intermediário entre os homens e Deus, e defensor dêles diante de Deus é precisamente o Logos, isto é, o Verbo. Tudo leva a crer que a imagem de Jesus no quarto evangelho não foi tirada do Apocalipse, onde o Cordeiro é sobretudo o chefe dos exércitos celestes, mas, antes, que sofreu a influência do gnosticismo. Além disso, o conteúdo dêsse escrito lembra melhor os sermões dos teólogos, do que as parábolas edificantes dos sinóticos e as visões fantásticas do Apocalipse.Devemos acrescentar que vários testemunhos militam também contra a atribuição ao Evangelho Segundo João de uma data próxima da do Apocalipse, composto em meados do século 1. Os evangelhos canônicos são mencionados pela pri

Page 175: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

180 A ORIGEM DO CRISTIANISMOmeira vez nos escritos de Papias, apologista cristão da primeira metade do século II. Eusébio assinala na obra citada (III, 39) que Papías criticava os escritos de Marcos e, em parte, os de Mateus. Trata-se, evidentemente, dos seus evangelhos. Porém, êsse mesmo Papias não diz qualquer palavra a respeito do Evangelho Segundo João: sem dúvida, porque êle ainda não existia no seu tempo.Os escritos não canônico também são muito importantes para a restauração da gênese do mito de Jesus. O protoevangelho de Tiago, que chegou até nós integralmente, e em diversas redações, descreve a infância e a juventude de Maria, até o nascimento de Jesus. Muitos elementos do culto da Virgem baseam-se neste escrito, se bem que êle não tenha sido incluído no cânone. O Evangelho de Pedro afirma, contràriarnente aos sinóticos, que Jesus, na cruz, não sentia qualquer dor. Outros evangelhos, os dos judeus, os dos ebionitas etc., vêem em Jesus não um Homem-Deus, mas o maior dos profetas.Disso se conclui, portanto, que o mito evangélico assumia as mais diversas formas, segundo as circunstâncias. O Jesus do quarto evangelho canônico difere do Jesus dos sinóticos, e nestes últimos percebe-se muito bem, tanto os traços judaicos, corno os não judaicos do Cristo. E mesmo no aspecto judaico do mito pode-se distinguir, de um lado, a tendência a considerá-lo como um profeta, e, de outro, como o Messias.Por conseguinte, o relato evangélico da vida de Jesus não pode ser considerado como um relato histórico. Sua ausência nos primeiros documentos cristãos se explica iinicamente pelo fato de que êle só foi composto nos meados do século II. Adotando os quatro evangelhos e rejeitando, ao mesmo tempo, grande número de outros escritos cristãos análogos, a Igreja canonizou a imagem de Jesus e tôdas as contradições dos evangelhos. Pràticarnente, isso fêz parar a evolução ulterior dos mitos do cristianismo, pelo menos no que concerne ao seu lendário fundador.Pode-se elucidar, assim mesmo, a maneira pela qual se constituiu o mito evangélico? Se o Cristo era um Deus que se transformou em homem, qual seria a origem dos pormenores pseudo-reais atribuídos à sua pessoa, e por que foi necessário inventá-los? Êste problema é muito importante, mas a ciência histórica não está ainda em condição de dar a êsse tema uma resposta categórica e tão exata corno aquela referente à data dos primeiros monumentos cristãos. É preciso dizer, contudo, que o enigma da gênese do mito de Jesus torna-se cada vez mais claro.Devemos sublinhar, antes de tudo, que a lenda de um deus crucificado e ressuscitado não pertence rnicamente ao cristianismo. Além dos cultos que já mencionamos, convém notar

Page 176: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO StCULO II 181que alguns missionários descobriram, no século XVII, a existência de um mito de deus crucificado no Tibet e, no século seguinte, no Nepal. Êsses mitos nada têm a ver, por certo, com a lenda cristã, e nenhum historiador procurará demonstrar que êles refletem acontecimentos históricos. Outro exemplo típico a êsse respeito relaciona-se com o mito grego de Dionísios, Deus da vinha. Acreditava-se outrora que êle tinha existido realmente, mas ninguém ousará afirmar isso nos nossos dias.Passando ao exame das fontes do mito evangélico, recordemos que já falamos daqueles antecedentes possíveis, entre os quais o do «Mestre de Justiça» citado nos manuscritos descobertos em Coumrã e que se pretendia igualmente ter ressuscitado. Contudo, os acontecimentos descritos nesses documentos remontam, segundo a opinião geral, à primeira metade do século 1 antes da nossa era, isto é, todo um século antes do período durante o qual Jesus Cristo teria vivido, segundo os evangelhos. A êsse respeito, é útil lembrar que segundo o testemunho, muito posterior, é verdade, do Talmud, Jesus BenStada ou Ben-Pandira, com o qual se identifica habitualmenteo Cristo evangélico, viveu na Judéia, sob o reinado de Alexandre Janeu, portanto, em época próxima dos acontecimentos relatados nos rolos de Coumrã. Não se exclui a possibilidade de que certos elementos de seus relatos tenham servido à composição do mito evangélico.J. Robertson, historiador inglês dos começos dêste século, chamou a atenção para as palavras seguintes dirigidas, segundo o Evangelho de Marcos, pelo apóstolo João, a Jesus: «Mestre, vimos um homem que em teu nome expulsava demônios; e nós lh’o proibimos porque não nos segue.» (Marcos, IX, 38.) Esta passagem atesta evidentemente que houve um culto não cristão de Jesus.Deve-se ainda a Robertson outra observação dêsse gênero. O relato nos sinóticos de certos episódios que . precedem a prisão de Jesus só se torna lógico se os considerarmos como cenas de um drama ritual. Assim, no Evangelho Segundo Marcos (XIV, versículo 32 e seguinte), apresenta-se Jesus aproximando-se três vêzes, para despertar três discípulos adormecidos:Pedro, Tiago e João. Tudo se passa. sem testemunhas, mas Marcos descreve êsse episódio de maneira pormenorizada. Como cena de um mistério, isso é aceitável, mas, na qualidade de fato real, não tem sentido. Outro pormenor: o traidor Judas Iscariote recebe trinta dinheiros para entregar Jesus, mas Jesus não andava escondido, êle pregava abertamente em Jerusalém. Aceitável como processo dramático, mas absurdo, como fato. O relato evangélico nos transporta em seguida para a assembléia noturna do Sanhedrin judaico, onde Jesus é interrogado, interrogatório êsse que, sàmente no Evangelho Segundo Lucas,

Page 177: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

182 A ORIGEM DO CRISTIANISMOtem lugar durante o dia, portanto, de modo mais verossímil. A representação ritual exigia a continuidade da ação. Mas, tal relato de acontecimentos, desde que se queria fazer passar por um relatório exato, parece muito forçado.E Robertson conclui que esta parte do relato evangélico é apenas a descrição de um mistério que tinha por tema a «Paixão» do Filho de Deus, oferecido em holocausto, O Deus-jesus só se transformaria no Filho do Homem, dos sinóticos, posteriormente.A consagração dos quatro evangelhos canônicos pela Igreja desempenhou um papel considerável no desenvolvimento ulterior do cristianismo. Em primeiro lugar, esta medida colocou fora do grêmio da Igreja numerosas correntes da cristandade: a canonização traçou uma nítida linha de demarcação, não sàmente entre o cristianismo, e o judaísmo, mas também entre as diversas seitas judaico-cristãs (ebionitas, nazarenos etc.), e a Igreja. Por outro lado, a canonização da imagem evangélica do Cristo permitiu ao cristianismo separar-se adequadamente do gnosti. cismo. Além disso, a fixação dos artigos de fé nos evangelhos canônicos proclamados escrituras sagradas iria impedir a aparição de novas seitas, uma vez que o menor desvio dos dogmas determinava a acusação de heresia. É verdade que mesmo a canonização dos evangelhos não pôde barrar inteiramente o caminho às doutrinas heréticas, contra as quais a Igreja foi ainda obrigada a empregar muitos esforços.A imagem evangélica de Jesus, que desempenhou tão importante papel na constituição da nova religião, assegurando sua unidade, favoreceu igualmente sua difusão ulterior, O caráter sincrético desta imagem facilitava a tarefa da propaganda do cristianismo entre os adeptos dos diferentes cultos do deus morto e ressuscitado em voga no oriente do Império Romano, predicação cujo êxito era favorável, por outro lado, pela ausência de um ritual cristão que, nessa época, ainda se encontrava em elaboração. Apesar dos variados matizes dos evangelhos, seu programa político e social, que vamos expor mais adiante, era incomparàvelmente mais moderado do que a posição do autor do Apocalipse, e até mesmo das primeiras epístolas, o que permitiu ganhar as simpatias das camadas ricas do Império.Posteriormente, quando a Igreja foi-se tornando o sustentáculo ideológico número um do poder da classe agonizante dos escravagistas, depois da feudalidade, e do regime burguês, a imagem do Filho de Deus, canonizada nos evangelhos, desempenhou um duplo papel na evolução histórica dos povos europeus.De um lado, os sermões dirigidos às massas laboriosas, exultando a Paixão e o sofrimento em geral, pregavam a resignação. À sêde de liberdade manifestada pelo povo, a Igreja

Page 178: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 183sempre contrapôs as palavras de Jesus: «Meu reino não é déste mundo» (João, XVIII, 36), e a promessa da felicidade eterna nos céus, para ‘que os deserdados suportassem pacienternente as terríveis condições de sua vida neste mundo.Doutra parte, a santificação do poder dos exploradores pelo cristianismo, a cupidez do clero e a linha política da Igreja despertaram nas massas o desejo de um retôrno ao cristianismo dos primeiros tempos. A reclamação da liberdade, da igualdade, da abolição da exploração revestiu primeiramente formas religiosas. Os adeptos de Lutero, de Calvino e os velhos crentes na Rússia, quando se levantaram contra a Igreja oficial, católica ou ortodoxa, exigiram todos o retôrno ao cristianismo original. Isso decorria do duplo caráter da imagem evangélica de Jesus, do fato de os evangelhos terem conservado traços contraditórios, alguns dos quais remontavam à época em que o cristianismo era ainda a religião dos oprimidos e dos pobres, enquanto outros e relacionavam com o período de sua conciliação com as camadas dominantes do Império Romano, fundado sôbre a escravidão. É ainda por causa dêsse duplo caráter da doutrina evangélica que as correntes religiosas oposicionistas se transformavam, por seu turno, em sustentáculos do poder dos exploradores, não menos eficazes do que a Igreja Católica, ou a Igreja Ortodoxa.3. O PROGRAMA SOCIAL DOS EVANGELHOSA predicação evangélica foi durante muito tempo considerada •por milhões de fiéis como o ápice da moral humana. Em palavras tais como «Venham a mim, todos os que estão cansados e oprimidos, e eu- lhes darei repouso» (Mateus, XI, 28) e «Muitos dos primeiros serão os últimos, e muitos dos últimos serão os primeiros» (Idem, XIX, 30), as massas popu‘lares buscavam a consolação para a sua miséria e seus sofrimentos, esperando que o advento do reino de Deus não tardaria a pôr um fim à injustiça, à exploração e às dôres da humanidade. Aos olhos do povo trabalhador, que tinha sofrido tantos revezes na luta contra os opressores, o cristianismo original se apresentava como um ideal distante, uma época em que todos os cristãos eram justos, amavam-se como irmãos, abandonavam seus bens, e até mesmo suas famílias, atraídos pelos discursos do carpinteiro de Nazaré.Quanto mais a exploração das massas se intensificava por parte dos feudais e do clero, quanto mais os costumes dos representantes da Igreja suscitavam a indignação geral, mais os crentes sonhavam com a restauração da ordem evangélica sôbre a Terra. Na Europa, durante todo um milênio, e até mais — e isso não é um curto período na História — os

Page 179: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

184 A ORIGEM DO CRISTIANISMOmovimentos de massa se desenrolaram sob a palavra de ordem dé retôrno à simplicidade evangélica dos primeiros cristãos. E isso era natural porque, outrora, a religião era o único alimento espiritual da gente simples.Atualmente, os evangelhos perderam muito de sua influência sôbre os trabalhadores, mas existe ainda contingentes bastante importantes de crentes que ligam sua luta pela paz, pela liberdade e pela democracia às aspirações evangélicas.Como explicar a atração exercida pelos evangelhos sôbre as massas de crentes durante tantos séculos? Ela tem múltiplas causas. Uma delas reside no fato de os evangelhos representarem uma seleção longa e paciente de textos sagrados, por parte de centenas de pregadores. Atribuíram a Jesus as pará- bolas e as máximas que encontravam maior ressonancla nos ouvintes O estilo lacônico, colorido, freqüentemente rico de imagens dos aforismos evangélicos aumentava seu poder sôbre os crentes.Em segundo lugar, os pregadores da nova religião, durante sua fase inicial, dirigiam-se quase que exclusivamente aos deserdados e aos oprimidos, «aos humildes dêste mundo», Os ataques dos evangelhos contra os ricos e os aristocratas continuaram, mesmo posteriormente, a exercer uma poderosa influência sôbre os trabalhadores. O cristianismo soube explorar esta circunstância no decorrer dos séculos seguintes.Em terceiro lugar, a Igreja, tanto antes, como depois do seu acesso ao poder, não pretendia mesmo aplicar seus próprios ensinamentos, vendo nêles apenas regras de conduta puramente teóricas, abstratas. Os costumes do clero, sobretudo do alto clero, não se distinguiam muito dos costumes dos fariseus estigmatizados nos evangelhos. Ëste afastamento cada vez maior, entre a prática, e o ideal evangélico, suscitava a indignação da massa dos fiéis, e fazia com que êstes almejassem cada vez mais apaixonadamente o retôrno à pureza dos tempos evangélicos.Em quarto lugar, os evangelhos, diferentemente dos outros escritos cristãos, dão maior relêvo à felicidade no céu. A negação da ordem antiga era o traço característico do cristianismõ primitivo, produto da desagregação do regime escravagista. Esta tendência é desenvolvida nos evangelhos até a condenação ao apêgo aos bens terrestres em geral. Encontra-se aí a raiz do seu desprêzo pelas riquezas, do saber e, até mesmo, da família. A estática espera do reino de Deus implicava Rgicamente a renúncia às coisas dêste mundo. Êste estado de espírito e estas aspirações se impuseram durante séculos a todos aquêles que não podiam se resignar com a injustiça na Terra.A popularidade dos evangelhos foi ainda devida, e em grande escala, ao fato de êles constituírem um compromisso entre as diversas tendências existentes no seio do cristianismo.

Page 180: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II185Se os posteriores movimentos de massa exigiam o retôrno aos costumes dos primeiros cristãos, invocando as palavras dos evangelhos, a Igreja Católica, a Ortodoxa e a Protestante justificavam seu próprio comportamento, citando êsses mesmos escritos. Êsse duplo caráter dos evangelhos permitiu-lhe conservar durante tão longo tempo sua auréola.Tenda explicado os motivos da atração exercida pelos evangelhos sôbre os crentes, devemos lembrar, uma vez mais, que êles sempre serviram para justificar as classes exploradoras. Os apelos dos evangelhos à resignação, à não resistência ao mal desviavam e desviam ainda freqüentemente as massas da luta revolucionária por uma vida melhor na Terra.Se procurarmos analisar os evángelhos na qualidade de documentos históricos, como o fizemos com os outros escritos da literatura cristã primitiva, até mesmo o leitor menos avisado não pode deixar de perceber que êles são o fruto de um compromisso. O caráter contraditório dos textos evangélicos permite-nos discernir fàcilmente as raízes históricas e ideológicas de tais parábolas e máximas, melhor do que de outras. Aliás, o exame dos evangelhos não se deve limitar micamente à constatação de suas contradições: deve-se encará-los do ponto de vista histórico, situá-los na evolução da ideologia cristã, e da luta entre as diversas tendências existentes no seio do cristianismo. Êste é o único método que nos possibilitará definir com a maior precisão o espírito dos evangelhos e as opiniões sociais e políticas que êles proclamam.O que distingue essencialmente os evangelhos dos escritos cristãos anteriores é a versão acabada que êles dão do mito do Cristo, a imagem definitiva de Jesus. Examinamos até aqui apenas as fontes históricas dessa imagem, sem falar do seu conteúdo social. Passemos, agora, à análise dêste aspecto da pregação evangélica.No centro da doutrina de Jesus nos sinóticos encontra-se a idéia do «reino de Deus», ou do «reino dos céus». Notemos, inicialmente, que o sentido dêsses têrmos não é exatamente o mesmo. Os teólogos se limitam geralmente a indicar que o primeiro é empregado por Marcos, e o segundo por Mateus, não sendo isto devido senão às particularidades de estilo de um e de outro. Porém, a coisa é mais complicada do que se crê. As palavras «reino de Deus» significavam, no comêço, o reino de Deus sôbre a Terra, enquanto que por «reino dos céus» se subetendia o outro mundo, sem qualquer equívoco possível. A passagem de uma expressão à outra refletiu as modificações da ideologia cristã, a caminho da conciliação com as classes dominantes.Não é por acaso que a predicação de Jesus no Evangelho Segundo Marcos começa assim: «O tempo está cumprido, e o

Page 181: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

186A ORIGEM DO CRISTIANISMOreino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho.» (Marcos, 1, 15.) Tudo, no mais antigo dos sinóticos, gira, de um modo ou de outro, em tôrno da noção do «reino de Deus». A iminência da hora decisiva, a definição daqueles que seriam dignos de entrar nesse reino, a linha de conduta a seguir pelos que quisessem dêle fazer parte, tais eram as questões que preocupavam então os ouvintes dos evangelhos. E se a pregação cristã era tão atraente, se centenas e milhares de fiéis tornavam-se propagadores da «boa nova», é precisamente porque nela se tratavam de acontecimentos prestes a se dar, da segunda vinda do Cristo, do Juízo Final, da ressurreição dos mortos, e todo o resto. Quanto mais dura e desesperada era a realidade, mais se acreditava iminente o dia da punição dos ímpíos.A pregação do «reino de Deus» visava a um auditório determinado. No «sermão da montanha», o reino dos céus é prometido, em primeiro lugar, aos pobres (as palavras «de espírito» foram acrescentadas posteriormente), aos aflitos, aos indulgentes, aos ultrajados e aos perseguidos pela justiça. (Mateus, V, 3-11.) A passagem paralela em Lacas anuncia desgraças para os ricos (VI, 24), pensamento ilustrado no capítulo XVI dêsse mesmo evangelho em que se diz que Lázaro, êsse miserável, é levado pelos anjos ao seio de Abraão, enquanto que o rico sofre nas chamas do inferno.É absolutamente indispensável, contudo, acentuar que os evangelhos, apesar de se endereçarem aos deserdados, não pretendiam de fato condenar os ricos na qualidade de exploradores do trabalho dos pobres. Em várias parábolas, os senhores opulentos são descritas como justos, dos quais os escravos não devem se queixar. A julgar por essas mesmas parábolas, êsses senhores não trabalham, não se ocupam de negócios e viajam freqüentemente, mas os autores não se preocupam sequer em justificar moralmente a fonte dos seus ganhos, achando-os perfeitamente legítimos. Os escravos, ao contrário, aparecem freqüentemente nessas parábolas como preguiçosos que seus senhores punem com razão.Assim, a riqueza só é condenada nos evangelhos enquanto obstáculo para o acesso dos ricos ao reino dos céus, posição que encontrou sua mais nítida expressão no famoso lema de Mateus: «Ninguém pode servir a dois senhores ( . . . ) Não podeis servir a Deus, e a Mamon.» (Mateus, VI, 24.) A sêde de enriquecimento é considerada má, sàmente porque ela afasta da fé.É exatamente o mesmo que se dá quanto à conhecida declaração: «. . . dificilmente um rico entrará no reino dos céus.» (Mateus, XIX, 23.) Tendo um jovem rico perguntado a Jesus conio ganhar a vida eterna, êste respondeu que era

Page 182: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 187preciso observar os mandamentos de Moisés. E só em vista da insistência do outro é que êle acrescenta: «Se tu queres ser perfeito, vai, vende tudo quanto possues, dá-o aos pobres.» A riqueza não é aqui considerada como um obstáculo para a fé e para o acesso ao reino dos céus; a renúncia aos bens terrestres só é necessária para os que querem atingir a perfeição. O célebre aforisma segundo o qual «é mais fácil um camelo passar pelo furo de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus» de modo algum significa uma condenação da riqueza, enquanto tal. A evolução pela qual passou o cristianismo, no decorrer de alguns decênios apenas, manifesta-se claramente, quando se compara êste aforisma com a divisa nítida e clara da segunda Epístola aos Tessalonicenses: «se alguém não quiser trabalhar, que não coma também.» (II Tessalonicenses, III, 10.)A doutrina cristã do «reino de Deus» adquire nos evangelhos sua forma definitiva. Em relação ao messianismo do Antigo Testamento, êles apresentam a seguinte novidade: o advento dêsse reino está ligado à destruição de Jerusalém eaparição de falsos profetas e, o que é mais importante ainda, de impostores, que se apresentam sob o nome do Cristo. (Mateus, XXIV, 5, 23 e outros.) E provável que não se faça aqui alusão à Guerra dos Judeus de 66 a 73, mas à revolta de Bar-Cocheba, que os judeus consideraram como sendo o Messias, e que se desenrolou sob Adriano.O segundo traço distintivo da escatologia evangélica foi o estabelecimento de uma data para a nova vinda do Senhor. Esta questão revestia-se de grande importância para o cristianismo, uma vez que a pregação da nova religião se fazia sob a forma de uma anunciação da «boa nova»: «o reino de Deus está próximo! » Não sômente os primeiros escritos cristãos, mas também os evangelhos canônicos estão cheios de advertências dêsse gênero: «Eu voltarei logo», «o tempo está próximo» etc.Duas tendências absolutamente inconciliáveis aparecem nos evangelhos. A primeira se traduz por esta declaração reiterada de Jesus, nos sinóticos: «Em verdade vos digo, que alguns dos que aqui estão não morrerão até que vejam vir o Filho do Homem no seu reino.» (Mateus, XVI, 28, XXIV, 34; Marcos, IX, 1, e em outros lugares.) Que semelhante afirmação não se tenha cumprido, os autores dos evangelhos, compostos em meados do século II, eram obrigados a admitir: por essa época, segundo a tradição cristã, já não vivia qualquer dos apóstolos. Os partidários da historicidade de Jesus acham que essas passagens no texto dos evangelhos que chegou até nós fornecem uma das mais irrefutáveis provas em favor do seu ponto de vista. Na opinião dêles, esta predição não poderia ter sido

Page 183: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

188A ORIGEM DO CRISTIANISMOacrescentada pelos autores dos evangelhos por causa mesmo do seu não cumprimento, e é por isso que êles proclamam que ela é devida sem dúvida à Jesus, personagem histórica.À primeira vista, o argumento parece convincente. Não sendo os autores dos evangelhos muito escrupulosos, como já o demonstramos, é claro que não teriam hesitado em suprimir de seus escritos uma profecia que não se tinha realizado, se razões mais poderosas não lhes tivessem paralisado a mão. Alguns historiadores contemporâneos, A. Robertson inclusive, acham que a única explicação para a conservação desta profecia nos evangelhos é a piedosa fidelidade dos autores dêstes às próprias palavras de Jesus. Assim fazendo, os historiadores em questão tomam suas próprias conclusões por premissas, esquecendo que é preciso ainda demonstrá-las.Em realidade, os autores dos evangelhos, repetindo essa profecia várias vêzes, poderiam ter tido outros motivos, não menos importantes para êles. Lembremos que a insistência sôbre o próximo advento do Cristo caracterizava a predicação cristã nos seus começos. A atribuição de uma profecia dêsse gênero a Jesus devia, além disso, acentuar-lhe a santidade, estimulando assim a fé dos fiéis. A predicação ficou no ar, mas isso de modo algum inquietou os autores dos evangelhos, para os quais esta circunstância era, ao contrário, a garantia de que se cumpriria um dia que não tardaria muito. Vemos, pois, que as tendências escatológicas dos evangelhos canônicos não podem ser ligadas à questão da existência real do Cristo.Paralelamente à promessa do reino de Deus, discerne-se nos evangelhos outra linha, diametralmente oposta. Aqui, os evangelistas não poupam esforços para serem breves ante as perguntas dos fiéis sôbre a data de cumprimento das profecias, sem, contudo, deixarem de alimentar as esperanças escatàlógicas dos primeiros cristãos. Quando os apóstolos perguntam a Jesus quando ocorrerá o fim do mundo, recebem esta resposta:«Acautelai-vos, para que ninguém vos engane. Porque muitos virão em meu nome. . . » (Mateus, XXIV, 4.) Nos Atos dos Apóstolos, sua resposta a êsse respeito é formal: «Não vos é dado conhecer os tempos ou os momentos que o Pai fixou por sua própria autoridade.» Assim, se as epístolas paulinianas limitam-se já a descrever sômente os sinais do advento do Senhor, os evangelhos transformam a questão da sua data, tão apaixonante para os crentes, num verdadeiro tabu. Interessada em manter os temas escatológicos da pregação cristã, a Igreja tratou, ao mesmo tempo, de dissimular a contradição entre as profecias, e a realidade.O conteúdo da doutrina escatológica dos evangelhos difere sensvelmente não sàmente do messianismo do Antigo Testamento, como também da escatologia do Apocalipse. Nos evan

Page 184: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 189gelhos, o advento do reino dos céus em parte alguma está associado à punição dos exploradores e dos opressores; apenas os ímpios é que devem ser punidos. Não se encontra nos sinóticos a mínima alusão a castigos reservados aos detentores do poder. O ódio contra a «grande prostituída, Babilônia» cede o lugar à pacífica divisa: «dai a César o que é de César.» Enquanto o Apocalipse está marcado, do comêço ao fim, pelo desejo de vingança, os evangelhos, ao contrário, preconizam: «Se alguém te bate na face direita, oferece-lhe também a outra.» (Mateus, V, 39.) Os apelos à luta contra o mal, endereçados aos primeiros cristãos, são substituídos nos evangelhos pela propaganda da não resistência, e do perdão. Fazem tábula rasa da oposição ativa aos opressores, que se manifestava no messianismo cristão dos primeiros tempos. A doutrina do advento do reino dos céus absolutamente não era perigosa para as classes dominantes do Império Romano. A pregação escatológica na época do estabelecimento do cânone evangélico, ao contrário, revigorava o regime escravagista, porque ela entorpecia as massas populares, desviava-as dos combates, disseminando a esperança da felicidade no paraíso.A atitude dos evangelhos em relação ao judaísmo é dupla; apresenta os vestígios de um compromisso, e reveste-se, às vêzes, de um caráter bem contraditório. Esta questão, que embaraçava muito os ideólogos do cristianismo original, era ainda complicada para os autores dos evangelhos. A inclusão nos seus textos de tôda sorte de pormenores «biográficos» sôbre o suposto fundador do cristianismo, que eram emprestados dos profetas do Velho Testamento, obrigava os evangelistas a inventar outros episódios mais sôbre a infância de Jesus na Palestina, transformada em teatro do mito. Mas, na época em que os evangelhos foram compostos, o cristianismo já havia passado por uma longa evolução, e é claro que a nova religião não poderia continuar a progredir, se não rompesse definitivamente com o judaísmo: nenhuma religião universal poder-se-ia fundar sôbre o dogma do Antigo Testamento, segundo o qual os antigos hebreus seriam o povo eleito. Justino, o leitor o sabe, já declarava que o número de cristãos de origem pagã ultrapassava de muito os fiéis de origem judia. Não há dúvida de que, depois de Justino, essa relação se modificou ainda mais a favor dos primeiros.Como na questão do momento do advento do reino dos céus, os autores dos evangelhos professam pontos de vista diferentes sôbre o judaísmo. A mais conciliadora atitude a seu respeito é a de Mateus, enquanto que Lucas e João mostram-se muito hostis contra êle; não se pode, contudo, deixar de notar que êles têm hesitações, e se contradizem nesse assunto.

Page 185: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

190A ORIGEM DO CRISTIANISMONos evangelhos, certas declarações contra os fariseus e os escribas (exegetas do Antigo Testamento) podem ser interpretadas não como ataques contra o judaísmo em geral, mas como tentativas de o reformar, como um protesto contra o sistema de prescrições rituais impostas aos judeus. É nesse sentido, segundo parece, que se deve compreender as palavras: «Não creiam que vim destruir a lei ou os profetas; vim não para a derrogar, mas para a cumprir.» (Mateus, V, 17.) O «sermão da montanha» revela o mesmo espírito reformador. Do episódio com a mulher de origem sírio-fenícia descrito por Marcos (VII, 27) conclui-se que Jesus só faz milagres com os filhos de Israel. Mas, já Mateus (VIII, 10) apresenta um centurião romano, cuja fé é maior do que a dos hebreus. Não se pode também conciliar as tentativas de reformar o judaísmo com a predicação do Evangelho Segundo João (IV, 21) anunciando que não será em Jerusalém que o Deus pai será adorado.As contradições neste terreno são numerosas nos Evangelhos. No Evangelho Segundo Mateus (X, 5 e seguintes), Jesus diz aos apóstolos: «Não ireis aos pagãos, ( . . . ) mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel», enquanto que na parte final dêsse mesmo evangelho êle exorta os apóstolos a irem fazer discípulos em «tôdas as nações».A questão da pregação do cristianismo entre os pagãos é o tema central dos Atos dos Apóstolos. Os capítulos X e XIII não falam senão nisso; o décimo descreve com grande luxo de pormenores como Pedro se decidiu a converter ao cristianismo o centurião Cornélio, depois de ter tido uma visão, e o décimo terceiro mostra Paulo dedicando-se ao apostolado entre os pagãos em conseqüência ünicamente da oposição dos judeus de Pamfilia.Lembremos ainda uma circunstância que, até hoje, recebeu pouca atenção, da parte dos historiadores. Nos evangelhos, a responsabilidade pela crucificação de Jesus é atribuída muito mais aos hebreus, do que a Pôncio Pilatos, Governador Romano, que, segundo a lenda, sancionou a execução do Cristo. Esta fora de dúvida, contudo, que a introdução de Pilatos no relato devia refletir o ódio das massas populares contra a dominação de Roma. Porém, mesmo no Evangelho Segundo Mateus, o acontecimento é apresentado de modo a limpar Pilatos, na medida do possível. Êle se impressiona com o silêncio de Jesus (XVII, 14), chama-o de «justo», opõe-se, a princípio, à sua execução, e, cedendo finalmente à insistência do povo, lava as mãos. A mulher de Pilatos roga-lhe que poupe Jesus. Esta maneira de expor o mito revela o desejo de torná-lo aceitável aos olhos das autoridades romanas. E muito significativo, contudo, que Marcos (XV, 1-13), o mais antigo dos evangelistas, seja muito menos favorável a Pilatos: êste não aplica a Jesus o epiteto de «justo», nem lava as mãos sim-

Page 186: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADÉ DO SÉCULO II 191bolicamente etc. No Evangelho Segundo Lucas, ao contrário, êle exprime por três vêzes o desejo de libertar Jesus e, no Evangelho Segundo João, sua resposabilidade é atenuada ainda mais. Estas diferenças caracterizam bem o caminho seguido pelos autores dêsses escritos: quanto mais a tendência para a conciliação com o poder romano se acentuava no seio do cristianismo, mais os evangelistas, ao descrever os romanos, apagavam os aspectos sombrios.A atitude do cristianismo evangélico em relação ao poder encontrou sua expressão mais acabada na máximo: «Dai a César o que é de César, e a Deus, o que é de Deus.» (Marcos, XII, 17; Mateus, XXII, 21; Lucas, XX, 5.) Reproduzida nos três sinóticos, não figura no Evangelho Segundo João, encontrando-se nêle, todavia, seu equivalente nestas palavras atribuídas a Jesus: «Meu reino não é dêste mundo.» (João, XVIII, 36.) Vemos, portanto, que, apesar das numerosas divergências entre os autores dos evangelhos, permanecem êles, em muitas questões diversas, inteiramente solidários no que concernesua atitude diante do poder romano. Nada de hesitações sôbre êste ponto, em nenhum dêles. Lucas defende Jesus contra a acusação de incitar o povo a não pagar o tributo a César (XXII, 2 e 14). Os evangelhos não se queixam em parte alguma das autoridades romanas. Mesmo no quadro que hosquejam sôbre as perseguições que esperam os crentes, êles se esquivam de dizer que elas emanarão do poder secular. Ao declarar que «aquêles que se servirem da espada, perecerão pela espada», os evangelhos condenam qualquer recurso às armas, mesmo para a defesa do cristianismo, posição dilametralmente oposta às opiniões do autor do Apocalipse, e que era, visivelmente, o apoio máximo que a religião cristã podia oferecer aos imperadores romanos naquela época.Já falamos da atitude dos evangelhos em relação à riqueza. E útil acrescentar a isso que, paralelamente à simpatia pelos deserdados e oprimidos, os evangelistas limitam-se apenas a estigmatizar as atividades mais repugnantes dos negociantes e dos usurários, contra as quais numerosos escritores antigos não deixaram de protestar, atacando de preferência os recebedores de impostos.Êstes últimos, os publicanos detestados pelas massas, são tratados muito moderadamente nos evangelhos que chegam mesmo, em vários casos, a prometer-lhes a salvação. Quanto ao comércio, os evangelhos vêem nêle uma atividade legítima, e até a louvam, como meio de enriquecimento. (Mateus, XXV, 27.) É justamente tendo em vista os mercadores e os usurários que Mateus proclama: «Porque a qualquer que tiver será dado, e terá em abundância; mas, ao que não tiver até o que tem será tirado.» (Mateus, XXV, 27; comparar com Marcos, IV,

Page 187: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

192A ORIGEM DO CRISTIANISMO /25.) A expulsão dos vendilhões do templo (Mateus, XXI, 12) simboliza o protesto contra a intrusão no seu recinto nos negócios terrestres, e não contra a pilhagem praticada pelos vendilhões. Não é por acaso que, nesse episódio, os compradores são estigmatizados da mesma maneira que os vendedores e cambistas.A única coisa que os evangelhos pedem constantemente aos ricos é que dêem generosamente esmolas ao pobres, o que correspondia aos interêsses da Igreja; a beneficência, notadamente quando praticada por intermédio do clero, fortalecia o poder do episcopado. Notemos que êsses reiterados apelos dos evangelhos nesse sentido mostram por êles só que, durante a segunda metade do séculõ II, o cristianismo já tinha adeptos entre os ricos. O episódio com Ananias e Safira nos Atos dos Apóstolos (V, 1-10) é significativo. Tendo vendido um campo, Ananias depositou aos pés dos apóstolos parte da soma recebida. Por ter retido a outra, êle e sua mulher foram punidos. com a morte. Segundo os Atos, Ananias foi punido por ter ocultado aos apóstolos o preço do campo vendido. Ora, segundo a opinião de alguns historiadores do cristianismo, êste episódio provaria que não havia propriedade privada nas comunidades cristãs primitivas, cujo modo de vida teria sido socialista ou comunista. Afirmam que Jesus foi o primeiro socialista e que as comunidades cristãs primitivas exigiam dos seus fiéis a renúncia à propriedade privada. Porém, nós já mostramos que o «socialismo» evangélico significava apenas, no melhor dos casos, o desprêzo das riquezas, e a condenação da cupidez. E, mesmo a êste respeito, as informações são vagas. Portanto, só resta como certo os apelos dos evangelhos à caridade.As conjecturas relativas «ao comunismo cristão» se fundam na sêguinte passagem dos Atos dos Apóstolos (IV, 32):«E ninguém dizia que coisa alguma do que possuia era sua própria; mas tôdas as coisas lhes eram comuns», afirmação que é desenvolvida assim no capítulo II, versículo 44 dos Atos: «E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e fazendas, e repartiam com todos, segundo as necessidades de cada um.»Notemos a propósito destas passagens, primeiro, que a situação que elas descrevem não é confirmada pelas outras fontes cristãs; segundo, que a comunidade de Jerusalém a que elas se referem não existiu, como já o mostramos; terceiro, que os Atos falam da comunidade dos bens em ligação com a punição de Ananias e de Safira, visando evidentemente a justificá-la do ponto de vista moral. Se as comunidades cristãs primitivas tivessem verdadeiramente renunciado à propriedade privada, as fontes antigas o assinalariam obrigatàriamente, e, com maior razão, os críticos antigos do cristianismo.

Page 188: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SICULO II 193Assim, o programa político e social dos evangelhos se faz notar antes de tudo por sua dualidade. Na época em que êles apareceram, o cristianismo ainda era a religião dos «abatidos e oprimidos», aos quais ela dirigia, em primeiro lugar, a sua predicação, prometendo a essas camadas sociais a única coisa possível, a guisa de consolação: uma lugar no reino dos céus. Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo renunciava já à luta contra o poder de Roma, ao espírito de vingança contra os opressores, proclamava que a não resistência era o único meio capaz de aniquilar o mal. Sua maneira de considerar a riqueza muda também: em lugar de a condenar categàricamente, pede aos fiéis que façam esmolas para assegurarem, a preço módico, a própria entrada no paraíso.Foi êsse o resultado das modificações na estrutura social das comunidades cristãs em que, ao lado dos pobres, elementos das classes possuidoras começaram a aderir. Lembremos que os evangelhos ainda ignoram os bispos, os diáconos etc. Isso dava um tom democrático às primeiras comunidades cristãs.4. A IGREJA EPISCOPALSegundo o dogma, a Igreja teria nascido diretamente do pequeno grupo de apóstolos, discípulos diretos de Jesus. À medida que o cristianismo se propagava, que o número de fiéis aumentava, a Igreja se desenvolvia também como associação dos adeptos do Cristo. Em teologia, a Igreja é chamada o «Corpo do Cristo», donde as afirmações dos teólogos sôbre a sua infalibilidade na pessoa do papa, seu chefe, sôbre a sua universalidade, e a sua eternidade.Essas pretensões dos teólogos tornaram-se possíveis, em particular, pela dupla significação da palavra grega eclésia que tanto pode designar «Igreja», como a «comunidade» cristã. Já assinalamos que, na literatura do cristianismo original, essa palavra significa comunidade. Assim é que o Apocalipse de João se endereça às sete Igrejas da Ásia Menor. Trata-se, aqui, com tôda. a evidência, das comunidades cristãs, e não da Igreja universal. Trata-se da mesma coisa nos outros escritos cristãos dos primeiros tempos. No que concerne à outra significação dessa palavra, nós a encontramos, pela primeira vez, sômente no segundo grupo de epístolas paulinianas, que remontam ao segundo quarto do século II, significação essa confirmada pela passagem do Evangelho Segundo Mateus em que se diz que o apóstolo Pedro será a pedra sôbre a qual será edificada a Igreja do Cristo.A Igreja é um fato histórico tal como o Estado, a ordem feudal e o próprio cristianismo. A premissa primordial de sua constituição foi a união das comunidades cristãs dispersas.

Page 189: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

194A ORIGEM DO CRISTIANISMOEnquanto estas seguiam cada uma seu próprio caminho, enquanto não havia um clero destacando-se da massa dos fiéis, e a luta interna das seitas se desenrolava livremente, não se sentia a necessidade de existir um órgão autoritário, centralizado, capaz de impor por decreto os princípios da fé, e de empregar contra os dissidentes todo um aparato hierárquico. O processo que levou ao aparecimento da Igreja foi paralelo ao estabelecimento da dogmática cristã e à constituição do clero.A santificação da imagem evangélica de Jesus, a criação de uma auréola de santidade em tôrno dos evangelhos e dos outros livros do Nôvo Testamento foram um passo decisivo na canonização dos dogmas. A constituição do episcopado foi, por seu turno, um elo importante no processo de formação do clero.A partir da segunda metade do século II, os bispos e seus auxiliares, os diáconos, tornam-se os principais chefes das comunidades cristãs. Aos primeiros incumbe a luta contra as heresias. Suas assembléias, a princípio locais, depois elevadas à categoria de concílios ecumênicos, são reconhecidas como a autoridade suprema dos cristãos, cuja primeira obrigação era, daí em diante, prestar-lhes obediência. Durante dois séculos, até o triunfo do cristianismo, a autoridade dos bispos não deixou de aumentar. Os Padres da Igreja sublinham sem cessar nos seus escritos que os bispos receberam sua dignidade diretamente dos apóstolos.Esta tendência a exaltar o episcopado, no mais alto grau possível, aparece notadamente na História Eclesiástica de Eusébio, que considera como bispos os chefes das comunidades cristãs de Roma, de Corinto e de Alexandria, ünicamente por causa de suas funções nessas comunidades. Lendo-se esta obra tem-se a impressão que Eusébio a escreveu, sobretudo, para demonstrar a santidade dos livros canônicos, e para estabelecer a sucessão cronológica dos bispos nas grandes cidades do Império Romano. Ële dá muita atenção à data do govêrno de cada bispo, descreve a sucessão dêles em tôda uma série de capítulos (III, 2, 4, 11, 13, 15 etc.), começando sempre pelos apóstolos da Lenda. Tudo isso se deve naturalmente às «pesquisas» ulteriores dos apologistas cristãos, que não dispunham de outras fontes além das epístolas, onde tais ou quais persosonagens são niencionados. Assim Irineu, e depois Eusébio, põem em suas listas, na qualidade de primeiro bispo de Roma depois de Pedro, certo Lin, cujo nome figura na segunda Epístola a Timóteo (IV, 21). É significativo que até mesmo Eusébio evita chamar de bispos aos primeiros dentre êles, entre os quais Apiano de Alexandria, por exemplo, fato êsse digno de nota porquanto os antigos documentos cristãos, em parte alguma, falam de bispos: no comêço, a julgar-se por uma

Page 190: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II195série de escritos um pouco posteriores, a autoridade déles, nas comunidades, era inferior à de outras personagens.O episcopado apareceu numa conjuntura histórica determinada. Parece que nos encontramos aqui diante de um fenômeno análogo ao da evolução da própria Igreja, o fortalecimento da autoridade dos bispos estaria ‘intimamente ligado ao processo de sua constituição. A expressão «Igreja episcopal» no tempo do cristianismo primitivo designava um todo indivisível que traduzia dois aspectos do mesmo processo, cuja importância na história posterior da religião cristã exige aqui um exame mais circunstancjadoA palavra «bispo», assim como muitas outras que figuram no Nôvo Testamento, não era, nessa época, espec’ifican-iente cristã. Ela se compõe, em grego, da preposição epi (sôbre) e e da raiz do verbo scopeo (olhar), significando em latim inspector, vigilante (surveillant). Os escritores da Antigüidade empregavam freqüentemente êste têrmo em sentido não religioso, e êle se encontra igualmente na tradução grega do Velho Testamento, que foi terminada muito antes da nossa era.No que concerne ao Nôvo Testamento, encontra-se a palavra «bispos» nas epístolas pastorais, onde êles aparecem na qualidade de chefes reconhecidos, não sômente de tais ou quais comunidades, mas, também, de uniões destas, como em Creta, tendo então, entre outras coisas, o direito de nomear anciãos nos agrupamentos submetidos à sua autoridade. Segundo essas epístolas, o próprio apóstolo Paulo ordenou Tito e Timóteo. O Apocalipse de João, antçrior às epístolas, ignora completamente os bispds, e fala apenas de anciãos, apóstolos e profetas.As primeiras epístolas paulinianas citam as categorias lembradas no Apocalipse e acrescentam os doutores, os que têm o dom de curar, os que têm o dom dos milagres, os que interpretam e falam línguas. O autor da primeira Epístola aos Coríntios, enumerando os diferentes membros do «corpo de Cristo», fala de todos êsses personagens, sem nomear os bispos e os diáconos. O segundo grupo das epístolas paulinia.. nas cita ainda os evangelhistas e os pastores, mas persiste em silenciar sôbre bispos e diáconos. Êstes aparecem apenas uma vez no preâmbulo da Epístola aos Filipenses, mas essa passagem parece ter sido intercalada posterjormente.Êsse silêncio em relação aos dirigentes religiosos queiriam desempenhar, em seguida, um papel decisivo no seio daIgreja não é fortuito, Só pode ser explicado se se aceita quea influência dos bispos começou a se fazer sentir precisamentea partir dos meados do século II, isto é, depois da composição dos primeiros documentos da literatura cristã primitiva.

Page 191: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

196A ORIGEM DO CRISTIANISMOAcabamos de ver que os livros do Nôvo Testamento nada dizem a respeito dos bispos, ou quase nada, com exceção das epístolas pastorais. Ë significativo que a palavra grega episcopoí seja traduzida corretamente nas edições sinodais russas da Bíblia: vigilantes e não bispos. (Atos dos Apóstolos, XX, 28.) O Nôvo Testamento parece ignorar quase que totalmente os bispos, mas os escritos não-canônicos, que remontam certamente ao século II, falam muito dêles, notadamente. as epístolas de S. Clemente Romano, aos Coríntios. A primeira delas, que a Igreja pretende tenha sido composta no final do século 1, é de data muito posterior; foi escrita, sem dúvida alguma, depois das epístolas paulinianas já analisadas anteriormente. O motivo que impeliu Clemente enviar essa epístola é muito interessante. Segundo êle, na comunidade de Corinto, «pessoas desonestas levantaram-se contra pessoas honradas, homens ignóbeis, contra homens gloriosos, tolos, contra inteligentes.» (Cap. III.) Ëles privaram o bispo de seu título, e Clemente vê aí um grave pecado, incompatível com a moral cristã. Êle chama a atenção, sobretudo, para o papel primordial do bispo na comunidade e, para provar que êste não pode ser deposto por rebeldes, declara que, tanto os bispos, corno os diáconos, são ordenados pelos apóstolos em pessoa.A primeira epístola de Clemente remonta visivelffiente à época da composição do segundo grupo de epístolas paulinianas; é por isso que, coisa característica, suas afirmações sôbre a santidade do título de bispo são acompanhadas de reservas que, depois do estabelecimento do episcopado monárquico, teriam sido taxadas de heréticas. No capítulo XLIV, por exemplo, êle reconhece que é necessário «o consentimento de tôda a comunidade» para que alguém possa tornar-s bispo. Clemente recorda além disso, traço sintomático, que os apóstolos «sabiam que o estabelecimento do episcopado suscitaria discórdias.» Terminando sua epístola, aconselha aos rebeldes que se submetam, não ao bispo, como se poderia esperar, mas aos anciãos (cap. LXII), reconhecendo assim, tàcitamente, que êles são superiores aos bispos. Tudo leva a crer que, então, a autoridade dêstes últimos estava longe de ser tão decisiva como o pretende Eusébio.A julgar por esta epístola não canônica, no comêço do século II, a comunidade cristã de Corinto foi o palco de um processo muito importante para o desenvolvimento ulterior do cristianismo. As epístolas canônicas aos Coríntios mostram que a direção desta comunidade achava-se nas mãos dos fiéis «tocados pela graça» (apóstolos, profetas, doutores), estando os negócios práticos e administrativos confiados aos anciãos.Porém, pouco a pouco, a direção passou às mãos dos bispos e dos seus auxiliares, os diáconos, encarregados a princípio,

Page 192: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 197muito modestamente, de gerir os bens. È útil recordar a êsse respito a passagem seguinte do décimo sexto capítulo da Dida quê: «Escolhei bispos e diáconos dignos do Senhor, homens bondosos, não agarrados ao dinheiro, verídicos e experimentados, que exerçam para vós o ofício de padres e de doutores.» A autoridade dos bispos não era muito grande, segundo parece, uma vez que o autor dêste escrito acha necessário lembrar aos fiéis que era preciso respeitá-los também.Uma das causas da influência crescente dos bispos e dos diáconos consistia em que pertenciam às camadas ricas da população; êles deviam, em primeiro lugar, ser responsáveis pelos valores materiais que lhes eram confiados, e, em segundo lugar, dispor de tempo necessário para o exercício de suas funções. As condições de vida dos escravos e dos cristãos pobres não lhes permitiam pretender semelhantes postos nas comunidades.O poder dos bispos aumentou gradualmente na comunidade de Corinto e nas outras também, e isso dependeu do grau de diferenciação social entre os cristãos, e da vigência de diversas heresias. Em meados do século II, o poder dos bispos tinha progredido, sobretudo nas comunidades cristãs da Asia Menor e da Síria, fato do qual se tem confirmação nas epístolas não canônicas de Inácio de Antioquia, aos efésios, magnesianos, tralianos, filadelfianos e smirniotas.A glorificação do clero e notadamente dos bispos é o temamaior das epístolas de Inácio, que sublinha que a nomeaçãodêles e a dos anciãos e dos diáconos está conforme com a«vontade de Deus» (Epístola aos Filadelfianos, 1), donde aobrigação para os crentes de obedecer ao bispo «como aopróprio Deus». (Tralianos, 2; Magnesianos, 2; Efésios, 6.)Comparando sem cessar os bispos a Jesus, Inácio acaba chegando à conclusão um pouco extravagante de que o Cristo é«o bispo do gênero humano». (Magnesianos, 3.)Postas essas premissas, prescreve-se aos fiéis que nada empreendam sem o consentimento do bispo ou dos anciãos. (Magnesianos, 7.) Inácio ataca violentamente «os que reconhecem a autoridade do bispo em palavras, mas fazem tudo sem êle.» (Ibidem, 4.) E êle considera-se no dever de repetir várias vêzes que os crentes que desobedecem ao bispo colocam-se fora da Igreja. (Tralianos, 3 e 7.) Sua afirmação:«Aquêle que não se encontra no interior do altar se priva do pão de Deus» (Efésio, 5), tese diametralmente oposta ao espírito das primeiras epístolas paulinianas por exemplo, torna-se, no final do século II, a pedra angular da dogmática cristã e do comportamento da Igreja.As epístolas de Inácio correspondem, pois, a uma nova fase na trajetória da constituição da Igreja. O cristianis

Page 193: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

198A ORIGEM DO CRISTIANISMOmo original não ëonhecia o episcopado enquanto tal, e as primeiras comunidades cristãs achavam-se sob a direção dos crentes «iluminados pela graça do Espírito Santo», porém a evolução posterior da religião cristã se distinguiu, sobretudo, pelo fortalecimento do poder dos bispos. Na primeira epístola não canônica de S. Clemente vemos que o bispo está, no fundo, submetido à autoridade dos anciãos, e que o seu poder dependia do consentimento da massa dos fiéis. As epístolas de Inácio exigem já a subordinação dos anciãos ao bispo. Insistindo sôbre a necessidade da concórdia entre o bispo, os anciãos e os diáconos, o autor dessas mensagens acentua que o poder supremo na comunidade cristã deve pertencer ao bispo, e sàmente a êle. Era o passo seguinte para a constituição do episcopado monárquico.É necessário dizer que tal desvio da igualdade dos crentes dos primeiros tempos não podia deixar de suscitar a resistência dos crentes. Encontram-se vestígios dêsse descontentamento nas comunidades de Corinto e da Ásia Menor. Os apelos à unidade, endereçados aos crentes, testemunham que aquela oposição era muito séria. Mas, o triunfo na luta entre as tendências cristãs estava reservado ao clero pela fôrça das coisas.O combate em tôrno dos direitos dos bispos e do papel do clero nascente revestia as mais diversas formas, e não se limitava apenas à questão da competência dos bispos. Essp luta encontrou uma expressão pouco particular num escrito cristão apócrifo: o Pastor de Hermas, cujo conteúdo é consagrado principalmente ao problema da Igreja. Hermas conta que teve a visão de uma mulher idosa que lhe mostrava uma alta tôrre em vias de construção, em cuja base viam-se pedras brilhantes e quadradas. Os construtores escolhiam outras pedras que também eram utiilzadas, e afastavam aquelas que não queriam, seja por causa de sua forma, seja porque elas estavam fendidas. A aparição explicou-lhe que a tôrre simbolizava a Igreja, as pedras polidas da base eram os apóstolos, os bispos e os diáconos. O resto do material representava a massa dos crentes, que deviam ainda vir a ser virtuosos, como o cristianismo o exige, para se tornarem dignos de fazer parte do edifício da Igreja. A aparição acrescentou que, quando a tôrre estivesse acabada, já seria muito tarde, e que as pessoas que se tivessem revelado inúteis não poderiam mais esperar a salvação.O Pastor proclama, dêsse modo, a tese das epístolas de Clemente e de Inácio, segundo a qual só a Igreja representa o cristianismo, sendo o clero a sua base, enquanto que os outros crentes apenas condicionalmente fazem parte dela.A crescente influência dos bispos e a ampliação de suas funções aumentava o seu papel nas comunidades. Os cargos que

Page 194: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DUkANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 199êles assumiam, em meados do século II, são descritos de um modo bastante pormenorizado nas epístolas pastorais inclusas no cânone da Igreja. Deviam, antes de tudo, gerir as finanças das comunidades. A difusão do cristianismo, particularmente entre as classes possuidoras, contribuiu para aumentar os fundos monetários das comunidades, permitindo-lhes adquirir diversos bens. Os gastos para a manutenção dos cemitérios, das capelas, para a organização das refeições comunais, para a compra de livros santos etc, eram feitos por intermédio dos bispos e dos diáconos. A espera do fim do mundo, que a predicação escatológica proclamava próximo, levava alguns crentes a renunciarem aos seus bens em proveito da Igreja, sobretudo quando faziam seus testamentos. Mesmo quando essa prática foi substituída pela esmola, a situação financeira das comunidades continuou próspera: a distribuição das esmolas se efetuava sempre por via do clero. O quinto capítulo da primeira Epístola a Timóteo é quase que inteiramente consagrada à predicação da assistência aos pobres, notadamente às viúvas. Não se pode duvidar de que os valores bastante importantes das comunidades à dispo sição dos bispos eram largamente utilizados por êstes para aumentar sua própria influência sôbre a massa dos cristãos.Tendo os bispos à sua disposição somas muito elevadas, parece que isso engendrou abusos da parte dêles: os autores das epístolas pastorais lembram sem cessar que os bispos e os diáconos devem se distinguir pelo seu desinterêsse pelo dinheiro. (1 Timo’teo, III, 3 e 8; Tito, 1, 7 etc.) Os apelos reiterados que se lhes dirige, exortando-os a não se darem ao vinho, a evitarem os gestos violentos, a serem castos, bosquejam um quadro bem eloqüente dos costumes pouco virtuosos do clero.A principal função dos bispos era, contudo, a luta contra as heresias. Já as epístolas pastorais, assim como as mensagens não canônicas de Inácio, deixam de recomendar a pregação entre os adeptos de outros cultos, e insistem sôbre a necessidade de evitar «as disputas de palavras, que só servem para arruinar a fé dos que as ouvem.» (II Timóteo, II, 14.) Os discursos que se endereçam aos heréticos são qualificados no versículo 16 de «vãos e profanos». Assim, o principal meio de ação dos bispos sôbre suas ovelhas não é mais a pregação, são as medidas repressivas e a beneficência. É significativo que não se pensava mais em exigir dos pretendentes ao título de bispo o dom da eloqüência sagrada, a aptidão para desfazer as dúvidas dos crentes, o conhecimento das santas escrituras etc.Uma vez que estamos tratando da constituição do episcopado monárquico, será útil determo-nos um pouco mais longa. mente no exame do desenvolvimento da comunidade cristã de Roma, primeiramente porque possuímos. sôbre ela mais infor

Page 195: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

200A ORIGEM DO CRISTIANISMOmações do que sôbre tôdas as outras, e, depois, porque os bispos romanos desempenharam um papel muito importante no estabelecimento do cânone do Nôvo Testamento.Para justificar a pretensão do Papa ao poder supremo, os chefes do catolicismo contemporâneo citam antes de tudo a passagem do Evangelho Segundo Mateus em que se atribui a Jesus estas palavras dirigidas a Pedro: «E também eu te digo que tu és Pedro, e sôbre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na Terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na Terra será desligado nos céus.» (Mateus, XVI, 18-19.) Os teólogos consideram êste apóstolo como o fundador da comunidade cristã de Roma e séu primeiro bispo; segundo êles, os bispos romanos, aos quais se deu posteriormente o nome de papas, são seus sucessores e, como tais, devem estar à testa da Igreja universal.Porém, essas linhas do Evangelho Segundo Mateus são posteriores, sem dúvida, à redação primitiva. Os evangelistas, em geral, evitam empregar a palavra «Igreja». Salta aos olhos, por outro lado, que a anunciação do fim do mundo num futuro próximo contradiz o projeto de edificação de uma Igreja universaL Além disso, a passagem citada não figura nos outros evangelhos.A comunidade cristã de Roma não se formou, visivelmente, senão no século II, fato êsse que é confirmado pela própria arqueologia cristã. Os vestígios mais antigos de cristãos em Roma remontam apenas aos meados do século 1, e isso, é atestado pelos documentos literários da Antigüidade. A lista de bispos romanos remontando a Pedro, apresentada, p.ela primeira vez, por Irineu, só é verídica a partir da segunda metade do século II.Os chefes da comunidade cristã de Roma não tinham pretendido, até essa época, qualquer prerrogativa especial em relação aos bispos de outras cidades. Tertuliano e Orígenes levantaram-se enèrgicamente contra a idéia de que a Igreja teria sido fundada sàmente por Pedro, e não por todos os apóstolos. Quando, no ano de 178, o bispo romano Eleutério considerou-se no dever de estigmatizar as seitas montanistas, as comunidades da Gália acharam possível dirigir-se a êle para pedir que renunciasse aos seus ataques. Vitor, seu sucessor, excomungou as comunidades da Ásia Menor por celebrarem a páscoa na mesma época que os judeus, mas quando Irineu reclamou uma solução conciliatória, êle vciltou atrás na sua decisão. Tertuliano perguntou-lhe irônicamente se convinha admitir que êle estava se preparando, «julgando-se pontifex maximus, bispo dos bispos, para dar ordens a êstes.»

Page 196: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 20iTudo isso prova que os bispos romanos começaram a tatear o terreno visando a submeter ao seu poder as outras comunidades cristãs, sàmente a partir da segunda metade do século II, isto é, depois da constituição do episcopado monárquico. Porém, detiveram-se ante a oposição despertada nessas comunidades, e se viram, mais de uma vez, obrigados a bater em retirada. Só conseguiram se impor às comunidades orientais do Império ao cabo de um século, no final do século III, e, definitivamente, no comêço do século IV. Mas, o estudo dêste problema ultrapassa os planos da presente obra, de modo que nos devemos limitar a assinalar o papel ativo dos bispos romanos daquele período, no que concerne ao estabelecimento do cânone da Igreja. Os mais antigos catálogos de escritos canônicos provêm da comunidade de Roma, precisamente das que se encontravam diretameite sob sua influência. Os bispos romanos mantiveram também uma luta particularmente tenaz contra os montaistas e os gnósticos.A ulterior evolução do cristianismo caminharia a par com o desenvolvimento de uma hierarquia eclesiástica separada da massa dos crentes. A partir do século III apareceram os «bispos do côro», que no’ século VI receberam o nome de arcebispos. Os bispos das cidades orientais mais importantes do Império, Alexandria, Antióquia, Constantinopla, receberam, a partir do século IV, o nome de patriarcas e de metropolistas. O aumento do número de diáconos determinou a criação, no comêço do século IV também, do título de arquidiácono. Por essa época, aproximadamente, surgiram os adjuntos dos bispos. E assim se foi constituindo a poderosa corporação clerical, senhora das grandes riquezas acumuladas pela Igreja, e que utilizava sua influência sôbre os crentes para os conciliar com seus exploradores. Uma das funções primordiais do aparato eclesiástico consistia em lutar contra as correntes heréticas que ainda conservavam os elementos próprios do cristianismo original.A constituição do episcopado progredia paralelamente ao estabelecimento do cânone. Na época do cárisma nas comunidades cristãs, a pregação na nova religião era oral; o principal papel nas assembléias competia aos profetas, dos quais se fala com freqüência nas primeiras epístolas de Paulo. Êles proferiam seus sermões em estado de êxtase e não se sentiam tolhidos pelos’ livros sagrados. Quanto mais incoerente era a sua linguagem, mais profunda era a impressão que causavam, pois acreditava-se que era ‘justamente então que o Espírito Santo os inspirava. A recordação das profecias proferidas em êxtase foi conservada nos primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos, o menos antigo dos escritos’ do Nôvo Testamento, onde se encontra, todavia, muitos dos traços da ideologia e dos costumes dos primeiros cristãos. É significativo que apesar

Page 197: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

202A ORIGEM DO CRISTIANISMOda luta do clero contra o prestígio dos profetas «inspirados», alguns traços da vida das comunidades cristãs primitivas, ligados pela tradição ao nome dos apóstolos, não deixaram de ser honrados mesmo durante a segunda metade do século II.Pouco a pouco, as necessidades da pregação, o aparecimento do clero e a propagação cada vez mais vasta do cristianismo, puseram na ordem do dia o problema da fixação por escrito do credo da nova religião. Os escritos cristãos importantes sob tal ou qual aspecto eram copiados e lidos nas assembléias dos fiéis. As epístolas às diferentes comunidades cristãs, que tinham por tema a situação no seio de cada uma delas, foram um dos gêneros mais antigos e mais difundidos da literatura do cristianismo primitivo. Para dar maior autoridade a essas mensagens, elas eram atribuídas aos guias conhecidos da nova religião, notadamente aos apóstolos.Lembremos, aqui, que, tal como a palavra «bispo», a palavra «apóstolo» não era, no comêço, especificamente cristã, nem mesmo religiosa, pois apenas significava «mensageiro» em grego, nada mais. Os judeus chamavam dêsse modo aos emissários religiosos palestinos encarregados, por exemplo, de recolher as contribuições dos crentes nas comunidades da diáspora. Os primeiros cristãos empregaram êsse têrmo aproximadamente no mesmo sentido. Foi só depois da aparição do mito de Jesus que se deu o nome de apóstolos aôs discípulos do Cristo. Que os apóstolos não passam de figuras simbólicas, o pormenor seguinte o confirma: nos Atos está dito (1, 15-28) que, quando Jesus foi crucificado, seus discípulos decidiram que, tendo Judas traído, faltava ainda um apóstolo para continuar sendo doze; ora, doze era visivelmente um número mágico tal como o das «doze tribos de Israel».Outro gênero literário próprio do cristianismo primitivo eram os apocalipses que descreviam visões ligadas ao advento do Messias Salvador. Ëles eram muito populares entre os hebreus, e alguns dêles foram incluídos no Antigo Testamento.Os evangelhos, escritos especificamente cristãos, transmitiam «a boa nova» do advento do Cristo, descreviam os episódios de sua vida terrena e, como os apocalipses, eram habitualmente atribuídos a apóstolos. Conhecemos mais de vinte evangelhos, se bem que apenas pelas referências ou por fragmentos que foram conservados. A Igreja reconheceu apenas quatro sem, com isso, os tornar mais verídicos.A partir da segunda metade do século II, o cristianismo já possuia uma vasta literatura, nascida nas diversas comunidades, e cujo grau de autoridade aos olhos dos crentes dependia das circunstâncias. Êsses escritos expunham os dogmas cristãos, cada um a seu modo. Já vimos que mesmo uma questão tão fundamental como a da existência terrestre de Jesus é inter-

Page 198: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

o CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO StCULO II 203pretada nos evangelhos canônicos de maneiras muito diferentes. As contradições a êsse respeito eram ainda maiores nos escritos cristãos rejeitados pela Igreja. A luta entre as correntes cristãs giravam em tôrno das mais diversas questões, as disputas que levavam até à ruptura tinham por objeto a atitude a adotar em relação ao judaísmo, à data da celebração da páscoa, à natureza divina ou humana de Jesus etc. Nessas condições, pode-se dizer sem nenhum exagêro que a existência da nova religião dependia antes de tudo da canonização dos dogmas.Os representantes do clero nascente foram os primeiros a perceber a necessidade de cercar certo número de escritos cristãos com uma auréola de santidade, e de rejeitar todos os outros. A canonização de determinado grupo de livros sagrados certamente oporia uma barreira à difusão das doutrinas heréticas, permitiria estigmatizar os escritos que expusessem idéias contrárias aos interêsses dos dirigentes das comunidades cristãs (precisamente as idéias próprias do cristianismo original). De outra parte, o estabelecimento do cânone abria a possibilidade de se corrigir, de passagem, as obras cristãs dos primeiros tempos, muito espalhadas entre os crentes para serem repelidas simplesmente como apócrifas.A fixação do cânone cristão assumia tal importância aos olhos da Igreja, que Eusébio, autor da primeira história eclesiástica, considerou-se no dever de a consagrar principalmente ao exame daquela questão. Não se limitou a enumerar os livros reconhecidos como canônicos, assinalou também a existência de divergências quanto à inclusão no cânone das epístolas de Tiago, de Judas e das últimas epístolas de Pedro e de João, divergências do mesmo caráter que as suscitadas pelo Apocalipse. No que concerne aos evangelhos não canônicos, Eusébio nota que «suas idéias e as teses que êles expõem afastam-se muito da verdadeira fé, não passando, sem dúvida alguma, de invenções dos heréticos.»Dispomos de dois pontos cronológicos de referência bastante seguros para o estudo do estabelecimento do cânone cristão, dos quais o primeiro é a obra de Irineu que reconhecia como santos, por volta do ano de 180, «quatro evangelhos, e sômente quatro», e o segundo, o cânone de Muratori, que remonta aproximadamente ao ano 200 e que enumera quase todos os livros incluídos no Nôvo Testamento.Assim, o processo da fixação do cânone estava estreitamente ligado ao da constituição do episcopado monárquico. Na verdade, tratava-se aí de dois aspectos do mesmo fenômeno, que encerrou, quanto ao essencial, o período inicial da história do cristianismo. Posteriormente, o cristianismo já se apresentará como uma religião definitivamente cristalizada.

Page 199: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

A ORIGEM DO CRISTIANISMO 2045. OS CRÍTICOS ANTIGOS DO CRISTIANISMJOAo abordarmos as fontes históricas do cristianismo até a segunda metade do século II, nós nos limitamos, quase que exclusivamente, ao exame dos documentos cristãos. A literatura judia, grega e latina do século 1 e começos do II, mantém um silêncio quase completo sôbre a nova religião: ela não interessa aos escritores leigos da época, os quais não viam nela senão uma seita entre as muitas do oriente do império Romano.Esta situação só muda a partir da segunda metade do século II, pois dispomos então de testemunhos sôbre o cristianismo primitivo tão preciosos como as obras de Luciano, e, sobretudo, a de Celso. Nem o primeiro, nem o segundo tinham razões para serem mais hostis a esta religião do que a qualquer outro culto oriental, o que nos garante, de certo modo, o caráter mais ou menos objetivo de suas informações.As convicções de Luciano e de Celso se aparentam. Pertencem ambos ao mesmo grupo de intelectuais greco-romanos nutridos pela cultura antiga. O cristianismo lhes parecia inaceitável antes de tudo porque o consideravam como um amontoado de inverossimilhanças e de superstições. Êles sublinham a ingênua credulidade dos primeiros cristãos, sua paixão pelo maravilhoso e a ignorância crassa dos seus profetas e pregadores. Ësses dois escritores distinguem-se um do outro sobretudo pela maneira de encarar o cristianismo. Celso expõe e critica a doutrina cristã com o objetivo de reconhecer-lhe, no final das contas, o direito de existir ao lado dos outros cultos do Império, sob a seguinte condição: lealdade dos seus adeptos no plano político. Luciano dedica-se apenas a descrever os costumes dos pregadores itinerantes da nova religião e dos «fazedores de milagres» de tôdas as espécies.No seu relato, A Morte de Peregrinus, Luciano apresenta um quadro bastante exato, ainda que satírico, da vida das comunidades cristãs em meados do século II.Êle conta as aventuras de Peregrinus que, convertido ao cristianismo, passa por cima dos padres e dos doutores cristãos, assume a direção dêles, torna-se profeta, chefe da comunidade, e «faz tudo sôzinho, interpretando os escritos cristãos, explicando-os e compondo outros por conta própria.» Encarcerado por ser cristão, viu-se, repentinamente, objeto dos cuidados de todos os adeptos de Cristo. «Desde o amanhecer, via-se em roda da prisão uma multidão de velhas, de viúvas, de órfãos. Os chefes da seita depois de terem subornado o carcereiro passavam a noite junto dêle. Não se poderia imaginar maior dedicação em semelhante ocorrência; para dizer tudo em poucas palavras, nada era difícil para êles.» Emissários das cidades

Page 200: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 205da Ásia Menor vieram à Síria para intervir junto às autoridades, em favor do pobre Peregrinus! Luciano nota mais adiante que os cristãos nutriam a esperança de serem recompensados no reino dos céus, «desprezam também todos os bens, e os põem em comum. De sorte que, se surgir entre êles um impostor, um velhaco sagaz, não terá êle de dispender grandes esforços para se enriquecer muito depressa, rindo-se a socapa da simplicidade dêles.»Êste escritor zomba de tôdas as religiões da Antigüidade. Nada o impelia, portanto, a difamar particularmente a doutrina cristã, a ironizar precisamente os costumes dos cristãos. No conto citado, êle os lamenta mesmo por terem sido ludibriados pelo velhaco Peregrinus. Tudo isso dá maior valor ainda às suas informações sôbre a vida das comunidades cristãs primitivas.Peregrinus não interpreta apenas as escrituras, êle também compõe por «conta própria». Quem sabe se algumas das suas obras não deslizaram para o cânone! Luciano ainda ignora os bispos e os diáconos. As comunidades cristãs que êle descreve são dirigidas por profetas e anciãos, tal como aquelas a que se referem as primeiras epístolas paulinianas, mas, segundo êle, elas já mantêm relações bastante estreitas, umas com as outras.A se julgar por êsse relato, assim como por outras fontes, as perseguições contra os cristãos muito raramente tinham um caráter maciço. Encarcerado por ter aderido ao cristianismo, Peregrinus é assistido, dia e noite, pelos chefes cristãos que trazem sempre fartas refeições. Finalmente, o Governador da Síria o deixa «partir em paz, achando que êle não é digno nem mesmo de ser punido. »Assinalemos ainda que Luciano insiste sôbre o desprêzo dos adeptos do Cristo pelos bens dêste mundo, constatação tomada ao vivo sem dúvida alguma, e essa atitude cristã se explica pela espera extática do advento do reino de Deus.As informações fornecidas pelo canto satírico de Luciano coincidem, quanto ao essencial, com os dados das fontes cristãs. Segundo a opinião geral, Luciano o escreveu aproximadamente no ano de 165, quando ainda não se tinha estabelecido o cânone, nem triunfara ainda o episcopado monárquico.As superstições cristãs não foram submetidas, nas obras de Luciano e de Celso, a uma crítica sistemática. Orígenes acusou este último de seguir a doutrina epicurista, mas sem qualquer fundamento: Celso, que gosta muito de citar os filósofos gregos, nunca se refere, contudo, a Epicuro, e ataca o cristianismo apenas do ponto de vista do idealismo antigo. Apesar disso, soube apreender os mais vulneráveis aspectos da ideologia cristã, e suas observações foram utilizadas pelos críticos ulteriores do cristianismo, os enciclopedistas franceses inclusive.

Page 201: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

206A ORIGEM DO CRISTIANISMONo seu Discurso Verdadeiro, mostra-se bastante indignado pelo fato de que certos cristãos «se recusam a explicar ou a deixar que se lhes explique sua fé, repetindo frases tais como «não pergunta, crê», «a fé te salvará» (1, 9). Segundo êle, os cristãos buscam difundir sua religião sômente entre os ignorantes e os tolos absolutamente estranhos à filosofia, entre os escravos, as mulheres, as crianças. Vê o autor na inclinação do povo por tôda espécie de fábulas, a causa principal do êxito do cristianismo.Tudo isso correspondia à situação nos meios cristãos do século II. Convém lembrar, contudo, que Celso não podia compreender que a oposição dci cristianismo aos outros cultos e sua pregação aos humildes não era a fraqueza, mas o ponto forte do cristianismo. Êle também se engana ao compará-lo com os outros cultos, com o judaísmo, por exemplo, que êle considerava igualmente como sendo uma superstição, mas cujos adeptos eram a seus olhos mais dignos de estima: «observando os ritos ( . . . ) dos seus ancestrais, êles se comportam como todos os homens.» (Discurso Verdadeiro, V. 25.) Outra coisa que não lhe agradava nos cristãos era o apêlo que faziam aos homens de tôdas as nações.Religioso êle próprio e acreditando nos mitos gregos, Celso admitia a existência de Jesus. Achava, apenas, que êle não era Filho de Deus como o afirmavam os cristãos, mas um simples mistificador. Espantava-se da puerilidade daqueles que consideravam o Cristo como uma divindade sem razões suficientemente válidas. A admissão por Celso da fé religiosa como tal nada tem de estranho uma vez que êle venerava osdeuses gregos e romanos, acreditava na existência de Hércules e de outros heróis mitológicos; o que o espanta nos cristãos é o fato de êles atribuírem uma natureza divína à Jesus, fundando-se nas antigas profecias: «Os profetas, escreve êle, anunciarama vinda de um poderoso senhor de tôda a Terra, de todos os povos e de todos os exércitos, e não de tal impostor.»A crítica de Celso fornece informações muito importantes. Fala de Jesus apenas segundo as fontes cristãs, o que prova que, no seu tempo, ainda não se tinham introduzido passagens sôbre o Cristo nos escritos de Flávio Josefo e nos de outros escritores greco-romanos, sem o que êle não teria deixado de citar as comunicações dêles relativas ao tema de sua própria obra. Ële expõe, em seguida, uma versão. sôbre a origem de Jesus, diferente da dos evangelhos, apresentando-o como sendo filho de uma findadeira campestre e de um soldado cujo nome era -Pantera. Dissemos já que o Talmud chama Jesus de Iochoua Ben-Pandira. Dêsse modo, o livro de Celso vem provar que, no século II, existiam várias versões a respeito da biografia de Jesus.

Page 202: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SgCULO II 201Suas múltiplas notas sôbre os elementos sincretistas do cristianismo são extremamente importantes, elas ajudam a definir a ideologia cristã nos meados do século II. Celso fala do judaísmo como a fonte principal da religião cristã. Não é por acaso que êle consagra a primeira parte da sua obra à crítica do cristianismo, sob o ângulo da ortodoxia judaica, sublinhando, em tôda parte, que as profecias do Antigo Testamento constituem o único argumento em favor da nova religião. Assinala, contudo, desde o princípio, que o cristianismo tomou muitas outras coisas também de outras religiões, notadamente as profecias sôbre a ressurreição e anunciação do segundo advento do Cristo. Segundo Celso, a doutrina cristã dos sete céus deve sua origem à religião dos persas ou ao culto das Cabiras.4 Considera que o duelo entre Deus e o Diabo, que desempenha tão grande papel na doutrina cristã, foi tirado da filosofia grega e dos mitos egípcios. Acha que os mistérios de Mitra e de Sabazios foram incluídos pelos cristãos no seu culto, sem sofrer modificações substanciais. À guisa de conclusão, o autor do Discurso Verdadeiro afirma que os. cristãos, «copiando desajeitadamente os outros, deformaram por causa de sua igno- - rância» o que os gregos haviam dito «sem ênfase e sem o atribuir a Deus.»Celso revela-se bastante versado tanto na literatura judia como na cristã; conhecia não sômente os livros sagrados dessas religiões, mas também os escritos de diversas seitas cristãs. Era tão erudito nesse domínio que até o próprio Orígenes, um dos mais importantes Padres da Igreja do século III, se vê enrodilhado em dificuldades por êle. Celso estudou, em particular, as atividades dos profetas, não sàmente nos livros, mas também observando-os êle mesmo. Nota, indignado, que «muitos indivíduos obscuros, nos templos e nas ruas,- e até mendigos errando de cidade em cidade, de campo em campo, tomam fàcilmente, na época, a pôse de profetas.» Grande número dêles, desmascarados pelo autor, confessaram que inventavam por conta própria seus discursos incoerentes.Êsses personagens são, com efeito, figuras bem típicas do cristianismo original, assim como de outras religiões da época. Êles são freqüentemente mencionados nas epístolas paulinianas em que se expõem as regras de conduta dos profetas, em que se formulam os deveres das comunidades para com êles, e a maneira de distinguir, entre êles, os «falsos», dos «verdadeiros». Luciano também se refere a êles com muitos pormenores, e não há dúvida de que os traços que lhes atribui foram colhidos o vivo.

4 Divindades plotetoras dos navegantes segundo a mitologia grega.

Page 203: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

208 A ORIGEM DO CRISTIANISMOQuando se comparam os testemunhos de Celso e de Luciano, com os dados das epístolas paulinianas, vê-se como os mitos cristãos foram fabricados, e por quem. Não é por acaso que Celso se mostra tão admírado com a credulidade dos adeptos da nova religião.Os escritos cristãos dos primeiros tempos não eram muito mais verídicos do que as profecias- orais. Celso nota, indignado, que «alguns fiéis (...) num estado semelhante à embriaguez retocavam por três, quatro vêzes e ainda mais o texto original dos evangelhos para terem a possibilidade de subtraí-los às acusações.» Isso se aplica também aos evangelhos canônicos que estão repletos de contradições, apesar dos numerosos retoques. Celso diz também que os cristãos introduziam «blasfêmias» nos livros sibilinos (coletânea de profecias).Dá, por outro lado, muita atenção à luta entre as diversas tendências cristãs e diz de seus adeptos: «No comêço eram pouco numerosós e professavam a mesma crença, mas, ao se multiplicarem, dividiram-se, querendo cada um ter sua fração.» E mais adiante: «Éles [os cristãos] só têm de comum o nome. É a única coisa que não gostam de rejeitar; quanto ao resto, diferem em tudo.» Segundo a opinião de Celso, a nova religião distinguia-se não sômente pelo grande número de suas seitas, mas também pelo combate sem tréguas que elas mantinham umas contra as outras. Enumerando as seitas cristãs, êle cita os sibiinos, os simonianos, os marcelinos, os carpocratiaflos, os adeptos de Salomé, de Mariana, de Marta, de Márcio, e muitos çIutros. Descrevendo as relações entre as seitas, Celso escreve:«Elas se cobrem de injúrias abertamente ou sorrateiramente, não - chegam a ficar de acôrdo sôbre qualquer ponto e detestam-se miituamente. »Neste ponto, o escritor aponta um traço essencial do cristianismo primitivo, que é confirmado por tôdas as fontes,o Apocalipse de João, várias epístolas paulinianas, os evangelhos canônicos. Irineu e Eusébio, escritores cristãos, assinalam, por sua vez, numerosas heresias no cristianismo, o que contribuiu para acelerar a constituição do cânone depois da vitória do episcopado monárquico, como o leitor o viu páginas atrás.Celso constata a existência entre os cristãos de uma «igreja principal», outro testemunho importante. Dá essa denominação ao grupo de fiéis que veneram o Deus Pai dos judeus e reconhecem a cosmogonia do Velho Testamento; tal informação pode servir de critério seguro para estabelecer - a data da fundação da igreja episcopal. Celso nos informa ainda que no final do terceiro quarto do século II, a Igreja já existia, e se tinha separado nltidamente das outras correntes do cristianismo, e êsse fato não escapou ao perspicaz adversário dos cristãos.

Page 204: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 209Deve-se, portanto, situar o aparecimento do episcopado em meados do s&uio II.Porém, no tempo de Celso, êsse processo ainda estava longe do seu término. Em seu livro, êle dirige sua crítica das crenças cristãs não contra o dogma oficial da Igreja, mas contra os gnósticos, o que indica que considerava o gnosticismo como a tendência mais difundida entre os cristãos. O combate contra essa corrente, que via em Jesus um ser divino, mas nãoo Filho de Deus, desenvolveu-se, com efeito, no seio do cristianismo, do comêço, ao fim do século II. Pode-se admitir que, no tempo de Celso, o gnosticismo não era menos popular entre os cristãos, do que a doutrina que iria vencer e impor-se aos crentes. Celso fala também de Márcio que sustentava que as profecias do Antigo Testamento não podiam ser relacionadas com Jesus. O -marcionismo foi, no século II, um sério adversário da Igreja nascente.Celso sublinha que a composição social das comunidades cristãs não tornava a nova religião digna de respeito aos olhos dos romanos instruídos. Apesar de admitir que se podia encontrar entre os cristãos «homens de experiência e de juízo», declara que sua doutrina era professada, em geral, pelas pessoas humildes, achando isso natural aliás, pois, segundo êle, êles evitam abrir a bôca nos lugares públicos diante de pessoas de qualidade, enquanto que, ao depararem jovens, grupos de escravos ou de exaltados, êles se fatigavam contando-lhes maravilhas. Sempre segundo Celso, nos meios privados, os predicadores do cristianismo eram «tecelões, sapateiros, calceteiros, em suma, a gente mais grosseira» que se esforçava por espalhar sua fé entre as crianças, as mulheres e os escravos. Ële repete, por várias vêes, isso, e confessa seu aborrecimento por ver os cristãos empenhados em «expor a sabedoria divina a escravos ou a criaturas desprovidas de qualquer educação. . . »O quadro da composição social das comunidades cristãs por êle descrito coincide inteiramente com os dados dos primeiros documentos cristãos. Ao examinarmos as epístolas paulinianas mais antigas e os evangelhos, verificamos a mesma coisa quanto à base social do cristianismo primitivo. A influência desta religião sôbre as camadas abastadas da população sé começou a se tornar patente a partir da segunda metade do século II. Quando Celso compôs seu Discurso Verdadeiro «os trabalhadores e os oprimidos» formavam ainda a grande massa dos adeptos do Cristo. Porém, aquilo que o escritor considerava como sendo a fraqueza do cristianismo, isto é, suas ligações com as camadas profundas do povo, revelou-se, por fim, um dos principais fatôres do seu reconhecimento pelos imperadores romanos, os quais avaliam a fôrça do cristianismo justamente por sua influência sôbre as vastas massas da população.

Page 205: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

210A ORIGEM DO CRISTIANISMOCelso não faz qualquer alusão à hostilidade dos cristãos contra as autoridades romanas, o que é um importante índice do grau de evolução do crístianismo no momento em que êle escrevia e, ao mesmo tempo, uma prova da sua lucidez de observador. Na única passagem em que fala do «espírito rebelde» dos cristãos (Discurso Verdadeiro, III, 14), êle está se referindo não ao ódio contra o Estado Romano, mas aos sentimentos que os cristãos manifestam contra as outras religiões.Celso consagra largo espaço do seu livro à refutação de um dos dogmas fundamentais do cristianismo: a ressurreição de Jesus depois da crucificação. Os evangelhos vêem nisso a prova suprema da divindade de Jesus, e João acentua• que foi uma ressurreição da carne. Não é por acaso que tanto se fala da incredulidade de Tomé, um dos doze, que não queria acreditar na ressurreição antes de pôr seu dedo «no lugar dos cravos» e a «mão no lado» de Jesus. (Evangelho Segundo Jogo, XX, 25-27.) A crença dos cristãos na ressurreição do Senhor é tratada com ácida ironia por Celso. «Os mortos, escreve êle, são a esperança dos vermes. Que alma humana pode ter saudades de um corpo decomposto?» Esta frase prova até que ponto a religião cristã era incompatível com o nível dos conhecimentos de então. Celso ridiculariza com muito talento as representações antropocêntricas dos cristãos, que êle compara a vermes que se põem a dizer: «Deus existe, e depois dêle fomos nós que viemos, nascidos de Deus e feitos à sua imagem. Tudo nos está submetido: a Terra, as águas, o ar e os astros, tudo existe para nós, e para nos servir. Mas, alguns entre nós pecaram, e é por isso que Deus deve vir, ou enviar seu Filho, para castigar os ímpios e ajudar-nos a atingir a vida eterna com êle.» Apesar de venerar os velhos deuses greco-romanos, Celso sabia mostrar quão irrisórias eram as idéias religiosas dos cristãos.Devemos assinalar, agora, um aspecto do problema que escapou a êsse crítico da Antigüidade. A crença dos cristãos na ressurreição da carne e suas idéias antropocêntricas não se deviam ao acaso, eram inerentes à sua ideologia e ajudavam poderosamente a predicação do cristianismo tornando quase palpável o quadro da felicidade no além, o que aumentava grandemente seu domínio sôbre os escravos e sôbre os pobres. As esperanças dêstes, de renascer em carne no reino dos céus, criava um terreno propício à rápida difusão da nova religião. Quanto mais ingênuas eram essas esperanças, mais a ela se agarravam, e maior êxito tinha a religião que as semeava.Na última parte da sua obra, Celso expõe as razões que o levaram a escrever. Apesar de sua atitude claramente negativa em relação aos cristãos, êle não lhes pede senão que dêem prova de lealdade política para com o Imperador. Uma vez

Page 206: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II211que os adeptos do Cristo vivem no território romano, diz Celso, êles «estão na obrigação de prestar as homenagens habituais àqueles que o governam, a executar seus deveres nesta vida antes de se libertarem das suas cadéias.» Segundo êle, os cristãos são obrigados «a defender o Imperador com tôdas as suas fôrças, partilhar suas penas, bater-se em seu nome, participar de Suas campanhas quando fôr necessário.» Com esta condição,, devem êles gozar, segundo Celso, do díreito de professar abertamente sua fé, tal como todos os outros habitantes do Império.Esta posição de Celso, que tinha relações com os círculos governamentais de Roma, prova que a Igreja já se tinha transformado então em uma fôrça que os funcionários romanos não podiam inais negligenciar. Esta posição mostra, de outro lado, que não havia perseguições sistemáticas contra os cristãos, sob os Antoninos. As lendas da Igreja, a respeito dos numerosos mártires cristãos que suportaram galhardamente os suplícios a que foram submetidos, não são confirmadas pelos documentos de que dispomos.A atitude conciliadora dêste escritor em relação ao cristianismo mostra, finalmente, que os apologistas cristãos se enganam quando sustentam que a religião cristã, nos seus começos, condenava categàricamente «êsse mundo vil que chafurda nos vícios e nos pecados.» No final do século II, constata-se a tendência para uma aproximação recíproca entre a Igreja e o poder romano. E era natural, porque a evolução do cristianismo, sobretudo depois do aparecimento do episcopado monárquico, o tinha levado a renunciar, já há muito tempo, ao «extremismo» do Apocalipse, para tornar-se um culto perfeitamente inofensivo.6. AS HERESIAS DO SËCULO IIA história do cristianismo primitivo se distingue, em primeiro lugar, pela presença, no ‘seu seio, de um grande número de seitas diferentes, que mantêm entre si, segundo a expressão de Engels, uma luta darwiniana pela existência. Os Padres da Igreja explicam essa situação como resultante de um «ardil do Maligno», que queria comprometer a nova religião, deformá-la e impedir a qualquer preço a difusão da verdadeira fé, cujos fundamentos, a dar-se-lhes crédito, já existiam. Esta interpretação difere pouco, no fundo, da dos teólogos contemporâneos que apresentam o cristianismo como uma religião que nasceu tal como é hoje, com uma dogmática concluído, e que se difundiu em seguida gradualmente. Colocando-se nesse ponto de vista, dever-se-ia também considerar como deformações deliberadas as teses contrárias a certos dogmas cristãos expostas

Page 207: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

212A ORIGEM DO CRISTIANISMOcá e lá em todos os escritos canônicos e nas obras dos primeiros apologistas cristãos.Na realidade, as coisas se passaram de outro modo. As advertências dos autores das epístolas, dos apocalipses e dos evangelhos contra tôdas as espécies de falsas doutrinas, falsos profetas e até mesmo de falsos Jesus atestam que, durante muito tempo, não se dispôs de uma digmática definitivamente constituída e reconhecida por todos. O aparecimento, no final do século II, do importante Tratado Contra as Heresias, de Irineu, a constante atenção que Tertuliano presta à luta contra as correntes heréticas mostra que, mesmo por essa época, o credo cristão ainda não tinha tomado sua forma definitiva. A aspereza da luta nesse terreno, as alusões dos escritores ortodoxos ao fato de que certos evangelhos e epístolas, notadamente as paulinianas, eram, às vêzes, consideradas como falsificações, são outros tantos fatos que testemunham que as tendências condenadas pela Igreja tinham o direito de se crerem depositárias dos ensinamentos do cristianismo primitivo, no mesmo pé de igualdade que o dogma oficial.O aparecimento do episcopado, nós já o vimos, foi, em larga escala, o resultado da necessidade imperiosa em que se encontrou o cristianismo de criar para si uma dogmática. Porém, convocado para a fixar e a sancionar, o episcopado não conseguiu, no comêço, pôr fim às divergências, não fêz mais do que estimulá-las: às antigas divergências ajuntou-se aquela concernente à sua própria autoridade. Durante muito tempo, a Igreja teve de lutar, antes de poder expulsar as correntes heréticas do cristianismo oficial, e o estabelecimento do cânone do Nôvo Testamento não desempenhou o papel final nesse assunto. As heresias que iriam ter tão grande importância na história posterior do cristianismo não surgiram, portanto, senão durante o período da constituição do episcopado e do estabelecimento do cânone.Não dispomos de um número suficiente de informações para poder definir a composição social e o programa social das seitas heréticas do século II. E ainda mais difícil discernir o que distinguia essas seitas, sob êste aspecto, das comunidades cristãs submetidas aos bispos. Nos escritos dos primeiros apologistas cristãos e dos Padres da Igreja as discussões com os heréticos não ultrapassava o plano estritamente religioso. Ë por isso que nos é impossível indicar a natureza social dos grupos que se ligavam a estas ou àquelas correntes heréticas do cristianismo primitivo. Os dados disponíveis permitem afirmar com certeza que o clero representava os interêsses das camadas abastadas das comunidades cristãs, enquanto que as heresias recrutavam seus adeptos sôbretudo entre os escravos, os libertos, os pobres das cidades, justamente aquêles que esperavam

Page 208: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 213ardentemente o advento do reino de Deus e que se levantavam categôricamente contra a tendência à conciliação com o poder imperial. O ascetismo pregado por um grande número de seitas heréticas encontrava também profunda ressonância, sobretudo entre os pobres.No século II, a Igreja lutou principalmente em três frentes:contra a tendência judaico-cristã, contra õ montanismo, e contra o gnosticismo, correntes que se compunham de um número mais ou menos elevado de seitas diferentes, com exceção apenas, talvez, da seita de Montanus. Como a Igreja não poupou esforços para aniquilar os escritos heréticos, não dispomos atualmente senão de uma parte ínfima da abundante literatura discidente, mas graças às obras polêmicas de Irineu, de Tertuliano e de Eusébio podemos ter uma idéia bastante clara das correntes oposicionistas no seio da cristandade.Estamos relativamente bem informados sôbre a luta da Igreja contra a tendência judaico-cristã. A impossibilidade para o cristianismo de romper ràpida e radicalmente com o judaísmo, a necessidade de uma lenta evolução nesse sentido prolongaram êsse combate, tornando-o extremamente encarniçado. Não possuindo ainda o cristianismo um órgão diretor reconhecido por todos, a renúncia aos princípios essenciais do Apocalípse não poderia deixar de determinar o aparecimento de seitas que se erguiam contra as inovações e defendiam as posições do cristianismo original. Eram os ebionitas, os nazarenos, os elcesaítas etc., que manifestavam, todos, o desejo de unir o judaísmo, e o cristianismo.As informações relativamente abundantes de que dispomos se referem aos ebionitas. Irineu e Tertuliano falam desta seita em suas obras e Eusébio lhes consagra um capítulo especial do seu tratado. Segundo Irineu, os ebionitas, contràriamente aos gnósticos, admitiam que Deus tinha criado o mundo sem a ajuda de uma fôrça intermediária, mas, acrescenta êle, «o único evangelho que êles reconhecem é o de Mateus, e se recusam a aceitar a autoridade do apóstolo Paulo, afirmando que êle renegou a lei. No que concerne às profecias das escrituras, êles as interpretam um pouco a seu modo. Observam o rito da circuncisão, os preceitos da lei e permanecem fiéis aos costumes dos judeus, inclinando-se na direção de Jerusalém que, a seus olhos, é a casa de Deus.»Esta definição lacônica, mas bastante clara, das opiniões religiosas dos ebionitas, parece que nos transporta para a época do Apoclipse e da Epístola aos Romanos, dois dos mais antigos documentos cristãos. No Apocalipse de João, o reino de Deus assume o aspecto de uma Jerusalém celeste, e a Epístola aos Romanos reconhece a circuncisão, a lei mosaica e os costumes

Page 209: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

214A ORIGEM DO CRISTIANISMOdos judeus. Aquilo que Irineu acusa nos ebionitas, considerando-os desviados do cristianismo, corresponde, na realidade, às prescrições dos primeiros escritos cristãos.Tertuliano nos oferece uma importante informação s6bre os ebionitas quando assinala que êles vêem em Jesus não o Filho de Deus, mas sàmente um dos profetas. Ëste ponto parecia ser um protesto contra o Evangelho Segundo João, já canonizado na época de Tertuliano, no qual se acentua particularmente a natureza divina do lendário fundador do cristianismo. Eusébio detém-se ainda mais longamente no exame dêste aspecto da doutrina dos ebionitas, esclarecendo, em sua História Eclesiástica (III, 27), que êles consideravam Jesus como «um pobre semelhante a todos os outros, que tinha recebido o título de justo sômente por causa de sua virtude, e que tinha nascido da união de Maria com seu espôso.» Eusébio acrescenta que outro grupo de ebionitas admitia queo Cristo tinha nascido de Maria e do Espírito Santo, mas «recusavam-se a ver nêle o Verbo e a Sabedoria Divina.» Ainda segundo êste escritor, os ebionitas celebravam o sábado e, apesar de observarem também a festa dominical, seguiam, quanto ao resto, os usos e os costumes dos judeus. De todos êsses dados, pode-se concluir que os ebionitas eram uma seita tipicamente judaico-cristã, o que explica, aliás, sua oposição às epístolas paulinianas, em que a tendência antijudaica aparece com maior relêvo.Infelizmente, não dispomos de qualquer informação sôbre a composição social da seita dos ebionitas. O único indício a êsse respeito é, talvez, o seu nome, ebion, que significa em hebreu «pobre», «mendigo» mesmo, donde se pode deduzir que esta seita recrutava seus adeptos entre os judeus mais pobres. Porém, a literatura clerical não é unênime neste ponto: Tertuliano pretende que Ebion é apenas o nome do fundador da seita, enquanto que Eusébio, com desprêzo, diz que os ebionitas eram assim denominados porque pensavam pobremente, invectiva inspirada sem dúvida por seu ódio aos heréticos. Os autores mais antigos acham que os ebionitas davam-se a si mesmos êsse nome, e não era êle, portanto, uma alcunha inventada por seus adversários. Esta seita possuia seu próprio evangelho que, a dar-se crédito a Irineu, assemelhava-se ao Evangelho Segundo Mateus, mas êsse texto não chegou até nós.As seitas dos nazarenos e dos elcesaítas assemelhavam-se, segundo parece, à dos ebionitas. Referindo-se aos elcesaítas, Eusébio diz na obra já citada (VI, 38) que, tal como os ebionitas, êles não aceitavam as epístolas paulinianas, mas reconheciam todos os livros do Antigo Testamento, e alguns evangelhos. Segundo as comunicações de outros escritores cristãos, Elcesaí, fundador desta seita, viveu sob Trajano, isto é, nos

Page 210: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 215começos do século II, e compôs escritos que apresentavam uma mistura de idéias judaicas e de idéias cristãs.A própria marcha da evolução do cristianismo destinava as seitas judaico-cristãs ao desaparecimento. Suas fileiras só se poderiam engrossar graças ao elemento judeu exclusivamente, enquanto que a difusão da nova religião entre a população multinacional da bacia mediterrânea diminuia irresistivelmente a influência das correntes judaico-cristãs.A Igreja teve de lutar mais longamente contra o montanismo que, tal como as heresias judaico-cristãs, conservava muitos dos traços do cristianismo original, mas tratava-se justamente dos seus traços não judaicos. A luta da Igreja contra os montanistas foi longa, encarniçada, e ela só conseguiu a vitória à custa de grandes esforços, tão considerável foi a influência desta heresia no século II.Os escritos dos montanistas não foram conservados, mas outras fontes contêm referências aos seus evangeffios, epístolas etc. Eusébio, em particular, fala dos escritos de certo montanista: Astérius Urbanus. Também não dispomos das obras dos adversários do montanismo: Apolinário, Apolônio, Milcíades etc. Mas, Irineu, Eusébio e Tertuliano consagraram muita atenção a esta heresia, que êste último escritor abraçou no fim da sua vida. O quinto livro da História Eclesiástica de Eusébio contém seis capítulos bastante longos sôbre o montanismo. Essas fontes e ainda outras nos permitem fazer uma idéia bem nítida das doutrinas de Montanus.O montanismo deve seu nome ao seu fundador, que foi, a princípio, sacerdote de Cibele na Frígia (Ásia Menor), e que se mutilou durante a celebração de um mistério. Convertido em seguida ao cristianismo, não tardou a impor-se às comunidades cristãs locais. Sua doutrina também é conhecida sob o nome de heresia catafrigiana. Eusébio, baseando-se em escritos anteriores, diz que «muito dominado pelo desejo de ser o primeiro, certo Montanus, recentemente convertido, submeteu-se ao Inimigo [isto é, ao Diabo. 3-I.L] e sibitamente possuído, prêsa do delírio, pôs-se a divulgar as coisas mais estranhas, enunciando profecias contrárias à tradição fielmente conservada pela Igreja.» Eusébio reproduz também esta informação de Apolônio, sôbre Montanus: «Êle pregou o divórcio, estabeleceu jejuns rituais, deu a Pepuza e Tinion, pequenas cidades da Frígia, o nome de Jerusalém, com o fim de ali reunir gente de todos os países do mundo. Nomeou recebedores de donativos e, sob a cobertura de oferendas, deu margem às concussões.»Além de Montanus e Teodoro, as fontes citam como personagens de primeiro plano da heresia montanista duas pro

Page 211: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

216A ORIGEM DO CRISTIANISMOfetisas: Priscila e Maximilia, cujas atividades remontam à segunda metade do século II.As declarações dos apologistas cristãos testemunham que os montanistas atribuíam o dom da profecia e da graça não sómente aos representantes do dero, notadamente aos bispos, mas também aos fiéis das suas fileiras, causa principal da discórdia entre a Igreja e êsses heréticos. Os representantes da Igreja nunca perdiam a oportunidade de lembrar que as profecias de Montanus, de Priscila e de Maximilia não se tinham cumprido e, sôbretudo, que «elas eram contrárias à tradição fielmente conservada pela Igreja», o que não era verdade,, aliás, porque o que sabemos dos montanistas em nada contradiz as primeiras epístolas paulinianas. Por causa de sua oposição ao episcopado é que os montanistas eram atacados pelo clero, e tal fato é atestado por S. Jerônimo, um dos Padres da Igreja que diz: «Entre nós, o primeiro lugar é ocupado pelos bispos, enquanto que êles lhes reservam o terceiro, atribuindo o primeiro aos patriarcas da cidade de Pepuza, na Frígia, e o segundo àqueles que chamam de «companheiros», relegando assim os bispos ao último lugar. Na ocasião em que o pontificado monárquico se constituía, o montanismo representava para êle o mais grave perigo.Mas, as divergências entre o montanismo e a Igreja oficial não paravam aí: diferentemente desta, os montanistas aguar davam sempre a volta do Cristo num futuro próximo, de acôrdo com a predicação do Apocalipse. Foi justamente por essa razão que Montanus dera a Pepuza o nome de Jerusalém, pois estava convencido de que a segunda vinda do Cristo teria lugar nessa cidade. Os montanistas não hesitavam em abandonar suas casas e seus bens para se reunirem em Pepuza, na esperança de nela ver a «Jerusalém descida dos céus», o que lhes valeu a alcunha de «pepuzianos».Uma forte tendência escatológica distinguia o montanismo, da Igreja oficial. Em lugar de uma quaresma anual de quarenta dias prescrita por ela, êles observavam três. Os adeptos de Montanus condenavam categôricamente o segundo casamento pela Igreja. Continuavam a prática das refeições comunais, que a Igreja tinha abandonado em meados do século II, e é a isso, parece, que se refere a informação de Eusébio sôbre as coletas entre os adeptos da seita. O ascetismo dos montanistas decorria Iàgicamente da sua crença no fim iminente do mundo, e essa particularidade era própria também de numerosas outras heresias posteriores. A certeza de que tudo iria acabar inspirava o desprêzo pelos bens terrestres, e estimulava o desejo de garantir um lugar no reino de Deus por meio de mortificações da carne e de outros sofrimentos.

Page 212: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 217Examinando os primeiros escritos cristãos, já encontramos tudo isso: a fôrça do montanismo estava justamente no fato de que êle continuava a tradição do cristianismo original que a Igreja abandonou desde a sua aparição, em favor da tendência à conciliação com a ordem antiga. Tendo aparecido na Frígia e na Mísia, o montanismo difundiu-se ràpidamente não sômente no oriente, mas também no ocidente do Império. Predestinat relata que os catafrigianos foram «criticados por S. Sóter, Papa de Roma, e Apolônio, chefe da Igreja de Éfeso. Tertuliano, ancião de Cartago, opôs-se a êles; êle defende Montanus, contra Sóter, afirmando que se acusa falsamente seus partidários de utilizar o sangue dos inocentes e que êles reconhecem a trindade na unidade divina, o arrependimento dos decaídos e celebram páscoas como nós.»A alusão ao «sangue de inocentes», isto é, ao assassínio ritual de que a Igreja acusava os montanistas, corresponde às insinuações dos críticos antigos do cristianismo, Celso particularmente, contra os primeiros cristãos; o clero as repetia continuamente contra seus adversários, mas Tertuliano demonstrou suficientemente seu caráter calunioso.Dispomos de informações provenientes de diversas fontes sôbre a difusão do montanismo na África, em Roma, na Gália e na Grécia, bem como na Ásia Menor, onde êle era particularmente popular. O segrêdo do seu êxito se explica pelo fato de que, diferentemente da Igreja, anunciando o fim do mundo e pregando costumes ascéticos, os montanistas se opunham, por isso, ao regime político e social da época. As esperanças escatológicas da doutrina dos montanistas exprimiam um protesto contra o jugo sob o qual gemiam vastas massas da população, e é por isso que êles conquistavam o apoio «dos pobres, dos órfãos e das viúvas.» (Euse’bio, oh. cit., V. 18.)A Igreja manteve contra esta seita um combate particular- mente encarniçado. É significativo que os montanistas taxassem seus adversários de «assassinos de profetas». (Eusébio, ob. cit., V. 16.) A profetiza Maximilia lamentava-se por ter sido expulsa do meio dos crentes «como o lôbo, de entre as ovelhas.» Os primeiros concílios de bispos foram convocados justamente para estigmatizar a heresia catafrigiana. A Igreja procurava, por outro lado, utilizar contra os montanistas a autoridade dos mártires tombados por ocasião das perseguições desencadeadas contra os cristãos em Lugdunum, sob Marco Aurélio. E, logo que triunfou, ela mobilizou contra êles a máquina de Estado do Império Romano, primeiramente, e, depois, a de Bizâncio: os duros decretos imperiais contra os montanistas não cessaram de aparecer até o século VIII.O esmagamento do montanismo significava a ruptura definitiva com a ideologia do Apocalipse e das primeiras epístolas,

Page 213: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

218A ORIGEM DO CRISTIANISMOsubstituída pela dos evangelhos canônicos, nos quais se tinham apagado, na medida do possível, os vestígios do cristianismo original.O gnosticismo foi a terceira corrente herética com que a Igreja se chocou no sécúlo II. Seu nome é derivado da palavra grega gnosis, que significa «conhecimento», mas um conhecimento despojado, entre os gnósticos, convém lembrar, de qualquer sentido racional: referiam-se ao conhecimento de Deus, não ao da natureza. A questão que mais os preocupava era a das relações entre a matéria e o Altíssimo. A matéria não era senão pecado para os gnósticos, e - êles achavam que Deus nunca teria se rebaixado para criar êste mundo impuro, e é por isso que concebiam, entre êle e a natureza, tôda uma série de entidades mediadoras, os eons, mais ou menos divinos, cuja definição seria o objeto de uma disciplina especial: a gnose, o conhecimento.Eis uma passagem de Irineu, em que é apresentada uma amostra típica do pensamento gnóstico: «O primeiro lugar [na doutrina do grióstico Valentino] é ocupado pela parelha em que um é o Inexprimido, e o outro, o Silêncio. Essa parelha engendra outra, formada, segundo êle, pelo Pai e pela Verdade, a qual dá nascimento, por seu turno, à Palavra e à Vida, ao Homem e à Igreja; tudo isso compõe o primeiro oitavário. A Palavra e a Vida fizeram surgir, diz êle, dez Potências ( . . . ),o Homem e a Igreja, doze. Êle estabelece dois limites: um, entre o Abismo e o Pieroma, separa os eons criados, do Pai increado; o outro, separa a Mãe, dos eons do Pleroma. O Cristo proveiu não dos eons do Pleroma, mas da Mãe, independente dêle. Na qualidade de ser masculino, o Cristo se desembaraça da sombra para ir ao Pleroma. Quanto à sua Mãe, que permanece com sua sombra, privada da substância espiritual, dá à luz a outro filho. Ë o Demiurgo, que Valentino chama de Senhor do Universo.»Êsse delírio não foi inventado pelos gnósticos cristãos: o gnosticismo apareceu antes do cristianismo. Sua influência se faz sentir notadamente em certas obras de Filon, de Alexandria. Incoerente, ultramístico, o gnosticismo representa nos seus começos uma das correntes da filosofia greco-romana na época de sua decadência. Os gnósticos cristãos procuravam adaptar de qualquer maneira os dogmas da nova religião à filosofia idealista da época, da qual sua filosofia, para êles, não era no fundo senão um ramo.Diferentemente das heresias montanistas e das judaico- cristãs, das quais nenhum escrito nos chegou, possuímos numerosas obras gnósticas, greco-romanas e cristãs. Descobriu-se,

5 Pleroma, plenitude divina no sistema gnóstico.

Page 214: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 219em particular, depois da última guerra, um rico depósito de escritos gnósticos em Chenobosquion, no Egito. Os escritos anti-heréticos de Irineu, de Tertuliano e de muitos outros escritores eclesiásticos fornecem também informações a propósito dessa corrente, sôbre que concentram o fogo dos seus ataques, por considerarem que ela era, tal como o montanismo, o principal perigo para os dogmas ortodoxos. Notemos, de passagem, que alguns dos escritos introduzidos no cânone são fortemente marcados pelo gnosticismo.A luta entre o gnosticismo e o dogma ortodoxo girava principalmente em tôrno de duas questões. Em primeiro lugar, os gnósticos queriam eliminar do cristianismo os elementos judaicos. Em segundo lugar, não chegavam a se pôr de acôrdo acêrca da divindade de Jesus. Partindo daí, as discussões se estendiam a outras questões específicas, mesmo no seio das diferentes correntes gnósticas.Em regra geral, os gnósticos renegavam o Antigo Testamento, consideravam Jeová, o Deus dos hebreus, como uma das Fôrças do Mal, e estabeleciam uma nítida distinção entre êsse Deus, que êles chamavam Ialdabaoth, e o Deus Pai dos cristãos. Alguns gnósticos chegavam até a glorificar tudo aquilo que o Gênese amaldiçoava: a serpente, Caim etc. Os adeptos de uma seita gnóstica influente chamavam-se a si mesmos nahassênios ou ofitas, palavras que derivam respectivamente de serpente, em hebreu, e em grego. Os ideólogos do gnosticismo, por conseguinte, não reconheciam a autoridade de certas epístolas e dos evangelhos em que os elementos judaícos apareciam com um relêvo acentuado.Por outro lado, os gnósticos levantavam-se contra o dogma dos sinóticos referentes ao Jesus Homem-Deus, procurando ultrapassar, de diversas maneiras, as contradições dos evangelhos. Alguns entre êles afirmavam que Jesus não tinha mesmo nascido de Maria, outros proclamavam, ao contrário; que êle nada tinha de divino, que êle era um homem cheio de Espírito Santo ünicamente graças à sua virtude. Os gnósticos distinguiam Jesus, do Cristo, o homem, do Messias, argüindo que só o primeiro, enquanto criatura humana, poderia ter sido crucificado.Os primeiros representantes do gnosticismo cristão foram Carpocrato, Cerinto e Cerdon. Eusébio fala de Carpocrato como sendo o fundador da heresia gnóstica. Irineu assinala, por sua vez, que êles já agiam durante a primeira metade do século II. E que Cerinto, oriundo do Egito, «ensinava que o mundo tinha sido criado não pelo Deus supremo, mas por uma potência muito abaixo dêsse Deus, o Príncipe Supremo. (...) Afirmava que Jesus não tinha sido concebido por uma virgem (isso lhe parecia inimaginável), que êle era verdadeiramente filho de Maria e de José, e que êle tinha excedido

Page 215: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

220A ORIGEM DO CRISTIANISMOtodos os homens por sua eqüidade, seu bom senso e sua sabedoria. Durante o batismo do Cristo, o enviado do Príncipe inicial desceu sôbre êle, sob o aspecto de uma pomba; depois disso, êle anunciou o Pai desconhecido e realizou milagres. Separado em seguida do Cristo, Jesus sofreu o suplício, morreu e ressuscitou, O Cristo, ser espiritual, nada sofreu.» Quanto a Cerdon, Irineu diz que êle pregava em Roma, no tempo do Bispo Higino, no ano 140, «que o Deus proclamado pela Lei dos profetas não é o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque tinha-se conhecido o primeiro, mas não se tinha conhecido o Pai de Cristo.»Assim, os gnósticos cristãos proclamaram desde o comêço os dogmas doutrinários que seus adeptos apenas procuraram desenvolver depois. Êles opõem Jeová ao Deus Pai, chamado Príncipe Supremo, distinguem Jesus, ser mortal, do Cristo, Messias divino, esboçam a doutrina dos eons, mediadores entre Deus, e êste mundo pecador.O mais importante dos representantes do gnosticismo cristão foi Márcio, sôbre o qual possuímos muitas informações provenientes de fontes anti-heréticas. Tertuliano compôs uma obra em cinco livros Contra Márcio, e Irineu, assim como Justino, seu precursor, consagrou também grande atenção à heresia marcionita.Rico armador, nascido no Ponto, província romana da Ásia Menor, Márcio foi chamado irônicamente, por Tertuliano, de «navegante do Ponto Euxino.» (Nome antigo do Mar Negro.) Fixou-se em Roma, na mesma época que Cerdon. Aderindo à comunidade cristã local, doou-lhe a bela soma de 200 mil sestércios, e ocupou logo em seguida uma posição de destaque. A luta contra êste heresiarca foi longa. Foi excomungado por duas vêzes mas, tendo se arrependido no final dos seus dias, como o atesta Tertuliano, morreu no regaço da Igreja. Sua influência era tão grande, que a Igreja já tinha decidido deixá-lo em paz se êle consentisse em fazer retornar a eia aquêles que êle havia «afastado dela.»Condenando as «vergonhosas blasfêmias» de Márcio, Irineu expõe assim a doutrina marcionita: «O Deus proclamado pela Lei e os profetas é (segundo Márcio) a origem do Mal; ama a guerra, e, inconstante, se contradiz muitas vêzes. jesus foi engendrado pelo Pai, superior ou Criador do Mundo e.) apareceu ao povo de Israel sob o aspecto de um homem que destruía a autoridade dos profetas, da Lei, a obra de Deus, que criou o mundo.» E êle acrescenta: «Márcio procura convencer seus discípulos de que êle é mais digno de confiança do que os apóstolos que transmitiram os evangelhos, dos quais êle apenas lhes comunica uma parte ínfima. Êle risca também,

Page 216: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

o CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO a 221das epístolas paulinianas, tudo o que o apóstolo disse clara mente sôbre o Deus criador do mundo. »Márcio negava a natureza humana de Jesus, interpretando, conseqüentemente, de um modo puramente simbólico o relato da crucificação e da ressurreição, que êle não considerava com.o acontecimentos reais. Esta concepção marcionita, desenvolvida ulteriormente por outros gnósticos, era evidentemente atacada por seus adversários, que conheciam já o poder desta lenda sôbre os crentes, O dogma do resgaste dos pecados humanos pelo sangue do Cristo era absolutamente incompatível com aquela concepção simbólica da Paixão. É admissível que as genealogias de Jesus no Evangelho Segundo Mateus e no Evangelho Segundo Lucas foram inventadas precisamente no decorrer da Juta contra o marcionismo.O ascetismo era também um traço característico da doutrina de Márcio, como, aliás, de muitas outras correntes gnósticas. Não se limitava a condenar o segundo casamento, pregava a castidade, proclamando-a preferível ao casamento. Neste plano, professava as idéias do estoicismo romano, e não é por acaso que Tertuliano o qualifica de «estóico rigoroso.»Os gnósticos continuaram a desenvolver a doutrina de Márcio, dedicando-se sobretudo a inventar sistemas de eons ainda mais obscuros no gênero das elocubrações de Valentino, anteriormente citadas.As idéias do gnosticismo cristão estão expressas de modo mais ordenado num dos escritos de Chenobosquion, o Apócrifo de João, que expõe a Revelação transmitida por Jesus a êste apóstolo no Monte das Oliveiras. No preâmbulo, o autor previne que esta Revelação não deve ser comunicada senão às pessoas dignas e capazes de compreender o seu sentido. Diz-se nela que Deus é o Ser supremo do «mundo da luz», completamente diferente do nosso, que é material. Ligados apenas a êste, somos incapazes de conceber a natureza de Deus.Segundo êste apócrifo, os eons, entidades divinas, apareceram da seguinte maneira: o reflexo da face de Deus sôbre a água deu nascimento a uma deusa, o eon Barbelo, que engendrou vários eons, dos quais o Cristo, «centelha divina», que, aliás, o manuscrito chama de Crest, o «Util». Outro eon, Sofia («sabedoria», em grego) deu à luz um ser cruel e monstruoso, Ialdabaoth, que ela ocultou dos deuses, e que ignorou, dêsse modo, o «mundo da luz»: é o Jeová bíblico, criador do mundo material e do homem. Mas, o Deus supremo acendeu a centelha divina em cada alma humana, que se transforma assim em arena de um duelo perpétuo entre o princípio material, e o princípio divino. O Éden, paraíso terrestre, bem como a primeira mulher foram criados por Ialdabaoth com o fim de matar na alma de Adão a nostalgia do «mundo da luz».

Page 217: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

222A ORIGEM DO CRISTIANISMOMàs, Deus plantou no Éden a árvore da ciência, e o Cristo compeliu Adão a comer seus frutos, O dilúvio foi obra de Ialdabaoth. Noé foi guiado por Deus. Sua mulher, Nona6, inspirada por Ialdabaoth, põe fogo na arca, por três vêzes. Para se destruir o poder da Ialdabaoth, é preciso possuir a gnose, o conhecimento de Deus. E todos podem vencer o princípio do Mal, porque todos trazem em si a centelha divina. Porém, se o Mal triunfa no homem, sua alma, quando êle morre, tranSmigra para outro ser vivo, até o dia em que o Mal seja vencido. A perdição eterna é o quinhão apenas daqueles que renunciam a verdade, depois de a ter conhecido.Nesta variante do gnosticismo cristão, percebe-se nitidamente a influência da doutrina iraniana do combate entre o Bem e o Mal. O esquema da cosmogonia bíblica é retocado pelos gnósticos de tal maneira que todos os elementos judaicos são nêle engendrados pelo princípio do Mal, Ialdabaoth. O Cristo também figura na cosmogonia gnóstica, não sob o seu aspecto evangélico, mas na qualidade de príncipe eterno do Bem, submisso ao Deus Pai. Assim, apesar de evoluir numa direção antijudaica, à semelhança da doutrina oficial da Igreja, o gnosticismo cristão era, ao mesmo tempo, muito diferente desta.Assinalamos já que a influência dos gnósticos era grande desde a época de Celso. Não é por acaso que em sua obra sôbre o cristianismo êle dedica sua atenção não ao dogma que triunfou em seguida, mas à corrente gnóstica da nova religião.Na luta contra o gnosticismo, os representantes da Igreja retocavam sem cessar o «texto original dos evangelhos», como Celso o assinala, e isso não para restabelecer a «fé verdadeira», mas, ao contrário, para introduzir nos escritos canônicos tal ou qual tese dos gnósticos a fim de os subtrair à sua crítica, e conquistar parte dos seus adeptos. Tal é a razão do perdão concedido duas vêzes ao heresiarca Márcio pela comunidade cristã de Roma e, também, da diferença que as epístolas paulinianas julgam necessário estabelecer entre o homem animal, e o homem espiritual, o que está perfeitamente de acôrdo com a doutrina gnóstica. (1 Coríntios, II, 14.) Tal é também a razão do tom brutal em relação ao judaísmo em numerosas passagens dos evangelhos.Porém, nessa luta contra a Igreja, o gnosticismo estava destinado à derrota. As construções filosóficas abstratas dos gnósticos, sobretudo depois de Márcio, permaneciam incompreensíveis para as massas. O gnosticismo nunca teve influência

6 Entre os rolos de Chenobosquion, um manuscrito lhe é dedicado, o Livro de Nona.

Page 218: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

O CRISTIANISMO DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO II 223sôbre elas, tanto sob o aspecto greco-romano, cõrno sob o cristão.As batalhas da Igreja contra as heresias citadas desempenharam um grande papel na evolução do cristianismo no século II. No curso desta luta, o episcopado se fortaleceu, a Igreja lançou os fundamentos da sua dogmática, as comunidades cristãs apertaram seus liames, os primeiros concílios locais de bispos começaram a se reunir. Essas ásperas discussões levaram também a Igreja a selecionar certo número de escritos cristãos para os canonizar, rejeitando, ao mesmo tempo, todos os outros. O cênone do Nôvo Testamento deve, pois, seu estabelecimento, antes de tudo, aos imperativos da luta contra as heresias.

Page 219: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

CONCLUSÃOExaminamos nas paginas precedentes as principais fontes de que dispomos sôbre o aparecimeíito do cristianismo e sôbre a historia de sua fase micial Partindo dessas informações, esforçamo nos por rndtcar as principais etapas da evolução do cristianismo, desde os seus primeiros passos, ate a sua cristah zaço num culto definitivamente constituido No seculo III, o cristianismo ja aparece sob o aspecto de uma doutrina aca bada, com uma literatura que se compõe de todos os escritos do Novo Testamento, e um aparato eclesiastico relativamente centralizado. A análise da evolução posterior desta religião ultrapassa o plano da presente obra, que foi consagrada especialmente às suas origens. Contudo, estudando-se o cristianismo, tal como ele era no seculo II, não abordamos duas questões que só os documentos posteriores à época estudada• podem esclarecerO seculo II foi marcado pela rapida difusão da nova relig’ão Apologistas como Justino e Tertuliano exageraram a influência do cristianismo nos seus começos por motivos obvios, mas e certo, contudo, que, durante êsse período, o número de comunidades cristãs aumentou sensivelmente E coloca se então a questão de se saber se e possivel estabelecer, ainda que apro zimadamente, o numero de cristãos existentes nessa epoca Quanto ao seculo II, não possuimos sôbre êsse assunto qualquer dado digno de fe, porque nenhum historiador que se respeita pode levar em consideração comunicações como as dos Atos do Apostolos que fala de milhares e milhares de crentes na comunidade de Jerusalem e faz outras afirmações igualmente fantasticas Sôbre o seculo III, ja se dispõe de algumas infor inações validas Assim e que Eusebio reproduz na sua obra ja Litada uma carta do Bispo Cornelio, que data do ano de 251, na qual se d17 que a comunidade cristã de Roma contava então 46 anclãos, 7 diaconos, outros tantos subdiaconos 42 servidores, 52 exorcistas, um porteiro, um relator e mais de 1 500 viuvas e invalidos Segundo êsses dados, havia em Roma, no seculo III de 30 a 50 mil cristãos, para uma população de um milhão e meio de habitantes Sabe se que em Cartago havia, na mesma epoca, apenas 8 anciãos e em Alexandria 6, donde se conclui que o numero de cristãos nessas duas cidades de primeira importância era aproximadamente 6 vêzes inferior ao de RomaSegundo os calculos do teologo protestante A Harnack,no ano de 325, isto e, depois do acesso do cristianismo a cate225

Page 220: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

226A ORIGEM DO CRISTIANISMOgoria de religião oficial do Império Romano, êle era dominante apenas na Ásia Menor, na Armênia e na Trácia. Sua influência era grande na Síria, no Egito, no noroeste da África, no sul da Espanha e em outras regiões costeiras da bacia mediterrênea. Nas regiões centrais da Península Balcânica, e da Península Ibérica, assim como na Itália e na Sicília, o cristianismo era ainda pouco difundido. No que concerne ao território das outras províncias do Império, não se possui nenhuma informação sôbre a existência de comunidades cristãs durante êsse período. Os cálculos de A. Harnack mostram que, nos começos do século IV, os cristãos totalizavam apenas 10 ou 1.5% da população do Império, o que permite afirmar que êles eram muito menos numerosos ainda no limiar do século anterior.A segunda questão da qual não tratamos aqui é a que se refere às perseguições contra os cristãos. Os escritores eclesiásticos falam de centenas, até mesmo de milhares de mártires, procurando, assim, dar a impressão de que a religião cristã era terrivelmente perseguida desde os seus começos, mas êles exageram, porque o poder romano não combatia nenhum culto em particular, pela simples razão de isso não ser possível num Estado de tal modo multínacional. Roma queria ganhar o apoio das camadas abastadas das nações conquistadas, e, por essa razão, devia dar provas de tolerância. O Estado Romano só se considerava na obrigação de reprimir uma religião, quando seus adeptos se insurgiam contra êle, como foi o caso por ocasião das revoltas judias do século 1, e começos do II.O cristianismo, como religião, não se levantava contra o poder de Roma, tendo renunciado muito cedo ao espírito rebelde do Apocalipse. Os escritores cristãos posteriores já exortam os crentes à obediência aos superiores, e estigmatízam não sàmente as revoltas, mas também a insubmissão. Não é necessário dizer, contudo, que nem sempre êsses apelos eram acatados. Apenas o fato de que se tornava necessário reiterá-los, a cada passo, indica que a massa dos crentes nem sempre estava disposta a curvar a espinha. Depois da constituição da Igreja, a pregação cristã passou a dar maior destaque à promessa do reino dos céis, e a tendência para a paz com o poder dos abastados assumiu a predominância definitivamente no seio do cristianismo.No decorrer do 1 e do II século ocorreram, de fato, perseguições contra os cristãos, o que é confirmado por várias passagens do Apocalipse, pela correspondência entre Plínio e Trajano, e por outras fontes. Mas, essas repressões eram esporádicas, e se davam com grandes intervalos. A atitude do poder romano em relação aos cristãos permaneceu, em geral, tal qual ela é formulada na resposta de Trajano a Plínio, que já é conhecicia do leitor. A literatura cristã confirma por

Page 221: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

CONCLUSÃO227sua vez: nas apologias de Justino e, sobretudo, nas de Tertuliano, os imperadores romanos são freqüentemente caracterizados como homens justos e tolerantes para com o cristianismo.Sàmente no III século é que esta situação muda bruscamente. Os meados dêsse século, e depois o período do reinado de Diocleciano e de seus sucessores (a partir do ano de 284) foram marcados, de fato, por perseguições maciças e simuitâneas contra os cristãos em todo o Império. As informações de que se dispõe a êsse respeito são assaz abundantes. Mas, segundo tôdas as fontes, o Estado Romano lançou-se, então, contra a Igreja por motivos puramente políticos, e não religiosos. As perseguições eram aliás de curta duração e, nos intervalos, o cristianismo existia legalmente. Êsse fato é ilustrado pelo seguinte pormenor: Quando, sob Aureliano (270-275), a heresia de Paulo, bispo de Antióquia, suscitou dissidências, o Imperador ordenou-lhe que transmitisse a igreja local «àqueles que correspondem em sua religião aos bispos itálicos e romanos.» (Eusébio, História Eclesiástica, VII, 80.) Isto prova, de um lado, a legalidade do cristianismo, e, de outro, que os soberanos de Roma consideravam os bispos romanos como chefes da Igreja cristã em todo o Império. Segue-se ainda que os imperadores pagãos desempenhavam o papel de árbitros nos conflitos entre cristãos. E uma vez que as coisas se passavam dêsse modo, não resta dúvida alguma de que as perseguições contra os cristãos não eram permanente.• A situação política do Império no século III, tanto no interior, como no exterior, favorecia a difusão do cristianismo. O período de progresso econômico terminou com os Antoninos. Sob a dinastia dos Severos (de 193 a 233), a tendência para a agravação das contradições políticas no Império se acentuou cada vez mais. Nenhum imperador consegue subir ao trono sem antes ter mantido um combate encarniçado contra os seus rivais. As relações entre os imperadores e o Senado, que representava a aristocracia escravagista, se envenenavam progressivamente. O exército torna-se sob os Severos não sàmente o único apoio militar, mas também o sustentáculo social do poder, fato êsse que encontrou sua expressão no consêlho atribuído a Sétimo Severo, fundador da dinastia, e que êle deu aos seus filhos antes de morrer: «Sêde amigos, enriquecei vossos soldados e zombai do resto.» Êste conselho lhes foi fatal, todavia: durante os 42 anos da dinastia dos Severos oito imperadores se sucederam, e apenas um morreu de morte natural.A áspera luta entre os pretendentes ao poder era apenas o reflexo, evidentemente, de contradições muito mais profundas

Page 222: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

228A ORIGEM DO CRISTIANISMOde ordem política e social. A crise do modo de produção escravagista frenava o desenvolvimento das fôrças produtivas, tornando cada vez mais agudas as contradições entre as classes. Sob os Severos, as massas se agitaram cada vez mais. Os escritores desta época queixam-se continuamente da freqüência de pretensos «atos de pilhagem» que nada mais eram do que uma forma de protesto contra o jugo dos opressores. Apuleu refere-se muito a êsss «salteadores» em. suas obras. Em pleno coração da Itália, certo Bula permaneceu, por muito tempo, burlando os que o queriam prender, e êle aconselhava aos senhores «que alimentassem seus escravos, para evitar que êles se tornassem salteadores. » Na mesma época, aproximadamente, falava-se na Gália das aventuras de outro salteador: Maternus. Em meados do século III, o movimento das massas .tornou-se tão grande que várias revoltas se desencadearam.Depois da trágica morte de Alexandre Severo, o último da dinastia, a crise dita do século III .se desenvolveu durante quase cinqüenta anos, e levou o Império à beira da ruína. Trinta imperadores. reconhecidos pelo Senado sucederam-se durante êsse período, sem falar dos usurpadores, que foram também muito numerosos. O território do Estado tinha se tornado, de uma extremidade à outra, teatro de uma batalha constante entre pretendentes ao poder. Os povos vizinhos do Oriente, do Norte e do Sul invadiam as fronteiras do Império e, muitas vêzes, as províncias distantes, pilhando e devastando tudo à sua passagem. Esta crise atingiu seu apogeu sob Valério (253-260). Quase simultâneamente, os francos e os alemanos, povos germânicos, atravessaram o Reno, e os gôdos, o Danúbio, marchando sôbre Atenas. Outras tribos godas devastaram o litoral da Ásia Menor. Os mouros irromperam nas províncias africanas do Império, pelo Sul, enquanto que os blemies (povo que vivia no território do Sudão atual) devastavam o Egito. Porém, o mais perigoso dos inimigos era, sem dúvida, a Pérsia:Sapor 1, Rei Sassanida, invadiu, no ano 260, várias províncias riéntais do Império, e, pela primeira vez na história de Roma, um imperador — Valério — foi feito prisioneiro.Não podendo o poder central garantir mais a segurança da aristocracia das províncias, Estados independentes começaram a se constituir, tanto no Oriente, como no Ocidente. Tendo conseguido sustar a ofensiva dos persas, o Governador da pequena Palmira recebeu o título de Imperador, e submeteu, em segttida, várias províncias orientais, entre as quais o Egito. Um império gaulês subsistiu durante mais de um decênio; êle englobava a Gália, a Espanha e a Bretanha. Em Roma e na Sicília expiodiam revoltas de escravos e de pobres.As classes dominantes do Império Romano só conseguiram, então, escapar à ruína desenvolvendo ao máximo tôdas as suas

Page 223: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

CONCLUSÃO229fôrças. O fortalecimento do Império teve lugar sob Diocleciano (284-303) com o qual começou o período da monarquia absoluta, caracterizada pela liquidação da antiga ordem «constitucional», a decadência definitiva do Senado, a concentração do poder nas mãos dos imperadores, aos quais se rendiam honras divinas. A grande propriedade territorial tornou-se, ainda em mais alto grau, o apoio social do regime. O exército e a administração foram separados, a máquina do Estado totalmente reorganizada.Tôdas essas medidas fortaleceram temporàriamente o poder imperial, mas elas foram incapazes de liquidar as contradições inerentes ao sistema escravagista. Depois de Diocleciano, a luta se acendeu de nôvo. Constantino, pretendente ao trono, filho de um dos tetrarcas de Diocleciano, buscou o apoio da Igreja, prometendo-lhe o reconhecimento do cristianismo. A Igreja o obteve pelo Edito de Milão (em 313), e não tardou a conquistar uma posição dominante no Império.Tais foram as condições econômicas e sociais em que a Igreja cristã lutou, e acabou por triunfar. O desmoronamento da ordem antiga, as invasões dos bárbaros e tôdas as espécies de cataclismos sociais foram um terreno dos mais propícios para o êxito da predicação do cristianismo. No momento em qúe o Estado Romano milenar estremecia em suas bases, tanto os pobres, como também um grande número de elementos das classes médias acrèditavam que o fim do mundo se aproximava, e o clero soube explorar êsse estado de espírito. Apesar das múltiplas tentativas feitas pela Igreja visando a uma conciliação com o Estado imperial, na situação concreta de então, a Igreja continuava sendo o mais resoluto adversário da ordem antiga, e é por isso que a crise política e social do regime lhe era proveitosa. O poderio crescente da Igreja a opunha objetivamente às tendências retrógradas, apesar da inclinação do clero para a acomodação com o poder. Tal foi a razão das perse. guições desencadeadas contra ela pelos imperadores Décio e Diocleciano.No século III e nos com; eços do IV, a Igreja continuou a seguir pelo mesmo caminho que ela vinha percorrendo durante o século anterior buscando: 1) obter o reconhecimento do cristianismo nas mesmas condições que as outras religiões; 2) apagar o «extremismo» do cristianismo original; 3) estabelecer definitivamente seus’ dogmas e seu ritual; 4) centralizar ainda mais o aparato eclesiástico (concílios locais), e aumentar a influência do clero; 5) vencer as velhas e as novas heresias.Essas tarefas se entrelaçavam, e decorriam tôdas da modificação da estrutura social das comunidades cristãs. Examinamos a primeira fase dêsse processo à luz dos monumentos cristãos da segunda metade do século II. No século III, êle assume

Page 224: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

230 A ORIGEM DO CRISTIANISMOmaior amplitude ainda. As comunidades cristãs dispunham de bens cada vçz mais consideráveis. Às capelas do período anterior vieram-se ajuntar casas que serviam de igrejas e, nos começos do século IV, templos, com tôda sorte de objetos rituais e coleções de livros sagrados. Na literatura cristã encontram-e longas listas de bens materiais confiscados à Igreja durante o período das perseguições. As catacumbas romanas, com duas e até três galerias superpostas, e estendendo-se por vários quilômetros sob a cidade e seus subúrbios, testemunham a importância dos cemitérios cristãos da época. As instituições de beneficência ofereciam também aos bispos um vasto campo de ação, e tôda a economia era gerada por cristãos ricos e influentes, que acabaram assenhoreando-se da direção dos negócios das comunidades. Cipriano, Bispo de Cartago, nos meados do século III, queixa-se em uma carta que outros bispos «andam de província em província em busca de mercados, em que esperam ganhar mais dinheiro; acumulam riquezas, enquanto a fome reina nas comunidades; fazem-se herdeiros por meio das mais baixas bajulações, e multiplicam seus bens praticando a usura. » (Dos Renegados, 6.) Outro documento significativo sôbre êsse tema é o escrito de Clemente de Alexandria (entre o II e o III século) cujo título é por si só bastante eloqüente:Que Rico Será Salvo ? Durante as perseguições contra os cristãos, no decorrer da década dos 50, do século III, grande número de cristãos da comunidade de Cartago, tal como Cipriano o menciona em suas cartas, submeteram-se às ordens das autoridades, adoraram pbblicamente os deuses do Império, donde a alcunha de «falidos» que se lhes aplicava. Êles pertenciam, em. sua maioria, às camadas abastadas, e foi diante da ameaça de confisco de seus bens que se fizeram apóstatas.Essas modificações da estrutura social das comunidades cristãs iriam desempenhar um papel considerável na evolução ulterior da nova religião. Elas fortaleceram no seio da Igreja a tendência para a conciliação com o poder para tornarem as comunidades cristãs toleráveis pelos representantes da alta sociedade romana. Porém, essas modificações agravaram, por sua vez, as lutas entre as diversas correntes cristãs.A renúncia à doutrina escatológica do cristianismo primitivo se chocou com sérias dificuldades. Quanto mais a Igreja refletia os interêsses dos círculos dirigentes das comunidades cristãs e buscava reconciliar-se com o p.der dos abastados, maior se tornava o abismo entre o clero e os crentes que, por causa de sua situação social e de outros fatôres, permaneciam fiéis à ideologia expressa no Apocalipse de João e nas primeiras epístolas paulinianas. Antes da constituição do episcopado, as divergências e as contradições entre as diferentes correntes cristãs não impediam sua coexistência no quadro das comuni-

Page 225: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

CONCLUSÃO 231dades cristãs, apesar da aspereza das polêmicas travadas. A partir do século III, qualquer divergência levava já ao divórcio, e colocava os dissidentes fora da Igreja.Durante êste século, outras heresias apareceram ao lado das artigas correntes heréticas judaico-cristãs, do montanismo e do gnosticismo. Algumas entre elas, tal como a dos nepotianos, continuavam a tendência escatológica e por vêzes quiliástica do cristianismo original; outras, como os novacianos e, a partir do século IV, os donatistas, consideravam-se no dever de protestar contra o fortalecimento do poder dos bispos enquanto que os sabelianos negavam o dogma da Santíssima Trindade. A maioria destas heresias surgiram durante as perseguições; expremiam a oposição dos crentes à indulgência do clero em relação aos cristãos das camadas mais ricas que tinham apostatado. Quanto à Igreja, ela era implacável com os dissidentes, e os punia por tôda parte do mesmo modo: os concílios, que reuniam muitas vêzes centenas de chefes das diversas comunidades, estigmatizavam e excomungavam os ,.heréticos.Tais foram as premissas da aliança da Igreja com o poder imperial, que fêz dela o apoio das classes exploradoras do Império Romano. Quanto mais o poder imperial se enfraquecia em conseqüência da agravação da crise da ordem antiga e das guerras intestinas, mais a Igreja se distanciava das aspirações do cristianismo original e mais essas duas fôrças, outrora hostis, se aproximavam. O reconhecimento da Igreja sob Constantino, seguida da passagem do culto cristão categoria de religião dominante, foi, portanto, o resultado lógico da evolução do cristianismo primitivo.

Page 226: A Origem do Cristianismo - Jacó Abramovitch Lentsman

ACABOU-SE DE IMPRIMIR ESTE LIVRO NO DIA 21 DE MAIO DE 1963, NAS OFICINAS DA EDITÔRÀ OBELISCO LTDA. - R. ANHANGUERA, 66 - 5. PAULO – BRASILPARA PEDIDOS TELEGRÁEICO5 — CÓDIGO — J.A.L. 014-A