a olho nu - sidney andrade (contos)

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A coletânea de delírios narrativos do(s) eu(s) lírico(s), definição do próprio autor, aborda o cotidiano, ou melhor, as inquietações cotidianas. Nestas narrativas, que por diversas vezes se deslocam do domínio da ação para o da descrição de impressões e sensações ou para a autorreflexão acerca dos sentidos e da prática da escrita, o autor revela sua relação com o mundo. Após dois descolamentos da retina, que limitaram sua percepção visual, Sidney começou a escrever. E é com muita naturalidade que afirma que a dimensão imagética de sua obra se deve a esta perda, uma obviedade, segundo ele, que acompanhou o seu processo de descoberta como escritor. A olho nu, através do caráter autorreferente e autorreflexivo dos textos e do tratamento imaterial dado às ações, mesmo as mais cotidianas, lança o leitor para a zona de contato entre o mundo físico e o universo da linguagem, nos permite experimentar uma tessitura de sentidos entre o provável, o (não) visto e o imaginável.

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Page 1: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)
Page 2: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

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Page 3: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

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PARA

Severino e Francinete, meus pais, pela dedicação

Samelly Xavier, pela compreensão

Biana Alencar, por acreditar

Alan Ribeiro, por tornar possível

Page 4: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

Apresentação

A coletânea de delírios narrativos do(s) eu(s)

lírico(s), definição do próprio autor, aborda o cotidiano, ou

melhor, as inquietações cotidianas. Nestas narrativas, que

por diversas vezes se deslocam do domínio da ação para o

da descrição de impressões e sensações ou para a

autorreflexão acerca dos sentidos e da prática da escrita, o

autor revela sua relação com o mundo. Após dois

descolamentos da retina, que limitaram sua percepção

visual, Sidney começou a escrever. E é com muita

naturalidade que afirma que a dimensão imagética de sua

obra se deve a esta perda, uma obviedade, segundo ele, que

acompanhou o seu processo de descoberta como escritor. A

olho nu, através do caráter autorreferente e autorreflexivo

dos textos e do tratamento imaterial dado às ações, mesmo

as mais cotidianas, lança o leitor para a zona de contato

entre o mundo físico e o universo da linguagem, nos

permite experimentar uma tessitura de sentidos entre o

provável, o (não) visto e o imaginável.

Anderson Marcos

Page 5: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

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SUMÁRIO

I – ACROMÁTICO – 06

Abstrato – 11

Cronológico – 14

Absorto – 18

Partido – 20

Ávido – 22

Redimido – 31

II – CONVERGÊNCIA – 34

Virtual – 38

Sorriso – 40

Equívoco – 43

Começo – 45

Fugaz – 47

Final – 48

Desamparo – 51

III – REFRAÇÃO – 53

Recado – 58

Névoa – 60

Reflexo – 64

Socorro – 66

Cicatriz – 68

Grito – 73

IV – ESPECTROS – 76

Vermelho – 80

Laranja – 82

Amarelo – 84

Verde – 86

Azul – 89

Índigo – 91

Violeta – 94

Page 6: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

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I

ACROMÁTICO

“Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.”

Em O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro

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Acromático

Decepcionado, mas resoluto. Desiludido, porém decidido.

Determinado aos extremos, mas farto de estar entre eles.

Quero ou uma coisa ou outra, sempre as duas, de vez em

quando nenhuma, mas nunca um pedaço de cada. Quero

tudo. E quero nada. O meu desejo segue na inversa

proporção do meu alcance. Estou constantemente ligado ao

inatingível, preciso esticar meus braços para senti-los úteis,

para que os possa ver. Ainda assim não os vejo. Tenho

braços e nada abraço, pra não parecer que eu me contento.

Eu não me contento. Deixo tudo solto. Gosto quando

tropeço, pra me apoiar com os braços que estendo e não

uso. Porque não os vejo, e assim os sinto. Que nada vejo,

não aprendi a usar os olhos. Os tenho, mas não os quero.

Aliás, os quero, e por já tê-los, não os uso. Então tateio, por

não querer tanto ter braços. Tropeço, bato com o dedão na

quina da parede, e caio. E no mesmo instante que

amaldiçôo a dor, agradeço a queda. Me apoio com os

braços, que não os quero, mas os tenho e não sei me livrar

deles. Os braços são como olhos cegos que enxergam mais,

mesmo cegos, do que olhos que enxerguem. Que nos braços

há mais sangue. Gosto de sangue, porque o sinto, mas não o

vejo. Porque ele não se mostra, a não ser que o forcemos.

Não o forço, ele corre em mim e eu corro dele. Inunda

meus braços com mais calor que meus olhos, que são só

gelatina, translúcida e fria, sem cor. Estou satisfeito por ter

vasos e em mim nada florescer. Se floresce, não frutifica, se

frutifica, logo apodrece. Tenho pressa e sangue, e braços e

olhos. E de nada me servem, senão para estar assim

decepcionado, desiludido e resoluto. Decepcionado pelas

Page 8: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

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coisas que sinto, não vejo e me queimam: estou a detestar

meu sangue. Desiludido pelas coisas que vejo e não

alcanço, de certa forma longe ou perto demais pra que as

queira: me coçam furiosamente os braços. E resoluto em

não querer mais ver de tudo. Por isso, vou abrir os olhos.

Abrir os olhos é limitar-se a ver só o olhável. Preciso saber

como é não ter todas as possibilidades, pra que eu

finalmente seja forçado a fazer alguma escolha. Escolho

sempre não escolher. E tenho estado de tal forma indeciso,

que resolvi limitar-me. Pra que possa expandir alguns

desejos na medida da impossibilidade de outros. Pra que eu

não tenha tudo, por não poder ter tudo. Pra que eu não

queira tudo, por saber que não há mais tudo. Pra que haja

apenas uma porção do que me prende ao modo como me

vejo. E me vejo de relance, pra não me saber por inteiro.

Pra que eu não seja todo. A existência pressupõe uma

preocupação sutil com algo que não se sabe o que é, mas

que é tão marcado e pesado que não deixa livre a memória

de ter um cerne que precise de alguma preocupação. Um

incômodo leve em algum lugar profundo na minha nuca me

faz movimentar as pontas dos meus dedos. Eis o meu cerne,

que justifica minha existência – e a existência dos meus

braços que não os quero ver: eu também precisava ter

dedos. Mas explicar é tentar em vão compreender, e iludir-

se. É por não compreender o incômodo leve que meus

dedos se movimentam; é por não compreender a razão pela

qual eles se movimentam devido ao incômodo que eu os

permito movimentarem-se. É por não compreender que

posso indagar, sem pretensões de saber, só pra movimentar

as pontas dos meus dedos e deixar que o incômodo leve se

manifeste. Se eu me perguntasse o porquê dos meus dedos

se movimentarem quando tenho o incômodo, estaria

tolhendo a liberdade deles, de modo que eu não permitiria

que eles fossem para aquilo que são. Se eu inquirisse o

porquê do incômodo leve em algum lugar profundo vir em

minha nuca em certas ocasiões, não estaria lhe sendo

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receptivo. Suponho que o incômodo se aloje no mesmo

lugar em que se alojam os questionamentos, e suponho que

seja uma sala abafada, escura e apertada, de modo que não

há lugar para ambos sentarem-se lado a lado. Então escolho

o incômodo, que é mais simpático. O incômodo me deixa

de tal forma à vontade a ponto de eu esquecer que sou eu

quem lhe hospeda em algum lugar profundo na nuca. Do

mesmo modo, há uma justificativa para o correr do meu

sangue: para que o incômodo não se limite apenas a algum

lugar profundo em minha nuca. E talvez por isso não seja

mesmo bom enxergar o sangue a arrastar o incômodo por

certas partes mais proeminentes. A beleza do incômodo é

não se saber como este chega a certas partes proeminentes.

A têmpora, por exemplo, me salta constantemente. É como

o bip do microondas, que anuncia o fim de um processo

para o começo de outro, mais intenso. A têmpora revela o

incômodo leve: avisa que está pronto pra ser consumido nas

pontas dos meus dedos. Desconsiderar o latejo da minha

têmpora seria como obrigar o incômodo a dividir com os

questionamentos o quarto escuro em algum lugar profundo

em minha nuca, eles que são atraídos pelo soar da têmpora,

pelo aroma do sangue quente a latejar. Dessa forma, tenho

que o sangue, que não vejo e que me salta a têmpora, seja

algo além de um líquido colorido que me preencha: é mais

um incômodo amplificado que me esvazia das coisas que

penso. E não obstante, não consigo observar justificativa

para meus olhos, que os não quero por já tê-los. São duas

esferas insensíveis e pálidas, preenchidas por algo que não

corre, sequer tem cor. Não se movem além de um eixo de

rotação curto e paranóico. Não há incômodo nos meus

olhos, de modo que eles não revelam sequer uma ínfima

parte do meu cerne. O olho é qualquer coisa, por ser

indiferente, por não ter sangue que esquente nem promover

movimento nos dedos dos braços. Os olhos são duas bolas

de gude avulsas entre minhas têmporas, alheios,

preocupados somente em mostrar o olhável. Mas é disso

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que eu preciso, por ora: limitar-me ao olhável. De modo

que passo a relevar meus olhos. Decepcionado, desiludido e

decidido a me ater a certas possibilidades, em detrimento de

outras. Necessito de tudo ou nada, pra que não me reste

qualquer coisa, pra não estar indiferente.

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Abstrato

E saiu de casa esperando um milagre. Choveu na

madrugada de seus sonhos e a manhã vinha fresca e

indecisa, sombra vem, sombra vai. Vez em quando o sol

batia agudo na pele clara. Logo depois, um ventinho gelado

lhe cutucava pra dizer que outra nuvem passava. No

silêncio do dia sem termo, caminhava e esperava um

milagre. Sentou-se no primeiro lugar seco que vencera a

noite, onde o pouco calor já subjugara a umidade. Nenhuma

pessoa comum passava. Eram todos fantasmas surgidos das

suas alcovas escuras. Mas eram brancos e frescos feito o dia

que começava a semana do recém chegado mês.

Preguiçosos, sem dúvida, mas vivos. Fantasmas de todo

início. Não eram seu milagre.

O sol vinha, queimava, mas outra nuvem passava. A manhã

ia correndo lenta, cinco vidas naquele banco, e somente

uma hora se passara. Cinco vidas lhe cruzaram inteiras,

fizeram reverências, acenaram, chegaram mesmo a lhe

tocar, cumprimentando-lhe. Cinco vidas lhe passaram, só

não lhe passava o tempo. Ainda poderia acontecer um

milagre.

No caminho da rua cinza, grandes paredes cinzas se

erguiam. A vida ia cada vez ficando mais concreta. O sol

vinha, e então era expulso por outra nuvem, e assim o dia se

ia construindo. Por trás do cinza, o sol se levantava. Por

entre o cinza, mais cinza o caminho se cumpria. Ele

marcava bem o passo, pra ouvir o estalar do espaço por

debaixo dos seus pés. Tudo é concreto, mas era preciso um

milagre.

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Outra vez o sol teimou. Arregaçou instintivamente as

mangas do casaco, como preparando-se para colocar a mão

na massa que não previra manejar. Bem à sua frente, como

esperando aquele exato gesto, pousava um carro de mão na

calçada dura, diante da casa incompleta. Construindo seu

universo, a velha mulher pediu-lhe ajuda. No carro de mão,

um fardo pesado demais, nele toda a potencialidade do

concreto, pó que aguarda a alquimia da cidade para se

enrijecer. Todo ele feito cinza, o fardo pesava demais para

o pobre entregador, também muito velho. E a manhã ia

ainda intermitente por trás do céu, como todo jovem.

Ergueu o fardo com algum esforço, mas para a juventude o

cinza do mundo pesa feito pluma. Pousou-o no lugar

indicado, e, voltando coberto de Deus-te-abenções, ofegou

por merecimento e justiça. Muito obrigado, Disponha, Deus

te acompanhe... Mas pra onde?

Rumou pela reta aberta da rua de calçamento seguindo o

caminho, sacudindo residuo que tinha ficado na roupa. Era

sua recompensa poder se sacudir do pó concreto. Levantou

a cabeça e percebeu: estava exatamente no meio da rua, na

faixa central. De um lado e de outro, tudo real. Deus te

acompanhe... A rua cinza toda ao seu dispor. Bem adiante,

sem prédios nem torres, apenas casas baixas do bairro baixo

da cidade baixa, o céu da manhã sem termo se levantava

numa única nuvem espessa e cinza.

Deus te acompanhe, se consolou. A nuvem de concreto

virou chumbo e caiu pesada por através da sua vista. A

manhã finalmente se decidira. Ensopado até os olhos,

passou pela porta de entrada da casa onde um dia morara.

Deu seu adeus ao murinho no qual sentava-se com a

vizinha nas noitinhas frescas, ao sofá do pai, ao espelho da

mãe, à flor que tinha plantado e que jamais nascera. Seguiu

reto, silencioso, em direção ao cinza do horizonte do

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primeiro dia. Caminhou concreto pela cidade que, mais

cinza, mas menos concreta, agora fluía. E Deus me

acompanhe.

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Cronológico

Vítima desavisada de uma distonia cronológica, foi em

busca das respostas para seus enigmas vitais nos lugares

mais insólitos. Sobretudo sabia que era necessário um

mergulho profundo, sufocante e inútil. Tinha uma

resignação incontida, quase ingênua, para o fato desta busca

não vir a render resultados práticos. Enquanto não sabia a

hora certa de começar, tampouco tinha ideia de que tempo

era aquele, ou qual era o seu tempo. No pulso, um relógio

analógico, mostrando linhas vermelhas e pontos profundos,

girava convulsivamente os ponteiros que, espetados em

seus olhos, embaralhavam-lhe a vista. Julgava necessário

preencher certas lacunas em seu calendário pessoal para

poder conhecer-se melhor.

“Mostre-me os verdadeiros desejos desta pessoa” tornou-se

sua frase de espelho. Lembrava que, há algum tempo –

quase remoto, ainda recuperável –, tinha desejos fortes e

convulsivos, não metas nem alvos, apenas pretextos, por

vezes ganhados, outras, inventados, para continuar uma

transição que não compreendia. No entanto, em algum

momento indefinido e súbito, vira-se descrente, acometido

de um descaso pessoal inédito e, em certo ponto, até mesmo

interessante. Alguma indiferença viera junto, o que fez da

contagem do tempo algo menos linear. E o espelho, que

apenas mostrava-lhe estranheza simpática – sorriso fácil de

boa educação –, passou a transmitir traços duros e linhas

tortas. Nem si, nem outrem, procurava, agora, em meio a

ilusões ópticas em vidro metalizado, resquícios de sonhos

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que deveriam estar em qualquer lugar profundo de seu

calendário.

Quis voltar a desejar intensamente, antigo costume seu que

o identificava para si mesmo. Sabia que esta era algo como

andar de bicicleta: depois que aprendemos, nunca

esquecemos, no entanto, se paramos durante, caímos.

Tentou por diversas vezes retomar o ritmo das pedaladas.

Era coisa pra muito tempo, muita prática. Não tinha mais

paciência que lhe servisse de rodinhas auxiliares, logo,

desceu da bicicleta e resolveu caminhar arrastando-a. Seus

desejos, agora, tinham um peso incômodo e, muito mais

grave, não pareciam em nada autênticos como antes

(mesmo nos casos dos desejos inventados de outrora). E

toda vez que retentava, era o mesmo déjà vu. Como se

vivesse um dia intenso e cansativo, terminasse-o aliviado e,

ao acordar, dar-se conta de que era o mesmo dia, de novo e

de novo. Mas envelhecendo a cada dia que não passava.

Precisava sentir-se leve novamente. Mas, ao que parecia,

todas as suas tentativas não faziam nada além de atar-lhe

mais e mais a pesos de consciência. Faltava-lhe algo de

autopiedade, que se fora com algumas folhas do calendário

já perdidas numa ventania confusa. Ao ver páginas de seus

dias soltas, aleatórias mesmo naquela atmosfera densa, quis

ser como a própria contagem de seu tempo, leve feito uma

folha de calendário que se precipita ao sabor das brisas.

Não era possível, sabia disso. Mas resolveu desejar, era

preciso desejar alguma coisa. Sua distonia cronológica já o

enlouquecia de um modo que, em face da menor

possibilidade de recolar as folhas perdidas com o vento, de

ajustar seus ponteiros, de tirar aqueles ciscos crônicos de

dentro de seus olhos, jogava-se sem abri-los nos mais

profundos abismos.

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No último deles, caíra intensamente. Queda infinita e

brusca que terminou logo no início, sem aviso. Entre

paredes espessas e horizontes ocultos, perdeu-se numa

escuridão abismal tão profunda, que cada movimento seu

por através dela pressupunha um esforço inédito, como

caminhando no fundo de um oceano sem nome. Sentiu

medo e sede. Foi quando constatou sua distonia cronológica

aguda.

Necessitou de um brilho desconhecido que seus olhos já

não mais possuíam, por estarem vazados pela incisiva ação

dos ponteiros de seu relógio. Um brilho que, por mais

insano que soe, jamais necessitara. Brilho nevoento e frio,

neon brilhante que anunciaria sua disponibilidade, neon de

uma cor silenciosa e indecisa, nem verde nem azul, a cor

que, neste entremeio, levanta discussões de pontos de vista.

Neon avariado, que, ao invés de emitir continuamente um

cintilar mudo e seguro, piscava frenético, confundindo,

ofuscando, iludindo.

Saiu deste último abismo, sem ver como. Ainda

hipnotizado pelo piscar de seu neon, julgou que precisava

apressar-se, e oscilar tal qual aquelas suas duas

lampadazinhas. Ora claro, ora oculto, acelerou suas

pesquisas, e, para finalmente chegar a algum resultado

prático quanto a seus enigmas vitais, partiu sem método

para experimentar. Vulnerável, a céu aberto, tudo que

conseguiu foi formular mais perguntas essenciais e

desnecessárias, providenciais e descartáveis. Como não

tinha tempo para cogitar mais detidamente sobre elas,

somente passava os olhos, correndo, em fuga. Confiava nos

olhos, apesar do defeito no neon. Pensou que, em plena luz

do dia, um defeito da lâmpada não fosse perceptível. De

fato, não foi. Contudo, o cerne de sua busca, esta

necessidade de ajustar a hora, esta angústia que destoar do

tempo em que se encontra lhe causava, este abismo entre o

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que foi e o que tem tornado-se, a questão principal de sua

procura exigia tão somente algo invisível, simples e óbvio :

paciência. Tão óbvia que ainda não se revelou à luz do

neon, oculta sob a claridade do dia.

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Absorto

Se não era medo, tinha medo do que então podia ser. Um

grito agudo perfurou a música que tapava seus ouvidos, e

ele não tinha certeza se tapar os ouvidos era a melhor forma

de fechar os olhos. Mas não teria outra alternativa, fechar

os olhos já não funcionava. Mesmo pelo contrário, se alhear

tornara-se sua melhor maneira de estar atento, o que lhe

dava algumas dores de cabeça. Como algo bem no interior

de sua consciência quisesse lhe mostrar que perceber

precisava ser dolorido. Então escutava música para calar a

dor. E só poderia não funcionar. Como uma cadeia, a dor

que sente seria sempre a dor que ouviria que seria também

então a dor que sentiria daí em diante. O mais conveniente :

parar. Mas de que jeito? Quem o cutucaria nos ombros e o

despertaria do transe?

Ele queria tanto saber se tinha medo. Queria, com todas as

suas forças, descobrir se aquele zumbido no fundo de seu

estômago era mesmo a iminência de um desastre que

ameaçasse sua sobrevivência, ou se era apenas o corpo

reclamando do almoço que já devia ter sido assimilado. E

nada fora ainda assimilado. Quando ele aprenderia que

digerir requer tempo e vísceras? E quantas vísceras mais ele

teria de esperar pra saber se continuaria atento? Um súbito

lampejo de esperança vez em quando lhe ofuscava. Mas era

tão fugaz que não conseguia capturá-lo. Então tentou

escutar de novo e de novo a mesmíssima música, num

desespero de transformar som em luz e agarrar a esperança.

E se a esperança fosse apenas um tipo de medo mais

abnegado, ele estaria salvo.

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Mas, assim como não queria ter medo, tampouco se

conformava em perder a fé, que também é um tipo de

esperança, esta mais exigente. E ter fé então passaria a ser

mais um ofício do que um recurso. E ter esperança seria o

medo de não acreditar. A música terminava e recomeçava, e

a cada vez ele se ouvia obrigado a acreditar em coisas como

o futuro e a derrota. Porque não precisaria de esforço algum

para crer em vitórias, já que em sua mente quase dormente

de dor, vencer era chegar ao presente, e o presente era sua

maior garantia de que ele vencia. Quando pensava em

futuro, não conseguia descartar a possibilidade de que eles,

o futuro e si mesmo, não chegassem ao status deste tão

tácito agora que acabou de passar.

Outra vez a música recomeça, com sua agradáve l

redundância, e a cada repetição do refrão ele se tornava

mais alheio, e se absorvia mais em questões

desinteressantes, como dar um rosto ao seu medo. E se o

medo fosse o seu outro eu? E se temer fosse só ele mesmo,

mais escuro, dentro de uma casca cuja cabeça doía? Ter

dois corações que batessem num peito apenas, que ideia tão

romântica... Caberia romantismo em seu medo? E sua

esperança, que diria ela sobre a possibilidade de uma

ilusão? Fez, então, a pergunta: Esperança, o que você me

diz de eu acreditar que tudo vai dar certo? Ela jamais lhe

respondeu, porque então a pergunta já era um modo de a

esperança, que era fé e era medo, ter fincado em seus dois

corações medrosos um fio verde de promessa de um tempo

presente ainda por vir.

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Partido

Exausto de tatear em busca de alguém em quem pôr a culpa

por seus mal fadados intentos, sentou-se ao banco de

plástico barato de um bar fuleiro, em meio a companhias

ruidosas e coloridos ácidos, como para esquecer-se dos

olhos, das imagens confusas, dos traços disformes, dos

personagens de poemas em linha torta, de seu mundo sem

rostos. Embriagou-se de leve para lembrar-se de estar

sempre alheio a tudo aquilo que não fosse ele mesmo. Estar

distraído. No entanto, com a boca ocupada no copo, e antes

que conseguisse selar de fato sua vista, o colega da mesa o

avisou que seu olhar estava a embaçar-se. E a esfera, antes

repleta de reflexos, tornara-se, então, opaca. Seu olho

mudara de cor, o que, no entanto, não o surpreendeu.

Apenas lamentou que seu estado interior fosse já tão

evidente.

Vitima de si mesmo, do descaso e do desleixo, da

inexperiência e de algum desespero pela ideia de fracasso, e

do gosto amargo que fica na boca por jamais ter provado

qualquer doce, por não agüentar mais suspirar, resolveu

respirar. Inventou novas formas para arejar a bomba

bolorenta do peito, e foi com uma sirigaita que encontrou os

ventos da mudança. Alias, com duas. Como apenas servisse

para apresentar-lhe todos os prazeres que sua classe

oferecesse, Suzana, prostituta que se orgulha do oficio,

serviu-lhe por um único dia. No dia seguinte, teve de trocá-

la por aquela que, então, seria sua companhia até que a

morte os separasse. Gostou da sensação de aconchego de

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Monica em seu bolso. Tudo o que precisava era mesmo esta

constante disposição e a desnecessidade de falar.

Naquela casa morava, com sua família, também uma ave já

velha e muito barulhenta. Agressiva e traiçoeira, ela apenas

dava-se com ele, e mesmo essa relação era recortada de

beliscões, um sadismo amoroso. Já cansado de tanto ouvir o

grito irritante de um animal que desprezava, desejou, não

sem algum remorso subliminar, que o bicho morresse logo.

Como alguma divindade o tivesse ouvido, a ave,

empoleirada no seu dedo, achou de morder-lhe por carinho

em hora inadequada e com força excessiva. Por causa do

ancestral impulso de autopreservação humana, o pássaro fo i

jogado longe e com impacto. Soltou um último pio, mas

não morreu. Ele arrependeu-se de ter querido o bicho

morto, embora o sentimento de pena não o tivesse feito

gostar mais do animal. O silêncio da ave, então

traumatizada, deixou seqüelas, danos irreversíveis, nos

ouvidos dele. Além de tudo, mais este incômodo. E por

culpa de um pássaro.

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Ávido

A sede o levou a esbarrar na estante de livros esquecidos. A

dor no ombro lembrou-lhe outra angústia, o que lhe fez

parar um minuto para aproveitar melhor a ânsia. Três ou

quatro afagos para descobrir que aquela raiva não lhe

pertencia, mas apenas ao seu ombro agredido. Numa

constante, seus sentimentos eram apenas a semelhança de

outros, do passado ou de agora, e, de fato, sentir esta raiva

passageira foi o modo de ele se submeter à sua insatisfação.

Exigir demais lhe pesava como nenhum crime jamais

pesaria nas costas de um inocente, porque exigir demais lhe

trazia uma frustração crônica da qual ele, por alguma razão

muito íntima, não fazia questão de se livrar. Empenhado em

aliviar a dor, o que ele queria, em verdade e a despeito de

toda sua conhecida angústia, era que sua frustração não

fosse um problema. Ouvira mesmo dizer que problemas são

apenas a interpretação pessimista das situações que, em

essência, não são boas nem más. E como não suportasse

essa implacável imparcialidade do mundo, estendeu o braço

para dar fim ao fato tolo de ter-se machucado por uma

distração que não merecia sequer sua indiferença.

Estendendo o braço, encostou na lombada áspera de um

livro empoeirado, o que lhe chamou atenção somente

depois de um longo instante. Se era verdade que ele não

pretendia descobrir um livro ao erguer o braço – porque, de

fato, erguer o braço fora um gesto para acobertar –, também

era verdade que, diante da possibilidade de seu gesto

encontrar um obstáculo, este não poderia ali ser outra coisa

senão um livro. Por saber sem olhar o que sua mão

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encontrara foi que ele abriu os olhos ainda fechados pela

obrigação da dor. Mas depois de longo momento de

descoberta, ele meio que desaprendeu a ser o que vinha

resignadamente sendo, o que não lhe deu outra opção senão

deter-se a este mesmo instante. Desse modo, e já liberto do

ombro dolorido, pegou o livro entre as mãos, com ares de

profanação, depois do esforço quase divertido de descolá-lo

do móvel. Como se aquela peça, ao invés de anexo, fosse

parte constitutiva da estante. Uma hipótese: se por acaso ou

crueldade, ele retirasse um parafuso da base da estante, toda

ela desmoronaria sem culpa. E esse poder que o livro

áspero acabara de lhe oferecer, de repente, não coube numa

única mão. Como quem suplica, ele sustentou o livro com

as mãos juntas em concha, e logo não era mais súplica o

que a cena mostrava, mas gratidão. Ou, ao contrário,

arrogância, pela imensidão de possibilidades, com a força

que o gesto de tirar o livro da estante despertava. O que

importava agora era o peso de uma obviedade: é preciso dar

uso às coisas, para evitar os desperdícios. Entretanto, mais

atento ao fato grave de que se ele não fizesse algo daquele

livro, jamais se perdoaria, por ter deixado passar uma

oportunidade de força tão infinita, foi que ele resolveu abri-

lo.

E, com isso, quase nada até aqui fará muita diferença.

Tampouco fará diferença o que dizia o livro, ou menos

ainda importa que ele não tenha lido sequer uma linha

daquele volume. Abrir o livro – em nome daquela força

nova, ele decidira – não podia agora ser uma experiência

cognitiva. Abdicou assim de toda a sua inteligência e se

dedicou a perceber fisicamente todos os aspectos da matéria

que compunha suporte para uma abstração totalmente

dispensável. Entre seus dedos, as páginas amareladas

estalavam e cheiravam a mofo muito novo. De repente, um

motivo mais grave para ignorar as palavras daquele livro :

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24

uma folha branca, quase nova e até cheirosa, por entre as

páginas: Sobressaltou-se. O que então aquele pape l

abandonado entre mofo e esquecimento seria, senão a

promessa de outra vida e outro mundo suspensos? Sequer

teve o cuidado de recolocar o livro na estante. Aliás,

colocar o livro de volta na estante seria a renúncia de sua

nova força, e ele ainda não era forte o bastante para

renunciar a um poder. E porque era fraco e por não haver

ali outros moveis onde ele pudesse não sucumbir, por não

fazer a menor diferença o que acontecesse com o livro,

contanto que a estante não voltasse a ser íntegra e

indestrutível, ele simplesmente largou o livro no ar. O

objeto depositado com violência contra o chão frio e liso.

Empenhou-se totalmente ao novo mundo pendurado em sua

mão esquerda. A folha A4 dobrada duas vezes e sem

nenhuma impressão de máquina. Como segurando uma

relíquia de valor incalculável, ele pouco a pouco perscrutou

as duas faces exteriores da dobra, repletas de marcas feitas

por uma mão humana e, quem sabe, viva. Não havia sequer

uma letra, nada que fosse reflexo de uma verbalização. E,

num assomo, ele se apaixonou por aquela mão humana que

se preocupara em não escrever palavras dentro de um livro.

Como somente os apaixonados são capazes das mais

insanas agressões, ele resolveu não abrir aquela dobra por

enquanto. A promessa do esgotamento.

Ao vasculhar pouco a pouco todos os centímetros

quadrados do novo mundo infinito, descobriu que, talvez,

aquela mão humana precisava muito se apegar a uma

lembrança. Um, dois, três, quatro eram os desenhos de uma

mesma moldura, e ele soube que se tratava de uma moldura

daquelas que penduramos na parede por causa do floreado

nas bordas e porque ele também já sabia que ninguém se

esforçava para deixar algo tão bonito senão para estar à

mostra. Mas eram quadros em branco, vazios no miolo das

Page 25: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

25

bordas. E se de repente aquela mão humana se sentisse

vazia como o que desenhava, ele pela primeira vez não se

importou com simbolismos. É certo que jamais descobriria

realmente, então também pela primeiríssima vez ele não se

incomodou em estar iludido. Mas era sem ilusão alguma

que ele se entregava cada vez mais àquele estado de

investigação que jamais poderia ser confirmada. Então

seguiu em frente ao papel e se decepcionou ao ver quatro

outros pares de corações que, apesar de não estarem

simetricamente ligados às quatro molduras, não podiam

mentir no que de fato queriam dizer, afinal de contas, os

números coincidiam. Então achou que seu erro fora crer

que qualquer memória coubesse em quatro segmentos de

reta unidos por ângulos retos. E porque se enganara com a

solidão daquela mão humana, ele começou então

finalmente a barganhar sozinho e fazer acordos que

somente um apaixonado não percebe serem inverossímeis.

Que a sua melhor mão humana amava alguém, e que esse

amor merecera uma moldura, disso ele agora jamais teria

dúvidas. E esta noção lhe obrigou a sucumbir à sua

inteligência, maior das burrices que um apaixonado poderia

cometer. Racionalizando, dessa forma, viu que, por ser tão

óbvio o fato de um desenho de coração significar amor é

que aqueles desenhos poderiam não querer dizer amor,

enquanto que a moldura inevitavelmente implicava na ideia

de memória, concluiu. É que ele não conseguia aceitar que

aquela sua mão humana fosse capaz de se valer de um

clichê tão vulgar. Procurou então salvação em outros traços

ali, mas não havia agora alternativa senão dar um salto no

escuro. Precisava arriscar tudo o que ganhara até então,

tudo o que aquela mão humana lhe dera, se não quisesse

perder este tudo por pura falta de mais provas.

Encurralado, teve que desdobrar o papel.

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Por sorte, o que havia na segunda dobra não era

necessariamente a sua derrota. Agora havia letras ao invés

de desenhos. Se ate então ele se tinha apaixonado pelo fato

de uma mão humana ter se preocupado em não escrever

dentro de um livro, qual não foi a sensação de plenitude

instantânea quando viu que esta mesma mão, para lhe

surpeender, escrevera onde não se esperaria palavras.

Precisou sentar-se. Eram letras sem palavras, na verdade.

Exausto de buscar um lugar, desmoronou no chão frio,

cruzou bem as pernas, como numa meditação. Em colunas,

lia-se as associações, número um letra A, número dois letra

D, número três letra B, e assim até chegar a trinta. A

maioria das alternativas descartadas com um xis

decepcionado. Isso tudo à esquerda da face nova na qua l

agora havia um vinco para delimitar os hemisférios do novo

mundo. À direita, outra prova de fracasso, uma equação

inacabada da qual o xis jamais deveria ter saído para anular

tantas questões do gabarito ao lado. Aliás, era com angústia

fascinada que ele lia os traços mal calculados de sua mão

humana, e compreendia o quanto xis jamais seria. E se de

súbito ele tentasse corrigir a equação, o mundo chegaria ao

seu tão temido termo. Como não tinha força alguma, apenas

inteligência, ele não ousaria enfrentar o fim. Riu-se com

esse último pensamento, porque então descobriu que,

afinal, ser inteligente era apenas o modo pelo qual exercia

sua preguiça. Também lhe pareceu vulgar manchar a folha

que tão dedicadamente uma mão humana preenchera com o

cuidado de registrar o fracasso em um teste que talvez a

tivesse levado para a Lua ou Nova York.

Mais importante do que para onde fora, o que aquela mão

humana deixara já o nauseava um pouco. Haveria ali uma

mensagem? Foi quando encontrou, quase escondida no

canto inferior direito, uma tímida flor de miolo azul-caneta

e nove pétalas apertadas. Soube que eram nove pétalas por

ter sucumbido outra vez, resignado com o novíssimo hábito

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27

de relacionar uma coisa aparentemente sem sentido a algo

que, com algum trabalho minucioso, possa desvelar uma

mensagem. Da mesma forma ele também soube que a flor

estava rodeada por dez folhas tão mal desenhadas que só

viravam folhas por sua boa vontade. Número nove letra

flor, número dez letra folha... Mas de que isso importava

mesmo, meu deus? Não importava, era um buquê e

precisava recebê-lo. Aceitou finalmente o presente, mas não

sem algum remorso. Pois era até quase um insulto aceitar

um presente de alguém a quem você jamais pensou em

presentear. Um sobressalto: injustiçado, precisou apoiar-se,

mas ao invés de encontrar o frio duro do chão liso, tocou

novamente na aspereza esquecida do livro derrubado.

Ele despertou novamente.

Seria amor? Essa coisa que vibra é amor? E se fosse, seria

amor mesmo um sentimento? Então amor não passava de

uma palavra? Por alguma razão, o ombro acordou para a

dor ancestral. Seu maior erro fora ter dado atenção à sua

dor. Pela dor ele agora chegava ao ponto de concluir que

amar não poderia ser jamais uma questão de

sentimentalismo. E ousou pensar mais: o amor nem de

longe era para os românticos. E era para ele? Era amor a

uma raça o que o movia desde a época das explosões? Ele

começou a se sentir um revolucionário, por julgar ter

descoberto um sentido primordial: amor, não podendo ser

apenas um sentimento – o que o tornaria não mais do que

um termo misturado a tantos outros do dicionário –, só

poderia mesmo ser uma atitude. Lindo, perfeito... E agora?

O que fazem aqueles que agem nesse sentido? Foi só então

que, num súbito gesto, quase num pasmo, afastou com

pressa a sua mão daquele livro. Com o movimento, o objeto

foi arrastado e as páginas ásperas lixaram o chão liso, como

num ruído de unhas numa lousa. O que lhe trouxe outra

satisfação incontável. Mas precisou controlar-se, porque se

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28

amor era mesmo uma atitude, seria uma muito grave, que

lhe exigiria uma sobriedade incompatível com este deleite

que lhe abria um sorriso ao ver o livro estorvado ao pé dos

rascunhos no cesto.

Ainda sem se iludir, ele voltou-se para o papel dobrado.

Então pareceu-lhe ter se passado milênios desde a última

vez que o vira. O que lhe deu a impressão de saudade, e

como somente sente-se falta do que é amado, de novo

estava sem outra saída senão desdobrar aquela folha pela

última vez. Única atitude digna de seu amor.

Foi fácil desdobrar o papel por inteiro.

Por um instante durante a talvez falsa sensação de

facilidade, ele duvidou do papel. Mas possuir o papel e

tocar no papel e ter uma mão humana escrito num pape l

esquecido entre páginas ásperas não seria a prova de que o

amor era uma atitude possível? Porque tinha dúvidas,

sentiu-se fraco. Tão mais fraco do que alguém incapaz de

renunciar verdadeiramente a uma força. Ele era fraco a

ponto de não suportar a facilidade com que descobriu a

última camada daquele papel. E também apenas os

verdadeiramente fracos como ele se esquecem que nada

pode ser realmente aquilo que vemos ou sentimos ser. Não

sendo aquele papel verdadeiramente fácil de ser desvelado,

seria então um insulto ao seu amor verdadeiro tê-lo

subestimado? Que castigos aguardavam aqueles cujas

impressões não correspondiam à realidade das coisas

imaginadas? Decerto seria o peso de uma realidade

incontestável. Sentiu que o fim então chegara, e que seu

gesto final estava apenas sendo adiado. Só depois desta

lucidez foi que ele finalmente olhou para a última e mais

ampla face do papel.

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Com um alívio: desdobrar a folha fora a atitude mais difícil

da qual até então ele precisara dar cabo. Também afinal,

não estava sequer perto de ser alguém pronto para esse tipo

de sacrifício. Não era algo bonito. Ele quase riu de quem

alguma vez achou que o amor fosse uma atitude digna de

filmes e livros e músicas. Ele viu que teria de abdicar deste

amor que com tanto esforço acabara de inventar, o qual

com tão pouca força acabara de tornar digno. Enfim

sustentar certa atitude era para poucos iniciados. Isso

porque misturado aos quatro vincos em cruz estava outro

par de molduras, outro par de flores com nove pétalas

rodeadas por outras tantas folhas mal desenhadas.

Mas tudo isso não importava mais. Amparado pelas

certezas que tinha, ele não suportou enxergar que a sua

mais nova melhor mão humana tinha escrito duas palavras

no mais íntimo e profundo âmago de seu melhor papel. E

porque não eram letras avulsas, relacionadas a números sem

carga, aquelas nove letras cometiam, juntas, o pior pecado

da humanidade: elas faziam uma pergunta. Com ares de

decepção, procurou relevar. Então aquela mão humana

pecara. Que grande coisa? Ensaiou alguma indulgencia,

pois lembrou-se de que acabara de aprender a não

racionalizar, porque amar era um ato e não um pensamento.

Poucas pessoas que ele conhecia eram capazes de amar

“apesar de”. Apesar das palavras e do ponto de

interrogação, ele fez um esforço último para não perder a

sua preciosa mão humana.

Foi a sua última atitude.

Nesse meio tempo, ele odiou ter uma memória, porque

além de o amor ser uma atitude e de que era preciso sempre

amar “apesar de” e não “por causa de”, lembrou-se também

que era fraco e que isso aparentemente jamais mudaria. E se

uma grande força era exigida para se renunciar a um poder,

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e se mais força ainda era necessária para se abster de sua

racionalidade, que era outra força sua, ele não conseguiria

então medir o quanto lhe faltava para chegar ao nível de

alguém que ama “apesar de” e é feliz com isso. Como não

queria obrigar-se a amar sem felicidade, ele, a cada vez que

lia aquelas nove letras perguntando, ficava um pouco mais

certo de que precisava da separação que todos tanto evitam

por acreditarem que amor é coisa única. Essa noção de

preciosidade o incomodava a tal ponto, que ele não teve

dificuldade alguma em resolver-se: estava disposto a

cometer a maior ofensa que já cometera contra algo que

amasse – ele responderia àquela pergunta.

E depois disso, o fim não poderia mais ser adiado. Aliviou-

se. Antes de responder, procurou reparar bem nos desenhos

das letras, mas não era possível. Não havia imagem alguma

naquelas palavras, senão o sinal que as findava. Um pouco

enfurecido pela interrogação tão bem delineada por aquela

mão humana, ficou mais certo de que realmente ali não

poderia haver futuro. E tudo acabaria, e nada terminaria.

Ele levantaria, recolocaria o livro desimportante no espaço

vazio que deixara ao retirá-lo, e ao passar pelo cesto no

canto, o papel forjado daquela mão humana se tornaria

apenas mais uma bolinha dentre as tantas que, não sendo de

todo um desperdício, tampouco são o que exibimos depois

do trabalho pronto. E saindo do cômodo, iria finalmente

matar a sede que o trouxera ali, porque era caminho. E

como já sentia uma sede de eras, apressou-se, mas não sem

solenidade, ao seu gesto mais generoso de fraqueza. Leu

em voz alta – o que era apenas um sussurro – a grande

ofensa daquela mão humana: “Até quando?”. Respondeu -

lhe, noutro sussurro: “Não mais”.

Page 31: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

31

Redimido

E então ele descobriu que toda aquela sua veemência era

apenas solidão. Assustou-se no começo, afinal de contas,

estava perdendo algo forte de sua personalidade, mas então

deu-se conta de que não era algo tão forte, apenas era a

única face de sua personalidade à qual dava vazão.

Desconhecia todas as sutilezas de seu próprio eu. Depois o

medo foi virando uma noção tão nítida das coisas, algo

assim tão translúcido quanto o vento, vinda ironicamente

dessa sua nova forma de ignorar. Experimentou finalmente

o doce privilégio de não querer saber, e assim se libertou

das coisas que não eram suas, inclusive tanta veemência.

De fato, agora ele sabia, só era firme no que dizia porque o

que dizia não lhe pertencia, tomava emprestado da

imaginação, esta que, principalmente no caso dele, não se

encaixava no que se pode chamar de particularidade. Não,

aquilo que inventava, sem saber-se inventando, era fruto tão

somente da vontade de não ser o que realmente era. Aliás,

mais que isso, suas teorias vinham mesmo do desejo

involuntário de tornar-se algo além dele mesmo, porque

autopiedade sempre fora seu forte. É bem verdade, a pena

não alavanca atitudes, pelo contrário, ela as empaca. E por

sentir-se num atoleiro sem corda a que se agarrasse, seu

consolo era maldizer a terra e a água, que juntas formavam

uma lama a afogá-lo, porque estavam unidas. E saber que a

lama da qual não se livrava era mesmo a prova de que a

união fazia alguma força contra ele que, sozinho, achava-se

invencível por ter muita opinião, saber disso o endurecia.

Page 32: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

32

Como achando que ter a resposta na ponta da língua fosse a

corda que o libertaria, descobriu que, na verdade, trocava

seis por meia dúzia. Em vez de se afogar na lama, se

enforcava cada vez mais forte. Na corda da sua imaginação,

um nó errado e estaria degolado para sempre. Mas houve

um tempo em que ele se cansou de tanto se puxar pra se

salvar. Reparou que era mesmo impossível. Ouviu dos reais

gênios (aqueles que não eram ele), os da Física

principalmente, ouviu deles que por uma lei natural alguém

não se pode erguer puxando os próprios cabelos. Como,

então, não podia salvar-se puxando a própria corda, esperou

que outra mão aparecesse. E não podia deixar de se irritar

por não ser suficiente sua imaginação para que isso

finalmente se realizasse. Forjar o formato dos dedos,

desenhar o antebraço, nada adiantava. Descobriu que

especulações não salvam vidas, apenas as adiam.

E por falta de recursos e escassez de alternativas, resolveu

esperar. É como todo mundo sabe: na lama, quanto mais

nos debatemos pra subir, mais somos tragados pro fundo.

Isso devia estar escrito em todos os livros, ou ao menos

num que fosse de leitura fundamental à sobrevivência, ele

concluiu depois que, por puro acaso, uma mão o salvou. As

pessoas esquecem do óbvio, isso é um crime, que quase o

matou. E se foi preciso ter lama pelo nariz para finalmente

descobrir a beleza oculta nas verdades prefabricadas, agora

ele podia, enfim, respirar aliviado.

Sereno, sem a urgência de sempre, ele agora experimenta a

paz de quem não anseia por paz, e acha até que já ouviu

essa frase em algum lugar, mas não se importa mais em

descobrir se está lembrando ou inventando. Sua veemência

diluída. Aquela necessidade de originalidade barata – ele

descobriu e ri-se agora, condescendente consigo mesmo –,

aquela mania de originalidade que ele tanto perseguia era,

afinal, recalque. E então ele já não mais precisa estar

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constantemente provando-se forte, pois que, de fato, ele

ficou mais forte por não querer mais isso. Ser forte nem

sempre implica em ser mais feliz, quantos bebês já se foram

vistos infelizes por terem poucos anticorpos? Ele queria a

felicidade oculta na fragilidade dos bebês, a felicidade que

termina quando a doce inocência acaba. Ele queria a

felicidade inédita da ignorância, e por não saber que era

esse o seu desejo, por tampouco saber que essa felicidade

tão simples existia, enfim, por acidente foi que a encontrou.

E a noção das coisas tão nítidas quanto o vento lhe

atingiram tão profundamente, que ele sentiu-se privilegiado

por sentir-se tão feliz e, além disso, ter a consciência de que

essa felicidade não era forjada por suas teorias. E, tão feliz,

ouviu dizer que felicidade alguma dura muito. Num flash

de lucidez, percebeu docemente e com alguma tristeza

benévola, serem esses que dizem isso os mais infelizes.

Como não aceitando que esta sensação tão nova e simples

fosse frívola, e como querendo provar aos desiludidos –

enquanto exdesiludido que era –, como querendo provar

que aquela felicidade era para todos, ele resolveu ser feliz

plenamente, sem pensar nisso. E por mais que insistissem

os desesperançados, ele experimenta o que antes nunca

vivera. E então ele viveu feliz enquanto era feliz, e isso era

mais que suficiente.

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34

II

CONVERGÊNCIA

“Ou pressagiava o que viria também de fora e seria

completo, pois são completas as coisas quando

acontecem depois de anunciadas por dentro, criando

um estado capaz de receber o que virá de fora.”

Em O Marinheiro, de Caio Fernando Abreu

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Convergência

Houve um quê de impaciência indeterminada que me

influenciasse. Houve um quê de raiva morna e densa que

me denunciasse o fato de eu ser influenciável. Tinha me

cansado de pudores triviais. Todo pudor, em maior ou

menor grau, não passa de uma banalidade sádica que serve

para preencher lacunas inexistentes e criar lacunas novas e

desnecessárias. E de lacuna em lacuna, torce-se o tornozelo

na inevitável buraqueira. Meu tornozelo não me carrega

para lugares que eu não ordene, no entanto, e pro meu azar,

há percalços, calçadas esburacadas. Houve um bueiro

infinitamente profundo no meio de uma, e caí tão

intensamente que cheguei a ralar levemente os joelhos.

Desabo em tantos rasos, que me perco em superfícies tolas.

Há de ser-se um tanto superficial para com os pudores

banais que acabam com as articlações. Meu passo,

compassado como de um bêbado dum final de tarde duma

quarta-feira, costuma trazer-me pedrinhas aos sapatos.

Escrúpulos inconvenientes como cisco no olho que não

enxerga. Elas entram incisivas e agudas, e no mesmo

instante aquele incômodo de qualquer situação que não me

deixe tranqüilo vem rasgante como tivesse sido lançado

obliquamente numa lâmina d’água pra que quicasse. O

escrúpulo que quica no lago não afunda sequer quando

para. Mas a pedrinha penetra, incisiva, sobe pela batata da

perna e vai instalar-se em qualquer lugar profundo na

minha nuca. De novo o sangue corre, o olho gira, os dedos

se inquietam, mas, ineditamente, o tornozelo inchou. Pura

dor de tornozelo. Pudor de torcê-lo num bueiro tão fundo e

sufocante, que não chega a cobrir minha cabeça.

Desmanchar um pudor é arriscar-se a ampliá-lo, porque o

pudor se estabelece a partir de certa arrogância gratuita e,

em certos casos, inofensiva. Ao contrariar um arrogante

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36

corre-se o risco de tornar-se arrogante também, pela

simples sensação de orgulho próprio que esta vitoriazinha

inspira. Ou o contrário. Não há lógica que guie os

escrúpulos, muito menos uma que conduza esta raiva morna

e densa em algum lugar profundo da minha nuca. Se eu

soubesse que peitar a arrogância de um pudor fosse causar -

me esta raiva indefinida, teria tentado evitar a impaciência

original, embora saiba que não teria conseguido. Presumo

que o fato de eu ser influenciável venha justamente desta

não disposição em esperar, o que torna o produto pronto e

embalado muito mais convidativo do que intentar produzi-

lo com as próprias mãos. O problema é ter de lidar com a

insatisfação depois. Nunca abri uma embalagem pronta que

contivesse o que eu esperasse do conteúdo dela. No entanto,

nunca consegui produzir algo que condissesse com a ideia

que inspirasse a minha manufatura. Suponho que eu

necessite de mais alguma maturidade desconhecida que me

dote de certa maestria manual, e é tão inusitado contatar

isso, que chega a mexer com aquele meu orgulho próprio

que ganhei quando da minha vitória sobre alguma

arrogância de pudores. Julgava que meu tato fosse aguçado,

haja visto a minha vista não haver o suficiente que me

console. Devia estar mesmo enganado, ou então apenas

superestimando meus sentidos convencionais. Ainda não

desvendei como se faz uma boa leva de escrúpulos e

pudores, e sinto-me gasto demais pra recomeçar qualquer

processo de aprendizagem. A impaciência indeterminada

tem essa capacidade de alterar o curso do tempo, porque

não importa o quanto me digam maduro, julgo-me sempre

um nível inferior a alguma sensatez fundamental, e mesmo

quando me tenho pela mais alta maturidade e

discernimento, sempre surge um bueiro de calçada a me

sussurrar que certas atitudes tão elevadas não passam de

disfarce para um medo juvenil de ser-se juvenil. E possa ser

este o ponto da minha falta de habilidade: mãos jovens ou

velhas demais não têm muita coordenação, seja pelo hábito

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37

ainda não fundamentado, seja pela exaustão que o hábito

provoca. Mania inconveniente de estar em dois extremos ao

mesmo tempo. Este incômodo me desperta a vergonhosa

vontade de ser, por alguns momentos imprecisos e

imprescindíveis, de certo modo medíocre, em sentido

absoluto. O dicionário que me valha: preciso mesmo é ser

sem relevo, comum, ordinário, vulgar, mediano, meão, ou

coisa pior. Mas não tão pior, que é pra eu não correr o risco

de chegar novamente perto de outro extremo. Um dia,

tentaram me ensinar que tudo tinha seu tempo, e só

esqueceram de me dizer quando é isso. Talvez eu estivesse

muito ocupado pra descobrir o momento exato, tentando

tirar a pedrinha que entrava no meu sapato. Outro dia, ou

talvez tenha sido naquele mesmo dia, quiseram me

convencer de que eu sou a pessoa certa pra qualquer pessoa,

e foi engraçado perceber como eu só sirvo pro outro, nunca

pra quem me disse. Mas então, de novo, tentaram me

persuadir a achar que buscar demais faz as coisas fugirem

do meu alcance, que eu preciso saber esperar, que meu

querer é forçação desesperada. Não sei quando fo i

exatamente, mas depois de alguma recorrência monótona,

aprendi sozinho que esperar cansa mais. Disto advém esta

impaciência indeterminada que denunciou a minha face

influenciável. Só posso concluir que ser impaciente, sendo

assim tão ideal como me dizem ser, é jogar este minha

perfeição alheia no bueiro de toda calçada lacunosa. Eis o

motivo mais íntimo de minha incompreensão, essa

percepção aguda de não saber-me nem ver alguma

possibilidade remota de tornar-me paciente o bastante para

ser ideal a esse outro que está em algum lugar, guardando

sua aparição para quando eu começar a esperá-lo. Só resta

saber se este outro tem a calma que me falta, uma vez que,

apesar dos sábios conselhos, também não conseguiram me

ensinar ainda como se passa a esperar bem.

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Virtual

Na minha solidão tardia de sempre, transito avulso entre

combinações de cores e linhas de resolução, em busca de

fragmentos tácitos de um incômodo irreal, virtualizado em

cada plaquinha que sobe, deletado em toda rolagem abaixo.

Vejo meus anseios transmutados em abreviações que não

condizem com a extensão do que teclo, meu modo

particular de expressão impressa não impressiona tanto

quanto espero. Há sempre o botãozinho vermelho-sangue

marcando com um X o lugar preciso que me afeta.

Quando deixarei de viajar em rotas iluminadas pela janela

da qual espio covardemente enquanto navego? Se é de

dentro que a luz parte para clarear as águas em grande rede,

como poderei eu me desapegar do veículo no qual viajo? Se

tenho medo de descer do barco, jamais mergulhare i

profundamente nesta rede que, ao invés de me envolver e

balançar, me enrosca, prende e sufoca. Feito peixe que,

mesmo não podendo respirar fora d’água, nadou, nadou em

direção à margem, deliberadamente, só pra morrer na praia.

E ainda tem este silêncio agudo, craquelado de quando em

quando por meus dedos numa prancha detentora de chaves

que não sei combinar adequadamente. Deve haver algum

código indecifrável que me faça libertar desta cadeira

giratória, esse circulo vicioso. Alguma senha inquebrável,

tão oculta que deve ser a coisa mais óbvia do mundo. Meu

aniversário, o nome do cachorro que um dia pretendo ter,

meu super-heroi favorito, ou o grande amor da minha

vida... Impossível. Insuportável paradoxo... Ora, se bem me

recordo que comecei esta viagem surreal em busca desse

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39

alento que muitos dizem irreal, ideal. Se esta fosse uma

possibilidade para a senha, não haveria mais necessidade de

senhas.

Estou preso e não sei sequer em que lugar; posso ir a todos!

Ao alcance da mão direita: Ásia, Oceania, Lituânia e o copo

d’água que pouso à frente, pra não ter que percorrer a

infinda distância até a cozinha, se acaso tiver sede no meio

do caminho. Caminho sozinho por hiperestradas

superlotadas, nas quais não há tropeços, não há buracos,

não há falhas nem defeitos. Me misturo a semideuses

invioláveis forjados em megabites intocáveis. Não acharam,

na Terra, matéria digna o bastante para os seus Avatares.

Mias doença do que vício. E das piores, por sinal. Vírus

incurável. Infecção irreversível. Sei que não fui vítima de

Cavalos de Tróia. Não me chamam a atenção, estou farto de

presente de grego... Suponho mesmo que tenha sido

contagiado muito antes, lá bem no começo, na época do “I

love you”. Meu pobre sistema operacional, apesar de tão

frequentemente atualizado, não consegue programar vacina

pra este mal ancestral.

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40

Sorriso

Sorriu, e no instante em que seus lábios se fizeram sorriso,

já não era mais isso. O olhar intenso de quem vê o sonho

ser melhor do que os fatos distorceu a pura e simples

convenção de sorrir para as boas notícias do outro. Outro,

sempre o outro. Fazer tudo em função do outro, pensar no

outro a cada passo, cada moção do braço. Está me vendo?

Tomara que sim, foi meu melhor movimento. Será que

gosta? E se não gosta, que faço? Mudo, ando diferente,

balanço um pouco a cabeça, então olho pros lados. Nada?

Nenhum elogio? Tanto esforço, tanta técnica, e ele olha

para a desconhecida da rua? Ele não gosta...

Uma onda fria no estômago, outra quente na espinha, e seus

imperceptíveis pelos se eriçaram numa angústia incontida e

injustificada. Precisou sorrir. Um sorriso que a agredia toda

em sua arrepiação. Sentiu-se infiel consigo mesma, desleal.

Ouvira, absorta naquilo que julgava ser seu bom senso, a

boa notícia do outro. Ah, o outro que a fizera subitamente

enxergar que o seu bom-senso era puro idealismo

disfarçado de autoconfiança, pura má interpretação de

gestos e flores, olhar deturpado dos beijos no rosto e dos

abraços calorosos. Com aquele sorriso, então, os beijos,

abraços, flores e gestos tornaram-se frios e sólidos feito o

cano de uma pistola engatilhada. A iminência da explosão

fumegante que a mataria por seu próprio punho, o dedo rijo

em volta do gatilho. A raiva de si e do outro que de si não

se percebe, nem dela. Cego. Burro e cego. Pior que ambos:

lindo.

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41

Teve de sorrir, e em cada músculo que se moveu

forçadamente corria a vontade de cuspir-lhe a face

imperdoavelmente satisfeita, grata e sonhadora à sua frente.

O outro com a alegria cruel de sua descoberta, impiedoso

com sua boa notícia. Como pôde? Tanto lhe fiz por bem!

Por querer-te com tal intensidade que em uma simples

amizade não cabe! O que precisava para mostrar-te que não

é mais teu afeto apenas que eu quero? Mas teu corpo alto e

magro, teu lábio grosso e ressequido. Que faltou para que

eu deixasse claro que, já há algum tempo, só te

acompanhava em horas vadias para que pudesse, vez por

outra, no desgoverno dos movimentos, roçar de leve meu

braço no teu, sentir, por um instante fugaz e intenso, tua

pele de cor estranha misturada à minha da cor comum de

toda amiga?

A raiva do sorriso, o ódio pelo outro, por aquela indiferença

a tudo dela, pela maneira leviana com que o outro havia

dito a sua boa notícia, o tom de naturalidade, com a

saitsfaçao de quem consegue finalmente compartilhar um

presente grande demais. Como se, ao dizer-lhe aquilo, o

presente ficasse ainda maior e mais digno de ser dividido.

Como se aquilo, aquele presente que ele a entregava, fosse

o presente desde sempre esperado sem reais esperanças. Por

que somos amigos? Por que sou tua amiga então, se tudo

que você faz eu vejo como quem fizesse fosse o homem

perfeito, que não é amigo de ninguém, que a si mesmo

basta-se, por todas o quererem e ele não perceber querer-se

mais, por quê? Por que resolvi ser eu a amiga do meu

homem perfeito e acabar com a possibilidade de por ele ser

escolhida e, desse modo, jamais me aproveitar do que a

perfeição masculina teria a me oferecer? Por que sou

obrigada a servir de satisfação falsa ao meu homem

perfeito, a sorrir-lhe com sua novidade que me agride?

Page 42: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

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Sorriu, e na obrigação de sorrir ao outro que sorria

desobrigados sorrisos a ela, em virtude daquela

inadmissível sua boa notícia, não conseguiu ela conter o

impulso nervoso, a ordem involuntária vinda do músculo

involuntário (a bomba, a pistola engatilhada) em direção à

têmpora aflita, irrigando de fúria a mente nervosa que, num

lampejo elétrico de neurônios em frenesi, ordenou um braço

delicado e branco a erguer a mão que tantas vezes

envolvera a do outro – o outro, ele, a ideia do outro

apressou o processo –, explodiu a mão na maçã do rosto

dele que, tão alegre de amor novo, recém descoberto e

recém correspondido, passou, em um segundo silencioso e

agudo, daquela cor estranha dos desejos dela a um rubro

latejante, vivo. O rosto, agora arregalado de estranheza,

voltou da explosão e ficou-se num grito mudo, no qua l

escorriam da carnosidade abundante dos lábios do outro o

pasmo da incompreensão.

Sorriu, ela, então, outro sorriso, aliviado, mas insatisfeito.

Page 43: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

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Equívoco

Fez-me mal a confusão. Repare comigo, você jogou em

mim as palavras, me cobriu com elas e, sem alguma

explicação, saiu, como se apenas aquelas palavras fossem

tudo que era preciso dizer. E eu já me acostumei a não te

pedir explicações. E, mais do que costume, me contentar

com o que você me dá é quase uma questão de

sobrevivência. O que eu não sabia, meu bem, é que aquele

seu lançar súbito foi apenas falta de tempo e não

desnecessidade de argumentação. “E o que eu faço depois

disso?”, foi o que sobrou avulso entre minha boca e a tua

nuca forte quando você se virou, mudo, para o outro lado. E

eu fiquei todo aquele dia sem saber o que fazer com aquilo

que achei ser um presente.

O presente não era meu, meu bem, o bem que você me faz

tampouco é meu também. Compreenda, eu achei que era

brinde quando era apenas uma amostra grátis. Percebe a

diferença? Brinde é de quem ganha, não precisa de

apreciações. Amostra grátis é o teste pra ver se o produto é

bom mesmo. O triste, meu bem, o triste e o sublime disso é

que era bom mesmo. Mas não era meu. Era apenas a tua

mania de só oferecer o melhor do que você tem pra dar. E

como eu gosto disso, gosto tanto disso que quase me

arrependo de ter ficado triste porque aquele último poema

não era pra mim. Quase me arrependo de estar

decepcionada.

Não se preocupe, meu bem, vai passar. É só que tem coisas

pequenas que são grandes demais pra serem maiores do que

precisam. Há-de se tomar cuidado com as combinações,

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44

três letrinhas podem tanto levantar muralhas como

desmoronar dias de sol. Amo. É bem verdade, o amor não

está nas três letras, mas na língua da qual surgem. Só que

tem tanta coisa entre minha língua e meu amor, que não me

bastam os beijos, eu preciso de palavras. E você tem a

mania de brincar com meu amor através delas. Confesso,

meu bem, estou triste, desiludida.

Me perdoa, meu bem, estou sendo injusta. O fato de ter sido

o primeiro a quem você mostrou seus versos devia me

servir de alguma coisa. Querendo ou não, fui eu quem fez a

leitura original. Estar em primeiro nem sempre significa ter

ganhado, tanto é que não fui eu que ganhei aqueles seus

versos. Eu criei-lhes um sentido, e o verbo virou carne, mas

o sentido me escapa, porque surgiu de mim, mas não surgiu

pra mim. Deve ser assim que Deus se sente no pôr-do-so l

dos Sábados. Deus criou o mundo e os homens, mas, à

noite, quem descansa no seio de Eva é Adão.

Obrigado, meu bem, pois mesmo me equivocando consigo

amar-te mais. Foi como eu te disse, um dia desses, bem na

aurora dos nossos tempos, “Fez-me a vida uma aventura

errante/ de repente, não mais que de repente”. Errar é

preciso, meu bem, e é precioso. De fato, fez-me mal a

confusão, mas faz um bem tão maior te amar.

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Começo

Eu me acostumei contigo, e foi tão simples que não pode

ser nada além de amor o meu hábito de te aturar. Você é tão

difícil, às vezes. Contigo desenvolvo o meu lado mais

tolerante, e por isso mesmo você é imprescindível. Não me

envergonho de reconhecer que me aproveito do que você

me proporciona. Você cumpre bem o papel ao qual te

incumbi mesmo a contragosto seu.

Eu te admiro tanto, se você soubesse! Ah, se você ao menos

imaginasse que toda essa imagem superior que fazem de

mim é apenas camuflagem para uma fraqueza vergonhosa

que não existe em você – é meu refúgio. Se sequer você

imaginasse que meu avanço aparente foi fruto sortudo de

minha própria solidão, e que agora que você está perto,

perdi a mania de querer estar sozinho. Se você ao menos

desconfiasse duma ínfima porção da dependência que

desenvolvi depois que você chegou, você me pediria

perdão, pois não se julgaria capaz daquilo que é capaz já

sem saber. E eu não suportaria ver você sentir-se menor,

porque você significa tanto, que imperdoável mesmo seria

eu te provocar esta mentira.

E te amar me faz um bem danado, suportar em você o que

geralmente muito me irrita em todo o resto compensa tudo,

porque foi te amando que aprendi a me amar, a me suportar.

Tento absorver de alguma forma esse seu dom de agüentar

todos os meus maus tratos e voltar deles imune, de não se

abater com meu sadismo insistente, e de cuspir sadismo em

troca, sem descontos nem ressalvas comigo. Somos vitimas

integrais, algozes impiedosos de nós mesmos. Ah, e que

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teimosia a sua! Que quando te machucam, você ri na cara

de quem te machucou, para só depois chorar no escuro a

dor que disfarça. Que grande insistência essa a sua de

parecer invulnerável, e pagar toda a minha violência

exatamente com a mesma moeda. Você é tão difícil de

lidar, contigo experimento a regra do retorno, tudo que te

ofereço volta para mim em igual intensidade. Pois te amo

por ter aprendido com você a perdoar o pior de mim.

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Fugaz

Mesmo o mais bem construído hábito satura. E te aturar

tem me enfadado. Admirar-te já não é espontâneo. Olho-te

e me vejo refletido, sempre. Todo mundo necessita de uma

trégua de si mesmo. Se é melhor cada um pro seu lado?

Não! Para os lados os reflexos se acompanham. Recuemos

diante do nosso espelho, sigamos caminhos opostos. É o

que nos convém agora. Me mostraste: por enquanto, preciso

renunciar ao melhor de mim.

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Final

Outro dia estava lendo qualquer coisa e viu, de sobressalto,

a palavra ultimato. Quando descobriu no dicionário,

percebeu com algum orgulho próprio que estava imune a

certo tipo de conflito. Só assim para não conseguir se

comover com uma morte ou um abandono, ou mesmo uma

traição, que também é tanto uma forma de morte e um tipo

de abandono. Quando ela descobriu, era mesmo um pouco

tarde. Acreditava que não havia algo no mundo que fosse

absolutamente irreversível. E por mais importante que algo

ou alguém se fizesse, nada era insubstituível – essa era a

sua fórmula de sobrevivência. Não porque gostasse de

frases de efeito. Coisa de coerência: não permitia dar a s i

mesma muitas importâncias, por estar consciente de perdê-

las. Muito além de um derrotismo, tinha já observado que,

por tudo ter que acabar, o mais honroso a se fazer era não

mendigar a ausência dos finais. Por isso ela estava

constantemente substituindo sua vida por outra vida, antes

que a vida anterior acabasse. Covarde: uma coisa é aceitar

um término, outra bem distinta é suportá-lo na pele. Ela era

sensível demais, o que não deixava que se apegasse. Ou

melhor, se apegava com tanta facilidade, que qualquer

estranho já se tornava motivo para um sofrimento qualquer.

Mas aquele rapaz, deus do céu, quem era aquele rapaz

mesmo? Ela se perguntava pela terceira vez nas ultimas

doze horas. E tentava se lembrar de algum momento assim

bem denunciativo que lhe fosse capaz de apontar com

segurança: apesar do nome e da profissão e do lugar de

origem: ele era este rapaz. E só poderia não funcionar.

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Quando achava que estava tomando uma atitude lógica,

descobria o quanto a lógica é irônica. Então, por não querer

sofrer com os finais, ela acabava tudo. E sofria, afinal,

quem não sofre é mais infeliz do que quem sofre. Como

formulasse uma filosofia a partir deste seu modo de

proceder, ela não teria mesmo oportunidades para coisas

drásticas.

Pela terceira vez se decepcionou. Só então ela se deu conta

do quão sério era seu grau de alheamento. Fez somente o

que se espera de alguém traído: pôs numa balança os seus

esforços e os esforços dele. Não conseguiu evitar o riso.

Fizera muito por merecer. Mas que tipo doente de pessoa

consegue conviver bem com o fato de, apesar da fidelidade

e do carinho e do hábito agradável dos encontros diários,

conviver com a ideia de ser trocada por outra desconhecida

sem sequer a dignidade de uma advertência? Se ela pudesse

dizer que estava sofrendo por algum motivo, o motivo seria

somente esta falta de sinais indicativos.

Não era sofrimento o que experimentava, era o peso da

lógica irônica. No seu lado da balança havia afeto, apego e

admiração por alguém que facilmente poderia lhe despertar

apego, afeto e admiração. Do lado dele, no entanto, ela

notava agora um amontoado de pesados sapos: enquanto ela

amava um homem absolutamente amável, ele se sacrificava

todos os dias um pouco para transformá-la em amante, com

todas as imperfeições, principalmente aquela maior

imperfeição de estar ela constantemente a evitar um f im que

chegaria em tempo apropriado.

Constatando que, afinal, a relação tinha sido para ela uma

oportunidade de alivio, enquanto que para ele vinha sendo

um exercício de tolerância, constatando esta enorme

injustiça foi que ela admirou seu agora ex. E celebrou a

existência da outra, e comemorou a mentira e agradeceu por

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ter chegado meia hora antes do combinado. Ela se adiantara

– então soube – não porque planejasse uma surpresa vã.

Mimada e covarde, apenas não estava disposta a esperar

ainda trinta minutos. Como a causa e o efeito de sua

descoberta fossem o mesmo fato, e como essa relação, em

última instância, fosse expressão máxima de sua filosofia,

ela não poderia nem faria mesmo questão de alimentar uma

indignação.

Para evitar os desperdícios, deu cabo da seqüência lógica :

toda traição tem por conseqüência um ato qualquer de fúria.

E ela não sendo de dramas e não merecendo um centavo de

piedade, não tendo direito algum sobre o lado dele da

balança, não sendo de grandes atos, ela perguntou pela

quarta vez: quem era mesmo aquele rapaz? Decepcionada,

entendeu que isso não era despeito.

Pesquisando em suas lembranças, deduziu, por obviedade,

que não conseguia lembrar-se de quem era o rapaz com

quem namorava há catorze meses porque todo este tempo

estava pondo em pratica a sua filosofia e, apesar de saber

sua altura e tipo sanguíneo e sorvete favorito e quantas

vezes ele hesitava antes de entrar debaixo de um chuveiro

gelado, ela fazia questão, há catorze meses, de manter o

caráter meramente burocrático deste conhecimento.

E porque ela já se habituara tanto em não insistir, soube que

nada seria capaz de fazer. Foi quando finalmente o lado da

balança dele fez tanto peso, que os cordões a sustentá-lo

partiram-se. Ela balançava, do seu lado, agora leve, sem o

peso de uma relação e sem a ira contra uma traição. E já

que se tratava de mais um fim, e já que ela nunca

conseguiria tocar o coração de alguém porque tinha uma

filosofia, pendia a seu lado, arquitetando a melhor maneira

de terminar a próxima coisa que acabaria para ela.

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Desamparo

Quando eu chorei à porta da cozinha, não era bem tristeza,

ainda que o rosto molhado fosse inconfundível. É que por

acidente tocou a nossa música e eu não consegui responder

que “sim” ou que “não”. Tenho este problema horroroso de

me esquivar, e quando me perguntaram sobre você, só

consegui dizer “ainda”. E de repente eu me vi, pela

primeira vez desde você, pela primeira vez em muito

tempo, falando de você na terceira pessoa. Eu acho que

chorei por pura gramática. Um dia me disseram que amor

que é amor dura para sempre, que se acabar, jamais fora

amor. E isso é tão injusto comigo. Mas eu fingi acreditar

quando me disseram. Ora, é isso que se faz, não é mesmo?

A gente finge que acredita, finge que ouve, finge que não

liga. Amor é renúncia, me disseram também. Nisso eu creio

sem motivos.

Porque só consigo amar me privando, mas você não tem

nada a ver com isso. Então lembrei que eu tinha um copo

d’água na mão e que tinha gente no quarto e que eu, meu

deus!, não estava em casa, e que meu pranto me sabotou.

Mais forte do que a música fora a coincidência: a playlist da

dona da casa estava no aleatório. Mais pelo golpe do que

pela consciência, eu chorava com um copo d’água na mão,

só pra não dizer “vou à cozinha chorar um pouco”, porque

isso a gente não diz mesmo. A gente só faz e finge que

bebeu água e se renuncia outra vez.

Não é amor o que eu tenho? Então por ter enfim, e a

despeito do que eu queria, o frio na barriga sumido eu não

amei nunca? Eu lhe garanto que sede não era o que me

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segurava em pé com o copo na mão. E se eu disser o que

era, toda vez que tentar, vou mentir. E, se acaso não mentir,

vai ser injusto, porque não há nada que redima um coração

desligado sem motivos. Eu não sei o que me fazia doer

mais, se era o fato de ouvir a música mesmo da cozinha, ou

se era a luz do dia pela janela zombando da minha postura.

Você não tem a menor culpa do dia estar nem tão quente

nem tão frio, e ter nuvens boas que tapam o sol mas não

escurecem a rua. Coincidências, só pode ter sido isso: assim

como aquela música tocou naquele preciso momento, agora

algo desapareceu e não importa quando, já que, ou hoje ou

em cem anos, teria sido uma infâmia sempre.

E a culpa é minha e eu sou inocente. Quando eu me lembre i

de você, depois de uma noite de febre, me decepcione i

tanto. Amor não é pra se lembrar, é pra não esquecer, outra

coisa que também já me disseram. Então eu coloquei a

culpa na febre e na dor de cabeça. Mas segurando aquele

copo d’água eu me dei conta de que meu choro era somente

outro esforço desesperado para continuar me lembrando de

você. A febre fora só uma doença comum, sem significado

superior algum. Isso eu temo com todas as entranhas. Que

esse amor até hoje tenha sido apenas uma febre. Se for esse

o caso, nunca mais terei coragem de me permitir amar

ninguém, porque não é caridoso você só conseguir passar

adiante uma doença. E depois você se cura, e aí? Espera a

próxima, que vai durar menos porque seu sistema fica mais

e mais resistente a cada vez? E se meu amor for mesmo de

febre, só conseguirei ser feliz quando finalmente me

disserem que amor é para sempre mesmo quando acaba.

Mas isso ninguém diz porque é doloroso demais.

E, afinal, meu choro à porta da cozinha alheia era tristeza.

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III

REFRAÇÃO

“[...] então o que eu pergunto, se não somos o extremo

menor desta cadeia de movimentos dentro de

movimentos, o que eu gostaria de saber é o que é que

se move dentro de nós e para onde vai [...]”

Em A Jangada de Pedra, de José Saramago

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Refração

Sinto um ciúme infundado e totalmente justificado. Porque

muito me afeta um qualquer ser que não seja meu, mas que

me pertença por pura e simples clandestinidade afetiva. E

quanto mais não possuo o que tenho, mais vejo que não

possuir é a melhor forma de tê-lo. O ciúme vem deste

impasse fundamental: o que é meu só o é por esta

nomeação que lhe dou, e o que não é meu não o é por pura

falta de algum motivo essencial que me impulsione a

declará-lo como tal. De modo que, de um jeito ou de outro,

nada tenho, felizmente. Ter é, por definição, não possuir. O

ter é aquele estado retórico convencionado publicamente,

não significa nada. Possuir vai além, transcende, por não

mover uma palha exterior. Tudo que possuo existe tão

somente no meu labirinto interior, que é calmo e monótono,

cuja entrada é guardada pela esfinge enigmática, mas

permissiva, que releva qualquer resposta absurda para os

seus enigmas mais elaborados. Sendo assim, possuo

infinitas coisas que não me pertenceriam por meios lícitos

ordinários. E o fato fatal de afirmar que os possuo os

destitui automaticamente de minha posse, por estarem se

tornando públicos. Com alguma sorte e muita insistência,

minhas posses, depois de hoje, me abandonarão, por terem

virado convenção repetida e difundida. Eis o meu modo,

desesperado e melodramático, de dizer que estou farto de

carregar comigo este ciúme infundado e justificado. Tenho

pra mim que a maneira mais efetiva de livrar-se de um

incômodo é repetir suas causas diversas e irritantes vezes,

de modo que a ressonância faça o trabalho de limpar o

sentido que se faz do incômodo, feito piada sem graça, feito

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palavra esquisita, feito música marcante. É conselho dos

mais velhos, escutar mais, falar menos. É explicação para a

anatomia, ter dois ouvidos e apenas uma boca. Tenho dez

dedos, devo escrever mais do que ouço, muito mais do que

falo, mas nunca, jamais, devo escrever mais do que sinto.

Meus incontáveis poros vencem de lavada a mediocridade

de uma dezena de agrupamentos de ossos articulados.

Pretendo ser constantemente assim: falar pouco, ouvir

menos ainda e sentir muito. Dor, prazer, frio e este ciúme

que incomoda e preenche. Incomoda por não ser meu, já

que a partir de agora apenas o tenho, não o possuo.

Preenche porque há muito pretendo que se faça minha

posse este qualquer ser que sequer terei realmente. É bem

simples, existe um paradoxo. Pra que a convenção pública

fosse possível, teríamos de ser, em algum grau, semelhantes

em realização, mas sermos, em outro grau, distintos em

forma. No entanto, somos, eu e este incômodo que me

provoca ciúmes, de tal forma tão idênticos, que jamais nos

repeliríamos, e, por outro lado, há entre nós uma

disparidade tão óbvia, que nunca nos atrairíamos. Ou vice-

versa, esta coisa de opostos e magnetismo não é tão

evidente. Se a Física explicasse tudo, eu seria infeliz, por

não poder pensar que a questão é simplesmente resultado de

um capricho de qualquer força superior que me colocasse

em lugares errados nas horas exatas, ou que me

apresentasse a melhor maneira do pior modo. Assim, só

posso presumir que este incômodo tem a única finalidade

de me provocar o ciúme, pra que eu possa sentir-me

desligado dos fundamentos científicos banais que,

travestidos de lógica depois de alguma recorrência e

aceitação maciça, todos insistem em esfregar na minha

cara. Gosto da sensação de estar acima do que não tem

começo nem fim, o que não me faz, contudo, sentir superior

a isso tudo. Sentir-se maior do que algo, por mais grandioso

que o algo seja e independente da amplificação que a

comparação provoque, é ainda limitar-se. Não afirmo que

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não ter dimensão seja algo sublime, ao contrário, suponho

que seja o pior castigo a qualquer coisa; seria como não

existir, só que em excesso. Existir pressupõe uma limitação

qualquer, um não poder, um bastar, um não ser suficiente,

um acabar. Só que comparar-se com algo é colocar-se,

inevitavelmente, num estágio inferior ao algo comparado,

mesmo que a comparação lhe seja favorável. É admitir que

há algo em si que não está no lugar certo, está no outro

quando deveria estar em si. Preciso fixar bem essa ideia: me

comparo por julgar meu o que vejo no outro. Porque deve

ser mesmo este o motivo do meu ciúme, o ponto que o

justifica. O meu possuir não me basta neste qualquer ser

que me incomoda, julgo intimamente que nele existe a

potencialidade do meu ter, de tê-lo, e, no entanto, ele não dá

vazão a esta potencialidade. Não deixa de ser uma inveja

indomada e jovem, o que torna o ciúme ainda mais

insuportável. Este qualquer ser que me incomoda tem a

habilidade de esconder-se por eras e voltar em milésimos de

segundos, mostrando-me, com uma placidez insuportável, a

mesma figura de eras atrás. E eu, que envelheço a cada

momento que não passa, a cada instante que perpetua-se

inerte, eu que estou constantemente criando uma nova ruga

pra todo suspiro de alívio que dou quando lembro de ter

esquecido o incômodo, eu ainda me assusto com a denúncia

que sua figura me traz: a cruel ilusão de que jamais vou

superar este incômodo. E ainda pior do que esta ilusão é o

fato incontestável, cabalmente provado pela sua figura

sempre fresca na minha mente, de que este qualquer ser, a

despeito do todo o meu impasse ter/possuir, me sorr i

indiferente, por sequer cogitar que me provoque qualquer

inquietação. Falando assim, o incômodo parece tratar-se de

alguém, alguém que pudesse cogitar algo. Não é. Aliás, é

alguém, mas nem é também. Que o incômodo existe, isto é

fato. Que o ciúme se instala, isto está claro. O que não

compreendo é como este qualquer ser, que só é alguém por

eu dar-lhe um nome e uma casca, se me confunde comigo.

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Eis o infundamento deste ciúme: não se pode trair a s i

mesmo. O ciúme é apenas aquele momento em que se

verifica a iminência da perda de uma posse, não de um ter.

Se possuo o algo, não o posso perder pra mim mesmo, uma

vez que perder para mim significa, em conseqüência lógica,

ganhar para mim. De modo que meu ciúme vem de lugar

nenhum e gira em 360 graus. E mesmo isso não é motivo

para alarde. Posso perder o que possuo, mas não posso ter o

que possuo. Para a realização plena da posse seria

necessário uma reciprocidade mínima deste qualquer ser

que me incomoda. Não há. Ou melhor, há sim, mas não da

forma ideal para que me impulsionasse a proclamar

publicamente o meu ter do incômodo. É sempre pouco

demais. Me apego a sensações tão ínfimas que venho

sofrendo de uma insatisfação crônica. Mas já aprendi que a

maneira mais fácil de livrar-se de uma dor constatadamente

incurável é subjugá-la com outra dor maior que a oculte,

que torne secundária a primeira dor. Preciso abandonar esta

mania inútil de me contentar com migalhas que disputo

com os pombos de toda praça, e me fartar em quaisquer

atos que me libertem deste qualquer ser que me incomoda,

para que o ciúme, ainda que venha sobre os atos

compensatórios, seja menor o suficiente para que mais este

incômodo me passe despercebido, para que fique

secundário, recluso em qualquer lugar que o abafe.

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Recado

Avisa a ele que todo dia tem gente nova por lá. Diz que,

uma hora ou outra alguém vai reparar. Não é possível, não

pode haver tantos cegos. As pessoas ainda prestam atenção.

Só porque ele não se acostumou a movimentar o olhar, não

significa que o mundo inteiro seja bitolado. Avisa também

que ele precisa ir mais cedo, e com mais calma, que é pra

dar tempo de todo mundo se habituar com ele, e também

não ficar aquela coisa apressada, desesperada; afinal de

contas, demonstrar insegurança não é muito convidativo, e

todo apressado não prova ser muito seguro. Tem ainda a

questão da aparência... Pede pra ele não carregar muito nas

cores, tons leves são sempre mais receptíveis. Há muito já

se notou que contraste demais ofende. Entre duas coisas, até

que não... Mas contrastar tudo com tudo é exagero. Exagero

é sempre prejudicial, principalmente nesses assuntos. Diz

ainda que não apareça com cara de sono, nem de olhos

arregalados. Feições fortes espantam. Que não faça muito

barulho, seja calmo e silencioso. Que observe tranqüilo, e,

se tiver sorte, alguém vai parar na frente dele.

Diz ainda que não precisa ficar esperando muito

ansiosamente que parem, isso é motivo pra nem lhe

perceberem. É preciso ser tranqüilo. Mas é como eu disse, é

muita gente que circula por ali, e não pode haver tanto cego

assim junto. Nem ele pode ser assim tão invisível. Avisa

ainda que é pra ele não se mostrar demais, se expor. Abrir -

se é perigoso, deixar à mostra é ficar vulnerável, e por mais

cara de mau que ele tenha, ninguém vai acreditar que ele

não seja vulnerável, se estiver todo predisposto. Eles

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procuram segurança, e ninguém muito extensivo é de todo

confiável. Mas alguém há de reparar nele. Não é possível!

É gente demais, há de ter quem repare. Só que é preciso que

ele seja mais ponderado.

Diz pra ele não falar demais, pra não dar muito nas vistas,

não demonstrar o que ele procura. Um suspensezinho é

instigante. A curiosidade não mata gato nenhum, isso é

bobagem. Só que não há gato que vá fuçar em casinha de

cachorro! Não pode sair assim mostrando os dentes pra

quem passe na frente, se é que você entende o que eu quero

dizer... Ele tem que ficar meio ocluso, assim, um tanto

dissimulado até, por que não? Não mentir, ocultar. Às vezes

um segredo é mais seguro do que várias verdades. Não é

pra ele se anular, claro que não. Só pra se camuflar... Feito

camaleão, se adaptar ao tronco no qual se apóia. Isso traz

mais durabilidade. Diz a ele que não se desespere, não. Tem

muita gente por lá, não pode haver tanto cego num lugar só!

E se ele insiste em chamar de cego quem não o vê, conta

pra ele que cego é ele que não vê que tá todo desajeitado...

O pessoal não leva a sério quem não se encaixa, quem fica

desse jeito, assim, todo estranho, cheio de opiniões, de

preferências, de marcas pessoais. Diz pra ele que ele tem

que se encaixar; tá muito rebelde, muito alternativo. Faz o

seguinte: diz pra ele vir falar comigo, que eu ensino a ele

direitinho como ele precisa ser pra que o pessoal o veja.

Não é possível, não há tantos cegos assim num lugar só. Ele

que não se apresenta da forma mais visível.

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Névoa

E como recuperar dois dias inteiros, sem saber onde

ficaram? Em que parte do caminho atrás de mim estarão

eles, soltos em meio a esta névoa na qual venho envolvido

já há algum tempo também perdido? No meio do caminho

de uma quarta-feira descobri que já a sexta se ia acabando

sem que eu percebesse, sem que ao menos minha noção de

tempo fosse de algum modo relevante. Tem ideia do quanto

isto é melancólico? Essa coisa de o tempo passar a despeito

de nós o contarmos. Eu tenho a impressão de que se o

homem jamais tivesse inventado os números, nós seríamos

um pouco mais tranquilos. E o maior erro foi aplicar a ideia

abstrata de contagem a outra ideia impalpável de tempo.

Depois disso, nada foi o mesmo. Do contrário, eu não

estaria tão incomodado em ter perdido dois dias, o que, se

parar para pensar, não significa nada. Em termos práticos,

dois dias são quarenta e oito horas nas quais qualquer coisa

pode acontecer – e se nada aconteceu, o que está incluso

nas possibilidades, por que lembrar dessas horas? Mas é

que geralmente muitas coisas acontecem.

Só que medir os acontecimentos tomando como parâmetro

um número duplamente intangível me parece pouco, tão

pouco que se torna muito importante. Mas vejamos ainda,

será mesmo que é o tempo o que contamos quando nos

lembramos dos dias que vivemos? Porque, veja só, não

importa o quanto me digam sobre como o tempo passou

independente de eu não lembrar de ele ter passado, eu não

vou ter envelhecido dois dias agora, simplesmente porque

eu não me recordo. Eu me poupei dois dias inteiros? Será

Page 61: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

61

que isso pode fazer bem? Então deve haver uma resposta

simples, e por esta razão totalmente ignorável. Quem conta

o tempo são os calendários. Eu, pelo menos, posso começar

a acreditar agora que não estou contando tempo, mas

memórias.

Isso me soa tão óbvio que posso até me desculpar por esta

perda de tempo, com certeza algum filósofo já escreveu

isso. Mas a repetição seria também uma forma de ganhar ou

perder tempo? Se eu não me lembro, de que valeu então?

Me lembrei daquela pergunta básica de primeira aula de

Introdução à Filosofia: se uma árvore cai no meio de uma

floresta e ninguém a vê nem ouve, a árvore caiu de fato?

Sim, com certeza, o mundo respira a despeito de eu saber

disso. Ou não? Será? Mas por que eu vim parar nesta

pergunta mesmo? Acho que estou começando a me

contradizer, uma hora digo que só o que existe é o que

lembro, e depois falo duma árvore abstrata numa floresta

fictícia. Deve ser a força do hábito.

O que faz uma pessoa esquecer dois dias inteiros é o que

me incomoda mesmo. Da quarta para a sexta, nada

aconteceu? Seria isso possível? Será que sequer um galho

seco não despencou de um carvalho no mundo inteiro em

dois dias? Mas outras coisas caíram e eu soube. Como, por

exemplo, o centésimo copo de vidro que quebrei. O silêncio

no qual as coisas se escondem dentro desta névoa me irrita

um pouco. Tenho pra mim que a névoa é uma forma

desesperada de ser invisível, tão desesperada que se contrai,

e torna-se, senão absolutamente visível, ao menos divisável.

O que atrapalha a visão, claro, o invisível existe para não

ser visto e a nevoa quebra esta lei. O copo de vidro

também. O vidro é tão mais concentrado, que seu desespero

torna-se frágil, quebradiço.

Page 62: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

62

Um copo de vidro dentro da névoa é um insulto

imperdoável, a névoa torna o vidro outra vez invisíve l

contra sua vontade, o que contribui para os acidentes.

Noventa e nove copos eu quebrei, e em cada uma dessas

vezes eu me enfureci por não poder ver o copo dentro da

névoa. Noventa e nove vezes perdi a oportunidade de ver o

que era divisável mas estava invisível por estar sobreposto a

algo que se tornara também divisável.

Mas na centésima vez tive uma surpresa, e não xinguei

ninguém quando o copo se desfez no chão. De repente eu

vi, sim, na névoa insuportável eu vi que um copo quebrado

é o retorno à paz. Porque quando fui tentar juntar os cacos,

percebi que não poderia juntar os cacos que agora estavam

realmente invisíveis, porque o vidro se descondensara.

Era como se o copo tornasse-se agora também parte da

névoa que eu jamais poderia agarrar com as mãos, embora

ela estivesse tão solida em meu redor. E por assim dizer eu

julgo que fui me conformando com o fato de não enxergar

nada por estar enxergando tudo. E por assim dizer fu i

aprendendo a caminhar por entre a névoa, e por algum

motivo não me preocupei mais em pisar nos cacos que não

poderiam me ferir, pois de cacos passaram a gotículas, tão

miúdas mas tantas, que jamais me cortariam a pele, embora

me embacem a vista.

Então, por não precisar mais me preocupar, eu segui e perd i

a noção do tempo. Na verdade, não bem a noção do tempo,

mas vale a analogia. Eu abandonei mesmo a noção do

espaço. Deve ser por isso que perdi sem perceber dois dias

inteiros, fui caminhando e caminhando, e na névoa o

caminho não é divisável como um copo de vidro em dias

claros. Na névoa o caminho só pode ser nevoento como a

névoa, e por esta razão nunca se sabe bem quantos passos já

nos afastamos do começo ou a quantos passos estamos do

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63

fim. No mais das vezes, julgo mesmo que não haveria fim e

por isso não parei de andar. E quando finalmente a névoa se

desfaz por um instante é que percebi como estava enganado

sobre o quanto andara, para mais ou para menos.

Provavelmente eu andei dois dias a mais do que meus pés, e

provavelmente muita coisa de fato aconteceu durante

quarenta e outro horas de névoa perdida. Quantas árvores

não foram derrubadas sem que ninguém soubesse, e

quantos copos de vidro mais se despedaçaram e se

misturaram à névoa. E, mesmo, para quê tentar recuperar

dois dias, quando pode-se tentar não perder mais dois

adiante? Certamente não serei capaz de delimitar quantas

coisas aconteceram em quais momentos, não conseguire i

organizar a memória cronologicamente. Mas quem faz isso

é o relógio – que não tem muita utilidade numa névoa. A

memória serve para coisas mais importantes.

Page 64: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

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Reflexo

Hoje de manhã eu acordei e demorou um tempo pra eu me

lembrar onde eu estava. Aí a vista foi clareando e eu fui

reconhecendo o lugar. Esse mínimo instante de amnésia fo i

tão bom. Depois eu vi que estava no meu quarto mesmo,

feito ontem e antes de ontem e desde sempre. Estava

amanhecendo ainda, eu quase nunca acordo cedo, sempre

depois do meio dia. Aquela luz fraquinha quase deixou o

lugar diferente. Veio uma alegriazinha bem estranha. Eu

não reconheci o quarto. Ou reconheci, mas era tão bom vê-

lo diferente, que era quase como se eu mesma fosse outra,

mais amena e suave.

Só que o sol foi subindo, e a minha vida foi voltando.

Entende? Eu fiquei quase outra, e o sol me tirou isso, me

mostrou meu quarto, aquele lugar de todos os dias. Será que

você já sentiu isso? Esse gostinho do novo, e quando você

se prepara para engolir vem a memória e te abre a boca e

tira o gosto à força. Era fresco, suave. E eu não consegui

mais dormir. Bem, eu acho que mesmo você também não

conseguiria voltar a dormir depois de um desgosto

instantâneo.

É bem isso que eu sinto, sabe? Estou desgostosa sem saber

o que fazer, o que dizer. E parece que quanto menos eu

tenho a dizer, mais eu falo. Por favor, não se canse de me

ouvir, tenha paciência. Você é minha única esperança. De

resto, não sobrou ninguém. Eu acordo todo dia no mesmo

quarto de sempre e sempre só. Parece que o mundo inteiro

está despovoado e cabe todo aqui. Você percebe essa

gravidade? O mundo inteiro sou só eu, deitada e ausente

Page 65: A Olho Nu - Sidney Andrade (Contos)

65

naquela cama que já está carimbada com a forma do meu

corpo. Eu me levanto e vejo lá o espaço vazio no formato

de mim e é como se eu mesma me estivesse abandonando

no meio do mundo inteiro desértico do meu quarto.

Só me sobra você, entende? A minha sorte, a minha

salvação é você. Meu último refúgio é você. Nunca me

deixe! Não se canse de mim. Só tenho você e é até triste eu

reconhecer que, não fosse você estar aqui bem na minha

frente, eu não teria ninguém, porque mesmo essa

necessidade de eu me expressar com alguém não é

suficiente para que eu me sentisse disposta a ir muito longe

por alguém. Não se canse de mim! Você é quem me tira

desse mundo vazio. O único motivo que me faz querer

levantar da cama e arriscar reabandonar-me sempre é saber

que aqui do lado, quando eu abrir a porta que há dentro da

porta desse meu vazio mundo, você está sempre aí, logo

acima da pia, entre escovas e xampus, a refletir comigo

tudo o que digo, todo o meu anseio. Não me abandone!

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Socorro

Mas apesar de tudo, preferia acreditar que algo muito

impressionante fosse acontecer de repente. Nem era tão

chegado em histórias de super-herois, até porque não

achava atraente que somente uns poucos privilegiados

detivessem em suas fantasias a possibilidade de mudar o

mundo. No entanto, quem nunca sonhou em ser salvo talvez

não saiba o valor do alívio. Portanto, era quase uma

necessidade vital atribuir a qualquer um, a qualquer coisa, a

condição de seu herói.

Sem peito de aço ou supervelocidade, lento e fraco que

fosse, mas um heroi corajoso o bastante para lhe dizer que

seu destino não está escrito, mas sendo escrito. Como

aceitando, cada dia um pouco mais que realmente era

questão de destino, tentava agora suportar o fato de não

saber – ao passo que escrevia – qual era o seu destino. Um

quase escritor desesperado, perdido entre as letras que

tentava organizar inutilmente, por falta de inspiração, ia

vagarosamente posicionando cada pedaço de seus quereres

em sequência, de modo a formarem uma unidade lógica.

Quase sempre interrompido por pontas soltas e rachaduras,

seu mosaico não parecia formar figura alguma. Cansou das

metáforas, foi então que passou a querer ser salvo. Mas

salvo do quê? Perguntava-se ao mesmo tempo em que ia

identificando dolorosamente, e com delícia, que o perigo

que corria consistia unicamente em permanecer sem uma

salvação qualquer. Querendo sair de onde estava pelo

perigo em si de estar onde se está. Pensou bem. Sim, é

possível uma mudança. Mas como chegara a esta conclusão

tão obviamente quase agressiva, jamais entenderia. Porque,

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67

apesar de esperar que as coisas impressionantes lhe

tirassem de sua aparente inércia, nunca lhe passaria pela

cabeça constatar que se tratava de um ciclo vicioso: estava

esperando ser salvo pelo fato de ainda não ter sido salvo. E

quanto mais não lhe salvassem, mais ele precisaria de

salvação.

A lógica das coisas óbvias é tão difícil de decifrar, que

cansamos dela e passamos a nos preocupar com coisas mais

elaboradas, vazias em essência, mas tão mais volumosas,

mais palpáveis do que a lógica. Ia percebendo cada vez

mais involuntariamente o valor de ser simples, que sua

nova e inédita simplicidade era tão legítima a ponto de não

lhe permitir descobrir os motivos que lhe estavam levando a

ela. Cada vez mais crente de que as coisas impressionantes

que ansiava eram muito mais próximas do que a própria

ânsia emanada de seu peito, cada minuto mais próximo de

não precisar ser salvo lhe dotava de um superpoder quase

inalcançável: o de conhecer-se a si mesmo sem se fazer

qualquer pergunta.

Sem indagar, nem questionar, apenas esperando um herói,

foi que conseguiu finalmente ser salvo de sua própria

armadilha. Passou então, impressionantemente, a admirar

os super-herois de mentira, esses de tal modo simples a

ponto de serem os próprios inimigos e jamais serem

derrotados pela autoestima. Via com fascínio: o pior veneno

para o super extraterrestre era a única substância que viera

junto com ele de seu planeta. Via isso, mas não pensava

nisso. Era bom apenas não se sentir tão sozinho nessa

batalha constante de não ser vilão. Pois os vilões jamais

admitem que precisam ser também salvos. Foi bom saber,

também uns poucos privilegiados guardavam nos seus

disfarces o seu pior inimigo, e o venciam. De repente, algo

impressionante aconteceu.

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Cicatriz

De pé diante do espelho, apertou bem o punho direito, e

como certificando-se de que aquilo não se resumia a uma

vontade, fez mesmo questão de sentir a dor das pontas

geladas em sua palma enclausurada. Era quase um prazer

aquela dor. Só não o era completamente porque sentir um

prazer agora seria um contrassenso. Noutra época, tinha

imaginado para si um grandioso momento e não nutria

ilusões: o momento precisaria ser ruim, sem qualquer tipo

de compensação, para que seu esforço valesse de algo. E

tudo o que mais queria então era algo valioso para sentir-se

outra vez humano, pois, apesar de não lembrar quando,

tinha aprendido que nós criamos noções de valor arbitrárias

para, assim, fazer com que as coisas não pareçam tão

arbitrarias.

A crueza da vida sempre o espantou. Não foi com

tranquilidade que ele recebeu a implacável noção do óbvio

no dia em que negou a uma mulher faminta um pão que ele

não comeria, mesmo também estando com fome. E porque

há de se ter fome é que comemos, e se não o fazemos,

morremos, e se morremos sem tentar não morrer, acabamos

com um dos sentidos que damos à vida. Ele achou que o

melhor mesmo era ser arbitrário e procurar valores para

enganar o obvio que tanto incomoda o estômago. Ou

mesmo era outra noção grave de duplo padrão que o

assombrava, já que, possuindo ele um pão velho que não

comeria, negou-o por mero hábito ou por pura descrença na

mulher. Depois do quê, fora à despensa apanhar um pacote

de biscoitos o qual desperdiçara a metade. Então a fome

não é a mesma para todos, ou não urge com tanta

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69

intensidade em uns quanto em alguns, ou mesmo ele apenas

sofria da fome fútil que não mata se a deixamos viver.

Mas, afinal, era uma noção de realidade preciosa o que lhe

fazia apertar a chave com força dentro do punho. Queria

evitar estar lúcido, essa lucidez que o tornara guloso e

egoísta e que não lhe fazia bem. Tentou lembrar-se da

última vez em que tinha posto em prática sua juventude

ainda pela metade, mas tudo o que lhe vinha à cabeça era o

pedido negado àquela mulher que podia estar por um fio e

ter naquele pão a salvação – não para a fome, que desta

nunca estaremos salvos –, mas talvez a pudesse ter salvado

de um completo desamparo dos que só podem concluir, por

tudo o que vivem, que a esperança não compensa, nem

jamais compensará, porque sequer um pão estorvado lhes

cai nas mãos em súplica. Por não ter pensando em nada

disso ele descobriu que seu único modo de exercer sua

juventude até agora fora através da leviandade.

E mais essa noção clara outra vez o incomodou, porque ele

se esforçava demais para que sua lucidez não absolvesse

sua pouca idade. Por saber-se leviano e incapaz de esconder

isso de si mesmo, ele forjava uma alienação que lhe dava

força maior para apertar entre os dedos a chave que, sem

jamais conseguir, tentava penetrar no vigor de sua pele

nova. Ele e sua pele e seu punho e seu forte instinto de

autopreservação sabiam que aquela chave não seria motivo

de sangue. E mesmo que sangrasse, seu corpo ávido por

regenerar-se o privaria logo de uma dor tão necessária.

Então procurou no rosto uma marca que lhe desse motivos

para acreditar que estivesse perecendo pelo tempo, mas

sabia que era cedo demais e que, no máximo, aproximando

bem os olhos ao espelho, bem capaz seria de encontrar,

com sua retina joven e a total transparência da gelatina,

uma minúscula imperfeição no vidro que o refletia.

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70

E como de fato encontrou um sutilíssimo arranhão, com sua

pupila enorme quase encostada ao espelho, brincou de

imaginar que, ao invés do objeto, aquela cicatriz era sua por

estar, ainda que provisoriamente, estampada em sua

imagem. Não brincou por muito tempo. Uma náusea o

tomou ao perceber que, encontrando-se no espelho, a

ranhura estaria em tudo o que refletisse, e a ideia de que

uma cicatriz pudesse ser compartilhada o constrangeu.

Acreditava que ganhar cicatrizes, ao invés de ação

acidental, tratava-se mais de uma genuína atitude de amor

próprio. As marcas serviam para que uma pessoa soubesse

que se amava a ponto de se marcar para sempre com cada

gesto de autoafeto. Chorar, assim, ao invés de um pedido de

socorro, passava a ser uma celebração do corpo e da dor e

da avidez. Porque, de algum modo, nós, que nos

consideramos seres tão psicológicos, não suportaríamos

jamais sermos totalmente abstratos, e precisamos dessas

atestações físicas para sentirmo-nos reais.

O que é isso? Ele perguntou-se, olhando para a palma da

mão, onde se viam a chave quase engastada na carne e as

marcas da pressão da matéria contra a matéria, marcas rasas

e que apenas ardiam. Então é isso que existir é? De certa

maneira, ele não se convenceu de que não ser abstrato se

resumia a um ardor na palma da mão e um desejo de

cicatriz na memória. Passou a chave para a esquerda e

repetiu a brincadeira, enquanto tentava encontrar

novamente o arranhão do espelho. Nesse ínterim, calculava

quanto tempo mais teria de viver até ser físico o bastante

para sentir-se real. E se eram cicatrizes o que ele precisava

para sentir-se vivo o suficiente a ponto de tocar-se e

acreditar que aquilo que sentia era seu si mesmo, se era

uma coleção de marcas o que lhe garantiria a sensação de

pertença, teria ele de ir lutar numa guerra, ou algo do tipo?

Se fosse assim, estaria perdido, porque tampouco possuía

um espírito de luta assim tão rigoroso. Tudo de realizáve l

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que sua abstração conquistara até então era um anseio quase

selvagem de não ser apenas uma mente que pensa.

Só o que obtivera como resultado de seu pensar fora a

descoberta e a constante reconfirmarão de sua lucidez

implacável, prova de que ele sabia de si. Mas o saber de si

só adiantaria realmente quando aplicado a algo palpável. De

modo que ele cultivava a ideia fixa de que precisava

envelhecer o quanto antes. Apenas assim suas chances de se

privar das abstrações seriam mais preponderantes. A

mulher a quem negou o pão velho era mesmo a prova desta

teoria, pois se, naquele dia, ele já fosse velho e, portanto,

verdadeiramente faminto, não teria tido tempo para pensar.

A fome atormentando um corpo já atormentado por estar

gasto demais teria sido o modo pelo qual ele, que hoje só

existia porque sabia disso, teria passado a existir por ter

fome e dor, o que o teria deixado, assim como aquela

mulher, dependente de um pão velho e do dono do pão

velho.

Então seu corpo não mais lhe pertenceria, mas ao dono do

pão que lhe negaria, pois existir também é uma renúncia. E

porque seu corpo não seria mais seu é que ele seria dono de

si como jamais fora, já que uma posse pressupõe a luta

entre quem possui e quem quer passar a possuir.

Empenhado em se pertencer, ele poderia então cobiçar, de

porta em porta, o pão negado, e cada vez que lhe negassem,

estaria um passo mais próximo de sentir uma fome e uma

dor mais reais. Dor não apenas de fome, mas desamparo e

da angústia de quem estaria, a cada pão negado, um pouco

mais distante de uma esperança. Queria logo estar velho e

desesperado, para finalmente poder desejar essa redenção

essencial. Sua juventude lhe parecia um desperdício enorme

de esperança e pães, desperdício tão injusto, que quase se

esqueceu da força com que pressionava a chave em sua

mão. Liberou a pressão num sobressalto e sentiu o meta l

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agudo descolando-se da pele tão elástica. Levou a palma

para bem perto dos olhos saudáveis e viu que quase tinha

perfurado a impermeabilidade de seus poucos anos. Um

ponto vermelho quase sangrou. Lançou a chave longe, com

a força de um rapaz contrariado.

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Grito

Quem nunca chorou não conhece na pele o frescor duma

brisa a evaporar-lhe a lágrima. E já tão cedo aquela menina

três lugares à minha frente parecia ter aprendido a viver.

Antes de eu próprio aprender, não costumava reparar nessa

mudez aguda do lamento. O choro da menina era alto e, por

isso, mudo e, por isso mesmo, ensurdecia a meia dúzia de

passageiros. Se julgo que aprendi a viver é só porque tenho

enxergado através do meu choro a lágrima alheia, e aquele

seu grito intermitente me fora a prova definitiva de que por

trás de toda cortina d’água há sempre uma gruta mais

úmida e mais intensa, e de que, mesmo que eu não

conseguisse, ao menos não mais temia cruzar a entrada da

minha própria caverna.

Era nítido o incômodo. Tínhamos subido no mesmo ponto,

eu, ela e a mulher que a carregava. Eu observara o esforço

constrangido para cruzar a roleta junto com a criança que

ainda não era gente o bastante pra cobrarem-lhe uma

passagem. E agora que posso contar o caso daquele grito,

posso também afirmar, sem medo dos julgamentos, que não

me arrependo de não tê-las ajudado. Desde a travessia, a

menina chorava, seus dedinhos ficaram presos durante o

giro. E então eu descobrira a injustiça: a humanidade da

criança reverberava pelos metais do ônibus. A sua

humanidade excedia, incômoda, aquela meia dúzia de

pagantes dali.

Um dia me haviam dito que era preciso ser alegre pra

enxergar os fatos. Mas os fatos são translúcidos. Quando

minha filha me deixara pra lidar sozinho com a

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74

transparência de sua falta, percebi que tentar enxergar os

fatos não compensa. Havia uma verdade mais densa

denunciada no grito daquela menina no ônibus. Se me

perguntarem se era bela, eu lhes responderei que sim. Tinha

a beleza dolorosa de quem vive, de quem chora. Seu rosto

não me mostraria nada que eu já não soubesse, havia

mesmo mais sobre ela ecoando em toda a superfície do

veículo do que eu pudesse enxergar nos traços frescos de

sua face.

Em certo ponto o choro cessara, virara soluço exausto,

ofegante. A tranqüilidade sussurrou entre os passageiros.

Era insuportável. Cogitei, sim, me aproximar mais um

pouco, sentar no banco imediatamente atrás do dela, dar-lhe

um beliscãozinho para lembrar-lhe a dor, e repetir o ato

sempre que ela se acalmasse. Estava viva, afinal. Eu estou

vivo, afinal. É preciso suportar a espera de quem não va i

voltar, chorar a vida que ficou – no grito da menininha –,

chorar pelo silêncio que se foi.

No entanto, e para o meu alívio, o alívio dela não durava

muito. Se me permitem mais uma analogia – pra que a

minha história não seja abortada no meio do caminho –, a

memória é uma lavadeira traiçoeira, nos torce até a última

gota pingar, até estarmos apenas úmidos e podermos ser

expostos ao sol: a prova de fogo. Uma arrancada mais forte,

ou então se o ônibus freasse de chofre, enfim, quase todo

movimento reavivava o grito dela. E essa intermitência fo i

o que arrastou a viagem por séculos a fio. Parava-se num

ponto, a mudez aliviada. Subidos todos os que esperavam, a

arrancada e de novo o grito. Calma e grito, calma e grito.

Mesmo agora, contando isto, não sei onde estou, se parado

esperando que subam, ou se em movimento, correndo

contra o choro. Sei que estou indo pra casa. E tivesse sido

isso há algum tempo, não me interessaria. Mas ela se foi,

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75

nos meus braços e silenciosa. Foi-se como os que desciam

do ônibus, aliviados, enfim o silêncio e o conforto da

proximidade de casa, a morada à vista. A meia dúzia de

gente se esvaia, ficamos sós, eu e a menina no colo de uma

mulher. O grito era então cada vez mais baixo, mais

conformado, a dor se ia passando, a memória se ia

abrandando. Mas o grito ressoava ainda, impresso de

alguma forma nas paredes do ônibus. Aflito e nervoso.

Vivia, mas parava de chorar. O consolo era a lágrima que

corria no rosto, e ao expô-lo à janela, o frescor viria certo,

junto com a visão do caminho de casa. Mas ainda era cedo

pra descer e encontrar minha filha. Verifico, com alguma

tristeza – essa que me faz chorar –, que há ainda alguns

pontos até o meu final. Porque eu aprendi a viver.

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76

IV

ESPECTROS

“Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a

humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o

que ele era, e o chamaram de Aquele Homem. Não

tinham mentido. Ele era. Mas até hoje ainda não nos

recuperamos, uns após outros. A lei geral para

continuarmos vivos: pode-se dizer ‘um rosto bonito’,

mas quem disser ‘o rosto’ morre, por ter esgotado o

assunto.”

Em O Ovo e a Galinha, de Clarice Lispector

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77

Espectro

Minha própria companhia me chateia dizendo

verdades. A companhia alheia não basta. Clarice me instiga,

mas verifico-me entre um fato sonoro anterior e outro que

ainda está por vir, e o sussurro, que muito me interessaria,

não ouço. Um silêncio incômodo grita agudo entre meus

fatos, penetra pelos meus tímpanos e ecoa grave, sombrio,

no espaço vazio entre o que os olhos não vêem e o que o

coração pressente. Em certa época recente havia tido a

impressão de estar protegido por algum cinismo benévolo,

quase mortal. Pensado assim por alto, poderia confundi-lo

mesmo com inocência, ou ingenuidade, dependendo do

ponto de vista adotado. Pontos de vista são perigosos. Mas

o mais agradável não seria não ter olhos, e sim apenas não

ter pontos. Nem tão inocente, nem tão ingênuo, apenas

cínico, vinha fazendo questão de não associar o perigo à

causa do perigo. Todo cinismo pressupõe um nível de

cegueira fundamental e voluntário, não se trata em nada de

pontos, o que a vista alcança é somente um geral embaçado

e oco. Aquela brincadeira de figurinha de chiclete: no meio

do tumulto, onde está o personagem? O cinismo é a

preguiça de procurar, jogar a figurinha fora sem olhá-la.

Num nível mais avançado, é rasgar a embalagem do

chiclete junto com a própria figurinha. No nível em que eu

me encontrava, jogava o chiclete fora só por tê-lo já aberto,

não suspeitava desse joguinho ocluso que o envolvia, não

havia motivos para suspeitar isso. Era mais seguro. Tenho

que a noção das coisas torna as coisas dolorosas. Quando

por acidente descobri todo aquele jogo que envolvia o

chiclete, engasguei. Porque tentei mastigar sem saber que

não podia engolir, e enquanto procurava convulsivamente

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78

na imagem, esqueci a goma na boca. Hoje o que me sobra é

este entalo macio que não me deixa mais seguro. Inseguro e

só. Como associando o engasgo a toda a multidão

aglomerada no quase três-por-quatro da figurinha, tornei-

me claustrofóbico. Engraçado pensar que um cínico cure o

cinismo com claustrofobia, ou o oposto. Não consigo

definir se estou mais doente agora do que antes, estou

mesmo mais vulnerável – o que não me define por

saudável, isto é fato. De modo que tornei-me o oposto do

que vinha sendo. Logo, percebo que estar claustrofóbico

seja algo como que a punição de meu cinismo anterior. Eu

queria acreditar mais nas forças sobrenaturais para poder

afirmar que isso não passa de uma espécie de castigo, ou,

no mínimo, uma brincadeira de muito mau gosto de quem

controlasse estes acontecimentos determinantes, até um

humor negro. Contudo, nem mesmo a ideia de causa-efeito,

que é mais cientifica, me convence muito. È que a

claustrofobia tem o efeito colateral de causar certa

descrença. Além disso, esse não-bastar de ar, mesmo em

locais abertos e ventilados, torna a convivência comigo

mesmo tarefa sufocante, por suposto, já que, além de tudo,

estou vulnerável. Não há uma relação direta entre a

vulnerabilidade e a asfixia, mas as coisas são todas meio

obliquas quando incomodam, vão assim meio que em curva

fechada e desembocam num sinal vermelho que nunca abre.

Então eu fico ali, parado, esperando, vendo que há a luz

verdinha. E nunca ver a luz verdinha se ascender me deixa

inquieto. Em intervalos regulares, o vermelho passa pro

amarelo, coisa sem lógica, mas ainda me faz ter a esperança

tola de que depois o verde acenderia. Porém o amarelo

volta pro vermelho e eu apenas olho. Pareço não ter

aprendido a ordem convencional das luzes. E enquanto

olho, verifico-me só, e minha companhia me incomoda,

porque estou num veículo fechado e tornei-me

claustrofóbico demais para dividi-lo com quem quer que

seja. Não há espaço para mim mesmo fora de mim, e certo

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79

recalque desse mim-mesmo o faz dizer-me verdades

incômodas. A companhia alheia não chega nunca, ninguém

sequer bate no vidro vendendo chicletes. Nem ao menos

tenho a figurinha abarrotada de gente pra me distrair

enquanto o sinal nunca fica verde, enquanto sufoco-me

comigo mesmo no veículo que não se move. Sinto falta de

ser cínico, ao menos serviria pra não dar ouvidos ao meu

próprio sermão.

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80

Vermelho

Tinha uma força que talvez desconhecesse, mas não era

exatamente isso que procurava entender. Dedicado a um

estado tão perturbador quanto admirável, tentava sua

façanha jamais realizada. Agarrado àquilo que talvez

representasse seu maior apoio, pasmou ao virar-se e ver o

quanto as suas erupções lhe haviam consumido. E se ao

menos seu pasmo fosse calmo, haveria alguma chance de

retorno. No entanto, contorcido e teso, sentiu o terror do

vermelho borbulhante que, afinal de contas, fervia somente

por sua culpa.

Muito mais do que o efeito, aquele vermelho era também a

própria causa desta sua inércia. E se tivesse tempo para dar -

se ao luxo de contemplar uma memória, teria se lembrado

de que até instantes atrás poderiam acusar-lhe de qualquer

crime, menos o da inércia. Mas como até então estivera sem

tempo nem curvas, não haveria um porquê para lembranças.

Sendo assim, seu trajeto se resumira a ângulos, cantos e

pontas que acumulavam aquela aridez sanguínea. E ainda :

se ele sequer fosse suficientemente leve de espírito, ao

menos teria desconfiado de tudo isso, e perceberia que ter

sido tão sanguíneo lhe trouxera a este estado de estupefação

convulsiva que não lhe permite respirar mais.

Entretanto, uma coisa é a ideia, outra diferente e mais

inviável é ela ser aplicada por alguém que, rodeado de

sombras e preso pela própria contração muscular, sequer

conseguiria identificar uma ideia dentre vários objetos. É

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81

preciso determinado nível de desprendimento para atribuir

nomes às coisas. Mas como esperar desprendimento dele

que, aparentemente fincado no solo, ao fim de seu caminho,

apenas percebeu sem entender que alguma coisa não estava

certa? E essa ignorância essencial era o motivo pelo qua l

ele franzia tão rigorosamente a testa, como quem sofre um

surto de ira. Mas pobre, pobre dele, não era ira o que tingia

seu chão de vermelho. Declarar seu atual estado como

sendo um flagelo do corpo capaz de condenar o espírito

trata-se de um reducionismo que somente um ignorante

como ele seria capaz de cometer. Então era a mera raiva de

qualquer coisa o que o intensificava na paisagem de ta l

maneira, que ele se confundia com um arbusto ou um

tronco? Não, mas isso ele ainda não tinha como saber. A

sua força – essa estranha sensação que o fazia contorcer-se

em dúvidas – era mesmo o fruto de um processo

ligeiramente mais profundo, um tom mais denso do que a

superficialidade de uma poça vermelha no chão.

E se disséssemos que ele, enfim e dolorosamente, acabara

de ter seu primeiro e rudimentar modo de pensar,

estaríamos sendo-lhe somente justos. Para chegar a um

estado em que pudesse associar o calor pulsando em suas

têmporas à cor do chão que pisava, cor esta que, sendo mais

e mais pisada, irá tornar-se cada vez mais quente e menos

rasa, para esse simples e tortuoso exercício de

autoconhecimento ele precisou cruzar uma vida inteira de

pés descalços e solos ásperos. E somente o atrito é capaz de

aprofundar cada vez mais este vermelho que, sem a

quantidade fundamental de dor e culpa, seria somente um

amarelado vago, resquício do escarlate diluído num líquido

transparente e insípido o qual não poderíamos chamar de

memória.

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Laranja

Sobretudo era uma urgência. Como se misturando-se, algo

novo surgisse do encontro. E para misturarem-se era

necessária uma fome que não teria um nome, mas a cor de

uma avidez quase sublime, mesmo selvagem, mas ainda

assim sutil. E se essa avidez precisasse de um termo, então

não haveria mesmo o encontro, porque, pela posição em

que se encontravam, a coisa menos importante para o

sucesso de um encontro era saber o que exatamente

estariam fazendo.

Sem rodeios e quase colidindo, a sua fome exigia deles uma

atenção alaranjada e quente. Uma insatisfação convulsiva

que se estampava nas curvas e nas sombras, estas últimas

que, tão famintas quanto os próprios dois corpos que lhes

davam forma, insinuavam-se muito menos escuras e muito

mais alaranjadas do que seriam normalmente, não fosse a

denúncia irrefutável de que dois corpos ali se atraíam com

tanta força, que sequer a luz lhes impediria de tentar

fundirem-se até as suas abstrações.

E como outra lanterna queimando em tom de fogo lhes

alertasse, e como se de repente houvesse um excesso que

precisasse ser sanado, aproximaram-se com uma fúria

vermelha e uma rapidez amarela, numa empreitada quase

indivisável de reduzirem-se, essa necessidade extrema que

se tem de ousar a unidade entre mais de um objeto. Mas

como transformar dois mundos de cores tão distintas em

mundo único que não denunciasse a quase ofensa de um

passado dividido? E como permanecer assim de tal maneira

próximos a ponto de se confundirem os limites e, se fosse o

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caso, mesmo o melhor dos observadores não conseguisse

distinguir os dois tons ancestrais daquele laranja urgente

que ansiavam?

E só porque a luz que os revelava era árida o bastante para

não admitir uma mentira, mesmo envolvidos em uma fome

que lhes arrancaria a pele – se a pele não fosse tão

importante para esta tentativa de soma que os reduziria –,

mesmo juntos com tal força e empenho capazes de dar ao

laranja da sua fome qualquer cor mais insaciada, mesmo

tendo estes dois corpos se abstraído a tal ponto de se

dedicarem apenas ao sobressalto da própria matéria, ainda

assim a luz que lhes mostrava o quanto sua fome era

urgente também lhes decretava que, não importando com

qual zelo ou qual medo, laranja mesmo seria apenas o

estado provisório que sua gula lhes emprestaria, a guisa de

fome genuína.

Sem sustos, mas com ofensa, descobriram então que, apesar

de sua pele quase em carne viva pelo atrito, estariam

eternamente em dois espaços diferentes, cada qual com seu

tom; e também que se tentassem, munidos de um desespero,

transformar seus tons para que, algum dia muito remoto,

esses tons fossem tão parecidos que os corpos não

precisassem apelar para a fome e a gula, mesmo com todo o

empenho de uma cor urgente, aqueles dois corpos jamais

conseguiriam a proeza de evitar que a luz – tão

impunemente desvendadora – lhes esfregasse na sua

sombra impalpável o fato eterno de serem dois e não serem

da mesma cor.

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Amarelo

De braços abertos, ela esperava cheia de anseios. O que

mais vinha querendo ultimamente era mesmo sentir esta

calma que apenas a certeza da alegria traz. Mas, muito

longe de ser tranqüila, sua calma exigia dela um esforço

extremo e uma predisposição estóica. E parar ao meio da

estrada apenas para aguardar a alegria também já era um

jeito de alcançá-la. Isto ela desconfiava, mas não procurava

mesmo compreender, coisa que atrapalharia todo seu

processo. Despida e despojada, seu único rudimento de

raciocínio era manter os braços abertos a despeito da dor

deste exercício.

E se pudesse ver-se agora, perceberia que não estava

totalmente nua. Apoiada em uma seda amarela que, caída,

ocultava seus quadris, pendurada pelas pontas em cada uma

das duas mãos tão distantes – se quisesse enxergar a si

mesma veria esta ilusão. E veria que não havia mais

ninguém naquele descampado. E se precisasse, veria que à

sua frente toda uma estrada se afinava para, com algum

desprendimento, servir-lhe de futuro. O que ela não fazia

era se preocupar com hipóteses de sua realidade quando,

envolta e sem frio no amarelado de seus anseios, podia

muito mais do que ser feliz: podia ser livre.

E porque achava que a liberdade precisava ser rápida como

um raio de sol e direta como uma rua deserta, ela tentou dar

um passo. Só para testar aonde queria chegar. Só para

certificar-se de que sua liberdade, de fato – e como

garantiam os contos de fada e as teorias matemáticas –,

havia inúmeras casualidades possíveis, até mesmo a

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casualidade de se dar apenas um passo, porque estar solto é

isso: só ir adiante meio metro por não haver a obrigação de

alcançar infinitudes.

De repente toda a extensão da estrada pareceu-lhe um

enorme desperdício, o que a satisfez tanto, que não conteve

o impulso de girar, com um movimento tão ágil que só

podia ser amarelo, a seda em volta de si. E agora abraçada

dos ombros ao umbigo, sentia-se mais nua e mais leve e

menor. E por se reduzir ela conseguiu finalmente sentir o

formigamento: desde que pretendera aquele passo, a perna

estava pendente. E, suspensa, ela encontrava-se solta o

bastante para dar-se o direito de achar que só se conservara

assim equilibrada tanto tempo porque, afinal, uma seda

amarela lhe comprimia. Envolvendo-a, o brilho da cor que

não tem freios lhe mantinha no seu centro gravitacional. E a

dormência da perna era também uma prova de sua

liberdade: se ela quisesse, poderia baixar o membro e sentir

melhor a cócega dolorosa. E devia ser mesmo assim que as

coisas certas precisariam parecer: como um amarelo que,

sem meio termo, afaga e molesta.

O que não lhe impediu, contudo, de ousar. Sabia que

quando pousasse o pé na estrada cinza e lenta, quando

abrisse novamente os braços e estendesse o ligeiro amarelo

do tecido, quando estivesse outra vez tão nua, que só

haveria o céu azul e lento a cobrir-lhe a pele, quando se

entregasse inteira a si mesma, aquele anseio que a fizera

parar no meio do nada finalmente acabaria.

Então ela ousou tanto, que não fez nada disso. Enrolada no

tecido, saltou para o lado e sentou-se abraçando os joelhos.

Estava então livre o bastante para compreender que, por

mais amarela que sua alegria fosse, nada compensaria o

sem-cor de ansiar por uma felicidade que já chegava,

porque ela era calma e solta para escolhê-la.

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Verde

Se alguém a visse, diria, com razão, que ela sofria de um

frio muito íntimo e agudo. Como quem se encontra no

entremeio do calor e do desamparo, naquele limite tênue de

uma região que, apesar de consumar certa atmosfera

acolhedora, também não se priva de sua parcela sofrível. E

tão agarrada que estava a si mesma, quem a visse

porventura – e dessa vez injustamente – a acusaria de uma

súplica urgente. Mas era apenas ansiedade disfarçada sob a

face serena de uma oração. Não era uma espera o que lhe

acanhava. Sobretudo, esforçava-se para anular o fato

irrefutável de que, atrás de si, imensa parede a separava do

seu maior gesto de desprendimento.

Porque isso era o mal mais necessário: grudada à solidez

brutal, apertava bem as mãos uma na outra, como se esse

gesto valesse de substituto a qualquer experiência mais

edificante. Experiências estas que lhe dariam as forças

necessárias para erguer, ela mesma com aquelas tensas

mãos, sua própria muralha. Mais amadurecida que um fruto

caído, não se contentava com a impossibilidade que certas

vontades suas lhe causavam. Como querendo tanto

abocanhar um ato tão suculento quanto o próprio fruto de

sua maturidade, sempre dava com os dentes na rigidez

verde daquilo que ela não era ainda capaz de consumar.

Então toda a sua maturidade soou-lhe como bloqueio de

maturidade, aplacada pela parede que lhe encurralava

impassível, numa altivez que só poderia ser verde, porque,

até então, tudo o que ela tinha visto de mais inevitável lhe

riscara a vista com a imparcialidade de uma folha nova ou

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de uma maçã verde, esta última que, mesmo verde, adoça a

boca, já que a maturidade, afinal, residiria na

imparcialidade da cor. Enfim, assim como a pedra e o cal

que lhe impediam de regressar, também ela se impedia de ir

adiante, uma vez reconhecendo que não era ainda capaz da

imparcialidade dos frutos e das folhas novas.

Só que ela também se lembrou que uma maçã poderia ser

vermelha e, sendo vermelha e estando verde, a

imparcialidade desta se resumia a uma promessa de sabor.

Quando seria a vez em que ela finalmente experimentaria a

satisfação de, não se valendo de subterfúgios corantes, estar

imparcial e clara e, ainda assim, sentir-se viva e livre até

mesmo para regressar? Encostou suas costas com maior

força contra a parede, e teve a leve sensação de que a cor da

tinta era absorvida pelo casaco tão preto que escondia uma

pele tão branca, que poderia ser facilmente pintada de

verde. Como entendendo o que queria dizer esta força de

reação, e como concluindo que sua brancura não poderia

ser imparcial, ela aliviou o peso de uma muralha inteira

sobre suas costas e, um passo mais longe da espera, soltou

as mãos.

A imparcialidade funcionava tão bem na atmosfera

verdejante que, ao largar-se do abraço de si mesma, o frio

do qual lhe acusariam foi passando como passam as folhas

numa brisa muito seca. E numa brisa muito seca é que

podemos enxergar que o ar é tão colorido que não se deixa

enxergar, porque dentre suas cores está também a

imparcialidade. E se ela conseguisse um sopro que fosse,

estaria menos suplicante um tom. Pensou que sua vida toda

tinha resumido-se a um pedido. Não estar constantemente a

pedir por uma coisa única. Sua vida lhe pareceu, no

sussurro duro da imparcialidade, ela toda um pedido em si.

Mas o que ela pedia com sua vivência, não conseguiu

divisar. Deveria estar escrito na parede às suas costas. Esta

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ideia lhe tomou de antecipação, pois se ela se virasse e não

visse escrito ali, verde no verde, do que sua experiência

prescindia, ela não teria forças para voltar ao seu caminho.

Por isso ela, agora com as mãos soltas, transformou o

abraço em afago e, gentilmente, como quem tem receio,

apalpou sem jeito o concreto às suas costas. E se ela

declarasse que era capaz de sentir o verde em suas mãos,

nós apenas poderíamos lhe ser indulgentes o bastante para

acreditar. Como quem finalmente encontra a resposta, ela

percebeu que sua súplica era mesmo um modo, lento e

absorto, de evolução. Contudo, se quisesse estar tão

disposta quanto o doce controverso de um fruto que é verde

por ser imparcial, se desejasse estar isenta o bastante para

ser carregada pela dureza de uma brisa seca, ela teria que

abster-se da concretude de uma parede e dedicar-se, sem

anseio, a uma oração que fosse tão caridosa a ponto de não

pedir coisa alguma. Redimida, então, ela juntou novamente

as mãos.

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Azul

Desapontada, ela quase se precipitou. Mas não era tristeza o

que sentia. Seria mais uma melancolia cristalizada, que de

tão habitual se tornara mesmo seu modo de ser alegre. E

com essa alegria que só ela tinha, celebrava a vida desejada,

a vida inalcançada. No entanto, ela se perguntava o que

fazer, uma vez que alguma lei de ordem natural lhe

obrigava a descer invariavelmente, eternamente para baixo,

quando, na verdade, seu desejo maior era de levantar-se

para além de seus sonhos, subir, subir tudo que se havia

para subir, e, assim, esconder-se no azul dissimulado pelo

cinza eventual das nebulosidades.

E porque queria pertencer àquele azul, e porque tinha a

necessidade de sentir melhor o vento – este tão azul, que os

olhos não podem enxergar –, escolhera o mais longo de

seus vestidos, cuja cor não poderia ser outra. Aliás, de tanto

querer chegar ao azul inalcançável, ela nunca se dera conta

de quantas cores perdia, e esta perda era talvez o que agora,

inconscientemente, lhe causava o desapontamento. Era

melancólica, alegremente melancólica, mas diante de seu

abismo jamais titubeara. A não ser agora que, pela

primeiríssima vez, por alguma razão inexplicável, reparou

no tom vivo e quente de seus cabelos. E de repente o

esforço de uma vida inteira tornou-se pura ilusão. Como

queria ela chegar ao infinito, se sequer reparara nas suas

próprias erupções, ela que desde sempre achara-se plácida

como águas frias? E de súbito o vestido perdera o

propósito. E num pasmo suas águas já não eram mais

plácidas, e como só se enxerga o azul da água se esta

estiver imóvel, já não havia agora mais razões para se

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apegar a cores. Mas a questão era: como largar um hábito

que a conduzira desde sempre, hábito esse, inclusive,

responsável direto, num assomo de ironia, por provocar a

própria culpabilidade do hábito?

E era inútil lutar contra aquilo que lhe definia. Era preciso

querer o azul, disso não poderia abrir mão, do contrário,

deixaria de se reconhecer, e quem não se reconhece não

existe, e quem não existe está fadado a uma infelicidade

cega e negra. Que não é azul. Fosse o caso de tentar dar

forma a seu gesto mais decisivo, fosse ela ousada o bastante

para dar o passo mais definitivo e começar finalmente a sua

subida para desbravar as tantas nebulosidades que

entorpecem e corrompem seu azul, se ao menos ela fosse

tola o bastante para, depois de tudo, enfim tentar, agora

somente veria seus longos fios escarlatinos profanando o

silêncio da imensidão do seu avanço.

Então ela foi finalmente tola.

E por causa disso é que foi capaz de não cair. Mais ainda :

enquanto subia, o vento ultra-azul empurrava seus cabelos

para trás, a vermelhidão dela confortavelmente relegada ao

passado. Como se sentindo plena, a subir sempre, olhou

para baixo e viu o azul de um oceano finalmente em paz.

Azul e em paz. Entre uma massa cinza e outra, seus cabelos

ficavam cada vez mais úmidos e, portanto, de um tom cada

vez mais escuro. É certo que jamais chegariam a ficar azuis :

outra lei natural não permitiria. Mas ela não poderia mesmo

querer que seus furores se confundissem com a pureza de

sua subida. E o vestido, também cada vez mais azul intenso

de umidade, dançava calmo, como quem diz que era para

ser assim desde o início. Era felicidade aquele azul, não

mais alegria ou melancolia. Quanta diferença há entre um

tom de azul e outro.

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Índigo

O homem era a criança. A mulher, o adulto. Enquanto ele

tentava, alongando-se ao máximo, alcançar a criança, ela

corria, absorta, da mulher que provavelmente lhe daria

incômodas respostas. E como não quisesse as respostas, ela

se esquivava como podia das ondulações do adulto. A

ligação dos dois era como um líquido que não se abnega o

bastante a uma forma. E mesmo que o fizessem, qualquer

forma que se dessem exibiria uma indefinição de água

domada. Uma indefinição de cor sem nome, como quem

chega ao centro de uma relação, e como deste centro não se

pudesse decidir para qual dos infinitos vértices verter-se.

Assim despejados em sua condição, a dedicação materna l

com que ele estendia os braços para a criança ocultava

mesmo determinado tipo de punição que ela não estava

disposta a admitir, à qual ela não podia sucumbir, porque

aquela criança ainda era jovem e não conhecia as nuances

que a execução de sua existência poderia assumir – algumas

delas, condenáveis.

E se a mulher quisesse afinal dar o braço a torcer e

sucumbir a um capricho dele, estaria se reduzindo e

perdendo a pouca forma que, com muita força e debilmente,

conseguira forjar para si. O homem, perdido entre as

infinitudes de uma infância, desde sempre considerava-se

pertencente a uma casta, e o gesto do adulto lhe aparecia

agora como conseqüência de uma visão limitada das cores.

Se quisesse ser obediente, a criança deveria abster-se do

que promulgara até então, e precisaria assumir outra forma,

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o que não devia ser difícil, pois estavam eles tão dispostos

um ao outro, que não se definiam e perdiam-se em sua

liquidez de céu escurecido. Em sua cor de céu molhado, o

adulto – com o amor que cabe ás mães – procurava os

meios para convencer o pequeno homem de que, apesar das

incertezas e das informalidades, se alguém lhe dissesse, por

exemplo, que azul lhe caía melhor, aquele homem teria de

aceitar isso não como quem se abstém, mas como quem

compreende a ingenuidade alheia sem a presunção de

exaltá-la.

Mas o que a mulher não compreenderia é que, tão criança e

tão cheia de possibilidades, aquele homem não queria –

mesmo que por engano – estar tomado pelos decretos de

um azul que não era seu, porque desde que nascera – e fazia

mesmo pouquíssimo tempo – tinha uma tendência tão

exuberante para o roxo. Então como desenvolver uma

justificativa que convencesse o adulto de que, ainda que

infantilizada, esta criança estava pronta para ser diferente

daquilo que lhe originara, sem destruir com tal resposta

uma vida inteira de convicções – nem todas equivocadas –

da mulher que até hoje se dedicara tão resignadamente a dar

um tom àquele pequeno homem?

Como não houvesse, em todo um espectro de

probabilidades, a exata explicação, tudo o que a criança

pôde fazer foi dar ao adulto sua melhor verdade. E

enquanto ela dizia-se mais perto do céu do que do azul,

mais íntima da flor do que do violeta, o adulto – apoiando-

se em sua mais elevada noção de sacrifício, afinal ele era

mãe – esforçava-se para não desmoronar, porque, no fim

das contas, por mais maleável que alguém se conserve, todo

fluxo precisa de uma tangente que lhe dê limites. Não

querendo se espalhar e perder-se pela superfície plana da

surpresa, ele endureceu-se em seu resoluto azul – às mães

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está reservado este direito, pois também são homens como

todo ser humano.

Também este ato indecifrável tornou os dois mais centrados

em sua relação, mas não menos escorregadios. E se eles

rumassem agora para o mesmo lado, tudo acabaria, porque

juntos e fluidos, se confundiriam. E ainda: indo para o

mesmo lado, e se fundindo, agravariam o tom de sua fuga,

o que sujaria a fluidez anil de seus corpos sem nome. E se

eram de tons diferentes, apesar de concordarem pertencer a

uma única cor, o melhor mesmo seria separarem-se, como

seres líquidos que eram, para que nem ele, a criança

entusiasmada, se ferisse com a seriedade escura de um azul

quase roxo, e nem ela, o adulto ensimesmado, se sentisse

fracassada por não poder recolocar-se e recolorir-se. Coisa

mesmo natural: o tom claro conseguiria tornar-se escuro

com tempo e recursos a propósito, mas o escuro está fadado

a não regressar a uma clareza ancestral, porque é adiante

que se flui.

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Violeta

Implacável, o pôr do sol lhe pertence. E tão seu que é, pode

mesmo dar-lhe a cor que quiser. Assim: durante todo o

trajeto, vários tons se apresentarão, e ele se deterá somente

naquele que mais lhe edifica. Sua destreza está nessa

capacidade de dominar um fenômeno sem mover um dedo.

Ele usufrui deste direito sem pudores, dá pra ver pela

segurança com que, à beira de um abismo, ele assume a

leveza do rochedo e se confunde com a pedra, tão bem

sentado e em tão boa harmonia com a matéria.

Quase etéreo. Mas, ainda que relaxado e em paz, prepara-se

com certa apreensão para o momento tão fugaz em que os

raios se alongarão de tal forma a tornarem-se violetas.

Precisará de uma atenção sobre-humana para capturar, com

sua meditação, o preciso instante em que, disfarçado de lua

gélida, o astro se confundirá com seus próprios

pensamentos. Querer o fugidio lilás, que só aparece hora

sim hora não, ao nascer da vida e ao pôr-se da esperança,

aguardar esse relance é o seu melhor modo de estar sozinho

e deixar para trás um continente inteiro de cores em

conflito, aceitar este arranjo é a melhor forma de manter-se

saudável o bastante para suportar o peso de um pôr do so l

roxo e tão infinito, que duraria somente o tempo de um

desejo.

Sobretudo, está alheio. O que não lhe torna indiferente. Em

sua meditação, contempla com doçura a beleza de uma

calmaria de água limpa. Mas principalmente considera que,

além do espelho à sua frente, atrás de si existe uma

atmosfera inteira de irmãos de cor que lhe precedem e,

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portanto, são de sua responsabilidade. Acima de tudo –

afinal, está no topo de um rochedo muito alto –, ele ganha a

consciência, dolorosa e saborosa consciência, das cores

ancestrais.

E não vacila. Haverá apenas um instante invisível, e para

poder divisá-lo será preciso abster-se da dúvida. O modo

como ele fará por merecer as poucas flores de luz que o so l

oferece em seus extremos, o jeito de ser digno das violetas

de uma sublime evocação astral será a total crença nele

mesmo e em sua própria força. Ele tem uma força que ainda

não domina, apesar da solidez de pedra de sua

concentração. Enquanto aguarda, lembra com doçura a vez

em que esteve prestes a cair e, tendo se salvado mais por

acreditar do que por ter energias, conseguiu usufruir do

sobressalto dos ameaçados.

Essa alusão ao quase é a sua maior garantia de que está

disposto a arriscar toda a sua sensibilidade, tão disposto a

ponto de aguardar a hora lilás que poucos sabem existir. É

no quase não existir das flores roxas do sol tão amarelo que

fica branco, é por quase não haver quem descreva o

milésimo de segundo em que toda a vida aparece em efeito

negativo que ele não titubeia.

Por haver a possibilidade de não conseguir o enlevo

almejado é que ele não duvida. E não se pergunta de que

jeito consegue este ato cabal de fé cega, o que, é claro, a

fortalece ainda mais. Sem enxergar que o vermelho já

passou do amarelo depois de uma longa hora alaranjada e

quente, ele apenas concentra-se no objetivo ao final do

arco. E como estará quase totalmente escuro quando tudo

ficar lilás, ele precisa ir treinando bem as pupilas, para que

se abram muito e recebam o pouco de violeta que o sol dá.

É tão pouco, que quase ninguém faz questão de descrever :

“minha vida mudou durante um pôr do sol violeta como as

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flores da minha infância”. Eis a razão. Quase todo mundo

esquece que depois do laranja o sol fica realmente amarelo,

como se uma criança o tivesse colorido, e depois va i

esverdeando invisivelmente até ficar azul de solidão.

Além disso é o que conta. Quase duro de tão azul escuro, o

astro parece querer lhe escapar. Mas ele não permitirá. Nem

que tenha de suportar uma vida inteira de ofensas. Mártir de

si mesmo, ele permanecerá ali sentado, com seu desejo a

guisa de meditação. Quanto tempo, já se sabe: muito pouco.

E tão pouco durará para sempre, mas quase ninguém va i

saber, porque a raridade daquele tom consiste exatamente

na sua capacidade de existir tanto, que fica invisível.

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