a natureza da matematica - ponte

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A NATUREZA DA MATEMÁTICA 1 A natureza da Matemática 1   A questão do que é hoje um bom ensino da Matemática não é uma questão pacífica. Tem diversas respostas dependendo das finalidades da educação privilegiadas, que variam consoante os contextos sociais, políticos e culturais onde a questão é colocada, que se relacionam com as perspectivas psicológicas e sociológicas sobre a aprendizagem em que nos situarmos. No entanto, diversos matemáticos, filósofos e educadores salientam, cada vez mais, que a concepção que se sustenta sobre a Matemática influencia profundamente o que se considera ser desejável relativamente ao seu ensino e aprendizagem. Assim sendo, como Hersh escreve num artigo publicado em 1986, a questão não é então qual a melhor maneira de a ensinar, mas o que é realmente a Matemática.  Ao pretender fazer-se um cômputo geral da Matemática que revele os seus factores essenciais e explique como é que os seres humanos são capazes de a fazer, torna-se difícil organizar os diversos aspectos num todo coerente. De facto, a simples per gunta “afinal o que é a Matemática” tem sido, ao longo dos tempos, objecto de diversas tentativas de resposta. E os problemas acentuam-se quando se pretende identificar os objectos das suas teorias. A Matemática é o conhecimento de quê? Esta questão filosófica, apesar de ser tão antiga quanto esta ciência, tem gerado, desde sempre, inúmeras controvérsias. Constitui, pois, um desafio conceber um balanço que abarque a complexidade e o carácter multifacetado da Matemática enquanto actividade e corpo de conhecimentos. Este desafio é acrescido se se tiver em conta que ela não tem permanecido igual a si própria ao longo dos tempos. Pelo contrário, tem sofrido um processo de evolução constante no qual se detectam mudanças profundas nalguns dos seus aspectos mais essenciais. Sistema organizado, linguagem, instrumento, actividade, são diversas perspectivas segundo as quais a Matemática tem sido encarada. Axiomatização, formalização, dedução, são o essencial para alguns e apenas uma parte, nem sequer a mais importante, para outros. Tradicionalmente, a epistemologia da Matemática procura responder a questões relacionadas com a lógica interna de produção do saber, adquirindo as respostas, frequentemente, um carácter prescritivo. Procura-se garantir a certeza do saber matemático e discute-se a natureza e os fundamentos desta ciência. No entanto, uma reflexão limitada a estas questões falha em localizá-la num contexto mais amplo do pensamento humano e da história. Se a Matemática for descrita em termos dos seus conceitos, características, história e práticas, abre- se espaço para que a filosofia da Matemática, para além de reflectir sobre questões internas relativas ao conhecimento matemático, sua existência e justificação, se debruce também sobre questões externas relacionadas, nomeadamente, com a origem histórica e os contextos sociais de produção desse conhecimento. A actividade matemática poderá, assim, ser discutida como parte integrante da cultura humana em geral. 1  Capítulo 2 do livro Ponte, J. P., Boavida, A., Graça, M., & Abrantes, P. (1997).  Didáctica da matemática. Lisboa: DES do ME.

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  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    1

    A natureza da Matemtica1

    A questo do que hoje um bom ensino da Matemtica no uma questo pacfica. Tem diversas

    respostas dependendo das finalidades da educao privilegiadas, que variam consoante os contextos

    sociais, polticos e culturais onde a questo colocada, que se relacionam com as perspectivas

    psicolgicas e sociolgicas sobre a aprendizagem em que nos situarmos. No entanto, diversos

    matemticos, filsofos e educadores salientam, cada vez mais, que a concepo que se sustenta

    sobre a Matemtica influencia profundamente o que se considera ser desejvel relativamente ao seu

    ensino e aprendizagem. Assim sendo, como Hersh escreve num artigo publicado em 1986, a questo

    no ento qual a melhor maneira de a ensinar, mas o que realmente a Matemtica.

    Ao pretender fazer-se um cmputo geral da Matemtica que revele os seus factores essenciais e

    explique como que os seres humanos so capazes de a fazer, torna-se difcil organizar os diversos

    aspectos num todo coerente. De facto, a simples pergunta afinal o que a Matemtica tem sido, ao

    longo dos tempos, objecto de diversas tentativas de resposta. E os problemas acentuam-se quando

    se pretende identificar os objectos das suas teorias. A Matemtica o conhecimento de qu? Esta

    questo filosfica, apesar de ser to antiga quanto esta cincia, tem gerado, desde sempre, inmeras

    controvrsias.

    Constitui, pois, um desafio conceber um balano que abarque a complexidade e o carcter

    multifacetado da Matemtica enquanto actividade e corpo de conhecimentos. Este desafio acrescido

    se se tiver em conta que ela no tem permanecido igual a si prpria ao longo dos tempos. Pelo

    contrrio, tem sofrido um processo de evoluo constante no qual se detectam mudanas profundas

    nalguns dos seus aspectos mais essenciais. Sistema organizado, linguagem, instrumento, actividade,

    so diversas perspectivas segundo as quais a Matemtica tem sido encarada. Axiomatizao,

    formalizao, deduo, so o essencial para alguns e apenas uma parte, nem sequer a mais

    importante, para outros.

    Tradicionalmente, a epistemologia da Matemtica procura responder a questes relacionadas com a

    lgica interna de produo do saber, adquirindo as respostas, frequentemente, um carcter

    prescritivo. Procura-se garantir a certeza do saber matemtico e discute-se a natureza e os

    fundamentos desta cincia. No entanto, uma reflexo limitada a estas questes falha em localiz-la

    num contexto mais amplo do pensamento humano e da histria.

    Se a Matemtica for descrita em termos dos seus conceitos, caractersticas, histria e prticas, abre-

    se espao para que a filosofia da Matemtica, para alm de reflectir sobre questes internas relativas

    ao conhecimento matemtico, sua existncia e justificao, se debruce tambm sobre questes

    externas relacionadas, nomeadamente, com a origem histrica e os contextos sociais de produo

    desse conhecimento. A actividade matemtica poder, assim, ser discutida como parte integrante da

    cultura humana em geral.

    1 Captulo 2 do livro Ponte, J. P., Boavida, A., Graa, M., & Abrantes, P. (1997). Didctica da matemtica. Lisboa: DES do ME.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    2

    Neste captulo reflecte-se sobre a natureza da Matemtica, procurando enquadrar esta dualidade

    relativa a aspectos internos e externos da produo do saber. Numa primeira seco, abordam-se

    questes relacionadas com a natureza dos objectos matemticos e discute-se o papel da experincia

    e da razo na gnese e desenvolvimento da Matemtica. Tendo por contexto uma perspectiva

    histrica, refere-se, numa segunda seco, a origem da Matemtica e questiona-se a intemporalidade

    e o carcter absoluto atribudos, frequentemente, verdade, certeza e rigor matemticos. A terceira

    seco incide sobre um perodo recente, particularmente importante para a filosofia da Matemtica,

    caracterizado pela pesquisa de fundamentos seguros. Na quarta seco consideram-se direces

    actuais da filosofia da Matemtica e analisam-se aspectos da actividade matemtica enquanto

    fenmeno social e cultural. Este captulo termina com uma quinta seco, dedicada experincia

    matemtica, onde se referem algumas vertentes do processo de criao desta cincia,

    nomeadamente, a sua face extra-lgica e o contributo do computador para produo do saber

    matemtico.

    2.1 - Gnese e natureza do saber matemtico

    2.1.1 - Natureza dos objectos matemticos

    Qual a natureza dos entes matemticos, ou seja, a Matemtica estuda o qu? Esta questo

    abordada atravs de dois prismas de anlise. Um, relacionado com a imaterialidade dos objectos

    matemticos. Outro, que procura olhar estes objectos na sua relao com o sujeito que os conhece ou

    procura conhecer.

    Imaterialidade dos objectos matemticos

    Os textos antigos, provenientes das primeiras civilizaes orientais do Egipto e Babilnia, so

    demasiado fragmentrios para permitir seguir, ao pormenor, o processo de constituio de uma

    aritmtica e de uma geometria. No entanto, mostram claramente que os conceitos que a intervm

    dizem respeito apenas a objectos concretos: enumerao de objectos de um amontoado, medida de

    grandezas susceptveis de adio e subtraco, como comprimento, rea, volume, peso, ngulo, para

    cada uma das quais se toma uma unidade e muitas vezes os seus mltiplos ou submltiplos2.

    Mais tarde, a partir do sculo V, surgem, com os pensadores gregos, as primeiras demonstraes e

    com elas a necessidade de precisar noes como figura, posio, grandeza, quantidade e medida.

    Plato mostra claramente que estas palavras no designam noes da experincia sensvel, referindo

    que os matemticos se servem de figuras visveis para estabelecerem raciocnios, pensando,

    contudo, no nelas mas naquilo com que se parecem. Aristteles no deixa de apoiar a ideia da

    imaterialidade dos objectos matemticos, referindo, em particular, que as investigaes dos

    matemticos incidem sobre coisas atingidas por abstraco, de que so eliminadas todas as

    qualidades sensveis como o peso, leveza ou dureza. Tambm Euclides, em quem vemos pela

    2 J. Dieudonn (1990, p. 47). As citaes includas no texto sero identificadas em nota de fim de captulo atravs da indicao do nome do autor, da data da publicao de que a citao foi extrada e da pgina ou pginas em que se encontra. A restante identificao da publicao ser feita nas Referncias.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

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    primeira vez desenvolvidas, segundo o mtodo dedutivo, as propriedades dos objectos matemticos

    concebidos por Plato e Aristteles, no deixa qualquer dvida quando ao facto de ter atribudo a

    ponto, recta, ngulo, crculo e polgono, o carcter de objectos de pensamento.

    Constata-se assim que, pelo menos desde Plato, os matemticos tm conscincia de que os

    objectos sobre os quais raciocinam, embora tendo nomes idnticos aos que intervm em clculos

    prticos (nmeros, figuras geomtricas, grandezas) so seres completamente diferentes, seres

    imateriais obtidos por abstraco, a partir de objectos acessveis aos sentidos, mas de que deles so

    apenas imagens. Esta foi, alis, uma das grandes ideias originais dos gregos: a atribuio s noes

    matemticas do carcter de objectos de pensamento.

    At ao sculo XVIII, os matemticos, apesar de reconhecerem a imaterialidade e o carcter ideal dos

    seres com que trabalhavam, tinham deles imagens acessveis aos sentidos. No entanto, a partir dessa

    altura, para conseguirem novos progressos, necessitaram de introduzir novos objectos matemticos

    que deixaram de apoiar-se em imagens sensveis. Aos poucos vai-se delineando uma ideia que ser

    aprofundada no sculo XX: a ideia de estrutura na base de uma teoria matemtica. Esta ideia

    relaciona-se com a constatao de que numa teoria matemtica mais importante do que a natureza

    dos objectos que a figuram, so as relaes entre esses objectos, podendo acontecer que em teorias

    diferentes haja relaes que se exprimam da mesma maneira.

    A discusso da existncia de objectos matemticos no mundo fsico pode proporcionar, como

    evidencia Sebastio e Silva (ver pgina seguinte), um contexto favorvel ao debate, na sala de aula,

    de um dos aspectos fundamentais da Matemtica o das suas relaes com a natureza.

    Matemtica: Descoberta ou inveno?

    A existncia de objectos matemticos ou no independente do sujeito que os estuda? Para

    responder a esta questo contrastam-se, tradicionalmente, duas concepes: concepes idealistas e

    concepes realistas.

    O idealismo, enquanto perspectiva filosfica, insiste em que toda a realidade matemtica

    condicionada pelas construes dos matemticos que inventam essa realidade. Neste mbito, os

    objectos matemticos so livres invenes do esprito humano, que no existem autonomamente e

    que possuem, apenas, as propriedades que o pensamento puder determinar.

    O realismo supe a realidade de um universo matemtico autnomo. Os objectos tm propriedades

    prprias que existem independentemente do sujeito. O homem no inventa esta realidade objectiva

    que lhe exterior. Limita-se a descobri-la.

    O realismo, enquanto perspectiva filosfica, tem por base a doutrina de Plato, sendo frequente, no

    mbito da filosofia da Matemtica, considerar sinnimos os termos realismo e platonismo. Para o

    platonismo os objectos matemticos so reais, embora no sejam objectos fsicos ou materiais. A sua

    existncia um facto objectivo, totalmente independente do nosso conhecimento. Existem fora do

    espao e do tempo, so imutveis, no foram criados e no mudaro nem desaparecero. Assim, a

    Matemtica tem uma existncia autnoma, obedecendo a uma lgica e leis internas. A actividade de

    fazer Matemtica consiste na descrio e descoberta desses objectos, bem como das relaes que os

    unem. Quer uns, quer outras, uma vez que so pr-existentes, podem ser descobertos pelo esprito,

    mas no inventados por este.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

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    O platonismo e o idealismo, embora se situem em posies extremas quanto questo da existncia

    e realidade dos objectos matemticos, esto muitas vezes presentes, em simultneo, no pensamento

    dos professores de Matemtica. Por um lado, a Matemtica vista como uma revelao, como uma

    passagem do concreto ao abstracto, mas, por outro lado, o professor espanta-se com a sua

    aplicabilidade

    Dilogo sobre a existncia de entes geomtricos no mundo fsico

    Pergunta dirigida aos alunos:

    Afinal o que um ponto, o que uma recta, o que um plano - na verdadeira acepo destes

    termos?

    Na melhor das hipteses obtm-se a resposta cmoda habitual (...):

    Trata-se a de termos primitivos, isto de termos que no so definidos logicamente a partir de

    outros.

    Mas o professor no deve de modo nenhum contentar-se com esta resposta. Deve sim voltar carga:

    Tambm os termos gato, rosa, etc. so termos primitivos, no mesmo sentido, e no entanto todos sabem reconhecer um gato, uma rosa etc. Ora quem que j viu um ponto, uma recta ou um plano?

    Os alunos tero de admitir que ningum viu tais coisas. Mas h que lembrar-lhes:

    Tambm ningum viu ou espera ver centauros, sereias ou drages. Todos sabem que no existem

    seres vivos com os atributos que estes nomes invocam: trata-se de meras criaes da fantasia

    humana. Pois sero as figuras geomtricas, como os centauros e as sereias, nada mais do que

    produtos da nossa imaginao?

    Os alunos ho-de talvez dizer que no se trata da mesma coisa. preciso encoraj-los nesse sentido

    e observar:

    A cada passo chamamos pontos, segmentos de recta, esferas, etc. a certos entes do mundo fsico, tais como o sinal deixado pela ponta de um lpis sobre o papel, um fio bem esticado, uma bola

    de bilhar, etc.

    Mas haver logo quem repare:

    Pois, sim, mas toda a gente sabe que essas coisas no so pontos, no so segmentos de recta, no

    so esferas.

    Ao que o professor dir:

    Todavia essas coisas seriam pontos, segmentos de recta, esferas, etc. se verificassem determinadas

    condies que so os axiomas e as definies da Geometria de Euclides.

    E perguntar logo de seguida:

    Esses objectos do mundo fsico no verificam as referidas condies?

    Se adoptarmos a lgica bivalente a resposta s poder ser verificam ou no verificam. O aluno escolhe provavelmente a segunda (a primeira demasiado vulnervel). Logo:

    Se essas coisas no verificam as referidas condies, a geometria inaplicvel ao mundo fsico, no

    verdade?

    Mais uma vez a resposta ter que ser sim ou no e o aluno optar provavelmente pela negativa (a primeira incompatvel com a anterior resposta). Mas o professor dever por novamente os alunos

    perante a realidade:

    No entanto, se medirmos os trs ngulos internos de um tringulo, verificamos que a soma dos trs

    igual a 1800 (...) A cada passo vemos confirmadas as previses tericas da geometria euclidiana,

    cujas aplicaes so fundamentais na cincia e na tcnica (...) Parece pois, que chegamos a uma

    concluso absurda, desconcertante:

    A GEOMETRIA E NO APLICVEL AO MUNDO FSICO.

    Como poder ser isto?

    Jos Sebastio e Silva, 1964

    Guia para a Utilizao do Compndio de Matemtica interpretao do mundo fsico. Fica perplexo com o facto de especulaes pura-mente abstractas se

    aplicarem de um modo que parece to miraculoso ao concreto.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

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    Qual ento a natureza dos objectos matemticos? Onde devemos procur-la? Na realidade

    experimental como o fizeram os primeiros matemticos? Na actividade do indivduo, como sustentam

    os idealistas? Num mundo que no se situa no espao-tempo, como advogam os platonistas?

    Estas questes embora tenham sido discutidas desde h muito por inmeros matemticos e filsofos

    permanecem actuais. O problema , que seja qual for o nvel de anlise que se adopte, clarificam-se

    alguns aspectos mas outros permanecem envoltos em mistrio. Com efeito, se se procurar a natureza

    dos objectos matemticos na realidade experimental, poder compreender-se que uma vez da

    extrados, atravs de uma srie de abstraces cada vez mais requintadas, continuem a estar de

    acordo com essa realidade. Mas j no se compreender to bem que eles a excedam e que possam

    obter-se construes dedutivas, bem mais rigorosas do que as observaes e sem nenhuma

    comparao com elas, quanto ao processo de demonstrao.

    Platonismo e ensino da Matemtica

    O ensino clssico da Matemtica assenta numa epistemologia e numa ontologia platonistas: as ideias

    matemticas tm em si mesmas uma realidade. Nesta concepo, uma vez desvendada, a verdade

    matemtica dada a quem a sabe ver, a quem tem poder de abstraco suficiente. O papel do

    professor de Matemtica consiste em levar o aluno a partilhar dessa viso a que ele prprio j teve

    acesso, a virar o esprito do aluno o olhar da alma como dizia Plato em direco ao mundo matemtico (...) So diversas as consequncias pedaggicas da epistemologia e ontologia

    subjacentes aprendizagem tradicional da Matemtica. O matemtico desvenda as verdades e o

    ensino deve virar o olhar da alma do aluno para estas verdades. Desde logo, o que o professor retm

    da actividade do matemtico, no esta actividade, que a maior parte das vezes ignora ou sobre a

    qual passa em silncio, mas os seus resultados, teoremas, definies, demonstraes, axiomas. Alm

    disso, o professor conduzido a sobrevalorizar a forma pela qual estes resultados so apresentados.

    Se se pensar na actividade do matemtico, esta sobrevalorizao da forma paradoxal: no a

    forma que d sentido aos resultados, uma vez que ela apenas determinada a posteriori, quando os

    resultados foram adquiridos por outras vias bastante mais caticas (...) Esta ruptura entre a actividade

    matemtica e os seus resultados, entre os problemas e os conceitos, origina um insucesso escolar

    importante, particularmente em alunos de famlias populares que, no seu meio, no esto habituados

    a manipular uma linguagem explcita, formalizada e codificada.

    R. Bkouche, B. Charlot, N. Rouche, 1991

    Faire des mathmatiques: le plaisir du sens

    Por outro lado, se se considerar a actividade do sujeito, pode entender-se o rigor dos

    desenvolvimentos dedutivos e sua fecundidade, mas coloca-se o problema do acordo com o real,

    sobretudo o da antecipao de resultados. No se entende, nomeadamente, como que apenas

    atravs de desenvolvimentos matemticos, se podem obter resultados importantes para a

    compreenso do mundo fsico, que se vm a revelar teis, por vezes muitos anos mais tarde, como

    aconteceu, por exemplo, com os estudos sobre cnicas feitos por Apollonius de Perga h mais de

    2000 anos.

    Cnicas e rbitas dos planetas

    O gemetra grego Apollonius de Perga escreveu, no ano 200 a. C. um tratado sobre seces cnicas

    em que descrevia de forma sistemtica todas as propriedades destas curvas. Este estudo foi um

    exerccio de Matemtica pura e muito poucas aplicaes das cnicas foram feitas na antiguidade

    clssica. Muito mais tarde, em 1604, isto cerca de 1800 anos depois, Kepler contactou com estes

    trabalhos e estudou as suas aplicaes no domnio da ptica. Em 1609, recorrendo a estes trabalhos

    afirmou que as rbitas dos planetas deveriam ser descritas como elipses e no como crculos e

    epiciclos, lanando, assim, as bases para a teoria da gravitao de Newton.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

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    Felix Browder e Saunders Mac Lane, 1988

    A relevncia da Matemtica

    Considerando a possibilidade de os objectos matemticos se situarem para l do sujeito e da

    realidade experimental, num mundo de ideias existente por si mesmo, resta o problema de explicar

    como que os seres humanos so capazes de tomar contacto com esse mundo; ficam sem resposta

    os problemas relativos tanto ao acordo com essa realidade, como adequao do sujeito aos

    instrumentos dedutivos.

    Assim, qualquer uma destas perspectivas sobre a natureza dos objectos matemticos bastante

    razovel e, ao mesmo tempo, todas elas encontram srias dificuldades.

    2.1.2 - Experincia e razo na gnese e desenvolvimento da Matemtica

    Uma vertente de anlise que poder contribuir para aprofundar a temtica da natureza dos objectos

    matemticos prende-se com o papel da experincia e da razo na gnese e formao da Matemtica.

    Neste mbito distinguem-se, comummente, duas perspectivas, o racionalismo e o empiricismo, cuja

    sntese foi tentada por Kant.

    Racionalismo e empiricismo

    Os racionalistas entre os quais se encontram, por exemplo, Espinosa, Descartes e Leibnitz, viam, tal

    como Plato, a razo como um trao inerente mente humana, atravs do qual as verdades podiam

    ser conhecidas independentemente da observao. A razo era a faculdade que permitia ao homem

    conhecer o Bem e o Divino e, para os racionalistas, esta faculdade era mais facilmente visvel na

    Matemtica. Afinal, esta cincia, diziam, partia de verdades auto-evidentes, os axiomas, e, atravs de

    raciocnios estabelecidos pela razo, conseguia descobrir e chegar a concluses no evidentes, e por

    vezes, inesperadas. Assim, a existncia da Matemtica constitua, para os racionalistas, o melhor

    argumento para confirmar a sua viso sobre o mundo.

    O racionalismo foi posteriormente questionado pelo materialismo e pelo empiricismo. O progresso das

    cincias da natureza, com base no mtodo experimental, fez triunfar o empiricismo que afirmava que

    todo o conhecimento tinha por base a observao. O conhecimento matemtico era, porm, a

    excepo que confirmava esta regra.

    No contexto do empiricismo, os trabalhos de David Hume desempenharam um papel de relevo. Este

    filsofo defendia que no conhecemos nem o esprito, nem a matria, e que no deveramos sequer

    admitir a existncia de outras substncias, seno daquelas de que temos experincia imediata; esta

    experincia reduz-se a um conjunto de sensaes. Duvidava da existncia da matria, interrogando-

    se sobre quem poderia garantir a existncia de um mundo de objectos slidos subsistindo em

    permanncia se tudo o que sabemos provm das nossas prprias sensaes provenientes de um tal

    mundo. Relativamente Matemtica, Hume no rejeitou os axiomas relativos a nmeros e figuras

    geomtricas, mas optou por os desvalorizar, tal como fez com os resultados que deles derivavam,

    considerando que, quer uns, quer outros, provinham de sensaes respeitantes ao presumvel mundo

    fsico.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    7

    Mais tarde, em meados do sculo XIX, Stuart Mill, chegou a propor uma teoria empiricista sobre o

    conhecimento matemtico, sustentando que as afirmaes matemticas so generalizaes indutivas

    feitas a partir das nossas experincias ou observaes. Assim, a Matemtica seria uma cincia

    natural que em nada diferia das outras. Esta teoria, que no punha em causa a certeza do

    conhecimento matemtico pois Mill supunha a certeza da induo, no teve aceitao nos meios

    filsofos e matemticos chegando a ser fortemente contestada, e mesmo ridicularizada, por Frege3.

    A filosofia de Hume no s ps em causa a existncia de leis cientficas relativas a um mundo fsico,

    objectivo e permanente, como depreciou os esforos e resultados da cincia e da Matemtica e, mais

    que isso, desafiou o valor da prpria razo4. Ora, este facto causou indignao na maior parte dos

    intelectuais do sculo XVIII, que consideraram que a filosofia de Hume devia ser refutada. Kant

    empreendeu esta tarefa, tendo as suas reflexes procurado unificar as duas tradies contraditrias

    do racionalismo e do empiricismo.

    Kant e a Matemtica

    Kant distingue o conhecimento a priori do conhecimento a posteriori, e o conhecimento analtico do

    conhecimento sinttico. O conhecimento a priori o conhecimento universal, necessrio e intemporal,

    que se fundamenta na razo e independente da experincia. Pelo contrrio, o conhecimento a

    posteriori, ou emprico, consiste em proposies fundamentadas na experincia, isto , nas

    observaes do mundo fsico. Por sua vez, o conhecimento analtico o conhecimento explicativo.

    Em particular, o conhecimento a priori analtico o que sabemos ser verdadeiro por anlise lgica,

    pelo prprio significado dos termos usados. Um exemplo do conhecimento a priori analtico a

    afirmao os solteiros no so casados. Diferentemente, o conhecimento sinttico aquele que

    acrescenta algo de novo ao conhecimento que j se possui. Afirmar que um segmento de recta a

    distncia mais curta entre dois pontos, constitui, para Kant, um exemplo de conhecimento sinttico a

    priori.

    A grande questo filosfica de Kant saber como possvel o conhecimento sinttico a priori e, em

    particular, como possvel a existncia de conhecimento matemtico. A resposta que d a esta

    questo a de que o nosso esprito dispe de formas puras de espao e de tempo (a que Kant chama

    intuies) atravs das quais percebe, organiza e compreende a experincia. Assim, Kant embora

    glorificando a razo a que atribui a tarefa de explorar as formas do esprito humano, no nega o valor

    da experincia e dos dados provenientes da observao. Estes dados contribuem para estimular o

    poder organizador do esprito.

    A Matemtica representa, para Kant, a prova suprema da existncia de conhecimento a priori. A

    argumentao que prope a de que uma vez que a intuio do espao tem a sua origem no esprito,

    este reconhece de imediato algumas propriedades desse espao. Estas propriedades so

    sistematizadas na geometria (entendida como geometria euclidiana, a nica que Kant conhecia).

    Simultaneamente, considera que como os nmeros inteiros derivam da intuio do tempo, o

    conhecimento do tempo sistematizado na aritmtica. Logo, para Kant, as proposies matemticas

    3 Muitas das ideias da teoria empiricista de Mill sobre a matemtica esto includas no seu livro System of logic (1943). Bloor, no cap 5 de Knowledge and social imagery, intitulado A naturalistic approach to mathematics, apresenta uma sntese desta teoria bem como uma anlise crtica dos principais argumentos propostos por Frege para a contestar. 4 M. Kline (1989, p. 140).

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    8

    so objectivas, necessrias, universalmente vlidas, independentes da experincia, e impem-se-nos

    pela maneira como a nossa mente funciona.

    Esta breve passagem pela filosofia de Kant permite destacar que este filsofo, ao colocar a fonte da

    Matemtica no poder organizador do esprito, concedeu a esta cincia um estatuto especial, um

    carcter de necessidade e uma marca de certeza intemporal e incontestvel, que se manteve durante

    bem at ao sculo XX. As escolas fundacionistas que no incio deste sculo tentaram encontrar

    fundamentos seguros para a Matemtica, no fundo, ambicionavam todas manter a Matemtica na

    posio especial que Kant lhe tinha concedido5.

    Actualmente, quer o questionamento da natureza a priori do conhecimento matemtico, quer os

    argumentos a favor de bases empricas para este conhecimento esto de novo a ganhar terreno. No

    se trata, contudo, de um retorno ao empiricismo de Mill. Trata-se, antes, de uma aproximao da

    Matemtica s cincias naturais que admite, tal como acontece nestas cincias, o carcter a posteriori

    e falvel do conhecimento. Trata-se de uma perspectiva quasi-emprica sobre a Matemtica,

    apresentada na seco 4 deste captulo, que questiona ser esta cincia um corpo de saber imutvel e

    infalvel.

    2.2 - Verdade e certeza matemticas: Perspectiva histrica

    Tendo por fio condutor uma perspectiva histrica, nesta seco procura-se reflectir sobre a

    intemporalidade e o carcter absoluto frequentemente atribudos verdade, certeza e rigor

    matemticos, a partir da anlise do significado que estas noes foram tendo na evoluo desta

    cincia.

    2.2.1 - Origem das verdades matemticas

    Embora as nossas principais concepes de nmero e forma datem de tempos to remotos como os

    do paleoltico, a linha principal da actividade matemtica ocidental, enquanto actividade sistemtica,

    tem a sua origem nas civilizaes orientais do Egipto e da Mesopotmia. As Matemticas orientais

    constituiram-se atravs da acumulao de um conjunto de factos, regras e processos, sem nunca se

    emancipar verdadeiramente da influncia milenar dos problemas prticos e administrativos para cuja

    resoluo tinham sido criadas. Embora constituindo um conjunto considervel de conhecimentos, no

    dispunham de nenhuma metodologia especfica. Desenvolveram-se de uma forma no dedutiva, em

    que as regras e procedimentos foram descobertos, a partir da observao e experimentao, e

    atravs de processos de tentativa e erro. Foi esta perspectiva emprica e instrumentalista que serviu

    de preldio aos trabalhos matemticos desenvolvidos pela civilizao grega.

    Os primeiros estudos de Matemtica grega tinham por objectivo principal compreender o lugar do

    Homem no Universo de acordo com um esquema racional. A Matemtica ajudava a encontrar a

    ordem no caos, a ordenar as ideias em sequncias lgicas, a encontrar princpios fundamentais.

    Comeou, assim, a tomar corpo uma nova Matemtica desenvolvida mais no esprito da compreenso

    5 P. Davis e R. Hersh (1988, p. 52).

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    9

    do que no da utilidade imediata. Esta Matemtica colocava no s a antiga questo do como mas

    tambm a moderna questo cientfica do porqu.

    Os pitagricos sentiam-se impressionados pelo facto de fenmenos muito diversos, de um ponto de

    vista qualitativo, poderem exibir propriedades matemticas idnti-cas. Foram, assim, despertando

    para a ideia de que estas propriedades podiam constituir a essncia destes fenmenos e que o

    Universo estava matematicamente ordenado. Consequentemente, a Matemtica comeou a surgir

    como um modelo explicativo e inteligvel, uma chave por meio da qual o homem podia penetrar na

    ordem da Natureza e dissipar o mistrio e o caos que a pareciam reinar.

    No processo de explicao da Natureza o nmero, entendido como ponto ou partcula, desempenhava

    um papel fundamental. Os pitagricos investigavam as suas propriedades e colocavam-no no centro

    de uma filosofia csmica que tentava reduzir todas as relaes fundamentais a relaes numricas6.

    Porm, os nicos nmeros que reconheciam como tal, eram os inteiros ou os fraccionrios. Assim, a

    descoberta de que havia relaes entre estes nmeros que no podiam ser expressas atravs deles

    (como o caso, por exemplo, da razo entre a diagonal e o lado de um quadrado), ps em causa a

    harmonia entre a aritmtica e a geometria e originou perturbaes nos meios filosficos e

    matemticos.

    Esta descoberta, associada aos paradoxos de Zeno, que entravam em conflito com algumas

    concepes antigas e intuitivas sobre o infinitamente pequeno e o infinitamente grande, levou os

    matemticos da poca a questionarem-se sobre se a Matemtica era possvel como cincia exacta. O

    problema foi resolvido no esprito do novo perodo social da histria da Grcia. Neste perodo, de

    supremacia aristo-crtica, as classes dirigentes tinham a sua subsistncia assegurada pela

    escravatura e o trabalho manual era menosprezado. Foi neste contexto que surgiu e tomou forma a

    escola mais influente, depois dos pitagricos, na exposio e propagao da tese relativa estrutura

    Matemtica da Natureza a Academia de Plato.

    Zeno, paradoxos, Aquiles e a tartaruga

    Acreditou-se sempre que a soma de um nmero infinito de quantidades se podia tornar to grande

    quanto se quisesse, mesmo que cada quantidade fosse extremamente pequena e tambm que a

    soma de um nmero finito ou infinito de quantidades de dimenso zero era zero. O criticismo de

    Zeno desafiou estas concepes e os seus quatro paradoxos criaram uma agitao cujos efeitos

    ainda podem ser observados actualmente. Os paradoxos foram retomados por Aristteles e so

    conhecidos pelos nomes Aquiles, seta, dicotomia e estdio.

    Aquiles: Aquiles e uma tartaruga movem-se na mesma direco, ao longo de uma linha recta. Aquiles

    mais veloz que a tartaruga, mas para alcanar a tartaruga, ele tem que passar primeiro pelo ponto P, do qual a tartaruga partiu. Quando chega a P, a tartaruga j avanou para o ponto P1, mas a

    tartaruga avanou para um novo ponto P2. Quando Aquiles estiver em P2, a tartaruga estar em P3,

    etc. Por isso Aquiles nunca poder alcanar a tartaruga.

    Dirk J. Struik, 1989

    Histria concisa das Matemticas

    Os platonistas distinguiam o mundo das coisas do mundo das ideias. O mundo das coisas, mundo

    material, contm objectos e relaes imperfeitas. no mundo das ideias que se encontravam as

    6 D. J. Struik (1989, p. 78).

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    10

    verdades absolutas e imutveis e todo o saber que lhes diz respeito que certo, seguro e

    indestrutvel.

    neste mundo de ideias que Plato coloca os objectos matemticos. Assim, para este filsofo, as leis

    matemticas no eram apenas a essncia da realidade, mas uma essncia verdadeira, eterna e

    imutvel. Se com Pitgoras eram os nmeros que governavam o mundo, com Plato so as ideias

    geomtricas que o governam. A frase Deus geometriza eternamente escrita por este filsofo na

    Repblica, ilustra bem esta perspectiva.

    Na sua funo de perscrutar a Natureza, a Matemtica, para Plato, podia substituir a prpria

    investigao fsica. Sustentava que a razo humana tinha a capacidade de intuir verdades

    fundamentais graas qual podia proceder de maneira autnoma e indignava-se profundamente com

    alguns dos seus contemporneos (como por exemplo, com Plutarco, Eudoxo, Arquitas) que recorriam

    a raciocnios mecnicos para provar resultados matemticos.

    Em suma, no mbito da Matemtica, um dos aspectos mais inovadores do pensamento grego, foi a

    sua concepo de um Cosmos que funcionava de acordo com leis matemticas verdadeiras,

    passveis de serem descobertas pelo pensamento humano, e o desejo de conhecer estas leis.

    Colocava-se contudo a questo de como o fazer e ter a certeza de que as leis descobertas eram,

    efectivamente, verdadeiras.

    Um dos passos dados pelos gregos, para poder raciocinar sobre conceitos matemticos abstractos,

    foi estabelecer axiomas, verdades de uma tal auto-evidncia que ningum poderia negar. Estes

    axiomas diziam respeito ao espao e aos nmeros inteiros.

    O segundo passo foi garantir a correco das concluses obtidas a partir dos axiomas. Para tal,

    usaram raciocnio dedutivo, que consideravam como o nico que garantia a correco das

    concluses. Assim, uma vez que se partia de axiomas, verdades sobre o espao e os nmeros

    inteiros consideradas auto-evidentes, este raciocnio poderia ser um veculo para encontrar as

    verdades eternas sobre a Natureza que eles ansiavam descobrir. Pode apontar-se, ainda, uma razo

    de natureza social para explicar a preferncia pela forma dedutiva. As actividades matemticas, bem

    como as filosficas e as artsticas, eram praticadas por classes abastadas que menosprezavam o

    trabalho manual e as actividades comerciais. Plato e Aristteles, ao sustentarem, respectivamente,

    que a actividade comercial constitua uma degradao para o homem livre, que devia ser punida como

    crime, e que nenhum cidado devia praticar arte mecnica, ilustram bem, neste domnio, a atmosfera

    intelectual reinante na poca. Assim, no de estranhar a opo pela deduo. Com efeito, a

    experimentao e observao teriam aparecido como estranhas ao modo de pensar grego.

    No perodo helenstico, o avano da civilizao grega pelas regies do mundo oriental (Egipto,

    Mesopotmia, parte da ndia) possibilitou que a Matemtica grega, embora conservando muitas das

    suas caractersticas tradicionais, sentisse a influncia dos problemas de administrao e astronomia

    que o Oriente tinha para resolver. Surgiram os cientistas profissionais e, neste grupo, muitos dos mais

    importantes viviam em Alexandria.

    Entre os primeiros sbios associados a este centro intelectual e econmico, destaca-se Euclides, cuja

    formao se desenrolou na Academia de Plato. A sua obra constitui uma organizao ampla e

    sistemtica, apresentada numa forma axiomtica-dedutiva, de descobertas diversas de vrios

    pensadores gregos do perodo clssico. Atravs das suas formulaes axiomticas, consideradas

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    11

    rigorosas, os trabalhos desenvolvidos pela Academia de Plato e, muito especialmente, os de

    Euclides, possibilitaram a resoluo da crise relativa ao aparecimento dos nmeros irracionais e aos

    paradoxos de Zeno.

    Os textos mais difundidos de Euclides so os treze livros que constituem os Elementos, que so a

    seguir Bblia, provavelmente, o livro mais reproduzido e estudado na histria do mundo ocidental ()

    [e cuja] estrutura lgica influenciou o pensamento cientfico talvez mais do que qualquer outro texto do

    mundo7.

    Os Elementos de Euclides representam a primeira axiomatizao da histria da Matemtica. At ao

    sculo XIX, foram considerados o modelo da verdade, rigor e certeza, tendo-se transformado, durante

    vrios sculos, no prprio paradigma da cincia. Nomeadamente, Newton no hesita em consider-los

    como modelo para a construo de toda a teoria cientfica que se queira rigorosa e os seus Principia

    inspiram-se neles.

    2.2.3 - Da certeza da verdade procura da certeza

    Nos sculos XVII e XVIII, a geometria euclidiana era ainda objecto de grande admirao, no s

    porque tinha sido a primeira rea da Matemtica a ser estabelecida dedutivamente, mas tambm

    porque durante mais de dois mil anos, os seus teoremas continuavam a revelar-se verdadeiros

    quando comparados com a realidade fsica. Todavia, nem todos os axiomas de Euclides eram

    igualmente evidentes. O axioma das paralelas, ou o quinto postulado, como frequentemente

    designado, tinha sido objecto de numerosas discusses j desde a Antiguidade. Aparentemente, nem

    o prprio Euclides gostava muito da sua formulao, uma vez que s se serviu dele depois de ter

    provado, sem o utilizar, tantos teoremas quantos foi capaz.

    Quinto postulado de Euclides

    Se uma recta que encontra duas outras rectas forma ngulos interiores do mesmo lado mais

    pequenos que dois rectos, as duas rectas quando infinitamente prolongadas encontram-se do mesmo

    lado em que os ngulos so mais pequenos que os dois rectos.

    1

    2

    a

    b

    Morris Kline, 1980

    Mathematics: The loss of certainty

    Ao longo dos sculos foram feitas inmeras tentativas para resolver os problemas relacionados com

    este axioma. Umas tentavam substitu-lo por um enunciado aparentemente mais evidente; outras

    procuravam deduzi-lo dos outros nove apresentados por Euclides. No entanto, todas estas tentativas

    se revelaram vs. Pelo contrrio, evidenciaram que, adoptando um axioma que fosse essencialmente

    diferente do axioma das paralelas, no s no se chegava a nenhuma contradio mas, mais do que

    7 D. J. Struik (1989, pp. 90-91).

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    12

    isso, mostraram que havia lugar para a existncia de vrias outras geometrias, diferentes da de

    Euclides, mas com estruturas lgicas igualmente vlidas. Estava aberto o caminho para o

    desenvolvimento das geometrias no euclidianas.

    Relativamente s geometrias no euclidianas, Kline refere que um dos factos mais significativos que

    podem ser utilizadas para descrever as propriedades do espao fsico de maneira to precisa como o

    fazia a geometria euclidiana. Ora esta ideia estava em completa oposio com as opinies cultivadas

    nos meios intelectuais da poca e, assim, a aceitao das geometrias no euclidianas pela

    comunidade matemtica no foi fcil, nem linear. Afinal, o que estava em causa era no s a antiga

    crena grega da verdade matemtica como chave para conhecer o Universo, mas o prprio poder da

    razo para aceder ao conhecimento verdadeiro.

    Geometrias no euclidianas: Contributo de Gauss

    Gauss estava perfeitamente consciente da fragilidade dos esforos que consistiam em tentar

    estabelecer [o axioma das paralelas de Euclides], o que se tinha j tornado um lugar comum em

    Gttingen. Por volta de 1813, Gauss desenvolveu a sua geometria no euclidiana que inicialmente

    designou por geometria antieuclidiana, depois por geometria astral e finalmente por geometria no

    euclidiana. Estava convencido de que ela era logicamente consistente e que poderia encontrar uma

    aplicao. Numa carta ao seu amigo Franz Adolf Taurinus, datada de 8 de Novembro de 1824, Gauss

    escreveu: Admitir que a soma dos ngulos (de um tringulo) inferior a 1800, conduz a uma

    geometria curiosa, diferente da nossa (euclidiana), mas inteiramente coerente e desenvolvida para

    minha inteira satisfao. Os teoremas desta geometria parecem paradoxais e absurdos para um

    nefito, mas uma reflexo calma e sria revela que eles no contm nada de impossvel.

    Morris Kline, 1980

    Mathematics: The loss of certainty

    A partir de 1820, comea a afirmar-se a ideia de que, na base da Matemtica clssica devem colocar-

    se, no as noes geomtricas dos gregos, mas o conceito de nmero inteiro. Este movimento foi

    designado por aritmetizao da Matemtica. No entanto, o aparecimento de nmeros tridimensionais

    (os quaternies de Hamilton8), que no gozam da propriedade comutativa da multiplicao como

    acontecia com os outros nmeros conhecidos at ento, e a criao de novas lgebras com

    propriedades cada vez mais estranhas, lanou a dvida sobre a verdade da aritmtica e da lgebra

    usuais. E os matemticos foram levados a descobrir que se podem introduzir na aritmtica operaes

    diferentes das que nos so familiares e criar uma aritmtica igualmente aplicvel. Assim, a aritmtica

    como o corpo de verdades necessariamente aplicvel aos fenmenos do mundo fsico, estava

    tambm posta em causa. A triste concluso que os matemticos foram obrigados a tirar de tudo isto

    que no existe nenhuma verdade em Matemtica, se se entender por verdade, leis respeitantes ao

    mundo real9.

    Em suma, a tentativa empreendida pelos gregos de tentar garantir a verdade matemtica partindo de

    verdades evidentes e utilizando somente raciocnios dedutivos, tinha-se revelado v. Este facto foi

    muito difcil de admitir, tendo numerosos matemticos continuado a desenvolver grandes esforos no

    sentido de recuperarem a segurana que pensavam ter perdido. E em lugar da verdade surgia a

    8 Nmeros cuja forma a+bi+cj+dk, em que i2

    = j2

    = k2

    = -1 9 M. Kline (1989, p. 175).

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    13

    noo de consistncia lgica. Ou, por outras palavras, a certeza da verdade dava agora lugar

    procura da certeza.

    2.2.4 - Relativade do rigor e da verdade matemtica

    Uma das revelaes obtidas com os trabalhos desenvolvidos sobre a geometria euclidiana foi o facto

    de que esta geometria, que durante mais de 2000 anos tinha sido considerada o paradigma do rigor,

    apresentava srias dificuldades de um ponto de vista lgico. Alm disso, os matemticos ao

    reexaminarem as bases lgicas da aritmtica e lgebra dos nmeros reais e complexos, verificaram

    que este campo se tinha igualmente desenvolvido de uma forma ilgica.

    Afinal, o que se constatava era que a Matemtica no tinha sido o paradigma da razo que tinha

    reputao de ser. Em lugar dos seus resultados terem sido demonstrados lgica e rigorosamente, ao

    longo dos sculos, tinha-se recorrido a intuies baseadas em desenhos geomtricos, argumentos

    fsicos, raciocnios indutivos, princpios ad hoc e manipulaes formais de expresses simblicas.

    Foi ento empreendida a tarefa de encontrar fundamentos slidos para a Matemtica. Para isso, foi

    reconhecida a necessidade de termos no definidos, da utilizao de definies formuladas de forma

    precisa (eliminando delas todos os termos que pudessem ser considerados vagos ou contestveis),

    da explicitao, de uma forma exaustiva, do conjunto de axiomas que serviam de ponto de partida

    para as teorias, e da demonstrao explcita de todos os resultados matemticos por mais

    intuitivamente evidentes que pudessem parecer. E assim surgia um novo significado para a expresso

    rigor matemtico.

    Durante o final do sculo XIX, os matemticos empreenderam uma intensa actividade axiomtica,

    entrelaando cuidadosamente os teoremas de modo a tentar garantir a solidez de toda a estrutura

    matemtica. A verdade matemtica absoluta, oriunda da civilizao grega, comeava a ser substituda

    por uma verdade relativa dos teoremas relativamente aos postulados, definies e correco de

    raciocnio. Assim, embora a Matemtica tivesse perdido o seu enraizamento na realidade, a crise

    parecia estar resolvida.

    No entanto, a descoberta de paradoxos na teoria de conjuntos e a tomada de conscincia de que

    poderiam existir paradoxos semelhantes, embora ainda no detectados, noutros ramos da Matemtica

    clssica, levaram os matemticos a tomar muito a srio o problema da consistncia e a interrogar-se

    sobre como deveria constituir-se esta cincia de modo a eliminar os paradoxos e assegurar que novas

    contradies no pudessem aparecer. No puderam, contudo, pr-se de acordo. Tinha-se entrado

    numa nova crise a crise dos fundamentos.

    2.3 - A busca de fundamentos

    A crise dos fundamentos foi, no fundo, a manifestao de uma antiga discrepncia entre o mito de

    Euclides10 e as prticas matemticas reais. O mito de Euclides a crena segundo a qual os livros

    deste autor contm verdades acerca do universo que so claras e indubitveis, uma vez que chegam

    10 A expresso mito de Euclides utilizada por Davis e Hersh para destacarem a ideia de que durante sculos foi crena generalizada que os livros de Euclides continham verdades acerca do Universo que eram claras e indubitveis.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    14

    ao conhecimento certo, objectivo e eterno a partir de factos evidentes por si prprios e procedendo

    atravs de demonstraes rigorosas.

    A inquestionabilidade deste mito, que prevaleceu at ao sculo XIX, foi fortemente abalada quando

    Russel, que pesquisava fundamentos para a Matemtica na teoria de conjuntos, comeou a ser

    confrontado com contradies, eufemisticamente designadas por paradoxos, que ilustraram que,

    seguindo as regras da lgica intuitiva, podemos ser levados a resultados contraditrios de um modo

    nunca visto anteriormente nem em aritmtica nem em geometria.

    Paradoxo de Russel

    Para enunciar o paradoxo de Russel definimos um conjunto R como um conjunto que se contm a si prprio (um exemplo o um conjunto de todos os objectos descritos com exactamente treze palavras em portugus). Consideremos agora um outro conjunto M: o conjunto de todos os conjuntos possveis, excepto os conjuntos R. M um conjunto R? No. Por outro lado, tambm falso afirmar

    que M no um conjunto-R. Moral: a definio de M, que parecia inofensiva, embora um pouco

    retorcida, contraditria em si prpria.

    Philip Davis e Reuben Hersh, 1988

    Da certeza falibilidade

    Foram trs as escolas de pensamento que tentaram encontrar bases seguras para a Matemtica

    logicismo, o construtivismo e o formalismo mas, como se ver em seguida, embora oferecendo a

    certeza a um certo preo, nem mesmo assim a conseguiram garantir.

    2.3.1 - Logicismo

    O logicismo iniciou-se perto de 1884 com o filsofo, matemtico e lgico alemo Frege continuando,

    mais tarde, com Bertrand Russel. A sua finalidade consistia em provar que a Matemtica clssica era

    parte da lgica. Para levar a cabo este programa Russel e Whitehead criaram a obra Principia

    Mathematica, publicada em 1910, que pode considerar-se uma teoria formal de conjuntos, embora a

    formalizao no estivesse ainda concluda. Estes matemticos planeavam mostrar que todos os

    axiomas dos Principia pertenciam lgica e, se o tivessem conseguido, os fundamentos da

    Matemtica seriam os axiomas da lgica. Questes como porque que a Matemtica est livre de

    contradies transformar-se-iam, assim, em porque que a lgica est livre de contradies Havia,

    no entanto, axiomas que no eram proposies lgicas no sentido do logicismo11 e assim este

    programa, embora tendo uma enorme importncia para o desenvolvimento da moderna lgica

    matemtica, foi um fracasso do ponto de vista da sua inteno inicial. Como salienta Dias Agudo, o

    sistema no se revelou satisfatrio para uma fundamentao incontroversa da Matemtica.

    2.3.2 - Construtivismo e intuicionismo

    Os construtivistas abordaram o problema dos fundamentos da Matemtica de uma forma

    radicalmente diferente da dos logicistas. Enquanto estes consideravam que nada havia de errado com

    11 Segundo Snapper (1979) no contexto do logicismo uma proposio lgica definida como uma proposio que tem generalidade completa e verdadeira em virtude da sua forma em vez do seu contedo. Neste sentido, por exemplo, o princpio do terceiro excludo (p v ~p sempre verdadeiro) uma proposio lgica pois p pode ser uma proposio da matemtica, da fsica ou outra qualquer.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    15

    a Matemtica clssica, sendo os paradoxos originados por erros dos matemticos mas no causados

    por imperfeies da cincia matemtica, os construtivistas viam estas contradies como indicaes

    claras de que a Matemtica clssica estava longe de ser perfeita.

    A forma de construtivismo mais conhecida o intuicionismo iniciado por Brouwer em 1908. Para

    Brouwer no a experincia nem a lgica que determina a coerncia e aceitabilidade das ideias, mas

    sim a intuio. Profundamente influenciado pela teoria de Kant relativa intuio de tempo, sustenta

    que os nmeros naturais nos so dados por uma intuio fundamental que o ponto de partida de

    toda a Matemtica. Concebe o pensamento matemtico como um processo de construo mental

    que, partindo dos nmeros naturais, prossegue atravs de um nmero finito de passos e

    independente da experincia.

    Com o intuicionismo sobressai a ideia de que a Matemtica uma cincia que tem a sua origem no

    esprito e a se exerce: a Matemtica no possui nenhuma existncia fora do esprito humano. As

    palavras e relaes verbais constituem uma estrutura imperfeita para comunicar as ideias

    matemticas que so criadas pela actividade do esprito.

    Os intuicionistas, em virtude dos princpios de raciocnio que admitiam, rejeitarem muitos dos

    teoremas da Matemtica clssica. Por exemplo, Brouwer apresentou um nmero real do qual somos

    incapazes de demonstrar construtivamente, se positivo, negativo ou nulo, o que mostra que a

    propriedade tricotmica falsa. E assim, tambm o programa intuicionista no foi bem sucedido na

    sua tentativa de encontrar fundamentos consistentes para aquela Matemtica. Alm disso, os

    matemticos intuicionistas estabeleceram resultados considerados falsos por matemticos que o no

    eram e apresentaram provas para certos teoremas classificadas como longas e menos elegantes do

    que outras elaboradas por mtodos no construtivistas.

    Por tudo isto, a comunidade matemtica considerou, quase universalmente, o programa intuicionista

    pouco razovel e algo fantico. O programa formalista pode, em particular, ser visto como uma

    tentativa de defender a Matemtica do que Hilbert considerava mutilaes e deformaes provocadas

    pelo intuicionismo.

    2.3.3 - Formalismo

    A escola formalista, criada por volta de 1910 por David Hilbert, tinha por grande objectivo encontrar

    uma tcnica matemtica por meio da qual se pudesse demonstrar, de uma vez por todas, que a

    Matemtica estava livre de contradies. Hilbert propunha-se construir uma demonstrao

    matemtica da consistncia da Matemtica clssica, utilizando argumentos puramente finitrios que

    Brouwer no pudesse rejeitar. Com este objectivo, (a) introduziu uma linguagem formal e regras

    formais de inferncia em nmero suficiente para que toda a demonstrao correcta de um teorema

    clssico pudesse ser representado por uma deduo formal com cada passo mecanicamente

    verificvel; (b) desenvolveu uma teoria das propriedades combinatrias desta linguagem formal; (c) e

    props-se demonstrar que dentro deste sistema no podiam deduzir-se contradies. Deste modo,

    Hilbert pretendeu estabelecer o que designava por demonstraes objectivas, ou seja, um

    encadeamento de frmulas deduzidas atravs de implicaes a partir de smbolos, axiomas ou

    concluses previamente estabelecidas.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    16

    Com o formalismo a Matemtica torna-se um sistema formal que partindo dos axiomas e dos termos

    iniciais, se desenvolve numa cadeia ordenada de frmulas, mediadas por teoremas, sem nunca sair

    de si mesma. Torna-se nem mais nem menos, do que um jogo lingustico fundado exclusivamente

    nas prprias regras do jogo, como acontece, por exemplo, com o jogo do xadrez. Neste contexto,

    fazer Matemtica consiste em manipular smbolos sem significado de acordo com regras sintcticas

    explcitas.

    Em 1930, Gdel enunciou o teorema da incompletude evidenciando que nunca se poderia encontrar

    em Matemtica uma certeza completa por meio de qualquer mtodo baseado na lgica tradicional,

    uma vez que qualquer sistema formal consistente suficientemente forte para conter a aritmtica

    elementar seria incapaz de demonstrar a sua prpria consistncia12. Os resultados alcanados por

    Gdel mostraram que o projecto de Hilbert era irrealizvel e, assim, o programa formalista tambm

    no conseguiu provar a certeza dos mtodos matemticos.

    Formalismo e Matemtica moderna

    O formalismo faz uma distino entre a geometria como uma estrutura dedutiva e a geometria como

    uma cincia descritiva. Somente a primeira considerada Matemtica. A utilizao de figuras,

    diagramas, ou mesmo de imagens mentais, tudo no-matemtico. Em princpio deveriam ser

    desnecessrios. Consequantemente, considera-os inadequados num texto matemtico, e talvez

    tambm numa aula de Matemtica (...) Do ponto de vista formalista no comeamos realmente a

    fazer Matemtica antes de enunciar algumas hipteses e comear uma demonstrao. Aps termos

    chegado s nossas concluses, a Matemtica acabou (...) O exemplo mais influente do formalismo

    como estilo de exposio matemtica foi a obra do grupo chamado colectivamente de Nicolas

    Bourbaki. Sob este pseudnimo, foi produzida uma srie de textos bsicos, a nvel de ps-graduao,

    sobre a teoria de conjuntos, a lgebra e a anlise que tiveram uma enorme influncia em todo o

    mundo nas dcadas de 50 e 60. O estilo formalista penetrou gradualmente no ensino da Matemtica

    em nveis mais elementares e, finalmente, sob o nome de Matemtica moderna invadiu at o jardim

    de infncia com textos de teoria de conjuntos para a idade pr-escolar.

    Philip Davis e Reuben Hersh, 1988

    Da certeza falibilidade

    2.3.4 - A perda da certeza em Matemtica

    Se se analisar um pouco de perto o processo pelo qual o logicismo, o intuicionismo e o formalismo

    visavam garantir a certeza, constata-se que este processo continha em si mesmo elementos que

    poderiam causar dificuldades ao objectivo pretendido.

    De facto, estas escolas aceitaram sem demonstrao um conjunto de afirmaes bsicas a partir das

    quais deduziram logicamente os seus resultados. Ora, por um lado, o conjunto de afirmaes bsicas

    no pode ser eliminado de uma teoria matemtica. Por outro lado, a lgica dedutiva no introduz

    verdade nos raciocnios e afirmaes. Quando muito poderia transmiti-la. A partir do momento em que

    as trs escolas aceitam princpios no demonstrados, esses princpios ficam abertos ao desafio,

    dvida e incorreco. Como salienta Ernest13, a pesquisa da certeza em Matemtica conduz,

    12 P. Davis e R. Hersh (1988, p. 56). 13 P. Ernest (1991, p. 14), referindo Lakatos.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    17

    inevitavelmente, a um crculo vicioso. Todo o sistema matemtico depende de um conjunto de

    afirmaes, e tentar estabelecer a sua certeza demonstrando-as conduz a uma regresso infinita.

    Assim, o problema de assegurar a certeza em Matemtica parece ser insolvel.

    Actualmente no se est mais perto de fundamentos seguros para a Matemtica do que se estava h

    um sculo atrs. No entanto, as controvrsias sobre os fundamentos j no tm o impacto de outrora.

    Conduzem a crculos que parecem cada vez mais distantes das preocupaes matemticas e

    filosficas dos nossos dias. nesta conjuntura que se acentua, cada vez mais, a importncia de olhar

    a Matemtica sem a preocupao dominante da pesquisa de fundamentos, procurando-se novas

    direces na filosofia da Matemtica.

    2.4 - Matemtica: Uma cincia a par das outras

    Uma alternativa radicalmente diferente da procura de bases indubitveis para a Matemtica foi a

    apresentada por Imre Lakatos. Este filsofo, matematicamente esclarecido, segue a teoria do

    conhecimento cientfico enunciada por Popper que advoga que o conhecimento cientfico hipottico,

    falvel, e que a cincia progride, a partir de problemas, pelo jogo entre factos, conjecturas e

    refutaes.

    2.4.1 - Falibilismo

    No mbito da filosofia da Matemtica, a obra fundamental de Lakatos Provas e Refutaes iniciada

    em 1957 e publicada pela primeira vez em livro em 1976. Este trabalho constitui um ensaio sobre a

    lgica da descoberta em Matemtica, onde se reconhece ao erro um valor insubstituvel no processo

    de produo do conhecimento. O ponto de partida saber se existir uma relao entre o nmero de

    vrtices V, o nmero de arestas A e o nmero de faces F de um poliedro. A reso-

    Provas e Refutaes em Matemtica

    Este livro est estruturado sob a forma de um dilogo que ocorre numa sala de aula imaginria.

    Depois de muitas tentativas e erros os alunos constatam que para todos os poliedros regulares V-

    A+F=2. Um aluno conjectura que esta relao se pode aplicar a todos os poliedros. Outros tentam

    refutar esta conjectura sem o conseguirem. nesta altura que o professor entra na sala e apresenta

    uma prova em trs etapas. O extracto que se segue uma parte do dilogo que se estabelece

    imediatamente aps a apresentao desta prova.

    Professor: (...) Assim provmos a nossa conjectura1

    Aluno Delta: Agora pode falar de teorema. No h no caso mais nada de conjectural2.

    Aluno Alfa: Admiro-me. Vejo que esta experincia pode ser realizada com um cubo, ou com um

    tetraedro, mas como posso eu saber se ela pode ser realizada com todo o poliedro? O senhor tem a

    certeza, por exemplo, que qualquer poliedro, depois de lhe retirarmos uma das faces, pode ser

    esticado no plano do quadro? Tenho dvidas relativamente sua primeira etapa.

    Aluno Beta: Tem a certeza que ao triangular o mapa teremos sempre uma nova face para cada nova

    aresta? Tenho dvidas quanto sua segunda etapa.

    Aluno Gama: O senhor tem a certeza que quando se retiram os tringulos um por um h apenas dois

    casos possveis: retirar uma s aresta ou ento retirar duas arestas e um vrtice? O senhor tem

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    18

    mesmo a certeza que no final desse processo apenas fica um tringulo? Tenho dvidas sobre a sua

    terceira etapa3.

    Professor: claro que no tenho certezas.

    Alfa: Mas ento a nossa situao pior que antes! Em lugar de uma conjectura, neste momento

    temos pelo menos trs! E a isso que o senhor chama prova! Professor: Admito que para esta experincia mental, o termo tradicional prova possa ser de facto considerado um pouco enganador. No penso que ela estabelea a verdade da conjectura (...).

    ____________________________________

    1 - A ideia da prova apresentada pelo professor remonta a Cauchy (1813)

    2 - O ponto de vista de Delta segundo o qual esta prova estabelece sem nenhuma dvida o teorema foi

    partilhado por numerosos matemticos do sculo XIX como por exemplo Crelle ([1826-1827], pp. 668-71),

    Matthiessen ([1863], p. 449), Jonquires ([1890a] e [1890b]). Citando um exemplo representativo: Depois desta

    demonstrao de Cauchy, est absolutamente fora de dvida que a elegante relao V+F = A+2 se aplica aos

    poliedros de todos os tipos, tal como Euler afirmou em 1752 e toda a indeciso deve ter desaparecido desde

    1811. (de Jonquires ([1890a], pp. 111-12).

    3 - Os alunos desta classe so muito dotados. Em Cauchy, Poinsot e muitos outros matemticos do sculo XIX,

    no se encontram traos destas objeces.

    Imre Lakatos, 1993

    Proofs and refutations - The logic of mathematical discovery

    luo deste problema gera um dilogo que mostra uma Matemtica que cresce atravs de um

    conjunto de explicaes, justificaes, elaboraes, que no estabelecem a verdade das conjecturas,

    mas antes as tornam mais plausveis, convincentes, detalhadas e exactas pela presso exercida pelos

    contra-exemplos. A inteno deste dilogo dar conta de uma espcie de reconstruo racional da

    histria.

    Na introduo Lakatos escreve que a histria real soar em notas de fim de pgina, cuja maior parte

    devem ser consideradas como fazendo organicamente parte do ensaio14. Ele chama a ateno para

    que a Matemtica no est to longe da cincia natural como anteriormente se pensava e inclui-a nas

    teorias quasi-empricas considerando o conhecimento matemtico intrinsecamente conjuntural e

    falvel. Sugere que a Matemtica no se desenvolve por um crescimento contnuo de teoremas

    indubitavelmente estabelecidos, mas pela correco de teorias, pelo melhoramento constante de

    conjecturas graas especulao e crtica, graas lgica de provas e refutaes. Indica ainda que

    na produo de conhecimento matemtico h uma adaptao constante de axiomas e definies, em

    simultneo com uma incessante busca de conjecturas, demonstraes e refutaes.

    Lakatos aplica a sua anlise epistemolgica Matemtica informal, ou seja, Matemtica encarada

    como um processo de crescimento e descoberta. Deixa, contudo, sem resposta a questo de quais os

    objectos das teorias matemticas informais, indicando apenas que ela poder ser iluminada por

    estudos de caso histricos.

    A perspectiva filosfica de Lakatos , frequentemente, designada por falibilismo. No centro desta

    perspectiva est uma teoria da gnese do conhecimento matemtico, cujo foco no psicolgico

    (uma vez que Lakatos no se pronuncia sobre a origem dos axiomas, definies e conjecturas na

    mente dos indivduos) mas, antes, o processo pelo qual criaes matemticas privadas se

    transformam em saber matemtico publicamente aceite. Este processo envolve discusso crtica,

    14 I. Lakatos (1993, p. 5).

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    19

    conjecturas e refutaes e, neste sentido, a filosofia proposta por Lakatos para a Matemtica

    assemelha-se filosofia da cincia proposta por Popper.

    2.4.2 - Abordagem quasi-empiricista

    Actualmente, os ventos do ps-modernismo acentuam a ideia de que se queremos compreender o

    que a cincia e os processos de produo do saber cientfico, importa debruarmo-nos sobre as

    prticas reais dos cientistas, tanto as actuais como as passadas, e encontrarmos uma filosofia que

    enquadre e descreva essas prticas, em lugar de uma filosofia que prescreva o que elas devem ser.

    Neste sentido, diversos matemticos, filsofos e historiadores (Davis, Hersh, Ernest, Kline, Tymoczko,

    Putnam e muitos outros), inspirando-se no falibilismo de Lakatos, propem uma nova abordagem para

    a filosofia da Matemtica frequentemente designada por quasi-empiricismo15. Esta abordagem procura

    descrever e (re)caracterizar a Matemtica a partir da anlise das prticas reais dos matemticos.

    Observando estas prticas ver-se- que h a factores importantes que os fundacionistas

    negligenciaram: provas informais, desenvolvimentos histricos, possibilidade de erro matemtico,

    explicaes matemticas (em contraste com provas), comunicao entre os matemticos, a utilizao

    de computadores e muitos outros. Constatar-se- que em cada poca h normas culturais que

    determinam o que uma demonstrao aceitvel em Matemtica, acontecendo que o que constitui

    uma demonstrao para uma gerao pode no satisfazer os padres de aceitao e de rigor da

    gerao seguinte. Observar-se- que a Matemtica cresce por meio de uma srie de grandes

    avanos intuitivos, que so posteriormente estabelecidos, no numa etapa, mas atravs de uma srie

    de correces, de esquecimentos e de erros; nenhuma prova definitiva e novos contra-exemplos

    deitam por terra provas antigas.

    Hersh16, apoiando-se na experincia diria dos que estudam Matemtica, sugere que: (1) Os

    objectos matemticos so inventados ou criados pelos seres humanos; (2) So criados, no

    arbitrariamente, mas emanam da actividade desenvolvida a partir de outros objectos matemticos j

    existentes e de necessidades da cincia e da vida diria; (3) Uma vez criados, os objectos tm

    propriedades bem determinadas, que poderemos ter grande dificuldade em descobrir, mas que

    possuem independentemente do nosso conhecimento acerca delas. Conclui dizendo que a

    Matemtica um mundo de ideias criado pelos seres humanos, que existe na conscincia partilhada

    destes seres. Tal como os objectos materiais tm as suas prprias propriedades, tambm essas

    ideias tm propriedades objectivamente suas. O mtodo para as descobrir a construo de

    demonstraes e contra-exemplos.

    Considerar desta forma os objectos matemticos tem vrias consequncias filosficas. Em primeiro

    lugar, afirmar que os objectos matemticos so inventados ou criados pelo homem distingui-los de

    objectos materiais como gua, rochas ou gatos. Contudo, tal no significa que sejam objectos

    intemporais como as ideias matemticas do platonismo. Pode dizer-se, por exemplo, que as

    15 A designao proposta, nomeadamente, por Tymoczko (1986) que refere que esta abordagem tem sido objecto de uma adeso cada vez maior, embora no constitua uma representao completa da filosofia da Matemtica contempornea. 16 R. Hersh (1986, p. 22).

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    20

    geometrias no euclidianas so objectos matemticos de inveno mais recente do que a geometria

    euclidiana.

    Em segundo lugar, referir que os objectos matemticos so produzidos como resposta a desafios

    colocados tanto por teorias e conceitos matemticos j existentes, como pelas outras cincias e pelo

    mundo real, evidencia a complementaridade do que vulgarmente se designa por Matemtica pura e

    por Matemtica aplicada. Com efeito, ao longo dos tempos tem-se constatado que a Matemtica se

    desenvolve a partir de um movimento simultaneamente interno e externo. A abstraco, a

    axiomatizao e a generalizao, trs tipos de actividades includas na designada Matemtica pura,

    tm-se revelado to vitais para a Matemtica como a construo de modelos inteligveis de

    fenmenos naturais complexos, e aparentemente impenetrveis. Parece ser atravs da interaco

    entre a abstraco e os problemas concretos que a vida proporciona, que se produz e vai construindo

    uma Matemtica viva, significativa e possibilitadora do aumento do poder humano de interveno no

    mundo.

    Em terceiro lugar, admitir que objectos matemticos uma vez criados, tm propriedades suas que

    podemos ser, ou no, capazes de descobrir, permite destacar a simultaneidade da descoberta e da

    inveno em Matemtica. Esta ideia, paradoxal quando rejeitamos o realismo em Matemtica e

    admitimos apenas a existncia do sujeito individual e de um mundo exterior a ele, ganha sentido

    quando consideramos uma espcie de terceira realidade, uma realidade cultural, onde se situaria a

    Matemtica. Nesta linha, Wilder, inspirando-se nas prticas matemticas reais, descreve a

    Matemtica como um sistema cultural em evoluo, algo que criamos e possumos colectivamente,

    que externo ao sujeito enquanto indviduo, mas interno sociedade, como um todo. Fazendo os

    objectos matemticos parte da cultura humana, as suas propriedades so tambm propriedades de

    ideias partilhadas.

    O quasi-empiricismo, enquanto abordagem filosfica, destaca que a Matemtica constitui uma

    actividade humana, simultaneamente individual e social, que decorre de um dilogo entre pessoas

    que tentam resolver problemas. Os produtos matemticos podem necessitar de renegociao

    medida que mudam os padres de rigor ou que emergem novos desafios e significados. pela

    partilha e discusso crtica de ideias relativas aos objectos matemticos que se torna possvel o

    reconhecimento de saberes matemticos novos, o alargamento, correco e rejeio de teorias.

    O quasi-empiricismo no d resposta a todos os problemas respeitantes filosofia da Matemtica. No

    entanto, mais importante que isso, permite levantar questes fundamentais: Como so inventados os

    objectos matemticos? Como explicar o sucesso das aplicaes da Matemtica na compreenso do

    mundo fsico e de outras cincias?

    Quasi-empiricismo e ensino da Matemtica

    Uma perspectiva social sobre a Matemtica, em que se inclui o quasi-empiricismo, tem importantes

    implicaes para a pedagogia e a didctica da Matemtica. D suporte a abordagens pedaggicas

    baseadas na formulao e resoluo de problemas, semelhantes aos processos pelos quais gerado

    o conhecimento matemtico. Permite pr em causa perspectivas educativas rigidamente

    hierarquizadas sobre a Matemtica e a aprendizagem. Tem ressonncias com objectivos que visam

    formar pessoas capazes de problematizar e avaliar criticamente os usos sociais da Matemtica.

    Paul Ernest, 1994

    The philosophy of mathematics and the didactics of mathematics

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    21

    Que balano fazer quanto s diferenas entre os produtos matemticos e outros produtos culturais? O

    grau de constrangimento da criatividade matemtica superior ao da criatividade artstica? Como

    que a demonstrao matemtica se torna mais refinada e subtil medida que so descobertas novas

    fontes de erro? Como se articula a produo individual de saber matemtico com o produo social

    deste saber? Quais as normas e convenes actualmente partilhadas pelos membros da comunidade

    matemtica?

    Estas so algumas das muitas questes que podero ajudar a compreender melhor o que , e como

    progride, a Matemtica. A sua anlise em profundidade constitui um dos grandes desafios que hoje se

    colocam, no s filosofia da Matemtica, mas tambm histria, antropologia, sociologia e

    psicologia da cognio.

    2.4.3 - Matemtica: Objecto cultural e social

    Presentemente, diversos investigadores pesquisam a histria da Matemtica e realizam estudos de

    carcter sociolgico e antropolgico com o objectivo de alargarem a compreenso de como se produz

    o conhecimento matemtico. Alguns destes estudos tm feito sobressair a influncia das condies e

    doutrinas sociais na produo matemtica, bem como a natureza cultural dos objectos matemticos.

    Em particular, Barbin salienta que a modificao dos objectos e dos saberes matemticos que ocorreu

    no sculo XVII, resultou do contexto cientfico, social e filosfico da poca, onde imperava a vontade

    de compreender os fenmenos tcnicos. Esta cultura conduziu modificao do conceito de parbola,

    como consequncia do estudo dos movimentos, e introduo de novas concepes de curva que

    viriam a estar nos fundamentos do clculo infinitesimal. Bento de Jesus Caraa, j em 1951, ao

    escrever Os conceitos fundamentais de Matemtica, sublinhou tambm que a Matemtica, tal como

    toda a construo humana, depende do conjunto de condies sociais em que produzida.

    O conceito de varivel e a Grcia ps-socrtica

    Como poderia um tal conceito [de varivel] surgir na Grcia pst-socrtica, dominada por uma

    doutrina filosfica que (...) rejeitava a contradio, o devir e procurava, em tudo, aquilo que guarda

    permanentemente a sua identidade? No! A varivel, porque o , no guarda a sua identidade,

    ultrapassa o lago tranquilo mas estril da permanncia. Daqui resulta imediatamente a incapacidade

    da cincia grega para construir o conceito de funo (...) E aqui tem o leitor um exemplo,

    possivelmente o mais importante de todos, de como a Matemtica, do mesmo modo que toda a

    construo humana, depende do conjunto de condies sociais em que os seus instrumentos tm que

    actuar. Subordinao que no a humilha, antes a engrandece.

    Bento de Jesus Caraa, 1989

    Conceitos fundamentais de Matemtica

    Restivo17, numa posio mais radical, afirma que as notaes e smbolos so instrumentos,

    materiais, e em geral recursos que so socialmente construdos em torno de interesses sociais e

    orientados por objectivos sociais. Defende que os mundos matemticos so mundos sociais e que os

    objectos matemticos so e devem ser tratados como objectos, coisas que so produzidas e

    manufacturadas por seres sociais no havendo razo para que um objecto como um teorema deva

    ser tratado diferentemente de uma escultura.

    17 S. Restivo (1988, p. 18).

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    22

    2.5 - A experincia matemtica

    Uma vez admitida a ideia de que a filosofia da Matemtica deve ter em conta as prticas matemticas

    reais, torna-se pertinente reflectir sobre alguns aspectos da experincia matemtica. Nesta seco

    aborda-se o que Papert18 designa por face extra-lgica da Matemtica e o papel do computador na

    produo da Matemtica.

    2.5.1 - Face extra-lgica da Matemtica

    A Matemtica vulgarmente olhada por um ngulo que privilegia o seu lado lgico. No entanto, tal

    como acontece em qualquer outra actividade humana, tambm na actividade de produo

    matemtica, a face extra-lgica coexiste com a face lgica.

    Esttica matemtica e criao matemtica

    Encontram-se referncias face extra-lgica, nomeadamente esttica matemtica, em vrias

    descries do processo de criao matemtica, Por exemplo, Poincar destaca que a sensibilidade

    esttica, e no a lgica, que constitui o trao distintivo do esprito matemtico. Quando confrontado

    com um problema de difcil resoluo este matemtico realiza um trabalho que se desenvolve em trs

    etapas. A primeira uma fase de anlise consciente e deliberada do problema. A segunda uma fase

    de trabalho inconsciente. Parece um abandono provisrio da tarefa. No entanto, o que se passa que

    o eu inconsciente ou subliminar, explora, sistematicamente, todos os elementos que lhe foram

    fornecidos pela primeira etapa do trabalho. Aps um certo tempo, num momento qualquer em que o

    esprito consciente se afasta do problema a resolver, algumas combinaes desses elementos,

    provenientes do trabalho do inconsciente, aparecem na mente sob a forma de uma inspirao sbita.

    Numa terceira etapa, h uma anlise consciente e rigorosa dessas ideias que podero ser aceites,

    modificadas ou rejeitadas. Neste ltimo caso, o inconsciente recomear de novo o seu trabalho na

    procura de uma nova soluo.

    Coloca-se, contudo, a questo de porque que o inconsciente transmite ao consciente alguns

    resultados e outros no. aqui que Poincar v a interveno da sensibilidade esttica. esta

    sensibilidade, uma intuio especial que para ele s existe nos que nascem matemticos criadores,

    que desempenha um papel de crivo e apenas deixa passar para o consciente as ideias que trazem a

    marca da beleza matemtica. Poincar, ao contestar que seja possvel compreender o trabalho do

    matemtico e os processos que ele utiliza exclusivamente em termos de lgica, o que, no fundo, pe

    em causa a existncia de uma teoria puramente cognitiva do pensamento matemtico.

    A descrio de Poincar refere-se ao mais alto nvel da criao matemtica. Uma questo diferente

    saber se o mesmo processo dinmico est presente em nveis mais elementares de trabalho

    18 S. Papert (1980). Papert inclui na face extra-lgica da matemtica a beleza matemtica, o prazer matemtico e a intuio matemtica. O livro Mindstorms - Children, computers and powerful ideas, onde Papert refere estas ideias, tem uma traduo brasileira intitulada Logo: Computadores e educao, publicada pela primeira vez em 1985 por Editora Brasilience So Paulo.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    23

    matemtico. Foi sobre esta questo que se debruou Papert19 ao analisar o pensamento seguido por

    um grupo de no matemticos a quem foi pedido para construir a demonstrao do teorema que

    indica que a raiz quadrada de dois um nmero irracional.

    Ao longo do processo de resoluo do problema, Papert constata a existncia, no grupo, de sinais

    diversos de satisfao e entusiasmo, traos de prazer vrios, que o levam a questionar-se se a

    Matemtica no estar mais prxima do humor e dos sonhos do que aquilo que geralmente se cr.

    Tudo isto leva-o a colocar uma srie de dvidas sobre as razes para acreditar, como o faz Poincar,

    que a faculdade de sentir beleza matemtica algo de inato e independente de outras componentes

    do esprito. Sugere, pois, a possibilidade destes factores entrarem em linha de conta e virem a

    influenciar, em cada pessoa, a percepo da Matemtica como bela ou no, levando-a a aprovar ou a

    rejeitar esta ou aquela Matemtica.

    Esttica matemtica e criao matemtica

    Tornar-se matemtico inclui o desenvolvimento da esttica matemtica, uma predileco por analisar

    e compreender, por perceber a estrutura e as relaes estruturais, por ver como as coisas se ajustam.

    Alain Schoenfeld, 1990

    Problem solving in context(s)

    O que h de comum na esttica de todas as artes e na Matemtica, o desapareci-mento de

    informaes parasitas, de barulhos de fundo, numa palavra a diminuio da entropia. A comparao

    de um belo raciocnio com a dana em que cada movimento termina o precedente e inicia o seguinte,

    no destituda de sentido.

    Andr Revuz, 1988

    Est-il impossible d'enseigner les mathmatiques?

    Intuio e Matemtica

    A intuio matemtica outra das componentes que Papert inclui na face extra-lgica da Matemtica.

    A sua importncia no processo de produo desta cincia destacada por inmeros matemticos,

    alguns dos quais chegam a afirmar que a criao matemtica , sem dvida e antes de mais, a obra

    de homens notveis pela sua poderosa intuio, mais do que pela sua capacidade de realizar

    demonstraes rigorosas.

    No mbito da Matemtica a noo de intuio , frequentemente, um pouco vaga. Por vezes significa

    pouco rigoroso, embora o conceito de rigor seja apenas intuitivamente definido. Intuitivo pode tambm

    significar visual, heurstico, plausvel e holstico em oposio a pormenorizado ou analtico. Apesar

    desta ambiguidade, um facto que a actividade matemtica, para l de uma componente formal (que

    envolve axiomas, definies, teoremas e demonstraes) e de uma componente algortmica

    (composta por procedimentos que apenas podem ser adquiridas atravs de um treino sistemtico),

    inclui tambm combinar observaes, seguir analogias, recorrer a imagens, formular conjecturas e

    adivinhar a ideia da prova antes de a fazer, ou seja, inclui tambm uma componente intuitiva. Esta

    componente no aparece nos produtos matemticos acabados onde prevalece a forma dedutiva.

    19 S. Papert (1980). O teorema que indica que raiz quadrada de 2 um nmero irracional foi escolhido exactamente por o matemtico ingls Hardy o ter considerado como um dos mais puros exemplos de beleza matemtica.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    24

    Estes produtos so assegurados pelo que Plya designa por raciocnio demonstrativo. As conjecturas

    so, no entanto, sustentadas por um tipo de raciocnio diferente, o raciocnio plausvel, que completa o

    primeiro. Plya chama ainda a ateno para que se a aprendizagem da Matemtica reflecte, em

    algum grau, a inveno da Matemtica, ento deve haver a lugar para aprender a adivinhar, para a

    inferncia plausvel.

    Criao matemtica e intuio

    Cincia alguma pode nascer apenas da lgica (...) para produzir Aritmtica tal como para produzir

    Geometria ou qualquer outra cincia, necessrio algo mais que a lgica pura. Para designar essa

    outra coisa, no temos outra palavra seno intuio (...) a cincia da demonstrao no toda a

    cincia e a intuio deve conservar o seu papel como complemento, diria mesmo, como contrapeso

    ou antdoto da lgica (...) Tive j oportunidade de insistir no que diz respeito ao lugar que a intuio

    deve ter no ensino das cincias matemticas. Sem ela, os espritos ainda jovens no teriam meios de

    aceder ao entendimento da Matemtica; no aprenderiam a gostar dela e v-la-iam apenas como uma

    v logomaquia. Sem a intuio sobretudo, nunca viriam a ser capazes de aplicar a Matemtica (...)

    Assim, a lgica e a intuio tm, cada uma delas, o seu papel. Ambas so indispensveis. A lgica,

    que a nica que nos pode fornecer a certeza, o instrumento da demonstrao; a intuio o

    instrumento da inveno.

    Henri Poincar, 1988

    Intuio e lgica em Matemtica

    Temos intuio matemtica, no porque memorizamos mecanicamente definies e algoritmos, mas

    porque temos representaes mentais dos objectos matemticos. Construmos estas representaes

    atravs de experincias repetidas, quer seja atravs da manipulao de objectos concretos, a um

    nvel elementar, quer, num nvel mais avanado, atravs da manipulao de imagens mentais, de

    experincias de resoluo de problemas e da realizao de descobertas.

    Uma vez que a intuio matemtica uma componente fundamental e insubstituvel da actividade

    matemtica, importa ter em conta que a nfase exclusiva, na sala de aula, em tarefas matemticas

    que no estimulem os aspectos intuitivos do pensamento, para l de constituir uma parente pobre da

    experincia matemtica, pode funcionar, para alguns alunos, como uma barreira inibidora da

    construo de conhecimento matemtico significativo.

    2.5.2 - A prtica matemtica e o computador

    Nos ltimos anos o computador tem tido uma forte influncia no desenvolvimento da Matemtica.

    Trouxe para primeiro plano reas anteriormente estudadas mas entretanto postas de lado, possibilitou

    alargar fortemente o mbito das aplicaes da Matemtica, permitiu introduzir novos processos de

    investigao e tem sido uma fonte fecunda de problemas. O computador est, assim, a introduzir

    modificaes importantes nas prticas matemticas tradicionais, dando a esta cincia uma nova

    dimenso, tanto nos seus aspectos tericos como prticos. Todas estas mudanas esto a levantar

    interessantes questes filosficas sobre as quais importa reflectir.

    Utilizao do computador em Matemtica

    A relao do computador com a Matemtica estabeleceu-se h muitas dcadas. Inicialmente

    comeou por ser usado para realizar clculos numricos que ocupavam um tempo excessivamente

    longo. Mais tarde, o seu campo de utilizao diversifica-se e torna-se mais complexo. Nos anos 50,

    Wang programou um computador para provar diversos teoremas dos Principia Mathematica de

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    25

    Russel. Em 1969, Davis e Cerutti usaram outro computador para produzir provas de geometria

    elementar, tendo encontrado uma demonstrao no usual para um velho teorema. Posteriormente, o

    computador comea a ser programado para realizar operaes com smbolos que dada a

    complexidade das expresses envolvidas eram srios obstculos ao prosseguimento dos trabalhos de

    investigao, alargando as fronteiras da intratabilidade20.

    Actualmente matemticos, engenheiros e cientistas concebem modelos computacionais de sistemas

    naturais, tecnolgicos e sociais para revelar cenrios que anteriormente s poderiam ser estudados

    atravs de prottipos e experincias demoradas, muitas vezes realizadas em condies de risco. Por

    seu lado, os prprios modelos computacionais geram novos problemas matemticos que tm

    impulsionado linhas de investigao diversas. Em particular, na teoria dos nmeros o computador

    frequentemente usado para chegar a novas conjecturas. Gera dados que o matemtico analisa de

    modo a formul-las e mesmo que no as consiga provar pode recorrer de novo ao computador para

    gerar outros grupos de nmeros que lhe permitam testar ou refutar as conjecturas que estabeleceu.

    Noutros campos, produz imagens grficas de objectos matemticos que no poderiam ser

    visualizados de outro modo (como acontece, por exemplo, com os objectos fractais) permitindo,

    assim, ampliar as fronteiras de compreenso desses objectos. Alguns tpicos de Matemtica foram

    mesmo relegados inteiramente para a Matemtica computacional tal como acontece com a procura do

    maior nmero primo ou a mais longa expresso decimal de .

    A legitimidade matemtica do computador

    Apesar desta aliana fecunda entre computador e Matemtica, a questo da legitimidade matemtica

    do computador permanece, contudo, uma questo controversa. Muitos matemticos, nomeadamente

    os fundacionistas, negam que os computadores possam figurar em provas matemticas entendidas

    no sentido restrito do termo. Esta atitude prende-se com o facto de, por vezes, as provas assistidas

    por computador (computer proofs) no poderem ser testadas pela comunidade matemtica atravs do

    mtodo cannico que consiste em l-las e verificar se cada inferncia logicamente correcta. As

    cpias escritas de muitas destas provas so impossveis de obter devido enorme quantidade de

    tempo necessrio para as imprimir e mesmo que se conseguisse encheriam um nmero tal de

    pginas que seriam inteis para o matemtico. Procura-se garantir que os resultados obtidos por

    computador esto correctos verificando se diversos computadores os confirmam, construindo

    diferentes programas para os verificar e avaliando a fiabilidade dos programas utilizados.

    Estas evidncias so, contudo, semelhantes s que obtm os cientistas que realizam estudos

    experimentais no campo das cincias naturais que, tradicionalmente, tm sido consideradas

    significativamente diferentes da Matemtica. Assim, no de estranhar que se ponham srias

    reticncias em admitir em Matemtica provas assistidas por computador, com o argumento de que se

    iria modificar o carcter fundamental desta cincia.

    Este debate poderia ter permanecido para sempre no campo puramente especulativo se as provas

    assistidas por computador no tivessem chegado Matemtica pura, o que aconteceu em 1976 com

    a prova apresentada por Appel e Haken para a conjectura das quatro cores.

    20 Esta expresso usada por Pavelle, Rothestein e Fitch (1991), para indicar que o computador, atravs da utilizao de sistemas automticos de manipulaes algbricas, permite explorar expresses algbricas frequentemente includas em teorias cientficas, que so extremamente difceis de explorar mo.

  • A NATUREZA DA MATEMTICA

    26

    Conjectura das quatro cores

    Em 1976 aconteceu uma coisa rara: a notcia da demonstrao de um teorema de Matemtica pura

    foi publicada nas colunas do New York Times. A ocasio foi a demonstrao, por Kenneth Appel e

    Wolfgang Haken, da conjectura das quatro cores. O acontecimento foi notcia por duas razes. Em primeiro lugar o problema era famoso. A conjectura das quatro cores era estudada h mais de cem

    anos. Tinha havido muitas tentativas falhadas para a resolver agora, por fim, tinha sido demonstrada. Contudo, o prprio mtodo de demonstrao era digno de nota. Isto porque uma parte

    essencial da demonstrao consistia em clculos por computador. Ou seja, a demonstrao publicada

    continha programas de computadores e resultados de clculos desses programas. Os passos

    intermdios, de execuo dos programas, no foram, claro, publicados; neste sentido, as

    demonstraes publicadas estavam em princpio e permanentemente incompletas.

    O problema das quatro cores consiste em demonstrar que qualquer mapa, numa superfcie plana ou

    numa esfera, pode ser colorido sem utilizar mais de quatro cores diferentes. A nica exigncia a de

    que quaisquer dois pases com uma fronteira