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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES A NARRATIVA TELEJORNALÍSTICA DA REVOLTA DOS PRAÇAS DA POLÍCIA MILITAR EM 1997: um estudo sobre a cobertura da TV regional em Minas e a espetacularização do movimento João Lucas Salgado Machado BELO HORIZONTE 2011

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Page 1: A NARRATIVA TELEJORNALÍSTICA DA …§ão_MachadoJLS...RESUMO Este trabalho propõe um estudo da cobertura da mídia televisiva sobre a revolta dos praças da Polícia Militar de 1997,

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES

A NARRATIVA TELEJORNALÍSTICA DA REVOLTA DOS PRAÇAS DA POLÍCIA

MILITAR EM 1997:

um estudo sobre a cobertura da TV regional em Minas e a espetacularização do

movimento

João Lucas Salgado Machado

BELO HORIZONTE

2011

Page 2: A NARRATIVA TELEJORNALÍSTICA DA …§ão_MachadoJLS...RESUMO Este trabalho propõe um estudo da cobertura da mídia televisiva sobre a revolta dos praças da Polícia Militar de 1997,

João Lucas Salgado Machado

A NARRATIVA TELEJORNALÍSTICA DA REVOLTA DOS PRAÇAS DA POLÍCIA

MILITAR EM 1997:

um estudo sobre a cobertura da TV regional em Minas e a espetacularização do

movimento

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação. Orientador: Prof. Dr. Márcio de Vasconcellos Serelle.

BELO HORIZONTE

2011

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Machado, João Lucas Salgado M149n A narrativa telejornalística da revolta dos praças da polícia militar em 1997:

um estudo sobre a cobertura da TV regional em Minas e a espetacularização do movimento / João Lucas Salgado Machado. Belo Horizonte, 2011.

110f. : il. Orientador: Márcio de Vasconcellos Serelle Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. 1. Telejornalismo. 2. Análise do discurso. 3. Simbolismo. I. Serelle, Márcio

de Vasconcellos. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. III. Título.

CDU: 070:654.197

Page 4: A NARRATIVA TELEJORNALÍSTICA DA …§ão_MachadoJLS...RESUMO Este trabalho propõe um estudo da cobertura da mídia televisiva sobre a revolta dos praças da Polícia Militar de 1997,

João Lucas Salgado Machado

A NARRATIVA TELEJORNALÍSTICA DA REVOLTA DOS PRAÇAS DA POLÍCIA

MILITAR EM 1997:

um estudo sobre a cobertura da TV regional em Minas e a espetacularização do

movimento

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do

título de Mestre em Comunicação.

______________________________________________________________________

Prof. Dr. Márcio de Vasconcellos Serelle (orientador) – PUC Minas

___________________________________________________________ Prof. Dra. Rosana de Lima Soares – USP

___________________________________________________________ Prof. Dra. Teresinha Maria Cruz Pires – PUC Minas

Belo Horizonte, 29 de setembro de 2011.

Page 5: A NARRATIVA TELEJORNALÍSTICA DA …§ão_MachadoJLS...RESUMO Este trabalho propõe um estudo da cobertura da mídia televisiva sobre a revolta dos praças da Polícia Militar de 1997,

Essa sociedade já não produz apenas acontecimentos incertos, cuja elucidação é

improvável. Outrora um acontecimento era feito para produzir-se; hoje é feito para

ser produzido. Logo, ele se produz sempre como artefato virtual, como um travesti

das formas midiáticas. (Jean Baudrillard).

Page 6: A NARRATIVA TELEJORNALÍSTICA DA …§ão_MachadoJLS...RESUMO Este trabalho propõe um estudo da cobertura da mídia televisiva sobre a revolta dos praças da Polícia Militar de 1997,

AGRADECIMENTOS

À Luiza, minha companheira, pela ajuda, abdicação e incentivo, principalmente nos

momentos mais difíceis.

Ao meu pai, por ter me ensinado a sempre tentar enxergar além do senso comum.

Ao orientador Serelle, pela competência inquestionável e paciência invejável.

À Luciane, minha irmã por escolha, pelas palavras de incentivo quando os obstáculos

pareciam intransponíveis.

À Isana, pela boa vontade e dedicação.

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RESUMO

Este trabalho propõe um estudo da cobertura da mídia televisiva sobre a revolta dos praças

da Polícia Militar de 1997, em Belo Horizonte, que culminou com passeatas e a morte de

um cabo, baleado durante a tentativa de invasão do prédio do Centro de Comando da

Polícia Militar, na Praça da Liberdade. Buscamos, por meio desta investigação,

compreender como a espetacularização da revolta na narrativa dos telejornais

desestabilizou algumas formas usuais de cobertura jornalística, além da possibilidade de

ter produzido uma ressignificação das ações dos revoltosos, alimentando e, ao mesmo

tempo, sendo alimentada pelos acontecimentos. Para tanto, primeiro foi discutido como a

revolta pode ser apreendida como crise da modernidade – já que a instituição responsável

pela manutenção da segurança pública questiona o seu rígido regimento burocrático, além

dos baixos salários –, para somente depois analisar a cobertura de três emissoras

televisivas - Band Minas, Record Minas e Rede Globo Minas - durante os cerca de vinte

dias da revolta. A partir do aporte teórico sobre espetacularização, midiatização e

narrativa jornalística, o estudo analisa também como a imprevisibilidade do espetáculo

noticioso pode combater a autocensura dos jornalistas sem, entretanto, ser garantia de uma

cobertura de melhor qualidade.

Palavras-chave: Telejornalismo; Narrativa; Espetáculo; Ressignificação; Revolta da PM

Mineira em 1997.

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ABSTRACT

This paper proposes an analysis of the television news coverage of the Military Police revolt

of 1997, in Belo Horizonte. The incident culminated in demonstrations and the death of an

officer, who was shot during the attempted invasion of the Military Police command centre

building at Praça da Liberdade. This research seeks to understand how a potentially

exaggerated reframing of the narrative of the revolt by live TV news may have unduly

influenced other usual forms of media coverage, in addition to having created the possibility

of redefining the actions of rebels, feeding the direction of the events at the same time as

being fed by them. Initially, it is discussed how the insurgency may have been perceived as a

crisis of modernity - as the very institution responsible for maintaining public safety questions

its own rigid bureaucratic regime coupled with low wages; this is followed by the analysis of

the coverage of three TV stations - Band Minas, Record Minas and Rede Globo Minas -

during the twenty days of the revolt. From the theoretical approach of the reframed reporting,

the analysis of the journalistic narrative and of the overall media coverage, the unpredictable

nature of the news show is examined, including how it can suppress the journalists' self-

censorship, however without ensuring better quality of coverage.

Keywords: Broadcast Journalism; Narrative; Reframing; Minas Gerais Military Police Revolt

of 1997.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Praças com o braços cruzados no BP Choque .................................................. 40

Figura 2: Primeira manifestação dos praças ...................................................................... 41

Figura 3: Passeata chega à Praça Sete ............................................................................... 43

Figura 4: Protesto em frente ao Palácio da Liberdade ....................................................... 44

Figura 5: Site do Youtube com link para a greve de 1997 ................................................ 45

Figura 6: Assembléia no Centro de Cabos e Soldados ...................................................... 46

Figura 7: Coronel e sargento que havia sido transferido dão entrevista no Comando de

Policiamento da Capital ..................................................................................................... 48

Figura 8: “Forleg”: cordão de isolamento na Praça da Liberdade ..................................... 50

Figura 9: Tiroteio no Comando Geral ............................................................................... 52

Figura 10: Exército ocupa o Palácio da Liberdade ............................................................ 54

Figura 11: Reprodução de passagem da repórter Renata Peret em frente ao Palácio da

Liberdade ........................................................................................................................... 79

Figura 12: Reprodução de passagem do repórter Guilherme Menezes ............................. 80

Figura 13: Reprodução de matéria que mostra pai e filho bombeiro e líder da revolta .... 82

Figura 14: Reprodução de matéria que mostra soldado revoltado com punições ............. 83

Figura 15: Reprodução de matéria que mostra policial armado em passeata .................... 84

Figura 16: Reprodução de matéria que mostra cabo sendo baleado em manifestação ..... 85

Figura 17: Reprodução de matéria que mostra cabo baleado em manifestação ................ 86

Figura 18: Reprodução de matéria sobre protesto de PMs que queimaram colchões em

batalhão .............................................................................................................................. 89

Figura 19: Reprodução de passagem do repórter Sérgio Utsch em quartel da PM onde

acontecia paralisação dos praças ....................................................................................... 90

Figura 20: Reprodução de passagem do repórter Tom Paixão na tentativa de invasão do

COPOM, em passeata de PMs em MG ............................................................................. 93

Figura 21: Reprodução de matéria sobre o enterro do cabo Valério ................................. 94

Figura 22: Reprodução, retirada da internet, de matéria do “Jornal Nacional”, sobre a greve

dos PMs mineiros em 1997 ............................................................................................... 97

Figura 23: Reprodução da internet de matéria da Rede Globo Minas sobre a greve dos PMs

em Minas Gerais em 1997 ................................................................................................. 98

Figura 24: Reprodução da internet de passagem em reunião entre revoltosos e governo. 99

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Figura 25: Reprodução da internet de reportagem mostrando o cabo Valério sendo carregado

depois de baleado e veículo onde coronel estaria sendo atacado ...................................... 100

Figura 26: Reprodução da internet de matéria ao “vivo” na Rede Globo Minas, depois do

confronto na porta do Copom, em Belo Horizonte ........................................................... 101

Figura 27: Reprodução da internet de matéria que mostra irmã do cabo Valério brigando com

o cabo Júlio ........................................................................................................................ 102

Figura 28: Reprodução da internet de matéria que mostra cabo Júlio, dias antes de ser expulso

da PM ................................................................................................................................. 103

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10

2 DA MEDIAÇÃO À MIDIATIZAÇÃO: A LÓGICA DO ESPETÁCUL O NO

TELEJORNALISMO ..................................................................................................... 13

2.1 A mídia e a revolta: uma crise da modernidade ..................................................... 13

2.2 Da mídia como lógica ................................................................................................ 20

2.3 O Espetáculo e o caos da informação ...................................................................... 26

3 A REVOLTA DOS PRAÇAS: CRONOLOGIA E OLHARES ACA DÊMICOS 38

3.1 A cronologia da revolta ............................................................................................. 38

3.1.1 Uma trégua de 10 dias ............................................................................................. 46

3.1.2 Praças e coronéis disputam a atenção da imprensa .............................................. 47

3.1.3 Nova passeata .......................................................................................................... 50

3.2 Alguns estudos e análises sobre a revolta ................................................................ 55

4 A NARRATIVA TELEJORNALÍSTICA DO EVENTO ......................................... 59

4.1 Aspectos técnicos da narrativa ................................................................................. 59

4.1.1 Conceito e breve evolução histórica da narrativa .................................................. 59

4.1.2 A narrativa jornalística ........................................................................................... 63

4.1.3 A narrativa no telejornal ........................................................................................ 68

4.2 Aporte teórico-metodológico para análise dos telejornais ..................................... 72

4.2.1 Recorte empírico ...................................................................................................... 73

4.2.2 Movimentos da narrativa ........................................................................................ 74

4.3 Análise dos telejornais ............................................................................................... 77

4.3.1 A ausência de reportagens como sinônimo de alienação e alinhamento com o poder

............................................................................................................................................. 77

4.3.2 A Band Minas e o relato “isento e factual” ........................................................... 78

4.3.3 A TV Record e a realimentação da revolta ............................................................ 88

4.3.4 Rede Globo Minas: mais ângulos e imagens do espetáculo .................................. 95

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 104

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 107

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1 INTRODUÇÃO

A revolta dos praças ocorrida em Belo Horizonte, em 1997, foi a primeira em 222

anos de coesão e disciplina da Polícia Militar de Minas Gerais, a mais antiga do país.

Eclodida em 12 de junho, ironicamente no próprio Batalhão de Choque, unidade responsável

por reprimir manifestações populares mais exaltadas, a revolta durou cerca de 20 dias,

produzindo eventos de potência espetacular: queima de colchões e contracheques,

paralisações e passeatas, que culminaram no assassinato do cabo Valério dos Santos Oliveira,

morto com um tiro na cabeça, em 24 de junho, em frente prédio do Centro de Operações da

Polícia Militar (COPOM), na Praça da Liberdade. O assassinato foi registrado pelas câmeras

dos impressos e das TVs e veiculado em todo seu horror.

A cobertura da mídia – em especial das emissoras de televisão – dessa revolta não

havia sido, até este presente estudo, investigada de forma aprofundada nem por parte de

cientistas sociais, nem por parte de pesquisadores do campo comunicacional. Catorze anos

depois dos protestos, amplamente mostrados pelas emissoras sediadas na capital, pouco foi

estudado acerca da importância que essa mídia teve na ressignificação dos eventos. À medida

que o telejornalismo cobria e narrava a revolta, tornando-se instância legitimada de poder

simbólico, ele também a alimentava, dando visibilidade e notoriedade ao processo, que, por

sua vez, produzia novos acontecimentos para serem registrados e divulgados. Este estudo

objetiva, assim, compreender a construção, sob o signo do espetáculo, dessa narrativa

telejornalística da revolta, por meio da análise da cobertura da TV mineira.

No primeiro capítulo, discutimos como a revolta de 1997 pode ser apreendida,

inicialmente, em contexto de crise de paradigmas da modernidade, em que uma instituição

responsável justamente pela segurança da sociedade questiona o rígido regimento burocrático

de sua corporação, colapsando, por meio de paralisação e de passeatas, a ordem até então

vigente em uma capital. Lembremos com Bauman (1998), que a ordem, como meio de

regulagem atingido por um esforço disciplinar e pela abdicação de liberdades individuais, foi

um dos valores centrais da modernidade. A noção de legitimação burocrática, como

dominação racional-legal, conforme Weber (2004), é apropriada por Amaral (2000) para

descrever as relações hierárquicas e disciplinares na Polícia Militar, contra as quais a revolta

investe.

Apresentamos, ainda, nesse capítulo, os aportes teóricos acerca dos processos de

mediatização (BRAGA, 2006) e espetacularização (DEBORD, 1967; KELLNER, 2001) na

sociedade contemporânea, buscando, assim, traçar as bases conceituais para compreender a

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atuação do telejornalismo em uma cultura em que os eventos já possuem neles próprios uma

potência midiática, um devir que já trabalha, em certa medida, com a lógica da visibilidade

dos aparatos midiáticos. O espetáculo é, contudo, como diz Kellner (2001), imprevisível, pois,

ainda que sirva usualmente ao poder hegemônico, tem, por vezes, em seus desdobramentos,

força de contra-poder, de denúncia e reviravolta. Além de agrupar os pensadores mais

importantes sobre midiatização e espetáculo, também fazemos referência, no capítulo, ainda

que de forma mais pontual, a alguns episódios em que a espetacularização foi marca da

cobertura midiática, a saber: a greve dos peões em 1979, em Belo Horizonte; as crueldades

cometidas por policiais militares, que chegaram a matar uma pessoa inocente durante blitz na

Favela Naval, bairro da Grande São Paulo, em 1997; e a decretação de um toque de recolher

em São Paulo, depois dos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital, facção criminosa

que age nos presídios paulistas). Esses eventos permitiram a análise do modus operandi da

mídia em situações de crise, quando as regras do chamado “bom jornalismo” foram muitas

vezes deixadas de lado.

O segundo capítulo objetiva reconstituir uma narrativa da revolta de 1997 a partir de

fontes diversas, como matérias de jornais impressos – principalmente Estado de Minas e

Jornal do Brasil –, que cobriram os eventos tanto na época como em anos depois, e

publicações, acadêmicas ou não, que recolheram importantes depoimentos de pessoas

envolvidas nos acontecimentos (jornalistas, oficiais, praças, entre outros). Dividido em dois

subcapítulos, o texto inicia-se com uma cronologia da revolta, reconstruindo o evento também

por meio do fotojornalismo, para depois recuperar os principais estudos sobre a revolta até

então: o de Juracy Costa Amaral (2000), dissertação de mestrado que expõe a contradição

entre uma sociedade democrática e uma polícia arcaica, de regimento excessivamente rígido;

e as pesquisas de Juniele Rabêlo Almeida (2002, 2010), que buscam compreender as causas

da revolta, identificando o praça como um “sujeito de direito”, que rompe com a disciplina e a

hierarquia da corporação para reclamar sua condição de “cidadão”.

No terceiro capítulo, apresentamos uma discussão conceitual sobre a narrativa (REIS;

LOPES, 1987; MOTTA, 2008; SODRÉ, 2009) para, depois, colocarmos em relevo aspectos

pertinentes à narrativa jornalística e, mais especificamente, à narrativa telejornalística. Esta,

construída na articulação entre o contexto verbal e o audiovisual (sendo o áudio, aqui, nem

sempre referente aos signos verbais, evidentemente), caracteriza-se por uma noticiabilidade

por vezes ancorada na própria potência das imagens. Como assinala Carvalho (2010, p.49),

“A televisão desenvolveu uma tendência maior para o espetáculo”, em que “(...) seus

produtores buscam imagens que mostrem sensações, emoções fortes, que dramatizem e

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descrevem a ação dos conflitos”. Seguem-se, então, a descrição do corpus de análise

(formado por matérias telejornalísticas da Band Minas, da Record Minas e da Rede Globo

Minas) e a proposição das categorias metodológicas, de acordo com os movimentos indicados

por Motta (2008) para a análise pragmática da narrativa. Com base nesses movimentos –

recomposição da intriga, identificação do conflito, construção de personagens, estratégias

comunicativas, ação comunicativa e contrato cognitivo, metanarrativa – realizamos a análise,

que encerra o terceiro capítulo.

Buscamos, por meio dessa investigação, compreender como a espetacularização da

revolta na narrativa dos telejornais desestabilizou algumas formas usuais de cobertura, além

de facultar que a autocensura fosse temporariamente posta de lado, em nome da luta pelas

melhores imagens e por informações exclusivas sobre o episódio, o que não resultou,

necessariamente, em uma cobertura melhor ou mais aprofundada, em face justamente da

contingência do espetáculo, que não pode ser colocado totalmente sob controle.

Acreditamos, por fim, que, após essa reflexão, amadurecida, também, por quase vinte

anos de experiência em veículos de comunicação, principalmente em redação de emissoras de

TV, possamos ter contribuído para a discussão sobre a ação da mídia em momentos de crise,

como também sobre a necessidade de se rever alguns aspectos da cobertura telejornalística

regional e, por que não, nacional. O pensamento crítico sobre a cobertura pode colaborar para

que essa mesma imprensa não seja “surpreendida” por eventos que muitas vezes parecem

fenomenais, mas que não passam do irrompimento de uma grande crise, que, embora já

bastante sensível no cotidiano, era insistentemente condenada à invisibilidade pelo

telejornalismo.

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2 DA MEDIAÇÃO À MIDIATIZAÇÃO: A LÓGICA DO ESPETÁCUL O NO

TELEJORNALISMO

2.1 A mídia e a revolta: uma crise da modernidade

A cobertura da mídia já foi foco da análise de estudiosos, mas existem momentos em

que situações-limite nos obrigam a fazer um exame da importância que esta cobertura tem no

sentido de não apenas informar sua audiência, mas também de influir no desenrolar dos

acontecimentos. O tema já foi objeto de estudo em outros momentos de conflito, como

naquele do ano de 1979, também em Belo Horizonte, quando os peões da construção civil

foram responsáveis por uma série de passeatas pela capital. Castro (1997) percebeu, em sua

análise desse caso, que, durante os dias de greve e passeatas, a cobertura tanto da mídia

impressa como televisiva permitiu que houvesse uma ressignificação da greve, que não só

alimentava a imprensa com novas notícias como também era, pela mídia, influenciada1.

Os elementos produtores das significações sobre os fatos são tecidos na própria trama do social, que autoriza a mídia a veicular as imagens socialmente produzidas sobre os fatos ocorridos e a instituir, no seu espaço público derivado, a ressignificação do real. Este tende a se “congelar” como sentido verdadeiro e unificado, portanto, como o próprio real. Mas tal processo de natureza especular – e também espetacular – em que o discurso substitui a realidade, retorna sobre os acontecimentos e passa a fazer parte deles, participando da sua própria constituição (CASTRO, 1997, p.259).

O movimento reivindicatório dos praças da Polícia Militar de Minas Gerais, ocorrido

no final do primeiro semestre de 1997, em Belo Horizonte, caracterizou-se por ser o primeiro

em 222 anos de Polícia Militar e, também, por ter repercutido no cenário nacional, além de ter

conseguido forte coesão. Diferentemente da greve dos peões da construção civil, o

movimento reivindicatório dos policiais militares precisa ser estudado ou denominado de uma

forma mais complexa, pois, mesmo também sendo uma greve, começou dentro de quartéis de

uma instituição que tem como objetivo combater a criminalidade e manter a ordem, sendo o

1 Entre os dias 30 de julho e 03 de agosto de 1979, os operários da construção civil de Belo Horizonte cruzaram os braços reivindicando aumento salarial, entre outras propostas. No decorrer daquela semana, trabalhadores e policiais militares entraram em conflito nas ruas centrais da cidade. Em um desses conflitos, um operário foi morto ao receber um tiro dos policiais militares. As agitações deixaram a população da cidade apreensiva. No penúltimo dia da greve, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-MG) considerou legal a greve dos operários, determinando o reajuste salarial e o pagamento dos dias parados. No dia seguinte, no estádio do Atlético Mineiro, monitorados por milhares de policiais, os operários decidiram pelo fim da greve. Como grande parte dos peões não concordou, houve mais conflitos e feridos.

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braço armado do Estado democrático de direito. A mídia televisiva usou muitos termos para

nomear o que acontecia em Belo Horizonte: “greve”, “levante”, “insurreição”, “protesto”,

“movimento”, “motim” e “revolta”. Utilizamos o termo revolta, já que, segundo o Dicionário

Houaiss de Língua Portuguesa, o verbete apresentou a melhor significação: “Ato ou efeito de

revoltar (-se), grande perturbação, agitação, manifestação coletiva, organizada ou não, de

insubmissão contra qualquer autoridade.” (HOUAISS, 2000). A palavra, ainda segundo o

dicionário, é substantivo feminino de “revolto”, que por sua vez tem origem no latim

revolútus, ou aquele que voltou, repelido, rechaçado, desdobrado. Termos como insurreição

também poderiam ser utilizados, mas, segundo o mesmo dicionário, têm a conotação de crime

com o objetivo de destituir um poder constituído, o que não aconteceu no nosso objeto de

estudo. O termo greve também pode e deve ser utilizado, já que, dentro da revolta, houve

também o processo de greve, como acontece em qualquer categoria.

Convém lembrar também que o termo “revolta” foi bastante utilizado pelos

historiadores para designar pequenos movimentos reivindicatórios acontecidos no Brasil

colonial. Segundo Vainfas (2000), revolta pode ser definida como “(...) manifestação

temporária e episódica de determinados segmentos sociais em defesa de certos direitos ou

privilégios, sendo capazes de editar um programa de ‘restauração’ de prerrogativas aviltadas

pelas autoridades” (VAINFAS, 2000, p.509). Ainda segundo o historiador, as revoltas no

Brasil foram, em sua maioria, fiscais; também fortemente marcadas pelas miudezas

cotidianas, pela indignação contra problemas de abastecimentos de gêneros ou contra

aumento no rigor de cobrança de impostos por parte da Coroa.

Durante toda a revolta dos militares em Minas, que durou cerca de três semanas, a

mídia esteve presente. As reuniões, assembléias, passeatas, encontros das lideranças com

representantes do governo, todos foram alvo dos repórteres e editores dos principais veículos

de comunicação, cobertura que, como observa Motta (2008), não é uma prática comum na

imprensa, que, “como se sabe, tende a favorecer os pontos de vista das grandes empresas e

das burocracias do Estado” (MOTTA, 2008, p.340), não se interessando, portanto, por lutas

sindicais que representem determinada categoria. Para Wolf (2008), a necessidade de

audiência faz com que a imprensa tenha esse tipo de postura, que despreza movimentos de

reivindicação, quando esses não são dados a espetáculos. Isso porque, caso o receptor não se

interesse pelo assunto, o processo comunicacional acaba prejudicado, independentemente da

relevância ou não do acontecimento.

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Para informar um público, é necessário ter chamado sua atenção, e não há muita utilidade em desenvolver um tipo de jornalismo aprofundado e cuidadoso se a audiência manifesta o próprio aborrecimento mudando de canal. Desse modo, a capacidade de entreter encontra-se em posição elevada na lista dos valores/notícia, seja como fim a si mesma, seja como instrumento para realizar outros ideais jornalísticos (GOLKING-ELLIOTT apud WOLF, 2008, p.214).

Logo, o interesse da mídia pelo episódio dos praças pode ser explicado, se lançarmos

mão de Debord (2007), pela transformação, efetuada pelos veículos de comunicação, da

revolta em um espetáculo, que cresce em meio ao caos.

O espetáculo, como a sociedade moderna, está ao mesmo tempo unido e dividido. Como a sociedade, ele constrói sua unidade sobre o esfacelamento. Mas a contradição, quando emerge no espetáculo, é, por sua vez, desmentida por uma inversão de seu sentido; de modo que a divisão é mostrada unitária, ao passo que a unidade é mostrada dividida (DEBORD, 2007, p.37).

A mídia televisiva que, até então, não teria se preocupado com as queixas dos

policiais militares, tanto em relação aos baixos soldos como às condições de trabalho, naquele

momento, atenta à potência espetacular da revolta, passou a acompanhar, passo por passo, o

desenrolar dos acontecimentos. A luta pelo “furo” fez com que as redações se mobilizassem

para ter sempre uma notícia diferente e, se possível, exclusiva, sobre a revolta. Contrera

(2008) observa que essa luta da mídia pelo exclusivo é uma forma de escapar da mesmice que

acabam se tornando as coberturas do dia a dia.

A permanente luta dos mídias pelo suposto privilégio de ser o primeiro a apresentar uma informação (a ideia mesmo do furo jornalístico) faz ainda parecer que o único contraponto procurado à mesmice da saturação é a informação inédita, considerada capaz de quebrar a redundância reinante; o novo produto capaz de reacender o desejo de consumo no espírito do espectador (CONTRERA, 2008, p.76).

E esses mesmos veículos, que passaram do desinteresse pelos problemas dos militares

para a luta pela atenção dos telespectadores, apresentam-se para a opinião pública como

possuidores de, como afirmou Contrera (2008), “(...) um enorme poder simbólico, que se

instituem de fato como portadores simbólicos legítimos da comunicação social”, ou seja, são

esses veículos que podem, a partir do momento que “elegem” a revolta como algo importante,

de interesse dos telespectadores, dar visibilidade e notoriedade ao processo, alimentando-o.

Como assinala Champagne (1996):

Quanto mais a imprensa “falar do assunto” e produzir um trabalho de mobilização em favor do movimento, tanto mais este tenderá a aumentar suas exigências e pretenderá negociar sobre tudo na medida que se sentirá dotado, diante do poder

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público, de uma força inesperada que, talvez, não venha a encontrar tão cedo; quanto mais o movimento se endurecer e der lugar a incidentes, tanto mais a imprensa falará a respeito (CHAMPAGNE, 1996, p.220).

Se a forma como a mídia cobriu todo o evento, registrando-o e, ao mesmo tempo,

modulando-o, não foi algo inovador, a revolta de 1997 deve ser apreendida, com certa

particularidade, em contexto do conflito dos paradigmas da modernidade. Ou seja, uma

instituição moderna, como a Polícia Militar, responsável justamente pela segurança da

sociedade – um dos valores essenciais da modernidade (BAUMAN, 1998) – entra em crise e

apresenta traços de insubordinação, desestabilizando a ordem vigente.

Para Berman (1984), o conceito de modernidade pode ser utilizado para designar três

momentos da história. A primeira fase vai do início do século XVI até o fim do século XVIII,

quando o mundo está apenas começando a experimentar a vida moderna. As pessoas mal têm

essa percepção, mas já notam as transformações que deixam, longe, a Idade Média. A grande

onda revolucionária de 1790 dá início à segunda fase. A revolução francesa e suas

reverbações dão ao público a sensação de viver em uma época revolucionária, com explosivas

convulsões em todos os níveis da vida pessoal, social e política. Porém, no século XIX, o

público, ainda segundo Berman, não sabe o que é viver em um mundo moderno por inteiro.

Na terceira fase, já no século XX, o processo de modernização se expande abarcando todo o

mundo. Como nos diz Bauman (1998), o projeto moderno caracteriza-se, aí, pela disciplina e

pela ordem, com sua consequente vontade de limpeza:

“Ordem” significa um meio regular e estável para os nossos atos, um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia restrita – de modo que certos acontecimentos sejam altamente prováveis, outros menos prováveis, alguns virtualmente impossíveis. Só um meio como esse nós realmente entendemos (BAUMAN, 1998, p.15).

Porém, esse processo se fragmenta na contemporaneidade, dando origem a vários

grupos que falam linguagens incomensuravelmente confidenciais, diferentes. A modernidade

perde aí a condição de organizar e dar sentido à vida das pessoas. É nesse contexto de falta de

“um norte” ou de enfraquecimento das instituições disciplinares e organizadoras que podemos

analisar a revolta dos praças da Polícia Militar de Minas Gerais, em 1997.

Esse sentimento de possibilidade de questionamento de uma ordem influenciou,

possivelmente, também os policiais militares, que resolveram se revoltar contra a burocracia e

a disciplina. Na sua dissertação sobre a revolta dos militares, Amaral (2000) analisa a polícia

militar como uma instituição altamente burocratizada:

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A função ou atividade que cada policial exerce está em conformidade com a estrutura burocrática da organização militar, com hierarquia e disciplina rígidas, centralização de poder e trabalho exaustivo. (...) A hierarquia militar privilegia a ordem e a subordinação dos diversos postos e graduações como princípios indispensáveis à carreira militar. O paradigma da organização do tipo militar tornou-se o principal argumento daqueles que a entendem como instituição que funciona perfeitamente, sem atritos, sincronizada e imparcial, apesar de constituída de indivíduos e relações sociais (AMARAL, 2000, p.41).

Segundo Weber (1982), existem três princípios de legitimação de algum tipo de

dominação: o racional-legal, tradicional ou carismático. O primeiro se baseia na crença na

legalidade de regras sancionadas e no direito, que garantem aos colocados em cargos que

esses possam emitir ordens e exercer essa dominação legal sobre os outros, apesar de todos

estarem sob a égide das mesmas leis. Já a dominação tradicional é baseada na crença

estabelecida na santidade das tradições imemoriais e na legitimidade dos que exercem a

dominação sob tais tradições.

O princípio carismático é a devoção afetiva a alguma santidade, heroísmo ou pessoa

que se apresente como líder. Porém, o modelo que nos interessa, dentro dos princípios

apresentados por Weber (2004), é o da dominação racional-legal, já que esta se manifesta,

como vamos mostrar, na organização burocrática. Foi primeiramente na sociedade industrial

que o pensador percebeu a presença da burocracia como dominação. A legitimação se

apresenta por meio das regras de conduta e normas procedimentais ditas “objetivas”, e

praticamente nunca em pessoas ou regras baseadas na tradição, no passado. Ou seja, há uma

definição de regras e obrigações que permitem a um “superior” exercer o poder sobre os

subordinados. Pela posição hierárquica, ele emite ordens e espera, sempre, a obediência. “As

ordens são emitidas em nome de uma norma impessoal e não de uma autoridade pessoal; e

inclusive o fato de dar uma ordem constitui-se uma obediência com relação à norma, não um

ato arbitrário de autonomia, favor ou privilégio” (WEBER, 2004, p.229).

As burocracias se caracterizam por organizar o trabalho de forma sistemática com

regras e regulamentos gerais. De um modo geral, o trabalho é realizado em escritórios, em

tempo integral, e os funcionários têm um salário regular, além da possibilidade de ascensão na

carreira. Usam as regras e a análise de casos anteriores para tomar decisões que, na maioria

das vezes, são ponderadas e previsíveis. Ou seja, as decisões são pouco ambíguas. As

jurisdições, especializações de funções, competências e as responsabilidades são definidas por

regulamentos administrativos e treinamento técnico. Kalberg (2010) fez uma análise sobre o

que faz esse comando mais eficiente:

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Esse treinamento pode ser usado com mais eficiência quando as esferas de competência são bem-determinadas e quando existe uma cadeia incontestada de comando em que cada posto inferior é subordinado e controlado por um posto superior. A dominação, inclusive a possibilidade de o superior usar meios coercitivos, é distribuída de maneira estável e articulada por regulamentos (KALBERG, 2010, p.71).

Kalberg (2010) observa ainda que o modelo weberiano dá ênfase à presença da

racionalidade formal dentro das burocracias. A orientação é sempre para decisões racionais,

baseadas em regras abstratas e determinadas por procedimentos escritos e aplicados de forma

universal. Esse “mecanismo” permite pouco espaço para decisões que fujam ao padrão

estabelecido, dificultando as surpresas que podem ocorrer em outros modelos de dominação,

como o carismático. Isso porque, como afirmou Weber (2010), o modelo de dominação

burocrático é altamente impessoal: “A natureza específica da burocracia se desenvolve mais

perfeitamente quando mais é desumanizada, quando mais completamente consegue eliminar

das relações oficiais o amor, o ódio e todo elemento puramente pessoal, irracional e

emocional que escapam ao cálculo” (WEBER, 2004, p.213).

Voltando à dissertação de Amaral (2000), que aplica o pensamento de Weber (2004) à

Polícia Militar de Minas Gerais, o estudo observa que uma pesquisa realizada na instituição

concluiu que as relações entre os policiais militares variam entre ótimas e boas, sendo

regulares apenas entre uma pequena percentagem dos oficiais, demonstrando como é o

imaginário dos militares, dentro de uma instituição burocrática, “ (...) que tem a produção de

um sentimento de destino comum, de uma ideologia que os tornam cúmplices dos mesmos

valores, dos mesmos objetivos e interesses” (AMARAL, 2000, p.92). Isso porque a

formalidade burocrática, como já foi colocado, garante a ascensão na carreira

independentemente dos esforços pessoais; as regras instituídas impedem ou pelo menos

minimizam a competitividade, tornando o sistema coeso. Nasce, aí, também, um espírito de

grupo, desenvolvendo o corporativismo e o individualismo grupal, isto é, grosso modo, um

sentimento, no indivíduo que percebe que aquele grupo de que ele e os outros participam

forma uma estrutura única, que deve estar sempre unida e se autoproteger contra possíveis

ameaças externas. Por outro lado, quando essa estrutura burocrática “produz” pessoas

conformadas consigo mesmas, adaptadas às regras que configuram seu convívio, acaba

separando essas pessoas, já que estabelece limites para o exercício da atividade de cada um.

Para desenvolver o trabalho, esses indivíduos sabem que dependem daqueles que detêm o

monopólio do controle dos instrumentos necessários. E as regras advindas dessa estrutura

fazem com as pessoas tenham uma percepção das regras sem qualquer discussão sobre a

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necessidade que as fez serem implantadas. Muitas dessas regras acabam se tornando um fim

em si mesmas, sem que sejam realmente úteis e necessárias no dia a dia.

A consequência das diversas pressões que a estrutura burocrática exerce sobre os

indivíduos é torná-los metódicos, prudentes e disciplinados. Porém, como “resíduo” dessa

formatação, surge o conformismo. No caso dos praças, essa burocracia é ainda mais rigorosa e

alienante. Barros (2000) lembra que, para se evitar que influências externas (bastante

aumentadas na sociedade midiatizada) produzissem mudanças no comportamento desses

praças, novos cargos e regras foram criadas para garantir esse controle. Analisando o

Regimento Disciplinar da Polícia Militar (RDPM), o autor observa que:

(...) o praça, diferente de outros trabalhadores, não deixa de ser policial quando retira sua farda. E mais, mesmo à paisana está subordinado às regras e as normas da corporação. Não lhe sobra liberdade. A instituição invade o seu espaço privado ao ponto de, mesmo em uma situação extremamente pessoal, como o casamento, ser de obrigação do praça avisar ao seu superior (BARROS, 2000, p.1).

Com o surgimento, em 1997, de grupos que questionaram essa estrutura burocrática,

provocaram-se tensões na estrutura de poder na qual se fundava, há mais de duzentos anos, a

Polícia Militar de Minas Gerais. Quebra que também pode ser creditada à “infiltração” de

pensamentos ligados aos conflitos acirrados na modernidade tardia – que cobra do indivíduo

um constante processo de inovação, de novidade – abalando a visão de mundo implementada

pela burocracia.

Porém, quando da eclosão da revolta, o questionamento que a mídia televisiva fez, de

forma direta e sem análises profundas, como vai ser demonstrado nos capítulos seguintes, foi

de que o motivo da revolta era, principalmente, a questão salarial. Outros questionamentos

comuns a outras profissões, como, por exemplo, condições de trabalho, também foram

apontados, mas sem grande destaque. Na cobertura dos impressos não foi diferente, pois a

questão disciplinar, que tanto afligia a tropa, não foi abordada com ênfase e, muitas vezes,

apresentada apenas como “adendo”, como mais um detalhe nas negociações, o que pode ser

observado neste excerto do jornal Estado de Minas, em que a questão salarial é claramente

privilegiada e mostrada como a mais delicada, tratada com mais cuidado para não criar algum

tipo de “excitação” nos militares:

Em sua fala na assembléia, cabo Júlio César começou lembrando aos praças as conquistas do movimento, tais como a revisão do Regime Disciplinar da Polícia Militar (RDPM) e a promoção por tempo de serviço. Só depois, com muito cuidado, passou a falar do aumento. “Conseguimos piso de R$ 517,00 com etapa de

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alimentação incorporada. Não é o ideal, mas não podemos perder o rumo do movimento”, disse cabo Júlio César (LÍDERES..., 1997).

A cobertura da mídia, com pouca ou quase nenhuma análise mais aprofundada, não

foi uma novidade da revolta dos policiais em 1997. Castro (1997), investigando a greve dos

peões em 1979, já percebia a falta, na imprensa, da produção de textos analíticos que

relacionassem e interpretassem os elementos envolvidos no evento, proporcionando uma

visão mais completa da circunstância. Para ela, os cenários referentes ao dia a dia da greve

eram “(...) apresentados de forma pontual, com pouca ou nenhuma articulação entre as

matérias específicas, tratando isoladamente os fatos ocorridos em cada um deles” (CASTRO,

1997, p.238).

Mas, no caso da revolta dos militares, o único ou principal motivo seriam os baixos

soldos, como foi informado a princípio pela mídia? No caso da mídia televisiva, a revolta,

embora com marcas visíveis de eclosão, foi apresentada, inicialmente, como improvável,

justamente pelo caráter sólido da instituição militar, que coíbe e pune qualquer tipo de revolta.

Mas, logo iniciado, o processo midiatizou-se, passando do impensado ao espetáculo,

culminando na morte do cabo Valério dos Santos Oliveira, baleado durante a tentativa de

invasão do prédio do Comando Geral da Polícia Militar, na Praça da Liberdade, no dia 24 de

junho de 1997. E de que modo essa mídia pode ter atuado como ambiente de potência para a

ascensão da revolta?

2.2 Da mídia como lógica

A cobertura televisiva, inicialmente, como elemento construtor de uma realidade

reduzida e simplificada2, parece ter ainda mais importância e ressonância em uma sociedade

em vias de midiatização, como é o caso, em 1997, na época da revolta, em que a internet e as

redes sociais eram ainda incipientes ou mesmo inexistentes para grande parte da população

2 Ver a esse respeito Eco (1984) e Bourdieu (1997). Em Bourdieu, o jornalista é apresentado como o profissional com a competência para fazer a triagem do que é e do que não é notícia, entre o que é e o que não é relevante para o seu público. E ele muitas vezes “seleciona” e transforma o que deveria ser apenas seu interesse particular, em coletivo, em informação que serve como “bem comum”. Como “porteiro”, permite que essa informação “entre” para a mídia, seja massificada. A questão é que esse jornalista não é, de forma alguma, o “dono da verdade” – nem da verdade filosófica e nem da verdade factual. Bourdieu (1997) criou o conceito de “circulação circular”, no qual os jornalistas seriam responsáveis por se copiarem nos assuntos, estilos, e conteúdos: essa cópia, que nunca termina, produz um jornalismo repetitivo, pouco criativo, que apresenta manchetes parecidas em jornais diferentes, e que sempre parecem iguais, mesmo quando tentam ser diferentes: “Nos jornais televisivos ou radiofônicos das emissoras de grande difusão, no melhor dos casos, ou no pior, só a ordem das informações muda” (BOURDIEU, 1997, p.31).

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brasileira. Fausto Neto (2008) observa essa transformação de uma sociedade que antes apenas

era bombardeada pela mídia – esta, responsável por produzir uma “cultura massiva”,

transmissiva, no paradigma um-todos, igualando cidadãos e conformando padrões de

comportamento, emitindo formas uniformizadas de entender o mundo e a existência –, para

uma “cultura mídiática”.

Ao se converter em uma espécie de sujeito dos processos e das dinâmicas de interação social, a cultura midiática torna-se um complexo dispositivo em cujo âmbito se organiza um tipo de atividade analítica, cujas gramáticas, regras e estratégicas geram, ainda, por operações auto-referenciais engendradas no dispositivo, as inteligibilidades sobre as quais a sociedade estruturaria suas novas possibilidades de interpretação (FAUSTO NETO, 2008, p.94).

Ou seja, agora a mídia, muitas vezes, passa a atuar como lógica das relações sociais,

deixando, assim, o local que ocupava, de apenas “homogeneizar” as informações.

As mídias deixaram de ser apenas instrumentos a serviço da organização do processo de interação dos demais campos, e se constituíram uma nova ambiência, novas formas de vida, e interações sociais atravessadas por novas modalidades do “trabalho de sentido”. Nesse contexto, as mídias não só se afetam entre si, se inter-determinando, pelas manifestações de suas operações, mas também outras práticas sociais, no âmago do seu próprio funcionamento (FAUSTO NETO, 2008, p.92).

Para Fausto Neto (2008), a mídia deixa de ser, na sociedade em vias de midiatização,

um auxiliar na organização dessa sociedade para se tornar parte integrante do seu

funcionamento. “Sua existência não se constitui fenômeno auxiliar, na medida em que as

práticas sociais, os processos interacionais e a própria organização social, se fazem tomando

como referência o modo de existência dessa cultura” (FAUSTO NETO, 2008, p.96). É criado

então um novo “feixe de relações”, sobre as quais são executadas as operações que fazem as

interações entre os atores sociais e a instituições. É, portanto, uma nova forma da sociedade se

interagir, que teria surgido nos últimos trinta anos.

É importante, assim, retomar, no âmbito dos estudos da TV, Umberto Eco (1984) e o

conceito criado por ele: “a neotv”. Anteriormente, nas décadas de 1950 e 1960, a

“paleotelevisão” era única e bastante oficial. Falava, por exemplo, de inaugurações de

ministros e se preocupava que o público aprendesse apenas coisas ingênuas, mesmo que, para

isso, contasse mentiras. Isso porque essa TV única, como o nome diz, não tinha concorrência.

Com a multiplicação e a privatização dos canais, além do desenvolvimento tecnológico, a

“paleotelevisão” deu lugar à neotv. E a característica da neotv é que ela fala sempre menos do

mundo exterior, e se volta para si mesma e para o contato com o próprio público. Ela tem sua

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existência baseada no interesse desse público. Portanto, trabalha para e em função dessa

audiência.

Na neotv, os programas se dividem basicamente em dois tipos: os programas de

informação, onde a TV mostra eventos que acontecem aparentemente independentemente

dela, e os de fantasia. No caso dos primeiros, esses eventos jornalísticos podem ser, por

exemplo, políticos, do cotidiano, esportivos ou culturais. O público espera aí que a TV

cumpra a sua obrigação de dizer a verdade – sem discutir, ainda segundo Eco (1984), a

questão filosófica do termo. A verdade aqui seria a verdade factual como, por exemplo,

informar que nevou em Turim e conformar a informação com um boletim meteorológico –,

dizendo-a segundo critérios de relevância e proporção, e, claro, separando informação e

comentário. Já a relevância é um critério mais vago do que a verdade, porém, pode-se acusar

a TV de ter privilegiado um evento em função de outro, fato muito comum durante

campanhas eleitorais. A diferenciação entre comentários e notícias, embora, em um primeiro

momento, possa parecer clara, acaba sendo vaga, já que a forma como se conduz uma

reportagem, por exemplo, pode acabar transformando-a em um comentário disfarçado.

Nos programas de fantasia, o “contrato de leitura” é outro. Nesse caso, o telespectador

aceita que exista uma dramatização dos acontecimentos, e aceita tomar como verdadeiro

aquilo que todos sabem não passar de uma construção fictícia.

Porém, Eco (1984) lembra que, junto com o surgimento da TV, essa dicotomia foi

ficando, muitas vezes, enfraquecida, pois ela “(...) foi sendo neutralizada por um fenômeno

que poderia verificar-se tanto em programas de informação como em programas de ficção”

(ECO,1984,p.192). O fenômeno é facilmente percebível se entendermos quem fala olhando

para a câmera e quem fala sem olhar para a câmera. Normalmente quem fala olhando para a

câmera (locutores, o cômico, o apresentador de um programa de variedades etc.) representa a

si próprio. Quem fala sem olhar para a câmera representa um outro (o ator que representa uma

personagem fictícia). A divisão pode ser simplista, já que um ator pode se passar, por

exemplo, por um apresentador, porém, o conceito é fundamental para perceber que a presença

da televisão não é invisível aos acontecimentos.

Os que não olham para a telecâmera estão fazendo algo que se considera (ou se finge considerar) que aconteceria mesmo que a televisão não existisse, enquanto, no caso contrário, quem olha para a telecâmera estaria sublinhando o fato de que a tevê existe e que seu discurso “acontece” justamente porque a televisão existe (ECO, 1984, p.187).

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Nesses casos, protagonistas reais de um acontecimento filmado pelas câmeras podem

não olhar para elas, uma vez que o fato acontece por conta própria, mas sabem que a câmera

está por lá. Nesse sentido, as diferenças entre a informação e o espetáculo novamente se

atenuam, já que a televisão, muitas vezes, quer “desaparecer” do fato, não ser o sujeito do

acontecimento, tentando fazer-se transparente ao próprio público, que, no entanto, sabe que

ela esteve lá, e por isso é possível assistir a algo que aconteceu tão distante. Eco (1984)

aponta, então, uma virada para a opacidade, que caracteriza a neotv. “A telecâmara também

não devia ser vista. Hoje, ao contrário, vê-se. Ao mostrá-la, a televisão diz: “Eu estou aqui e,

se estou aqui, isso significa que à sua frente está a realidade, isto é, a tevê transmitindo”

(ECO, 1984, p. 193). No entanto, essa realidade transmitida traz em si a expectativa de ser

televisionada, o que condiciona as atitudes dos sujeitos, que também podem ser vistas como

encenações – no sentido de se colocar em cena –, estando esses indivíduos olhando ou não

para a câmera. Logo, conclui que “(...) toda vez que a telecâmara aparece, ela está mentindo”

(ECO, 1984, p.193).

Isso significa que a TV mostra cada vez menos eventos que aconteceriam da mesma

forma mesmo se ela não estivesse presente. Os fatos, muitas vezes, acabam se transformando

em encenações para a própria TV. Isso porque só o fato de se saber que o acontecimento será

filmado influi sobre a sua preparação. Champagne (1996) vai além e observa que muitas das

manifestações que são apresentadas como algo espontâneo são “fabricadas” para a imprensa.

“É grande a tentação, por parte dos organizadores, em fabricarem manifestações para

jornalistas e elaborarem encenações específicas a fim de comover ou divertir os que as

observam antes de mostrá-las a seus leitores e telespectadores” (CHAMPAGNE, 1996,

p.220). E quando criam algum tipo de protesto, os organizadores sabem que só terão êxito se

mobilizarem a imprensa a seu favor.

Em sua forma atual, a manifestação constitui uma ação que só produzirá os efeitos para os quais foi organizada se vier a suscitar ampla cobertura da imprensa escrita, falada e televisada que, nos nossos dias, se tornou a caixa de ressonância obrigatória para que um fato possa ser percebido e tenha existência como problema político (CHAMPAGNE, 1996, p.218).

Nessas situações, o jornalista então apresenta para o público um fato como algo

inédito e inesperado, mas que na verdade foi preparado e seria bastante previsível.

Mas voltando a Eco (1984) e ao desenrolar dos acontecimentos, é possível perceber

que a presença da câmera influi também no andamento do evento. Por exemplo, em um

acidente, a presença da imprensa noticiando, ao vivo, o socorro das vítimas, transformaria o

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trabalho dos socorristas em um espetáculo, mudando até mesmo a estratégia usada para ajudar

os feridos. Um exemplo emblemático dado por Eco (1984) foi o casamento da princesa Diana,

no qual o vestido, que tinha uma enorme cauda, foi feito para ser visto de cima, pelas câmeras

de TV colocadas em aeronaves, e não pelas pessoas que estavam presentes no evento. A

cidade de Londres foi transformada em um grande estúdio.

A teoria da neotv e o modo como a TV deixa de ser apenas um meio para ser uma

lógica que conforma espetáculos é um indício daquilo que Braga (2006) apontou como a

midiatização da sociedade, em que a realidade passa a ser construída a partir do que ele

chamou de um outro “processo interacional de referência”.

A sociedade constrói a realidade social através de processos interacionais pelos quais os indivíduos e grupos e setores da sociedade se relacionam. (...) Construímos socialmente a realidade social exatamente na medida em que, tentativamente, vamos organizando possibilidades de interação (BRAGA, 2006, p.3).

Explicando melhor, anteriormente, segundo o autor, o processo de referência para a

interação entre a sociedade era a escrita. Braga (2006) lembra que o ingresso de um indivíduo

em uma sociedade é sinônimo de sua socialização. E essa socialização é realizada de forma

primária pela oralidade, que acontece no seio da família e com bastante afetividade. Porém,

era na escola, no ambiente da cultura escrita, que essa socialização acontecia de fato com o

restante do conjunto social. Era na escrita que o indivíduo se entendia como parte de toda uma

sociedade, pois através dela criava-se a realidade social tal qual a conhecemos. É importante

destacar que o que consideramos como uma cultura escrita tem sua base na Europa do

surgimento e crescimento da burguesia, na qual determinados padrões políticos, sociais e

culturais desta escrita foram sendo utilizados e se tornaram um processo interacional de

referência. Nesse momento histórico, a escrita ascendeu a essa condição, sem, contudo,

destituir a importância da oralidade, que “(...) passa a ser elemento complementar ‘a serviço’

dos processos e lógicas da escrita – particularmente na socialização secundária” (BRAGA,

2006, p.2).

A escrita, é claro, apresenta-se como base dessa socialização, mas não pode ser

entendida como sua única forma. Braga (2006) considera, como já foi dito, que esses

“processos de referência” acabam por incorporar outros processos de formação da sociedade.

Seria um processo que “dá o tom” aos processos submissos, que não desaparecem, mas se

ajustam. Existem outras relações que, entretanto, estão diretamente ligadas à escrita, que

sempre se apresentam como dando sustentação, como base dessa interação; bons exemplos

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são a lógica, a informação jurídica, os escritos sobre a moral, a psicologia, a cultura e tantos

outros. Podemos concluir, então, que boa parte da oralidade da nossa sociedade está baseada

na escrita.

Hoje nos encontramos, levando em consideração os eventos do século XX, em um

processo de transferência da escrita, como processo interacional de referência, para a

mediação de base tecnológica. É bom lembrar que esse processo é apresentado pelo autor

como algo incompleto e sujeito às lógicas de transição, e que apresenta, assim, características

básicas dos dois momentos, tanto o da escrita como o tecnológico. É o caso de apresentar a

mídia como o processo de referência na construção da sociedade contemporânea. Isso não

significa que a mídia domine o processo de interação entre os indivíduos, mas, com certeza, é

o principal fator dessa socialização.

O primeiro passo para essa mudança foi a criação de tecnologias que permitissem

maior interação do mundo. Essa sociedade pré-midiática obteve, entre outros incentivos, uma

maior rapidez nas comunicações, mais opções de captura dessas mensagens, uma maior

possibilidade de circulação de tipos de informações e comportamento, entre outras mudanças,

que permitiram que as interações se tornassem mais difusas.

É interessante perceber também que, com o desenvolvimento das tecnologias, os

próprios setores sociais se encubem de desenvolvê-las ainda mais. “Os setores sociais

interessados agem no sentido de ampliá-las, aperfeiçoá-las, completar sentidos, suprindo

lacunas. Não desconhecemos que, hoje, uma parte da invenção se alimenta a si mesma – antes

de necessidades sociais serem claramente percebidas” (BRAGA, 2006, p.6).

Existem, então, três momentos desse processo técnico-midiático: o primeiro, a

invenção, fruto da necessidade de resolver um problema apresentado; já o segundo surge

quando, com essa invenção, passa a ocorrer um transbordamento para outras situações,

condição decorrente dessa nova tecnologia; e, finalmente, o terceiro momento, em que o

sistema se torna autopoiético, deixando, assim, de ser dependente de dinâmicas anteriores.

“Esse processo acaba abrindo possibilidades sociais, que escolhem e direcionam a circulação

da comunicação. Logo, a construção de vínculos, de modos de ser, do perfil social a que

chamamos de realidade” (BRAGA, 2006, p.7). O autor lembra também que é importante não

esquecer que esse processo varia de país para país, de sociedade para sociedade, e sofre, é

claro, uma grande influência do modo de produção capitalista.

Com o desenvolvimento da mídia moderna, a circulação das informações ultrapassou,

em muito, os chamados sub-universos especializados. Agora existiria, por essa mesma razão,

uma forte abrangência no pólo receptor, que não é mais uniforme, e é necessário que essa

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mensagem seja absorvida e entendida por esse pólo. Com isso, acontecem mudanças bastante

importantes na construção dessa realidade. “(...) a mediatização tende a ‘deslegitimar’ campos

específicos, ao expor os diferentes ‘sub-universos’ uns dos outros – já que um dos modos de

manutenção de um campo social é justamente a construção de relações esotéricas com a

sociedade (BRAGA, 2006, p.9). Ou seja, assuntos que antes eram privilégio dos chamados

especialistas, aos poucos, vão caindo, através das tecnologias - como a internet, por exemplo

-, no domínio de um público comum, que seria esse pólo receptor. A construção dessa

realidade então passa a ser feita com uma linguagem mais simplificada, mais acessível a

todos, que agora podem ter uma visão e uma percepção diferente do mundo, antes hermético.

Com o avanço da tecnologia e a maior transmissão da imagem e do som, criam-se situações

que estimulam as experiências midiatizadas, com “processos diferidos e difusos” que “(...)

passam a permear diversas interações antes próximas da escolha individual e de pequeno

grupo, agora de modo transversal à sociedade” (BRAGA, 2006, p.8).

Estamos ainda nos primeiros passos de uma interação tecnológica complexa e

mutável, e o tempo de sedimentação social desse processo é lento. Para que a midiatização

atinja, como aconteceu com a escrita, processos interacionais de referência humana e social –

que se tornam, no final, a nossa realidade – é preciso, porém, que essa incompletude seja

transformada em uma resposta social eficiente, muito maior que uma interatividade que

conhecemos hoje. Braga observou que “(...) a cultura escrita distribui papéis sociais segundo

os quais as interações podem ser reconhecidas. Na mediatização, o processo experimental

ainda não gerou estabilidade suficiente de papéis para que a sociedade possa situá-los com

clareza” (BRAGA, 2006, p.11). E se esse processo ainda é incipiente, era ainda mais em

1997, época da revolta dos praças da Polícia Militar, quando, como dissemos, a internet era

ainda muito restrita e a televisão era o principal veículos da transmissão de imagens. Porém,

como vai ser analisado nos próximos capítulos, a midiatização da revolta já era uma realidade,

com grande centralidade na televisão, no sentido de que, como disse Eco (1984), os

acontecimentos já trazem em si uma lógica, um devir midiático, um desejo de televisibilidade.

2.3 O Espetáculo e o caos da informação

Mesmo incompletos e “em evolução”, os conceitos de midiatização como processo de

referência nos ajudam a compreender melhor a cobertura da mídia sobre a revolta dos praças

da Polícia Militar de 1997, em Belo Horizonte. Acreditamos que é dentro dessa teorização

que devemos analisar o espetáculo que se criou e se auto-alimentou. Outros exemplos de

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espetacularização da notícia, dentro da lógica midiática, também podem ser estudados sob

essa teoria, como um suposto “toque de recolher”, implantado em São Paulo em 2006.

Em São Paulo, capital, no dia 15 de maio de 2006, uma segunda-feira, os moradores

retornaram do trabalho para suas casas mais cedo. Por volta do meio-dia, trabalhadores

deixaram as empresas e foram se refugiar em seus lares. A informação sobre o toque de

recolher teria sido passada por celulares e pela internet. Mas tudo teria começado pela TV,

através de um repórter da Rede Record, que havia divulgado um possível toque de recolher na

cidade. A notícia era consequência de ações do PCC, um grupo criminoso, que se formou

dentro dos presídios de São Paulo, e que atacou vários alvos, desde a sexta-feira anterior. Os

ataques foram uma forma de retaliação contra a transferência dos líderes para presídios de

segurança máxima.

Mais uma vez, a televisão mostrou os fatos, que culminaram com 154 pessoas mortas,

como algo espetacular e inesperado, que teria começado de uma semana para outra.

Entretanto, o PCC vinha se organizando há meses, ou anos, nos presídios. Só quando o caos

já estava nas ruas é que a TV passou a mostrar, de forma espetacular, que havia algo de muito

errado na segurança pública paulista. Caio Túlio Costa (2009) analisou da seguinte forma os

acontecimentos:

O 15 de maio paulistano firma não apenas uma nova tática urbana de guerrilha, mas uma tática que tem como cúmplice inconsciente uma sociedade viciada em espetáculo, fruto de uma indústria da cultura que se sofistica cada vez mais na banalidade com a competente ajuda do aparelho tecnológico (COSTA, 2009, p.194).

É exatamente esse momento em que a mídia deixa de ser apenas um discurso, seja dos

excluídos ou dos dominadores, para influir de forma direta na realidade das sociedades, no

corpo social. Vamos analisar a greve dos policiais militares de Minas Gerais, em 1997, mas,

antes, faz-se mister, para entender melhor o funcionamento do espetáculo, analisar outros

exemplos, como esses conflitos que aconteceram em São Paulo em 2006.

Uma série de atentados contra autoridades, entre elas policiais, além de bombeiros e

até civis, levou o caos à maior cidade do país, em maio daquele ano, que culminou com o

suposto “toque de recolher”, no dia 15 daquele mês. A expressão “toque de recolher” –

curfew, em inglês; couvre feu, em francês – é de origem anglo-normanda, e vem do toque

dado por um sino para apagar o fogo nas lareiras e chamar a todos para dormir. Já para os

militares, é o toque da corneta que informa aos soldados que eles devem voltar aos quartéis.

Em casos de estado de sítio, é a proibição do livre trânsito de civis em uma determinada hora.

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Ou seja, não existe, na Constituição Brasileira, nenhum texto sobre toque de recolher. Caso

tenha havido um toque de recolher em São Paulo, ele não foi nem legal, nem sua ordem partiu

de autoridades. Costa (2009) lembra, ainda, uma série de análises de tópicos da nossa

Constituição que foram desrespeitados naquele dia.

Ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei. Todos têm direito de receber, dos órgãos públicos, informações de interesse particular, ou de interesse coletivo geral, que serão prestadas na lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas em que o sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (COSTA, 2009, p. 174).

Como já citado, o toque de recolher teria sido divulgado na grande mídia por um

repórter da TV Record, que noticiou o fato, ao perceber que pessoas saíam de seu trabalho e

seguiam para casa, no meio do dia. Isso acontecia porque, antes, uma série de boatos já tinha

sido espalhada pela internet e por mensagens de celulares. A televisão, nesse caso – e

diferentemente da revolta dos praças, em Belo Horizonte, em 1997, época em que o uso da

internet e dos aparelhos celulares não era tão comum, fazendo da TV o principal veículo na

transmissão de imagens da revolta – foi mais uma mídia a disseminar o tal “toque de

recolher”. Costa (2009) observa que a TV Record transmitia, desde o começo da manhã,

flashes na programação sobre os ataques, sendo que usava imagens gravadas na semana

anterior em que ônibus eram queimados, para “cobrir” 3 as falas dos repórteres, como se tudo

estivesse acontecendo naquele momento. Essa sensação passada ao telespectador seria falsa

porque, naquela segunda-feira, os ataques, como as autoridades confirmaram depois, haviam

sido bem menos violentos que os anteriores, que tinham acontecido com mais intensidade na

última sexta-feira.

Tanto pânico, disseram as autoridades, foi injustificado. O clima de terror, segundo a polícia, foi criado não apenas pelas ações do PCC, mas por uma onda de e-mails falsos, trotes e (...) pelo noticiário. A culpa, enfim, segundo esse discurso, foi também da mídia, tantas vezes acusada de irresponsável (COSTA, 2009, p.179).

Costa (2009) questiona aí qual é o “modus operandi” dos meios de comunicação em

situação de risco. O resultado, como já foi descrito, foram 154 mortes, em 373 ataques. Os

números, por eles mesmos, já são suficientes para se perceber que não foram fatos comuns,

mas os críticos da imprensa, como a jornalista Jane Cristaldo apud Costa (2009), alegam que

3 Cobrir, no jargão jornalístico das emissoras de TV, significa usar imagens para ilustrar a fala do locutor. Por exemplo, quando um repórter está ao vivo, fazendo uma transmissão da rua, editores e outros profissionais podem, no estúdio, optar por, ao invés de deixar a imagem desse profissional, exibir imagens que, claro, combinem com o que está sendo dito. Isso é chamado, no dia a dia das redações de cobrir com imagens.

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foram ainda mais potencializados, quando “(...) a televisão descarregou imagens dos

massacres de sexta-feira, sábado e domingo. O efeito foi assustador” (CRISTALDO apud

COSTA, 2009, p.178). Caso tenha havido exageros ou não, não há como a jornalista negar

que algo de muito grave acontecia e deveria ter sido noticiado. Com a mesma intensidade com

que Costa questiona a forma como a Rede Record cobriu os ataques, ele isenta a Rede Globo.

De fato, as pessoas estavam se recolhendo, o comércio fechava as portas, as empresas dispensavam os funcionários e as escolas suspendiam as aulas. No momento em que a Rede Globo de Televisão entrou na cobertura dos fatos, registre-se: teve o cuidado de informar: “O Governo de São Paulo faz questão de informar que não há toque de recolher.” Somente no final do dia, quando a maior parte da cidade enfrentava um brutal congestionamento, a Record e algumas rádios colocaram no ar palavras do comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo, Elizeu Éclair, dizendo ter sido a segunda-feira o “mais tranquilo” dos últimos quatro dias. Tranquilo em relação aos ataques, que haviam parado (COSTA, 2009, p.181).

É importante perceber, aqui, que o jornalista observa que a Globo teria “entrado” na

cobertura depois, como se isso fosse sinônimo de bom jornalismo, como se a emissora tivesse

uma preocupação em noticiar os acontecimentos somente quando tudo já está devidamente

apurado. É bom lembrar, entretanto, que esse comportamento da mídia de se aliar ao poder

constituído e informar apenas o que as autoridades querem ou até exigem é bastante cômodo e

útil para as relações de interesse com esse mesmo poder constituído. Uma cidade que teve

mais de cem pessoas mortas, entre elas policiais e até bombeiros, em poucos dias, com

certeza, não estava devidamente protegida pelas suas autoridades. O balanço era assustador e

os números apenas das perdas materiais eram preocupantes: 36 ônibus incendiados, três

agências bancárias queimadas e um prédio comercial atacado. Portanto, fica o

questionamento: que legitimidade esta autoridade constituída tinha de negar um toque de

recolher? Estaria esta população que resolveu voltar para casa realmente “em pânico” ou

descrente de que suas autoridades estivessem garantindo, de forma efetiva, a sua segurança?

Não seria também ético à Rede Globo questionar uma ação efetiva do Estado para impedir

tanta violência? Reproduzir a autoridade constituída, em um momento de “pânico”, é a atitude

mais sensata a ser tomada pela imprensa? A Globo estava correta e a Record errada, como

quis mostrar Costa (2009)?

Essas questões éticas suscitadas pelo episódio não podem ser facilmente respondidas,

sem alguma polêmica, mas todas elas nos dizem muito sobre o processo de midiatização da

sociedade brasileira. Como já foi citado anteriormente, Castro (1997) percebeu, analisando a

cobertura sobre a greve dos peões da construção civil em 1979, em Belo Horizonte, que a

mídia, ao noticiar os acontecimentos, realimentava o próprio movimento, dando a ele, porém,

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uma nossa ressignificação, naquele momento, com os valores que o próprio tecido social

percebia sobre os acontecimentos. No caso da greve dos peões a visão, segundo a autora, foi

pouco igualitária e preconceituosa, que realimentou a greve como sinônimo não de luta por

direitos, e sim como caos e baderna.

Na ausência de um imaginário igualitário, a trama social figura o conflito como acontecimento ilegítimo, dissolve suas motivações nos processos de ressignificação sob a ótica da “baderna”, do “vandalismo” e do “caos”, e impõe aos “excluídos” a violência extremada como forma de obtenção de reconhecimento de sua diferença, conotada sob o signo da “irracionalidade” política (CASTRO, 1997, p.254).

Logo, nesse movimento de mão dupla, a mídia gera narrativas que, longe de

transparentes, acabam por também produzir acontecimentos – favoráveis ou não a

determinados grupos envolvidos nos conflitos sociais. No caso de São Paulo, o toque de

recolher pode ser sido um exemplo da ação da mídia, seja ela “oficiosa”, como a Globo, ou

“mais agressiva”, como a Record. Mas, independentemente da polêmica, percebe-se,

entretanto, como a midiatização passa a ser, como teoriza Braga, o processo interacional de

referência da sociedade, construindo, em suas trocas comunicacionais, realidades.

Essa lógica midiática, ainda que não seja sinônimo de espetacularização, por vezes,

notadamente na cobertura de eventos relacionados a situações de risco, adota as lentes do

espetáculo. Contrera (2008) percebe, na TV brasileira, um processo de repetição e

redundância, com uma programação sem profundidade e análise, que acaba repassando tanta

informação ao telespectador que, de certa forma, acaba por aliená-lo em meio às notícias.

Preocupada com índices de audiência e com uma programação que corresponda ao tempo moderno da produção serial, a TV não tem se preocupado em aprofundar as questões que propõe, e a única forma de “revisão” que pratica é através de programas que por meio de flashbacks se prestam mais a manter vivos na memória do público seus ícones de identificação e consumo (ídolos, galãs, modismos etc.) numa atitude escancaradamente narcisista, do que a retomar seriamente algum tema a fim de promover um aprofundamento sobre ele (CONTRERA, 2008, p.101).

Mas reconhece a importância da mídia e dos processos de comunicação para

constituição das sociedades complexas.

Não podemos pensar em nenhuma realidade humana possível sem que a cultura e os processos da comunicação social (as imagens compartilhadas) desempenhem papel central na formação dessa realidade, ou, pelo menos, na forma como os homens a concebem e com ela interagem (CONTRERA, 2008, p.39).

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Costa (2009) se apóia em duas teorias para justificar seus estudos acerca dos ataques

do PCC em São Paulo, que podem nos ser úteis na análise da revolta dos policiais militares,

objeto desta dissertação: “A Indústria Cultural”, de Adorno e Horkheimer (1986), e “A

sociedade do espetáculo”, de Debord (1967). Na primeira, a cultura e também a notícia se

tornam uma mercadoria, como outra qualquer.

Tudo é realmente um negócio, até a arte, outrora mistificada por sua aura. Os bens culturais são explorados comercialmente e, com isso, se tornam instrumentos eficientes de manipulação pela indústria, manipulada pelos arquétipos que edificam ela própria, em função do pensamento mediano que a norteia e dirige. Ela se alimenta de sua construção de sua manutenção. A indústria cultural contém todas as características do moderno mundo industrial e de serviços (COSTA, 2009, p.185).

Adorno, porém, foi mais radical, quando escreveu a teoria, na primeira metade do

século XX. Para ele, a indústria cultural passou a controlar e a ditar a forma como o homem,

em sociedade, deve encarar o mundo. Os costumes, os sonhos, os limites, tudo seria

apresentado pela indústria, através de seus produtos culturais, tais como o cinema, o rádio, os

jornais. E essas ideias são repassadas aos cidadãos, que muitas vezes – ou quase na totalidade

de suas vidas – não percebem que estão sendo manipulados. “Elas são aceitas sem objeção,

sem análise, renunciando à dialética, mesmo quando elas não pertencem substancialmente a

nenhum daqueles que estão sob sua influência” (ADORNO, 1986, p.97). Adorno questiona o

imperativo categórico, de Kant, para explicar a indústria cultural. Agora o cidadão apenas

deve submeter-se ao que lhe é imposto como correto, sem nunca questionar os princípios.

Dentro da indústria cultural, é preciso pensar como todos pensam. A aceitação produz um

conformismo que substitui a consciência.

A satisfação compensatória que a indústria cultural oferece às pessoas ao despertar nelas a sensação confortável de que o mundo está em ordem, frustra-as na própria felicidade que ela ilusoriamente lhes propicia. O efeito de conjunto da indústria cultural é de uma auto-desmistificação, a de um anti-iluminismo (ADORNO, 1986, p.99).

A cidade de São Paulo do ano de 2006, segundo Costa (2009), não se diferencia dessa

sociedade dominada pela indústria cultural, na qual as pessoas são transformadas em objetos

de consumo. Aliás, são objetos ao mesmo tempo de consumo e de trabalho. O lazer quase se

torna uma extensão do trabalho, que acaba invadindo a casa, o clube, o sítio, ou onde quer que

o indivíduo esteja, através dos e-mails, dos telefonemas, das tarefas levadas para serem

concluídas fora do horário tradicional. E a informação, ao estar na televisão e na internet,

independentemente de quem disse ou postou, passa a ser verdade para grande parte do

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público. “O indivíduo não precisa mais pensar, a indústria pensa por ele. A ele só cabe

escolher. Toque de recolher, para casa” (COSTA, 2009, p.183).

Adorno e Horkheimer (1986), quando desenvolveram o conceito de indústria cultural,

perceberam que essa indústria também era, por definição, autoritária. Isso porque separava as

definições de cultura de massa e cultura popular. A cultura de massa não é feita pela massa,

mas para a massa; já a cultura popular deveria nascer da interação entre os indivíduos. A

indústria cultural, através da mídia, “contamina” até mesmo a educação, que passa a

disseminar os valores da rapidez, do consumo, da facilidade, da demagogia do rápido. Fica

perdido aí o valor emancipador da educação, que passa a repetir os valores dessa indústria, ao

contrário do que fez, por exemplo, em períodos históricos como o Renascimento e o

Iluminismo. E o ciclo parece infinito, englobando também o “fazer-jornalístico”.

A objetividade jornalística se encaixa no modo de ver regido pelo consumo e aplainado pelo negócio da cultura, cuja regra é o nivelamento sempre pela mediana capacidade de entendimento. A objetividade gera e é gerada pelo espetáculo da notícia (COSTA, 2009, p.186).

E a teoria do espetáculo, como já foi dito, é a segunda usada por Costa (2009) para

explicar o funcionamento da mídia. Debord (1967) foi um pouco além na análise dessa

sociedade submetida à indústria cultural, e percebeu que o saber, a representação do que é

vivido e todas as nossas atitudes estão condicionados ao espetáculo. Agora, o capital, que

antes era tão criticado pela teoria marxista, deu lugar ao espetáculo.

O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura (...). Nesse ponto da “segunda revolução industrial”, o consumo alienado torna-se para as massas um dever suplementar à produção alienada (DEBORD, 1997, p.30).

Também no espetáculo podem ser encontradas duas formas de agir: a concentrada, nas

ditaduras, tanto de direita como de esquerda, e a difusa, produzida junto com a

americanização do mundo. Surgiu, então, nos anos 60, junto com o avanço da tecnologia, uma

terceira forma de espetacularização: o espetacular integrado, que poderia ser encontrado em

todo o mundo, e que se manifesta concentrado ou difuso.

No lado concentrado, já não havia tantos ditadores, chefes conhecidos, que traziam

para si o culto a uma personalidade única, mas ainda era trabalhada pelas ditaduras. Do lado

difuso, a espetacularização estaria clara na produção dos objetos e comportamentos sociais.

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Ou seja, o espetáculo, a partir daí, não se apresentava mais como uma coisa estranha, e sim

como parte de nossa realidade. Nosso planeta ficou, assim, vulnerável a esse espetáculo.

Debord (1988) lembrou, quando fez uma revisão da sua obra, pouco antes de morrer, que a

terra era ameaçada constantemente pelo aquecimento global e pelo desmatamento. Porém ao

espetáculo não interessava essa discussão. O que importa, sim, são momentos pontuais, nos

quais grandes desastres chamam a atenção da mídia.

A teoria desenvolvida por Debord (2007) sempre foi associada à ação, à criação do

movimento internacional situacionista, onde a ideia principal seria a construção de situações,

ou, como ele mesmo explicou, a construção concreta de ambientes momentâneos que

deveriam ser transformados para que a vida tivesse mais embelezamento. Deveriam ser

também observados os comportamentos que a transformam.

Essa interação entre a prática e a teoria não impediu que outros autores, agora, sim,

mais acadêmicos, também analisassem a mídia e a sociedade a partir do conceito de

espetáculo. Um deles, Marilena Chauí (2006), percebeu que o próprio espetáculo transforma

todo tipo de notícia em entretenimento, uma vez que ele próprio se tornou um simulacro,

agrupando tudo que é produzido pela mídia. Um exemplo dessa passagem do que seria o

espetáculo para o simulacro, produzido pela mídia, foi a transmissão de uma missa em

comemoração ao aniversário de São Paulo, em 1990. No momento da elevação do cálice e da

hóstia, no lugar do silêncio, comum nas missas católicas, quem estava na igreja ouviu a

confusão da imprensa narrando os fatos e fotografando e filmando as autoridades políticas

presentes. Esses profissionais se posicionaram, com seus equipamentos, entre o altar, os

políticos e o público, impedindo, para a maioria das pessoas, a visão a liturgia. Ou seja, para

os fiéis que estavam na igreja, a missa foi profanada. Mas para quem a assistia de casa

percebeu uma missa completa, perfeita. É aí que Chauí (2006) percebe que “(...) a ubiquidade

das câmeras, competindo com a onividência do olhar de Deus, produziu uma missa

inexistente, e esta foi o objeto transmitido” (CHAUÍ, 2006, p.16). Para ela, essa transmissão

é a passagem do espetáculo, que é a missa, para o simulacro, que nulidificou o real e os

símbolos através das imagens e pelos sons enviados ao espectador. Como exemplos,

podemos citar desde guerras, genocídios, tragédias, catástrofes naturais, até greves, festas,

cerimônias religiosas, obras de arte, que podem ser abrigadas na condição de espetáculo, com

uma expressão de entretenimento, e com tendência a se transformar em um simulacro do real.

Em seguida à destruição dessas notícias, que são logo superadas por outras, seguem a

tendência e a lógica do consumo, da futilidade e da banalização. Tudo vira um mercado

cultural, na luta pela audiência.

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E essa luta para conquistar o telespectador é um dos motivos apontados por Douglas

Kellner (2001) para a transformação dos telejornais em simulacros bem longe do real. Para

ele, os telejornais, no lugar de informar, afastam o telespectador do mundo real, já que os

conflitos sociais e políticos são constantemente afastados das telas. No lugar, os

telespectadores recebem, em suas casas, acontecimentos espetaculares: são assassinatos

surpreendentes, ataques terroristas, escândalos sexuais de celebridades e políticos e,

principalmente, a violência explosiva do cotidiano.

Os mega-espetáculos são aqueles fenômenos que dramatizam controvérsias e embates, assim como os modos de resolução de conflitos. Incluem coberturas exageradas de eventos esportivos e políticos e outros acontecimentos. A própria produção de notícias também está sujeita à lógica do espetáculo. Em uma época de sensacionalismo, tabloidização, escândalos e contestações políticas (KELLNER, 2001, p.122).

Kellner (2001) lembra, como exemplo emblemático do caso da espetacularização da

notícia, o escândalo envolvendo o então presidente Bill Clinton, que se relacionou

sexualmente com a sua estagiária na Casa Branca, Mônica Lewiskin. O Partido Republicano

Americano, que fazia oposição ao presidente, tentou, de todas as maneiras, criar um

espetáculo do escândalo sexual. Porém, a estratégia falhou. O presidente, que era do Partido

Democrata, sobreviveu ao possível pedido de impeachment e continuou, depois de pedir

desculpas publicamente à mulher e ao povo americano, a governar o país. Isso prova,

inclusive, que o espetáculo é algo imprevisível. “As políticas do espetáculo são imprevisíveis

e os espetáculos nem sempre conseguem manipular o público e podem falhar. As celebridades

também já experimentaram o reverso do espetáculo” (KELLNER, 2006, p.137).

Outro exemplo emblemático citado por Douglas Kellner (2006) foi a tentativa dos

americanos de manipular a mídia em favor de demonstrar que sua presença na Guerra do

Iraque, depois dos ataques de 2001, em Nova York, era pacificadora e libertadora. Ao

contrário do que a mídia oficial queria demonstrar, o espetáculo acabou por jogar a opinião

pública contra as forças armadas. E isso aconteceu por causa do vazamento de fotografias de

soldados norte-americanos torturando os prisioneiros iraquianos. As fotos, tiradas pelos

próprios soldados norte-americanos, mostram prisioneiros nus, sujeitos a humilhações sexuais

ou sendo torturados com choques elétricos. Resultado: a demonstração triunfante do poderio

militar se transformou, facilmente, em um espetáculo da arrogância, brutalidade e maldade

dos seus servidores. Para Kellner (2006), essa exposição de imagens de abusos contra os

iraquianos provocou, com quase certeza, efeitos positivos e duradouros na legislação

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internacional e no tratamento de prisioneiros. “O espetáculo é sempre contraditório, ambíguo

e sujeito a inversões e reviravoltas. A administração pública, empresas e celebridades não têm

certeza se serão beneficiados ou vítimas dos caprichos do espetáculo”. (KELNNER, 2006,

p.143). Ou seja, quando uma notícia é lançada na mídia e se torna espetacular pode tomar

rumos diferentes dos iniciais. Por exemplo, uma prefeitura que seja vítima de ataques iniciais

da imprensa que, hipoteticamente, estaria fazendo denúncias de corrupção, pode reverter o

processo e demonstrar que o denunciante, por exemplo, teria sido impedido de conseguir

vantagens ilícitas na administração pública e estaria fazendo denúncias infundadas. Ou seja, o

denunciante acaba vítima de suas próprias intrigas.

Porém, um exemplo em que o espetáculo acabou beneficiando tanto a sociedade como

as vítimas foi o episódio que ficou conhecido como o “os crimes da favela Naval”. Nos dias

cinco e seis de março de 1997, policiais militares paulistas torturaram, extorquiram, e

humilharam moradores durante a realização de blitz, na cidade de Diadema. Uma das vítimas

acabou morta com um tiro, disparado por um dos policiais. O fato foi tratado, tanto pelas

autoridades como pela imprensa, como mais uma denúncia de abuso cometido por militares

contra populações das periferias das grandes cidades brasileiras. O que deu um novo rumo à

história foi o fato de um cinegrafista “amador”, que não foi identificado, ter gravado toda a

covardia e até o assassinato e, dias depois, as mesmas imagens terem sido exibidas no Jornal

Nacional, da Rede Globo.

Os crimes ocorridos nos dias 5 e 6 de março de 1997 já haviam sido denunciados formalmente pelas vítimas, no dia seguinte às agressões, e também noticiados com destaque na capa de um jornal local (O Diário de Grande ABC), mas isso não gerou mais do que o processamento rotineiro e duas notas em jornais de grande circulação. O registro daqueles crimes em vídeo alterou a natureza daquelas ocorrências. As notícias sobre eles não ficaram restritas à não-publicidade de remotas periferias urbanas e de jornais comunitários: foram mostradas à hora do jantar, para todos os lares do país (NEVES, 2008, p.323).

As imagens escandalizaram o país e provocaram reações de autoridades, entre elas, de

políticos e magistrados, que condenaram a covardia. O Congresso Nacional se mobilizou, no

objetivo de criar leis mais severas para a punição de policiais que cometessem crimes durante

o trabalho. “A atenção raramente conferida (no contexto das práticas da imprensa brasileira)

às decisões parlamentares e ao processo judicial instaurado a partir da denúncia inicial

demonstra a relevância pública adquirida pelo caso” (NEVES, 2008, p.322).

Na sua análise da cobertura feita pela imprensa, depois que o “Jornal Nacional”

divulgou as denúncias, Neves (2008) concluiu também que, como as imagens se

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transformaram em um espetáculo, a conduta das outras emissoras, juntamente com a Rede

Globo, foi de abandonar uma postura de aceitação da resposta oficial, das autoridades, e

cobrar uma punição para os suspeitos. “Nas reportagens que invadiram a televisão brasileira

após da denúncia do Jornal Nacional, os telejornais abandonaram as representações habituais

da violência urbana e se distanciaram da acomodação à “versão oficial” sobre a atuação da

polícia militar” (NEVES, 2008, p. 325).

Mas, apesar desses exemplos de espetacularização que acabaram beneficiando outros

autores que não os divulgadores das notícias, o espetáculo, quase sempre, celebra os valores

dominantes e valida uma sociedade baseada na competição e na vitória. Também Debord

(2007), já na década de 1960, como já citado, apresentava o espetáculo e a mídia como uma

sociedade organizada em torno da produção e consumo de imagens, mercadorias e eventos

culturais.

Ou seja, quando esse mundo real transforma-se (através do telejornal, por exemplo)

em simples imagens, elas mesmas transformam-se em seres reais e motivações eficientes de

comportamento. Através do espetáculo, criar-se-ia, nessa visão, uma pacificação e

despolitização do público. As experiências e a vida cotidiana são moldadas e mediadas por

esse espetáculo. Para Debord (1967), “(...) é uma guerra do ópio permanente, que choca os

sujeitos sociais e os distrai da tarefa mais urgente da vida real – recuperar a plenitude dos

poderes humanos através da prática criativa” (DEBORD, 1967, p.32).

O pensador acredita ainda que esse telespectador ou indivíduo que consome submissamente os espetáculos acaba se afastando de uma vida produtiva: o conceito do espetáculo, portanto, envolve uma distinção entre a passividade e a atividade, consumo e produção, condenando o consumo inconsciente do espetáculo como uma alienação do potencial para a criatividade e a imaginação (KELLNER, 2006, p.123).

E cada vez mais o espetáculo está invadindo todos os campos da experiência, desde a

economia e a cultura até a vida cotidiana, a política. Porém, faz-se mister, no nosso estudo,

pensar o espetáculo como referente aos anos de 1990, quando a televisão reinava quase

sozinha como veículo de massa que utilizava imagens e áudio na informação da audiência. A

televisão em Minas era formada por cinco sucursais de grandes redes nacionais (Rede Globo,

Rede Bandeirantes, Rede Manchete, Rede Record e Sistema Brasileiro de Televisão – esse

retransmitido pela afiliada, a TV Alterosa, ligada aos Diários Associados) e pela TV Minas,

uma autarquia subsidiada e controlada pelo Governo de Minas. A internet ainda era muito

incipiente e não existiam sites de sindicatos ou associações de classe que tivessem muitos

acessos ou que transmitissem a opinião da categoria mobilizada. Também não existiam as

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hoje tão comuns e importantes “redes sociais”. Logo, as imagens da revolta – passeatas,

reuniões, além de protestos nos quartéis, por exemplo – só poderiam ser vistas pela categoria

ou pelos jornais impressos ou através das telas dos jornais locais e nacionais. Para a categoria

se enxergar enquanto participante de uma revolta seria importante alcançar a visibilidade

nesses veículos, como vai ser estudado no segundo capítulo.

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3 A REVOLTA DOS PRAÇAS: CRONOLOGIA E OLHARES ACA DÊMICOS

3.1 A cronologia da revolta

A revolta dos praças da Polícia Militar de Minas Gerais durou cerca de 20 dias, mas

marcou para sempre a instituição. Após o evento, não apenas houve uma melhora substancial

no valor dos proventos dos militares, como também uma mudança no código de disciplina,

considerado, até então, muito rígido. O objetivo deste capítulo é reconstruir narrativamente o

episódio, a partir de fontes diversas. Para tal objetivo, utilizamos reportagens de jornais

produzidas durante e depois da revolta – em especial dos jornais Estado de Minas e Jornal do

Brasil – e publicações, acadêmicas ou não, sobre o evento. Também utilizamos vídeos e

imagens retirados da internet e fotos de jornais impressos, que nos ajudaram a reconstruir o

episódio imageticamente e dar uma melhor dimensão de como foi a revolta.

Belo Horizonte, 12 de junho de 1997. No Batalhão de Choque da Polícia Militar, a

movimentação é grande no alojamento dos praças. Cerca de duzentos policiais se recusam a

deixar o quartel e sair para fazer o policiamento ostensivo nas ruas. Como se o ato de

insubordinação não tivesse alarmado suficientemente os oficiais no comando, colchões são

queimados, provocando muita fumaça no alojamento. Ninguém fica sabendo quem ateou

fogo, mas as centenas de praças que cruzaram os braços no pátio do quartel não se

preocuparam em esconder o rosto. Depois de 222 anos de coesão e disciplina da Polícia

Militar de Minas Gerais, uma revolta de praças e suboficiais acabava de começar, e, talvez,

por ironia, no Batalhão de Choque, responsável por reprimir os movimentos sociais e

manifestações populares.

A revolta teria começado de forma espontânea, sem uma liderança sindical definida e

sem qualquer planejamento. Porém, se foi um ato espontâneo da tropa, não faltou aos

revoltosos a preocupação de divulgar, imediatamente, o que acontecia. Logo que os protestos

tiveram início, os telefones das redações começaram a tocar. Os praças informavam sobre os

fatos e pediam que equipes fossem até o batalhão. Um dos primeiros veículos a ser

comunicado foi a rádio CBN de Belo Horizonte. O coordenador de jornalismo, Luís Henrique

Ygealovic, deu o seguinte depoimento à jornalista Paula Rangel:

As informações do anunciado movimento dos PMs começaram a chegar às redações a conta gotas. A princípio, tínhamos mais dúvidas do que certezas em relação à extensão do movimento. Parecia mais uma situação isolada no Batalhão de Choque, mas as informações em off que recebíamos nos deixavam preocupados e, ao mesmo tempo, com uma pulga atrás da orelha. Será que o governo não possuía as mesmas

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informações do que nós? Quando checávamos com o Governo Estadual, a impressão que tínhamos era que o governo não acreditava – ou tinha informações erradas – do movimento, que crescia a cada dia (RANGEL, 1997, p.123).4

Mas para entender a crise que se instalou na PM mineira e a certa indignação que se

abateu sobre o jornalista da CBN, é preciso voltar alguns dias nos acontecimentos. O

“estopim” que deu início à crise na PM mineira aconteceu no dia cinco, cerca de uma semana

antes, quando o então governador Eduardo Azeredo autorizou um aumento de 11% para os

oficiais da corporação, deixando de fora todos os praças, que já haviam reivindicado aumento,

sem obter sucesso. Não é preciso afirmar que a indignação foi grande. No dia sete, dois dias

depois, o cabo Glendyson Hércules de Moura Costa, de 31 anos, foi baleado quando tentava

evitar um assalto no bairro Floresta, em Belo Horizonte. Internado em estado grave, morreu

no dia 10, no Hospital João XXIII, também na capital. No enterro do militar, o clima era de

muita revolta, mas os cerca de 300 policiais – entre praças e oficiais – evitaram qualquer tipo

de manifestação. O então comandante geral da PM, coronel Antônio Carlos dos Santos, que

não foi ao enterro, disse, depois, que já sabia do clima de indignação:

Recomendei a ida dos comandantes, como é de praxe na PM sempre que um policial morre em serviço. Eu queria ter ido, mas o clima não recomendava a minha presença. O aumento dos policiais já havia ganhado todas as páginas dos jornais e sabíamos pela P-25 que o clima era muito hostil no Batalhão de Choque. Optei por não acirrar mais os ânimos, aconselhado por outros policiais (RANGEL, 1997, p.139).

Já o coronel José Guilherme do Couto, então comandante de policiamento da Capital,

foi até o enterro, já esperando pelo pior. Segundo o coronel, a presença dele e de outros

oficiais impediu uma possível passeata:

Reuni todos os comandantes e fui para lá. Vamos impedir que os nossos homens façam uma bobagem. Senti um clima de grande comoção no enterro, de raiva, um clima propício para sair em passeata. Eu acredito que eles sairiam até carregando o caixão. Notei a agressividade, a hostilidade contra os oficiais. Eu chegava a um bolinho de gente, ele se desmanchava, chegava a outro, desmanchava, até que foi diminuindo um pouco (RANGEL, 1997, p.150).

4 O livro foi analisado quando ainda estava “no prelo”. Posteriormente, a jornalista retirou o nome dela e o livro foi publicado com o mesmo título, porém sob autoria do cabo Júlio. 5 P-2 é como é chamado o serviço de inteligência da Polícia Militar.

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Figura 1: Praças com os braços cruzados no BP Choque6. Fonte: Acervo do jornal Estado de Minas, 12 de junho de 1997.

A ação dos coronéis, entretanto, não impediu, como já foi mostrado, que a revolta

acabasse acontecendo um dia depois. O coronel José Guilherme do Couto foi até o Batalhão

de Choque tentar convencer os policiais a retornarem ao trabalho, mas, desta vez, não obteve

êxito. Na percepção dele, a revolta já era comandada por lideranças, ao contrário do que tinha

sido divulgado.

Fui até lá, ninguém queria conversar (...). Fui até o auditório, havia umas 60 pessoas. Expliquei a situação, disse que eles não deveriam fazer nenhuma bobagem, chamei-os à razão, disse que era desnecessário fazer um movimento, falei com os líderes, mas já havia politização, um ideologismo das pessoas, já havia estrutura, lideranças (RANGEL, 1997, p.150).

Porém, o que mostra uma reportagem do jornal Estado de Minas, em 13 de junho de

1997, é que os policiais estavam profundamente indignados com a situação em que viviam, e

tentavam denunciar as injustiças à imprensa, mas sem nenhuma liderança. Com medo de falar

com as equipes de reportagem, eles entregaram cartas para os jornalistas que cobriam a

paralisação, do lado de fora do quartel. Em uma delas, as queixas dos militares referiam-se à

desvalorização social da profissão, ao caráter punitivo da corporação e aos baixos soldos:

6 BP Choque é a abreviatura para batalhão de choque, especializado, como o próprio nome diz, em confrontos com manifestantes, grevistas ou outros grupos organizados. Foi substituído, na Polícia Militar de Minas Gerais, pelo Batalhão de Eventos.

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“Não estamos parando por um motivo qualquer. Enquanto trabalhamos por uma sociedade que não gosta de polícia e não sabe agradecer pelos serviços a ela prestados, não temos qualquer valor. Moramos, a maioria, em favelas, e muitas vezes, passamos fome com os nossos familiares. Só sabem falar em punição. Ninguém nos dá a esperança de receber um salário digno.” Este é um trecho de uma das cartas passadas anonimamente por um militar (ABELHA, 1997, p.27).

Insubordinações também aconteceram em outros batalhões, como mostra a mesma

reportagem:

Embora apenas o BP Choque tenha promovido a paralisação, admitindo o estado de greve por tempo indeterminado, a greve branca está instalada em todos os quartéis da cidade. No 18º batalhão, as aparências eram de que estava tudo sob controle (...), mas um policial que estava de sentinela admitiu que os colegas daquela unidade saem para as ruas, mas não trabalham. (ABELHA, 1997, p.27).

Porém, o clima de maior revolta era percebido no Batalhão de Choque. E foi no

Batalhão que começou a primeira passeata da história da PM mineira. Um dos líderes da

revolta, cabo Júlio, narrou da seguinte forma como os militares decidiram deixar o quartel e

seguir em direção ao centro de Belo Horizonte:

Os PMs ligam para a imprensa e pedem apoio. De repente começa uma gritaria, que vira um coro: vamos para a rua! Os praças de outras unidades ligam para o Batalhão de Choque para confirmar as informações da paralisação que estão sendo veiculadas pela imprensa e anunciam que vão aderir. Para o espanto de todos, o batalhão vai para a rua. São 150 homens no início (RANGEL, 997, p.37).

Figura 2: Primeira manifestação dos praças. Fonte: Acervo do jornal O Tempo, 16 de junho de 1997.

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O cabo Júlio afirma que foi durante a caminhada que ele despontou como liderança.

Segundo o cabo, simplesmente porque, percebendo que havia certa confusão no trânsito,

tentava organizar a passeata, pedindo que os policiais só ficassem em uma pista para liberar as

outras para o tráfego e, logo depois, passou a ser tratado pelos outros militares como líder da

revolta. Porém, como pastor evangélico, o cabo já era uma referência no quartel no que diz

respeito a aconselhar os colegas. Recuperando Weber (1999), observamos que ali emergia

uma liderança carismática que, segundo o autor, pode ser percebida em pessoas que

apresentam algo “especial”, que influencie os liderados:

Tem-se a dominação carismática em virtude da devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes (carisma) e particularmente, a faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória. O tipo que manda é o líder. O tipo que obedece é o apóstolo. Obedece-se exclusivamente à pessoa do líder por suas qualidades excepcionais (WEBER, 1999, p.135).

Como os praças estavam em um momento de decepção e revolta com os seus oficiais,

era um momento propenso para que novas lideranças, agora carismáticas, surgissem. E foi

durante a passeata que a liderança do sargento Rodrigues também foi percebida.

Não houve nenhuma preparação para o movimento. Ninguém preparou o movimento. Ninguém pode se intitular articulador do movimento. O movimento explodiu naturalmente. Inclusive as entidades de classe foram rejeitadas naquele momento. Ninguém acreditava em mais nada. Quando eu cheguei à Praça da Liberdade, fui solicitado por centenas de militares para compor a comissão de negociação. Os PMs rejeitaram a instituições oficiais: as associações, o comando, o governo. O movimento não teve articulador. Somente depois o deputado federal Cabo Júlio e eu despontamos na interlocução do pós-movimento. Éramos a representação, ou seja, éramos pessoas falando em nome daqueles que fizeram o movimento reivindicatório. A partir dali a mídia passou a nos ter como pessoas à frente do movimento, nos chamando de líderes (ALMEIDA, 2007, vol. 2, p. 232).

E se os praças não tiveram grandes problemas para eleger novos “comandantes”, já

que os oficiais, pelo menos pela percepção da imprensa, estavam desorientados. O

coordenador de jornalismo da rádio CBN/BH percebeu que a hierarquia tinha sido quebrada

quando um oficial foi entrevistado, ao vivo, no momento em que a passeata chegava até a

Praça Sete. Ele informou que tinha uma ordem de prisão para todos os praças que

participavam da passeata. Foi perguntado, então, a esse oficial, o que ele faria com esses cerca

de 400 policiais, e ele deu uma resposta evasiva. O coordenador de jornalismo então concluiu:

“Ele não sabia o que fazer” (RANGEL, 1997, p.124). E questionou: “Então, qual o objetivo

desse tipo de declaração?” (RANGEL, 1997, p.124). E concluiu: “Já existiam dois lados em

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uma corporação que sempre se gabou de ser uma fortaleza – e que sempre demonstrou isso ao

longo da história” (RANGEL, 1997, p.124).

Figura 3: Passeata chega à Praça Sete. Fonte: Acervo do jornal O Tempo, 24 de junho de 1997.

A passeata seguiu até o Palácio da Liberdade. No caminho, foi possível perceber, por

meio das reportagens feitas pelas emissoras de TV, 7 como a Band Minas, Rede Globo Minas

e Rede Record Minas, o apoio recebido pelos policiais por parte da população, que aplaudia a

passagem dos militares. Dos prédios, pessoas jogavam papel picado. Almeida (2010) também

observou esse apoio da população da capital no seu estudo de doutorado sobre os movimentos

dos policiais de todo o país.

Parte da população belo-horizontina ofereceu apoio ao movimento por meio de buzinaço, palmas e gestos de solidariedade. No tradicional local de manifestações políticas e grevistas da cidade de Belo Horizonte – a Praça Sete – os manifestantes, a partir de performances de ações bem sucedidas por outras categorias, fizeram uma parada estratégica, realizando o “abraço” no obelisco: um círculo em torno do monumento central da cidade (ALMEIDA, 2010, p.47).

Não foi percebida, durante as reportagens, nenhuma atitude de desagrado em relação à

passeata. O curioso é que, no caminho, os militares rasgaram uma bandeira da CUT

carregada por um manifestante que tentou se infiltrar no grupo.

7 Vídeo “Greve na PMMG 1997 (Resumo)”.

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Figura 4: Protesto em frente ao Palácio da Liberdade. Fonte: Acervo do jornal O Tempo, 13 de junho de 1997.

Em frente ao Palácio da Liberdade, já eram cerca de 1500 policiais. Os manifestantes

entoaram o Hino Nacional, se ajoelharam e fizeram orações pelos companheiros mortos em

confrontos com criminosos e até pelos que se mataram. Deram entrevistas e queimaram os

contracheques, dando as costas ao Palácio. O comandante do Batalhão de Choque também

falou com a imprensa e, mantendo a dignidade do cargo e o senso de hierarquia, disse que só

o comando poderia se posicionar sobre o assunto, mas acabou confirmando que todos os

manifestantes estavam presos, porém, sem explicar quem os prenderia e para onde seriam

levados. O comandante de policiamento da Capital não quis falar com a imprensa, e acabou

vaiado pelos comandados8. O comandante geral da PM não estava presente. Porém,

acompanhou tudo do prédio do comando, como consta do depoimento a seguir.

Nem sei descrever a sensação que tive ao ouvir as vaias dirigidas aos oficiais. Estar arrasado foi pouco, depois de tanto tempo vivendo dentro de uma corporação disciplinada, que sempre manteve a ordem. Foi um mal-estar terrível. Daria a minha vida para não ter que passar por aquilo (RANGEL, 1997, p.140).

Mas explicou porque teria dado a voz de prisão aos manifestantes: “Quando decretei a

ordem de prisão para os praças, que estavam em passeata, tive o objetivo de caracterizar essa

8 Vídeo “Greve PMMG 1997 parte II”.

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insubordinação através da imprensa. Os jornais iriam relatar esta desobediência e depois

poderíamos mover ações sobre a insubordinação deles” (RANGEL, 1997, p.140).

Figura 5: Site do Youtube com link para a greve de 1997. Fonte: Acervo pessoal do autor.

Sem se preocuparem muito com a possível prisão, e longe da liderança dos oficiais, os

praças foram informados que seriam recebidos pelo secretário da Casa Civil, Agostinho

Patrus. Cabo Júlio alega que só então percebeu que era preciso ter uma pauta de

negociações: “Após a passeata, era preciso levar uma pauta. Eu peguei um papel e comecei a

escrever o que seria a pauta: R$ 800,00 de salário, auxílio de periculosidade, o fim de

regulamento disciplinar. Eu entreguei a pauta e fui levado para negociar na Casa Civil do

governo” (ALMEIDA, 2007, p.240).

Depois de uma reunião de cerca de uma hora com o secretário, a passeata seguiu para

a Praça Sete, onde se dissipou, após ser acertada uma reunião para o dia seguinte, no Clube

dos Cabos e Soldados.

3.1.1 Uma trégua de 10 dias

No dia seguinte, a assembléia contou com cerca de 500 praças. Ficou definido que

o movimento seria suspenso por dez dias, período que foi dado de prazo ao governo para que

ele deliberasse sobre as reivindicações.

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Figura 6: Assembléia no Centro de Cabos e Soldados. Fonte: Acervo Jornal O Tempo, 24 de junho de 1997.

No dia seguinte, o governador Eduardo Azeredo, que tinha adiado uma viagem à

Europa, percebendo que a situação estava sob controle, decidiu finalmente embarcar. A

mobilização continuou, só que agora nos bastidores e na imprensa. No dia 16, o cabo Júlio

deu uma entrevista ao jornal Hoje em Dia, já como líder da revolta, falando sobre os

problemas da corporação e dos praças. No dia 17, o Comando da PM recebeu uma comissão

de praças para negociar e aceitou estudar todas as propostas feitas por eles. Entre elas, ficou

praticamente acertada a revisão do Regimento Disciplinar da PM. Os praças também pediram

anistia para quem participou da passeata do dia 13. Segundo Almeida (2010), cabo Júlio

disse, durante a entrevista concedida a ela, indignadamente, que foi naquele período de dez

dias que ele mais sofreu represálias.

Resolvemos, em uma assembléia, dar um prazo, uma trégua, para o governo. Esperávamos uma proposta do governo. Chegamos a um consenso de dar dez dias de prazo – do dia 13 ao dia 23 de junho. No dia 23 ocorreu a segunda assembléia. Nesse dia, voltamos ao quartel, voltamos a trabalhar normalmente. Começou a pressão. O governo queria abafar o movimento. Eu era vigiado 24 horas por dia; ameaçavam me sequestrar. Ficava um carro parado na porta da minha casa. O coronel me chamava, a toda hora, e dizia: depois que acabar a greve você vai ser excluído (ALMEIDA, 2010, p. 240).

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3.1.2 Praças e coronéis disputam a atenção da imprensa

Não foram apenas os praças que utilizaram a imprensa para divulgar as suas decisões

em assembléias e insatisfações, como já foi mostrado. No dia 18 de junho, data em que o

secretário de Governo, Agostinho Patrus, se reuniu com os praças para informar que o Estado

não tinha condição de pagar um piso salarial de R$ 800,00 para os soldados, como queriam os

revoltosos, e os policiais civis e carcereiros também se reuniram para propor a unificação da

revolta, o jornal Estado de Minas publicava uma matéria de uma página, como exclusiva, com

a manchete: “Coronel revela as lições da crise”. E o bigode: “Chefe do CPC quebra a lei do

silêncio e admite que pode ser retirado do cargo” (LIMA, 1997, p.27).

É curioso perceber que, no lugar daquele coronel que não falava com a imprensa e se

apresentava como alguém pouco disposto a concessões, José Guilherme do Couto mostrou-se,

na reportagem, aberto à interlocução. Com 28 anos de Polícia Militar, ele nunca tinha vivido

uma crise como aquela, e parecia bastante disposto ao diálogo:

José Guilherme disse que, ao contrário do que é difundido, a PM é hoje uma instituição aberta às mudanças e está tirando “lições inesquecíveis” da crise que se instalou com o movimento de revolta dos praças. Em entrevista solicitada por ele inicialmente somente para falar sobre o caso do sargento Alexandre Clício de Souza, 34 (transferido do serviço de inteligência para o departamento de pessoal, após ter participado do movimento), o chefe do CPC, que comanda o departamento mais importante da corporação, composto por mais de onze mil militares, nega a possibilidade de qualquer retaliação aos participantes do movimento de revolta (LIMA, 1997, p.27).

Como o próprio texto da reportagem mostra, o coronel foi quem chamou os

jornalistas. Ele queria acabar com um boato que tinha surgido sobre a transferência de um

sargento que trabalhava na P2 para a P19. Pelo que mostra a reportagem, havia reclamações de

que o sargento seria o primeiro praça a ser punido pela passeata. O coronel fez questão de

explicar que a transferência era necessária porque a P2 era um local onde o comandado tem

de ter lealdade ao comandante, e essa confiança tinha sido quebrada. Na foto que ilustra a

reportagem, o coronel aparece ao lado do sargento (Figura 7), o que pode demonstrar certa

proximidade com o comandado, mas o sargento está de cabeça baixa, com um ar triste. E,

perguntado pelo repórter do jornal, confirmou que tinha agido com o coração, que tinha

muitos amigos no Batalhão de Choque e que reconhecia que havia errado, aceitando a

transferência. O coronel segue no seu “discurso” a favor do comando e diz que recentemente

9 P1é a designação do setor administrativo, P5 a assessoria de imprensa, entre outros.

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um oficial tinha sido punido porque, ao ser indagado por um praça sobre a questão salarial,

respondeu que ele tinha duas opções: ou se desligava da PM ou se matava. O coronel disse

que isso não é uma maneira correta de se lidar com um subordinado:

O nosso papel é justamente de vencer esses tabus, vencer essa cultura antiga que ainda permanece, de dar esse tratamento desumano aos subordinados. A PM não está parada no tempo e no espaço, estamos acompanhando a evolução da sociedade, como disse. Mas isso não é de uma hora para outra. Hoje somos pela decisão participativa (LIMA, 1997, p.27).

Figura 7: Coronel e sargento que havia sido transferido dão entrevista no Comando de Policiamento da Capital. Fonte: Acervo jornal Estado de Minas, 18 de junho de 1997.

Pelo que aconteceu nos meses após o final da revolta (cerca de 180 praças excluídos e

depois readmitidos no Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Minas Gerais ) fica claro que

o coronel ou agia de má-fé ou estava em desacordo com o restante do comando; comando,

aliás, que também usou a imprensa para divulgar informações que não se confirmaram nos

dias que se seguiram à crise. No mesmo jornal, a assessoria do governo fez publicar uma nota

desmentindo que comandantes de batalhões pudessem ser trocados:

O comandante geral da Polícia Militar, coronel Antônio Carlos dos Santos, informa que não existe nenhuma providência para a troca de comando do 22º Batalhão e Batalhão de Missões Especiais. Que a iniciativa nesse momento é de tranquilizar a

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tropa e conduzi-la à prestação de serviços para a comunidade mineira, dentro da rotina da Polícia Militar (LIMA, 1997, p.27).

Enquanto o comando tentava demonstrar tranquilidade, a revolta já era percebida no

interior do Estado, principalmente em Montes Claros e Governador Valadares. No dia 20, a

Assembléia Legislativa autorizou o governador a dar aumento para os servidores públicos,

inclusive aos policiais. No dia seguinte, Eduardo Azeredo retornou da Europa e anunciou um

abono de R$ 102,00, para os praças, subindo para R$ 517,00 o piso para os soldados. E

também anunciou o que a nota citada acima negara dias antes: foram trocados o chefe do

Estado Maior – saindo Herbert Magalhães e entrando o coronel Osvaldo Miranda da Silva – e

o comandante do policiamento da Capital, José Guilherme do Couto – substituído pelo

coronel Edgar Eleutério Cardoso. No dia 22, foi a vez de o comandante do Batalhão de

Choque, coronel Carlos Roberto Cançado, ser substituído. Assumiu o coronel Maurício dos

Santos, que se reuniu com outros oficiais para tentar impedir uma nova passeata, prevista para

o dia 24.

Figura 8: “Forleg”: cordão de isolamento na Praça da Liberdade. Fonte: Acervo do jornal O Tempo, 24 de junho de 1997.

Preocupado, o Comando criou uma tropa designada Forleg – Força de Legalidade –

para responder a possíveis conflitos com a tropa revoltosa. O clima era tenso. O coordenador

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de Jornalismo da CBN/BH não escondeu nem a preocupação com o andamento da revolta e

nem com o rumo que a própria cobertura jornalística estava tomando:

A rede nacional era mantida informada do clima de tensão reinante em Belo Horizonte. O que até então era um movimento organizado, ficou sem interlocutor, sem comando, sem ação do governo e misturado a outra categoria (os policiais civis) no incentivo do tudo ou nada. Nossas fontes – mesmo as que apoiavam integralmente o movimento desde o início – começaram a se preocupar seriamente. Se antes ligavam para fornecer dados sobre normas, regras, salários, etc., começaram a nos ligar para ver o que poderíamos fazer para evitar o pior. Outra coisa me preocupava seriamente: detectamos que muitos policiais militares usavam a rádio para passar informações aos colegas e tendo como fonte a CBN (RANGEL, 1997, p. 125).

No dia 23, os praças decidiram realizar outra assembléia no Centro Social de Cabos e

Soldados, para preparar a passeata para o dia seguinte. Militares foram presos e panfletos de

contra-propaganda distribuídos nos quartéis. Como observou Almeida (2010), ao falar sobre

esses panfletos, cabo Júlio chamou os membros do comando de “burros”:

Eles tentaram boicotar a assembléia do dia 24. Fizeram todo tipo de pressão. Eles soltaram uma carta falsa de um tal de “soldado Pedrão”, dizendo que estava arrependido de participar da greve (com erros grosseiros de português). Eles foram burros, até nisso quiseram nivelar o praça por baixo. Mandaram uma cópia dessa carta falsa para a casa de cada policial. À véspera do dia 24 de 1997, alguém descobriu que iriam tentar me seqüestrar. Eu não pude dormir em casa. Na época, minha filha estava com um ano de idade. Uns policiais chegaram lá em casa, todos de capuz, e me colocaram dentro do carro: levaram-me para dormir na casa de outro policial. O Exército veio para Belo Horizonte, tomar conta da gente! (ALMEIDA, 2010, p. 240-241)

3.1.3 Nova passeata

Os praças, que recusaram o abono oferecido pelo governo, saíram em passeata do

Clube Social dos Cabos e Soldados e os policiais civis, do Sindicato dos Tecelões, onde

também estavam em assembléia. As duas categorias seguiram em direção ao Palácio da

Liberdade. O comandante reconheceu que poderia ter havido um conflito entre a Forleg e os

revoltosos:

Tínhamos que criar uma tropa, mas foi algo inédito uma tropa criada para combater outra tropa da PM. Foi muito complicado, mas conseguimos formar uma tropa confiável. Ela foi preparada, trouxemos armas, armamos os policiais. Depois disso tentamos evitar que os praças realizassem a assembléia, queríamos que a reunião fosse para a desmobilização, que os líderes apenas comunicassem o andamento das negociações com o governo. Acho que os líderes deveriam ter uma postura mais firme, mas eles não conseguiram evitar a passeata. Em parte, eles tentaram. Achamos que o processo iria parar lá no clube, mas os policiais ganharam as ruas

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novamente. Nosso primeiro planejamento era cercar o clube. A tropa de confiança seria deslocada para lá, mas o governador orientou para que não houvesse confronto. Como poderíamos parar os grevistas na rua sem haver confronto? Certamente haveria uma guerra armada e poderiam morrer civis (RANGEL, 1997, p.141).

O comandante tentou então acertar com a liderança que os revoltosos fizessem apenas

uma passeata até a Praça Sete, mas, segundo ele, a junção com a passeata dos policiais civis

fez com que os líderes perdessem qualquer controle sobre os praças. A decisão seguinte era

cercar a Praça da Liberdade, mas o comando percebeu, mais uma vez, que, caso houvesse

confronto, civis poderiam ficar feridos, e a decisão foi cercar o Palácio da Liberdade e o

prédio do Comando Geral. “Eu posso garantir: se houvesse invasão por parte dos grevistas, a

ordem era para confronto e haveria muito sangue derramado”, declarou o coronel Antônio

Carlos dos Santos, então comandante geral da Polícia Militar (RANGEL, 1997, p.142).

E a possível invasão só parou por causa de uma morte. Os cerca de 6000 policiais que

engrossavam a passeata atravessaram tranquilamente os primeiros bloqueios da Forleg,

formada por policiais do interior, de cadetes e praças que faziam cursos de cabos e sargentos,

e que não reagiram ao avanço. Na entrada do prédio do comando, cabo Júlio e cabo Valério

tentavam parar os revoltosos acenando com as duas mãos. De repente, um tiro atingiu o cabo

Valério na cabeça. A cena rendeu o prêmio Esso para a fotógrafa do jornal O Tempo, Isa

Nigri, que interpretou assim o episódio.

O medo que senti era enorme, fiquei impotente ante todo aquele horror. Como uma repórter, a única coisa a fazer era registrar, disparar a minha câmera como uma arma, não para ferir e sim como um protesto contra mais uma violência para uma manchete de jornal. Que pena, era uma luta por uma vida mais digna e respeitosa que os fizeram perder o respeito e a dignidade. Um pacificador morre para evitar um massacre entre os próprios companheiros (RANGEL, 1997, p.128).

Com o tiro, os ânimos se acalmaram. O desespero agora era para tentar salvar o cabo

Valério, que se esvaia em sangue. Depois que ele foi levado para o pronto socorro em uma

viatura, a tropa se dispersou ao redor da Praça da Liberdade e a passeata voltou a ser pacífica.

“Tragédia” foi a palavra usada pelo cabo De Sal, também em entrevista a Almeida (2010),

para explicar o acontecido:

A morte do cabo Valério foi uma tragédia. Ver um colega baleado, sangrando (...). Não foi fácil. Pensei: perdemos um companheiro, para que mais derramamento de sangue não acontecesse. Foi um momento complicado do nosso movimento. Principalmente após a morte do Valério, a nossa greve repercutiu em outros estados (ALMEIDA, 2010, p.267).

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Figura 9: Tiroteio no Comando Geral. Fonte: Acervo do jornal O Tempo, junho de 1997 – Prêmio Esso de Melhor Fotografia do ano de 1997: Isa Nigri.

Já o cabo Júlio, também em entrevista a Almeida (2010), apresentou o cabo Valério

como um herói e mártir da revolta, e como o salvador de sua vida.

Foram seis tiros. O primeiro acertou o cabo Valério – que trocou de lugar comigo, cinco segundos antes. Um vídeo mostra isso: ele tira a boina e eu peço para arrumar um mega-fone para podermos gritar e pedir para parar. A grande discussão é de onde partiu o tiro e para quem era? O cabo Valério não participava da movimentação, ele era um dos 6.500 e não tinha o porquê de ser atingido. Eles queriam acertar uma das lideranças para acabar com o movimento. Tanto que dos 6.500 eu era o único que estava de colete. Existia uma denúncia de que iriam tentar me matar (ALMEIDA, 2010, p. 242).

A discussão sobre quem teria atirado acabou criando um espetáculo à parte e

desviando, de certa forma, a atenção do foco principal, que eram as reivindicações dos praças

e policiais civis. As acusações foram contra o soldado Edson Campos Gomes - que

reconheceu ter atirado, mas para cima - e contra o novo coronel comandante do CPC, José

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Eleutério. Depois do tumulto, uma comissão foi chamada ao Palácio da Liberdade para

negociar. A multidão ficou na praça por mais algum tempo e depois se dispersou.

No dia 25, o tumulto e o tiro no cabo Valério foram manchetes em toda a imprensa

nacional. O Jornal do Brasil dedicou boa parte da primeira página à foto premiada de Isa

Nigri, e à manchete, anunciando que o Exército tinha sido chamado “contra a PM”

(EXÉRCITO ..., 1997). O Jornal do Brasil lembrava que a “rebelião” por melhores salários

tinha transformado a Capital em uma praça de guerra. Destacando, ainda, que uma das mais

graves rebeliões da PM desde o regime militar paralisou Belo Horizonte pela segunda vez em

menos de um mês e fez o governador Eduardo Azeredo pedir ajuda de tropas do Exército.

“Cerca de 900 soldados foram mobilizados pela 4ª. Divisão do Exército, e 300 deles

chegaram à capital mineira no início da noite, cercando imediatamente o palácio do governo.”

(EXÉRCITO ..., 1997). O jornal ainda fez um resumo dos acontecimentos na primeira página

e chamou o leitor para uma cobertura completa em cinco páginas internas, além de um

editorial com o título “Confiança Quebrada”. A antropóloga Jacqueline Muniz, pesquisadora

em segurança pública e participação civil do Instituto de Estudos da Religião (ISER), observa,

em uma das matérias, que o problema da PM não é a questão salarial, mas também a rígida

estrutura hierárquica, que veda a ascensão de praças a cargos no oficialato, e cita o caso da

Brigada Militar do Rio Grande do Sul, que diminuiu de 13 para oito os níveis hierárquicos,

permitindo que praças chegassem até o oficialato de forma menos burocrática.

Também no dia 25, as tropas voltaram a se recusar a deixar os quartéis. O Exército já

policiava a Praça da Liberdade, com homens fortemente armados e usando camuflagem de

guerra. No dia seguinte, o governador Azeredo anunciou um piso de R$ 615,00 para soldados

e detetives em início de carreira. Um aumento real de 48%, quatro vezes a inflação do último

ano. Foi o fim da greve, com gosto de vitória para os revoltosos, como observou o cabo Júlio:

Eu sabia que R$ 615,00 era o nosso limite. Não dava mais para ter outra assembléia, outro risco. A própria população que nos apoiou já estava desgastada: a cidade estava sem policiamento, tinha um furto a cada dois minutos. Então o governador chamou toda a imprensa e nós anunciamos que a greve estava encerrada. No outro dia, o Hospital João XVIII anunciou que o cabo Valério havia morrido, mas não queriam anunciar, pois geraria um fervor ainda maior (ALMEIDA, 2007, p.242).

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Figura 10: Exército ocupa o Palácio da Liberdade. Fonte: Acervo do Jornal do Brasil, 24 de junho de 1997.

O Exército ainda ficou de prontidão, mas acabou desmobilizado. No mesmo dia do

anúncio do fim da greve, o governador Azeredo conversou com o Jornal do Brasil e afirmou

que ia fazer uma reforma na PM, além de reconhecer que houve erro no comando da

corporação: “Realmente não se tinha o conhecimento do problema que existia, especialmente

quanto ao nível de relacionamento entre os comandos e os subordinados”

(GOVERNADOR..., 1997).

Nos quartéis, como observou Almeida (2010), foi distribuído um panfleto

mimeografado com um alerta sobre as punições. O texto lembrava que, para reflexão dos

militares, era preciso que os artigos do Código Penal Militar fossem, naquele momento,

relembrados. Aos poucos, cerca de 180 que participaram da revolta, entre eles o cabo Júlio e o

sargento Rodrigues, acabaram excluídos. Outras centenas foram punidas. Todos retornaram -

mas para o Corpo de Bombeiros, que havia sido separado da Polícia Militar -, entretanto,

quando Itamar Franco ganhou a eleição para o Governo de Minas e propôs a anistia. O cabo

Júlio foi eleito deputado federal, o sargento Rodrigues e outro líder da revolta, deputados

estaduais. Os coronéis foram para a reserva, inclusive o comandante-geral, Antônio Carlos

dos Santos, que deixou o cargo alguns meses depois do fim da revolta, mas não antes de

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acompanhar a expulsão do cabo Júlio e do sargento Rodrigues e a punição de cerca de outros

500 rebelados10. O então comandante-geral fez a seguinte avaliação sobre as punições:

Em minha avaliação, agi com correção, sem subterfúgios durante todo o episódio. Considero que minha carreira de 32 anos no PM foi brilhante. Acontecer tudo isso no meu comando pesa para mim. A idéia de disciplina me acompanhou toda a vida desde a infância e nunca imaginei dentro da PM ver a disciplina aviltada. Hoje penso que abdicaria do aumento salarial para que nunca tivesse acontecido o que aconteceu (RANGEL, 1999, p.144).

Quase três anos depois, o então ex-governador Eduardo Azeredo falou com o jornal

Estado de Minas, e se disse vítima de uma traição. Segundo Azeredo, o comando da PM

garantiu que ele poderia dar o aumento só para os oficiais, que a tropa estava sob controle.

Também reclamou que o então chefe do Estado Maior, coronel Hebert Magalhães, não

repassou para a tropa a informação de que o aumento concedido aos oficiais seria

posteriormente repassado para os praças. Negou que tenha sido covarde ao recuar e dar

aumento aos praças depois dos tumultos. Segundo ele, o general Carlos Patrício, comandante

do Exército no Estado, o aconselhou a negociar porque, caso houvesse algum conflito entre as

duas forças, haveria muitas mortes. “Digo que cedi em nome das vidas humanas. Não fui

covarde. Fui humano” (PRATES, 2000, p.4). O curioso é que o comandante geral da PM,

coronel Antônio Carlos dos Santos, foi nomeado para o cargo por ele, Azeredo – o coronel

tinha trabalhado com Azeredo quando este era prefeito de Belo Horizonte, e tinha, inclusive,

sido promovido de tenente-coronel a coronel naquele período –, e tinha se recusado a acatar

os avisos de que os salários estavam defasados e de que a tropa estava inquieta, feitos pelos

comandantes de batalhões meses antes da revolta. O coronel pedia que os comandantes

provassem, para ele, por meio de números, que os salários eram realmente baixos. Como

comentou o então major Domingos Sávio de Mendonça: “(...) negando a defasagem salarial

da tropa, o mesmo adotou o posicionamento de representante do governo junto à PM, e não da

PM junto ao governo” (PRATES, 2000, p.3).

3.2 Alguns estudos e análises sobre a revolta

Apesar de ter sido a primeira revolta dos mais de 200 anos da PM, a bibliografia

produzida sobre o assunto ainda é bastante incipiente. Uma pesquisa por bibliotecas das

10 O soldado Wedson Campos Gomes foi condenado, em fevereiro de 1998, a oito anos de prisão pela morte do cabo Valério. Ele foi expulso da PM, cumpriu a pena e acabou assassinado, anos depois, quando chegava em casa.

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universidades de Belo Horizonte localizou um vasto material recortado de jornais da época,

mas apenas duas dissertações. A dissertação, com o título “A Greve Policial. O

encadeamento dos processos políticos e sociais na Polícia Militar de Minas Gerais: a

mobilização dos policiais em 1997”, do jornalista Juracy Costa Amaral, foi defendida na

Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2000, ou seja, apenas

três anos depois da revolta dos militares, mas já apresenta uma análise da contradição entre

uma sociedade democrática e uma polícia arcaica, baseada em um regimento disciplinar

excessivamente rígido. Amaral (2000) encontra na burocracia um instrumento desenvolvido

pela instituição para se proteger das influências de uma sociedade liberal e competitiva,

conseguindo manter uma hierarquia que sempre lhe foi muito cara e fundamental para um

funcionamento harmônico, mesmo exercendo uma atividade estressante e perigosa.

Fez-se também, nessa dissertação, um estudo das origens da PM e sobre a estrutura

burocrática da instituição no momento da revolta, com valor dos soldos, número de

integrantes, principais questionamentos e expectativas. O autor observou que existe um

grande desconhecimento da população do país sobre organizações policiais, o que acaba

provocando uma mitificação da atividade e barreiras que dificultam o trabalho dos militares.

“Pouco se sabe das polícias, e o que se sabe é produzido pelas mídias, de uma certa forma,

evidenciando os episódios que interessam ao mercado da notícia” (AMARAL, 2000, s.p.).

Também a cultura da organização policial compromete essa transparência, dificultando a

realização das mudanças. Para entender o processo revoltoso, Amaral (2000) analisa jornais

que cobriram a revolta, e conclui que a revolta representou, apesar de todos os traumas, um

grande avanço para os praças.

A politização dos praças modificou a imagem interna da instituição, refletiu nas relações de trabalho dos policiais e atendeu a várias reivindicações, destacando-se, entre elas, os ganhos financeiros e a modificação dos Regimentos de Disciplina da Polícia Militar de Minas Gerais. (AMARAL, 2000, s.p.).

Em suma, esse conjunto de análises forneceu uma base já pronta para o

desenvolvimento de nossos temas, sobre a modernização da sociedade influindo na polícia e a

consequente midiatização do processo revoltoso. Base de estudos que também foi possível

ser encontrada nos dois trabalhos da historiadora Juniele Rabêlo de Almeida. No primeiro, a

dissertação com o título “Farda e Política: movimento reivindicatório dos praças da polícia

militar em Belo Horizonte no ano de 1997”, Almeida (2002) aprofunda mais a análise do

indivíduo policial militar, da sua formação histórica como resultado desse processo de longa

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duração, e também a importância da disciplina e da hierarquia no dia a dia do militar. Com

isso, a pesquisadora tenta encontrar explicações para a revolta, que representou, de acordo

com ela, uma ruptura, mesmo que temporária, desses dois pilares tão caros à vida na caserna.

Almeida (2002) também tenta compreender o praça da PM mineira como um “sujeito de

direito”, já que ele foi, em manifestação pública, exigir a sua condição de cidadão.

Utilizando metodologias da chamada história política e da história do tempo presente

ou história imediata, nas quais o objeto histórico, esteja no presente ou no passado, está sendo

construído a todo momento, o trabalho nos fornece mais balizamento teórico para que

possamos identificar uma ruptura promovida não apenas por militares insatisfeitos, mas de

cidadãos de uma determinada época que, sofrendo as influências das mudanças do seu tempo,

que não aceitam mais as regras de uma instituição estruturada em conceitos de uma

modernidade tardia e anacrônica.

Já na sua tese de doutorado, “Tropas em protesto: o ciclo de movimentos

reivindicatórios dos policiais militares brasileiros no ano de 1997”, defendida em 2010 na

Universidade de São Paulo, Almeida (2010) estende sua análise, já realizada com os praças de

Minas Gerais, para os revoltos de vários estados do país. A pesquisadora utilizou da história

oral para reconstruir os episódios acontecidos em estados distantes, mas nos quais estava

presente a cultura militar, muitas vezes baseada em regras arcaicas que foram questionadas.

Apresentando a revolta de Minas como a primeira e mais importante, Almeida (2010) nos

oferece um grande material de entrevistas colhidas com os praças que participaram das

passeatas, e também apresenta uma análise sobre o relacionamento deles com a imprensa, o

que também foi muito útil para entendermos a midiatização dos acontecimentos. Em sua

conclusão, observa que houve sim uma ruptura, porém não profunda o suficiente para minar a

instituição militar, havendo sim uma adequação das regras militares à democratização da

sociedade como um todo.

A crise policial militar brasileira representou conjuntura em que elementos próprios da corporação se desgastaram, mas não o suficiente para minar as bases institucionais. O trabalho indica possíveis conexões entre uma cultura policial militar, expressa pelos pilares militarizantes referentes a valores e normas institucionais, e preceitos relacionados à democratização que se passa nas sociedades contemporâneas (ALMEIDA, 2010, s.p.).

A quarta obra sobre a revolta utilizada nesta dissertação é um livro não publicado, da

jornalista Paula Rangel, com o título “O dia em que a polícia parou”. Escrito em parceria com

o então ex-cabo da PM - que depois, como já é conhecido, tornou-se deputado federal -, Júlio

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César Gomes dos Santos, o livro traz ótimos depoimentos de jornalistas e militares envolvidos

nos acontecimentos e deve ser lido com cuidado em alguns momentos, já que foi escrito de

acordo com a perspectiva do ex-militar.

A pouca bibliografia sobre a revolta, como já foi dito, contrasta com um acervo bem

catalogado nas bibliotecas de jornais envolvidos na cobertura dos fatos, como também já foi

bastante explorado.

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4 A NARRATIVA TELEJORNALÍSTICA DO EVENTO

4.1 Aspectos técnicos da narrativa

4.1.1 Conceito e breve evolução histórica da narrativa

Para estudar a cobertura da imprensa televisiva da revolta dos praças em 1997 é

preciso primeiro entender como o jornalismo vem utilizando, ao longo dos séculos, de tipos

diferentes de narrativa. E a palavra “narrativa” pode ser interpretada de várias maneiras.

Narrativa pode ser o enunciado de uma determinada comunicação, pode ser o conjunto de

conteúdos presentes nesse enunciado ou o simples ato de relatar determinado assunto a

alguém. Segundo Reis e Lopes (1987), a narrativa faz parte, desde a antiguidade, de uma

tríade (lírica, narrativa, drama), adotada por diversos teóricos.

Ainda de acordo Reis e Lopes (1987), a narrativa pode se realizar – ao contrário da

lírica, por exemplo, que acontece dentro de suportes literários – por meio de suportes bem

distintos, que vão da fala à escrita, não deixando de lado até mesmo o suporte icônico. Ou

seja, pode se realizar através de um desenho, de um poema – ou outra narrativa literária –, de

um filme, de um programa de TV, entre outros. Essa gama de possibilidades faz da narrativa

um conceito muito extenso: nós temos aí a narrativa jornalística, a historiografia e até mesmo

relatos de trabalho etc. A definição genérica, porém mais precisa, veio com o lingüista Labov

(1978): “Um método de recapitulação da experiência passada que consiste em fazer

corresponder a uma sequência de eventos (supostamente) reais uma sequência idêntica de

proposições verbais” (LABOV, 1978, p.295).

O estudo do processo narrativo suscitou três características fundamentais. A primeira

delas é o distanciamento. Ou seja, o narrador precisa ter o mínimo de distância do que ele

narra e também, porque não dizer, do sujeito para o qual ele narra. A segunda é o fato do

narrador também precisar criar um universo autônomo (personagens, espaços, eventos) para

nele desenrolar a sua narrativa11. Para completar, a terceira característica informa que o

processo da narrativa tem de instaurar uma dinâmica temporal, na qual se desenrolam os

acontecimentos narrados e o próprio discurso, já que ele também acontece em uma

determinada temporalidade. É bom lembrar que a subjetividade do narrador, mesmo não

sendo uma das características fundamentais, muitas vezes é a responsável pela melhor

11 É bom lembrar, entretanto, que citamos aqui uma narrativa literária e ficcional, já que, no caso da narrativa factual, esse cenário seria o próprio mundo.

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comunicação com o receptor da história. Isso porque o narrador pode perceber no receptor

interesses que ele logo em seguida faz nascer na história.

Reis e Lopes (1987) observam que é preciso utilizar dois planos fundamentais de

análise para compreender o processo da narrativa: a história e o discurso, que se consumam

no ato da narração. Aí entram os fatores ditos concretos, como a personagem, o espaço, a

ação, que são elaborados dentro do discurso, mas fazem parte da história. A estratégia

narrativa passa por esse conjunto, acrescentando-se o tempo da narração, o tipo de narrador, e

os códigos e signos por ele repassados, que sempre vão provocar uma reação no receptor.

Todo esse processo, é claro, não está alheio às mudanças pelas quais o mundo está

sempre passando. Para Reis e Lopes (1987), a condição histórica do homem orienta os rumos

da narrativa, sendo, muitas vezes, difícil de separar a narrativa histórica da narrativa ficcional.

Mas detalhes permitem essa separação.

A história e a ficção referem-se ambas à ação humana, embora o façam na base de suas pretensões referenciais diferentes. Só a história pode articular a pretensão referencial de acordo com as regras da evidência comum a todo o corpo das ciências, ao passo que, por sua vez, as narrativas de ficção podem culminar uma pretensão referencial de um outro tipo, de acordo com a referência desdobrada do discurso poético (REIS; LOPES, 1987, p.265).

Para haver uma narrativa é preciso também que exista, além da presença de

personagens e perspectivas de acontecimentos, certa hierarquização de episódios, ou seja, a

construção de uma trama, seja ela ficcional ou não. Nesse sentido, a narrativa:

(...) caracateriza-se pela disposição de episódios num arranjo perpassado por um feixe temporal, que pode engendrar noções de circularidade, progressão, fragmentalidade e simultaneidade, constituindo modos de compreensão de mundos, sejam eles assumidamente ficcionais ou sob contrato de veracidade (SERELLE, 2010, p. 864).

Em suma, como colocou Motta (2008), a narrativa é a forma pela qual os

conhecimentos tanto objetivos como subjetivos (a natureza física, as relações humanas, as

identidades, as crenças, valores etc.) do mundo são relatados. E é a partir dessa narrativa que

somos capazes de ordenar e dar uma perspectiva a coisas do mundo, com um desenrolar

lógico e cronológico. É a forma que conseguimos para compreender o mundo em que

vivemos. Motta (2008) lembra, entretanto, que, para haver algum tipo de narrativa, tem de

haver também algum tipo de troca. “As narrativas são formas de relações que se estabelecem

por causa da cultura, da convivência entre os seres vivos com interesses, desejos, vontades e

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sob os constrangimentos e as condições sociais de hierarquia e de poder” (MOTTA, 2008,

p.146).

E essa narrativa teve início junto com o mito. Por meio dele era possível haver

explicações plausíveis para os fenômenos que atingiam a humanidade. Eram os deuses ditos

“pagãos” os responsáveis, por exemplo, pelas enchentes, terremotos, pestes, falta de

alimentos, vitórias nas guerras, derrotas e outros fatos. O mito, porém, justificava os

acontecimentos, sem explicá-los. Como nos diz Sodré (2009, p.9), “(...) as ilusões míticas, os

véus que cobriam as verdades comuns, mais revelavam do que explicavam o real”.

Reportando-nos para a narrativa jornalística, é possível perceber que a presença do mito não

foi totalmente aniquilada da nossa civilização a partir do fim da Idade Antiga e do nascimento

da sociedade cristã. Pelo menos a notícia, com a sua narrativa própria, pode ser considerada

uma espécie de mito, segundo Bird e Dardenne (1996).

Uma das formas mais produtivas de ver as notícias é considerá-las como um mito, um ponto de vista que dissolve a distinção entre entretenimento e informação. Com isso não queremos dizer que as notícias individuais são como mitos individuais, mas enquanto processo de comunicação, as notícias podem atuar como mito e folclore (BIRD; DARDENNE, 1996, p.266).

Bird e Dardenne (1996) assinalam que as notícias não oferecem, principalmente aos

telespectadores, no caso da TV, apenas fatos. O seu caráter mítico está justamente nelas serem

uma forma de se criar ordem e desordem, oferecer tranquilidade e familiaridade em

experiências comuns a todos os cidadãos e, principalmente, fornecerem explicações prontas

para problemas complexos como, por exemplo, a inflação. No jornalismo policial, por

exemplo, a somatória das matérias de crimes acaba se tornando um mito de valores.

As notícias são um tipo particular de narrativa mitológica com os seus próprios códigos simbólicos que são reconhecidos pelo seu público. Sabemos, quando lemos ou ouvimos uma notícia, que estamos numa “situação narrativa” particular que exige um tipo específico de posição para se compreendida (BIRD; DARDENNE, 1996, p.267).

Antes de estudar com mais profundidade a narrativa jornalística, é interessante

observar outra forma de análise, presente no pensamento de Sodré (2009). Seria uma visão

mais histórica, lançada sobre uma mudança de paradigma da humanidade. Quando, na

passagem da dita antiguidade para a modernidade12, o mito deixou de ser a explicação para os

12 Com a observação, é claro, que houve outros períodos analisados pelos historiadores desde a antiguidade até a dita modernidade, como a Idade Média.

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fatos, surgindo depois o chamado Estado de direito, no lugar do Estado absoluto. Irrompia,

aí, o conceito de ideologia, que também pode ser utilizado no estudo da narrativa.

Emergindo, historicamente na passagem do Estado absoluto ao Estado de direito, como porta-voz dos direitos (civis) que inauguraram a modernidade da cidadania, a imprensa traz consigo a novidade ideológica da liberdade de expressão, mas sem abandonar por inteiro a garantia de alguns velhos recursos mitológicos, a exemplo da construção de uma narrativa sobre si mesma como entidade mítica que administra a verdade dos fatos sociais, e mais, a retórica encantatória na narração fragmentária sobre a atualidade (SODRÉ, 2009, p.12).

Wolf (2008) observa que uma das formas de a imprensa se apresentar como uma

entidade que administra a verdade é se intitulando a guardiã da moralidade no que diz respeito

ao controle dos bens públicos. “É claro que os meios de comunicação de massa servem para

reafirmar as normas sociais, denunciando seus desvios à opinião pública.” (LAZARSFELD-

MERTON apud WOLF, 2008, p.56). Mas lembra, por outro lado, que esses meios, mesmo

tendo um discurso e uma narrativa progressista, não resistem a uma análise de sua estrutura

funcional e de uma verificação sobre quem são seus acionistas principais, quase sempre

ligados ou associados a grandes grupos econômicos e, consequentemente, impedindo a

veiculação de notícias que não são interessantes para suas pretensões econômicas. Logo, fica

claro, para Wolf (2008), que aí vão ser percebidas outras funções, como a de contribuir para o

conformismo.

O impulso que leva ao conformismo e é exercitado pelos meios de comunicação de massa deriva não apenas do que é dito, mas, sobretudo, do que é ocultado. De fato, esses meios não apenas continuam a afirmar o status quo, mas, na mesma medida, deixam de levantar os problemas essenciais acerca da estrutura social. (...) Os meios de comunicação comercializados ignoram os objetivos sociais quando estes se chocam com a vantagem econômica (...). Ao ignorar sistematicamente os aspectos controversos da sociedade, a pressão econômica impulsiona em direção ao conformismo (LAZARSFELD-MERTON apud WOLF, 2008, p. 58).

Mas, retornando à ideologia, Sodré (2009) lembra também que o termo teve acepções

diversas tanto com o passar do tempo como quando utilizado por pensadores diferentes. Pode

ser considerada, por exemplo, uma falsa consciência do mundo, dentro da teoria marxista, que

a entendia como uma ilusão metafísica. As superestruturas13 seriam responsáveis por iludir o

13 Segundo a teoria marxista, superestrutura é um dos níveis da estrutura social, sendo o outro nível a infraestrutura, ou a base econômica. Sobre essa base, é construída a superestrutura, que se constitui das instituições criadas para, em última instância, manter e legitimar a dominação realizada na estrutura econômica. A superestrutura seria composta, então, pela estrutura jurídica (o Direito e o Estado) e a ideologia (moral, política, religião etc.).

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indivíduo, que não perceberia, grosso modo, estar sendo manipulado e explorado pelos

donos dos meios de produção (na sociedade capitalista). O discurso, então, seria uma

narrativa, que por meio dessas superestruturas, nada mais fazia do que representar as idéias

dos dominadores. Mesmo distante da teoria marxista, certo consenso sobre a definição de

ideologia pode ser encontrado no vocabulário intelectual: “Sistema de idéias ou pensamentos

organizados, por parte de um grupo ou indivíduo, portanto, um instrumento doutrinário

diferencial da classe em ascensão, sujeito às distorções da realidade ou dos fatos em favor da

vitória na argumentação” (SODRÉ, 2009, p.10).

A análise da narrativa jornalística, assim, deve ser observada dentro de um processo

histórico, no qual a burguesia chegou ao poder há cerca de três séculos. Como consequência,

a imprensa burguesa transformou a notícia em uma espécie de commodity, onde a narração é

racionalizada e envolta em conceitos como verdade factual, distanciamento do narrador dos

acontecimentos e, por conseqüência, imparcialidade. E é esta narrativa jornalística que precisa

ser entendida, seja do ponto de vista da ideologia, seja pelo mito ainda presente na notícia,

para que possamos analisar, depois, a linguagem dos telejornais que cobriram a greve dos

policiais.

4.1.2 A narrativa jornalística

A narrativa jornalística não é uma exceção e, como toda narrativa, é baseada em um

fundo ético e moral. Motta (2008) também lembra que o principal objetivo do jornalista é

tentar ser retirado da narração do fato, para que a cobertura pareça a mais neutra possível.

Quanto mais o profissional é esquecido na hora de fazer a narração, melhor14. Assim, a

cobertura dos fatos pode ser feita com a maior verossimilhança possível. E se a narrativa é

carregada dessa premissa de neutralidade, os fatos que são alvo de representação, que

interessam ao telejornal, o são porque transgridem algum preceito ético ou moral, ou alguma

lei ou consenso cultural, já que, para atrair a atenção do telespectador, eles têm de se

apresentar como algo que esteja fora do seu cotidiano. A notícia tem de ser uma ruptura em

relação a algo considerado como correto ou que já tenha se tornado estável em determinada

cultura.

14 É bom lembrar que aqui estamos tratando das notícias “pesadas”, as hard-news, do dia a dia. Em coberturas mais elaboradas como, por exemplo, a política, ao contrário, é bom que o jornalista se mostre, muitas vezes, próximo aos acontecimentos. É o caso, por exemplo, de um comentarista que afirma “ter uma fonte que lhe garantiu que” (...).

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A situação inicial de uma narrativa jornalística é, quase sempre, um fato de conotações dramáticas imediatas e negativas, que irrompe, desorganiza e transforma. É, portanto, uma situação dramática desde o início, um conflito ou situação-problema que desestabiliza, rompe o equilíbrio, traz ambigüidades. Pode ser a falta ou o excesso de alguma coisa, pode ser uma inversão ou uma transgressão, pode ser um conflito manifesto ou implícito: um crime, um golpe, uma infração, um choque, um rompimento, uma anormalidade climática, a eclosão de um fenômeno físico ou social de impacto (MOTTA, 2008, p.149).

Também é fundamental, para a narrativa jornalística, que ela seja impactante e atraia a

atenção do público. Como já foi mostrado, Wolf (2008) observa que não adianta o jornalista

ter conteúdo e um bom assunto, mas “falhar” na hora de repassar as informações. “Não há

muita utilidade em desenvolver um tipo de jornalismo aprofundado e cuidadoso se a audiência

manifesta o próprio aborrecimento mudando de canal” (WOLF, 2008, p.213).

E para evitar que esse público “mude de canal”, Wolf (2008) sugere que os jornalistas

também tenham em perspectiva histórias que possam “ter uma interpretação baseada no lado

do interesse humano, do ponto de vista insólito, das pequenas curiosidades que atraem a

atenção” (WOLF, 2008, p. 213). Portanto, o tipo de narrativa que o jornalista escolhe como

forma de informar sua audiência tem de ser estudado com a mesma importância que se estuda

o conteúdo que é noticiado. “Quando o narrador configura um discurso na sua forma

narrativa, ele introduz necessariamente uma força ilocutiva responsável pelos efeitos que vai

gerar no seu destinatário” (MOTTA, 2008, p.144). O objetivo, quase sempre, é conquistar a

confiança do leitor, ouvinte ou telespectador. O factual é utilizado para afirmar a noção de

real, de ausência de “intermediários”, e as subjetividades, como apelos emocionais, como já

foi dito, para tocar o sentimento do destinatário.

Wolf (2008) expõe, assim, algumas categorias usadas para identificar os

acontecimentos que respondem a esse requisito de noticiabilidade. O primeiro seriam histórias

de pessoas comuns que passam a agir em situações insólitas, diferentes ou, de outro modo, o

lado particular de pessoas públicas, que passam a ser observadas na sua vida privada

cotidiana. O segundo seriam histórias onde há uma inversão de papéis, como um homem que,

para se defender, teria mordido um cão. O terceiro seriam estórias de interesse humano, e o

quarto a narração de feitos excepcionais, heróicos.

Sodré (2009) já localiza a narrativa jornalística como algo menos dirigido a convencer

ou até a manipular um destinatário, e sim como uma espécie de fórmula pré-pronta, necessária

para permitir que o trabalho do jornalista flua com mais facilidade. Como a notícia se tornou,

nas sociedades capitalistas, uma necessidade dos cidadãos - que a consomem como se fosse

um produto, uma commodity -, é preciso que sua produção seja rápida e incessante. “O plano

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do jornalismo é o de uma literatura para imediato consumo – donde, muitas vezes o seu

caráter efêmero –, uma literatura dotada de certa funcionalidade, onde a esquematização é,

sob muitos aspectos, necessária” (SODRÉ, 2009, p.139).

Essa necessidade de se produzir notícias de forma industrial provoca a criação de uma

cultura jornalística que, muitas vezes, acaba deixando de fora da mídia fatos relevantes, que

fogem da cartilha da noticiabilidade, desenvolvida pela rotina da imprensa e compartilhada

com o público. Esses fatos, apesar de atingir, muitas vezes, os pré-requisitos exigidos para

que tenham o chamado valor-notícia15, acabam sendo barrados pelo chamado gatekeeper, ou

porteiro, não sendo noticiados pela mídia. Sodré (2009) exemplifica a afirmação com o fato

de a chamada grande imprensa ter sempre interesse em fazer reportagens que mostram

ataques de cães da raça pitbull, conhecida pela sua voracidade, e quase nunca se interessar por

reportagens que mostrem o risco representado por outros cães, domésticos ou não. No Estado

do Rio de Janeiro são, em média, 20 mil ataques por ano. Quantos seriam da raça pitbull?

Wolf (2008) chama de zonas-filtro os locais onde ficam os gatekeepers. “Nesse caso,

um indivíduo ou um grupo tem o poder de decidir se deixa passar ou interrompe a

informação” (WOLF, 2008, p.184). Porém, esses valores-notícia são critérios de relevância

que estão presentes durante todo o processo de produção, não só na escolha, mas também em

processos posteriores, como a edição. Ou seja, um assunto que entrou na preparação para ser

transformado em notícia pode ser excluído durante o processo.

Já no caso das reportagens produzidas ou pautadas, Wolf (2008) observa que a

principal fonte de expectativas, orientações e valores profissionais não é público – como

deveria ser – e sim o chamado grupo de referência, que seriam os colegas e superiores. Os

motivos para isso são muitos, entre eles o fato de assim o trabalho ficar mais “agradável” e

mais fácil, além da possibilidade de conseguir certa estima com as lideranças. O resultado,

entretanto, é que o jornalista, no dia a dia, “em vez de aderir a ideais sociais e profissionais,

redefine os próprios valores no nível mais pragmático do grupo relacional” (BREED apud

WOLF, 2008, p.187).

E, voltando aos factuais, Motta (2008) observa que, quando captados pelas redações,

mesmo sendo histórias separadas e diferentes, esses fatos acabam se tornando parte única de

da narrativa de um telejornal. Assim, são associados em conjuntos pelas pessoas, que colocam

o episódio de hoje na história de ontem, relacionam pontos, associam antecedentes e

15 Valor-notícia ou noticiabilidade, segundo Wolf (2008), corresponde ao “conjunto de critérios, operações e instrumentos com os quais os aparatos de informação enfrentam a tarefa de escolher, cotidianamente, de um número imprevisível e indefinido de acontecimentos, uma quantidade finita e tendencialmente estável de notícias” (WOLF, 2008, p.196).

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consequentes, e acabam agrupando todas essas notícias como uma grande história temática.

Todos os fatos, juntos, formam algo único, o telejornal. Esses fatos também podem gerar,

cada um, separadamente, continuações. São reportagens que vão complementar ou dar

sequência ao assunto. Essas reportagens são chamadas de “suítes”.

O jornalismo vive de criar expectativas. Enquanto permanecem abertos, esses episódios capturam o espírito, “sequestram” e reforçam o contato com o leitor. (...) O retardamento (enquanto estratégia) cria tensão, gera expectativa e estabelece um tipo de comunicação singular (MOTTA, 2008, p. 151).

Motta (2008) analisou os artifícios usados nessa narrativa jornalística para que o texto

consiga esse resultado. O uso de personagens é uma forma muito corriqueira de ajudar na

comunicação de uma ideia ou acontecimento. Esse personagem é, quase sempre, apresentado

no sentido de legitimar o tema da reportagem, não importando, na maioria das vezes, quem

ele seja, e sim como ele é apresentado ao público. Ele pode ser um político corrupto, mas se

foi apresentado como, por exemplo, um colecionador de selos, em uma matéria sobre hobbies,

ele teve outro significado dentro da narrativa. Portanto, é preciso entender a narrativa do

personagem, e não apenas quem ele é.

Outro artifício, como já foi citado, é a necessidade do jornalista de estar afastado do

fato que noticia. Ao contrário da ficção, que sempre tem a presença do narrador, de forma

implícita ou explícita, o jornalismo faz questão de “sumir” com esse narrador, o que também

deve ser entendido como uma forma de criar um ar de verossimilhança na sua narrativa, como

se estivesse reproduzindo objetivamente os fatos, sem nenhum tipo de edição dessa realidade.

O público aceita, de forma consciente ou inconsciente, esses mecanismos usados na narrativa

jornalística. Como observaram Bird e Dardenne (1996), “(...) sabemos, quando lemos ou

ouvimos uma notícia, que estamos numa ‘situação narrativa’ particular que exige um tipo

específico de posição para ser compreendida” (BIRD; DARDENNE, 1996, p.267).

E esse “pacto” também permite que o jornalista insira, no texto, conteúdos que

provoquem, no receptor, outros efeitos de sentido, além da sensação de que ali existe uma

reprodução do real, do fato acontecido. Entre esses efeitos, podemos citar a comoção, a dor, a

compaixão, a ironia, o riso, a pena, o desprezo, o ódio, a repulsa, a indiferença, sem nunca se

esquecer que é preciso manter a credibilidade da narrativa. Essa estratégia de plasticidade

também é mantida com artifícios como, por exemplo, o uso de especialistas para legitimar

algum tipo de conclusão ou paradigma. Muitas vezes, esse especialista ajuda o jornalista na

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construção de sua narrativa, mas também não é incomum que entre na narrativa apenas como

alguém que “autoriza” o jornalista a dissertar sobre determinado conteúdo.

O uso de números é outra forma da narrativa se apresentar como verdadeira e

inquestionável. Estatísticas e pesquisas fazem do texto algo confirmado empiricamente,

correto e legitimado. Dados históricos também são muito bem-vindos como forma de

relembrar, ao destinatário, que algum fato não é isolado, que representa algo que já aconteceu

e deve ser analisado com mais cuidado e atenção. Ou seja, são inúmeros os artifícios usados

pela narrativa jornalística para conquistar e convencer o público de que o conteúdo

apresentado é uma compilação do que aconteceu no mundo.

Com o desenvolvimento tecnológico e a disseminação de aparelhos que capturam

tanto fotos como vídeos, tornou-se comum o uso de imagens feitas por terceiros, que se

incorporam à narrativa como forma de legitimar o “efeito de real”, como se o que é feito por

um cidadão tem completa garantia de que não foi manipulado. O tema foi abordado na

dissertação de João Luis Carvalho (2010), que denominou essas imagens de “sujas”, visto que

produzidas sem as preocupações de qualidade e técnica comuns às equipes profissionais de

TV. Por isso mesmo, como já foi observado, acabam sendo usadas como forma de reforçar

essa “sensação de real”. Seria como algo que não foi trabalhado, não foi editado, e feito por

alguém que estava no local na hora em que o fato aconteceu.

Porém, é interessante observar que a narrativa jornalística não se apresenta pronta e

acabada com uma versão consolidada de verdade. O jornalista, quando faz a cobertura de um

fato onde mais indivíduos ou instituições estão envolvidos ou até mesmo em desacordo, tem a

obrigação de ouvir todos os lados. A versão de real que é passada ao receptor é também a

versão de cada envolvido sobre os fatos acontecidos. Machado (2001) observou o fenômeno

nos telejornais, porém acreditamos que qualquer texto jornalístico tenha o dever de seguir esta

regra.

O fluxo telejornalístico inteiro não passa de outra coisa que uma sucessão de “versões” do mesmo acontecimento. A questão da verdade está, portanto, afastada do sistema significante do telejornal, pois, a rigor, não é com a verdade que ele trabalha, mas com a enunciação de cada porta-voz sobre os eventos (MACHADO, 2001, p.111).

Esse processo que permeia a narrativa no jornalismo pode, ainda, mudar e se

transformar de acordo com a necessidade e com a aceitação da sociedade, que é, no final, a

consumidora do produto notícia. Ou seja, essa narrativa é consequência de uma sociedade e

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de seus valores e, ao mesmo tempo em que é alimentada por esses valores, também produz

mudanças sobre eles.

O estudo da narrativa para encontrar um ponto de acesso à cultura, argumentando que os textos, tais como os rituais, a arte, os jogos e outras configurações simbólicas são “modelos” culturais que codificam valores e guias de comportamento. Se estudarmos estes modelos, dos quais as narrativas noticiosas são um tipo, podemos apreender acerca dos valores e símbolos que têm significado numa dada cultura (BIRD; DARDENNE, 1996, p.271).

4.1.3 A narrativa no telejornal

A narrativa do telejornal, seja em qualquer emissora de TV, segue, em seu contexto

verbal, a uma premissa única: a oralidade. Tanto repórteres, como editores e apresentadores –

e todos os envolvidos na produção de programas, inclusive os convidados – devem, sempre,

usar uma linguagem coloquial, mais simples e popular, para que a processo comunicacional

ocorra com eficiência junto a todos os receptores, sejam eles de qualquer nível social ou

intelectual. O telejornal também se diferencia dos outros meios de comunicação (é bom

lembrar que a internet, híbrida como é, também utiliza técnicas tanto do telejornal como da

imprensa escrita) por se preocupar, primordialmente, com o impacto das imagens. A narrativa

é uma combinação dessas imagens com o texto, que acaba obedecendo também a um critério

noticioso voltado para temas que proporcionem imagens mais impactantes.

A televisão desenvolveu uma tendência maior para o espetáculo. O que quer dizer, em termos práticos, que seus produtores buscam imagens que mostrem sensações, emoções fortes, que dramatizem e descrevam a ação dos conflitos. Assim, entre os fatos de maior importância, é selecionado aquele com melhor imagem, ou seja, a mais dramática e espetacular. Nessa perspectiva, a imagem no telejornal o dotaria de especificidade, em relação aos outros discursos jornalísticos, ao lhe proporcionar mostrar o inusitado, o diferente e o inesperado (CARVALHO, 2010, p.49).

E, para atender a essa necessidade de atrair o telespectador – que, ao contrário de um

jornal impresso, não tem a possibilidade de, em uma página, escolher o que vai ler, por

exemplo –, o bombardeia, constantemente, com informações, sejam verbais ou imagéticas,

que se sucedem, não necessariamente em uma sequência narrativa lógica. Essa narrativa é

subdividida em unidades, que facilitam o trabalho dos jornalistas.

A menor unidade é denominada, nas redações, como nota (ou nota seca, sem

imagens), e consiste em um texto de, na maioria das vezes, 30 segundos, que é lido pelo

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locutor ou âncora do jornal, sem que se tenha nenhuma imagem para ilustrá-lo. A nota seca é

usada, principalmente, quando uma informação de relevância chega à redação, e não se tem

tempo nem condição logística ou interesse da editoria em conseguir imagens sobre o tema. E

por falta dessas imagens, o texto deve ser o mais claro e objetivo possível, para evitar perder o

efeito comunicacional, limitando a compreensão do telespectador.

Quando é possível ter imagens para cobrir essa nota, ela passa a ser denominada como

loc off, e já permite ao editor que produz o texto articular as palavras com as imagens. É

importante lembrar que a sincronia entre ambos dá-se em uma operação que é feita ao vivo,

que tem de ser bastante correta para não confundir o telespectador.

A partir do momento em que o assunto adquire mais importância e existem entrevistas

(sonoras) que podem ser usadas, os editores têm a opção de decidir por transformar o loc off

em uma nota coberta. Nela, o texto é gravado, seja por um repórter ou pelo apresentador, e

editado antes de ir ao ar. Nele, podem ser inseridas as sonoras que complementam a narrativa.

O termo nota coberta também é muito usado para designar uma reportagem feita na rua, mas

na qual o repórter não aparece, não faz a chamada “passagem”. Nesse caso, dependendo da

redação, o material editado é chamado tanto de reportagem como de nota coberta.

Já quando o repórter “aparece” no trabalho, fazendo uma passagem (ou encerramento,

se essa participação estiver no final da narração), o nome dado é matéria. É como se fosse um

serviço completo, com mais conteúdo, de um assunto que também, por ser importante,

mereceu mais atenção dos jornalistas. Também está se tornando cada vez mais comum o uso

do chamado “plano sequência”, quando o repórter narra os acontecimentos “in loco”, sendo

em off (não aparecendo nas imagens) ou em frente à câmera. Com esse tipo de narrativa, o

jornalista costuma passar, ao telespectador, uma sensação de proximidade do fato além de

usar uma linguagem mais coloquial, mais próxima também do destinatário, como numa

conversa. Porém, essa estratégia pode provocar certa quebra no conceito já citado, de que a

narrativa jornalística preza, principalmente, por tentar ficar o mais distante dos

acontecimentos, quando lida, como já foi dito, com fatos relativos a crimes, por exemplo.

Weaver (1996) observa, porém, que esse conceito de distanciamento da notícia é mais comum

ao repórter do jornal impresso, que, na maioria das vezes, tenta ficar incógnito.

A notícia no jornal adota uma voz narrativa intensamente impessoal. Em certa medida, isto significa que o repórter, ao escrever a sua ‘história’, nunca fala na primeira pessoa... E nunca faz referência a seus próprios atos na observação dos acontecimentos e na busca dos fatos (WEAVER, 1996, p.300).

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Porém, para o autor, na televisão, a situação é bastante diferente. Mesmo se

apresentando como alguém imparcial, o repórter se mostra também onipresente e o onisciente

aos acontecimentos:

O repórter da televisão na câmera apresenta poucas fraquezas. A sua postura é tranquila e de mestre, a sua voz de comando, a sua dicção perfeita; as suas deixas são faladas impecavelmente, a sua roupa impecável, feita por medida, e com combinação de cores, e o seu cabelo está perfeitamente no lugar (ou não, conforme o estilo). Ele pode ser uma pessoa, mas está claramente a desempenhar um papel, e na maioria dos casos (mas não em todos: há aqui uma medida de variedade), a postura que ele assume é de onisciência (WEAVER, 1996, p.301).

Essa reportagem de TV também, ao contrário da reportagem do jornal impresso – que

trabalha, na maioria das vezes, com o sistema de pirâmide invertida, no qual a narrativa é

formada pelo lead da matéria, seguido de informações secundárias, que vão perdendo as sua

importância gradualmente, fazendo com que o leitor decida até que ponto quer ler sobre o

assunto –, precisa ser “(...) completamente inteligível quando visionada na sua totalidade”

(WEAVER, 1996, p.299).

Para conseguir ser clara e inteligível ao telespectador, a notícia na televisão acaba

sendo bem mais engessada que em outros veículos. Depois de escolher determinado assunto,

seja ele factual ou não, como pauta de uma reportagem, o repórter deve apresentar uma

cobertura clara, centrada e completa dos acontecimentos. Ele não deve passar, ao

telespectador, a ideia de que algo ficou faltando no entendimento da notícia. Essa “falsa”

completude, segundo Weaver (1996), compromete a credibilidade do veículo.

Pelos exemplos que os seus narradores apresentam, pelas “verdades” que tão confiadamente proclamam, e pelo extraordinário poder do próprio meio de comunicação, o jornalismo televisivo encoraja os telespectadores a ter uma noção exagerada de quanto é possível saber e fazer no mundo real. Ao encorajar o pecado do orgulho, o jornalismo televisivo mostra ser, no fim, tão pouco digno de crédito como o narrador da notícia do jornal. Mas pela razão oposta: não porque diz menos do que sabe, mas porque diz mais (WEAVER, 1996, p.303).

Um exemplo dessa arrogância inerente ao veículo é a utilização do chamado

“audiofone”, uma narrativa bastante comum em telejornais, mas que vem ganhando, há alguns

anos, outra conotação. Como o próprio nome diz, o repórter entra por telefone, atualizando

alguma informação ou fazendo mesmo uma reportagem. Para “cobrir” a fala, pode-se usar

tanto uma arte com a imagem do repórter e o local de onde ele está falando, como também

imagens sobre o assunto, até mesmo de arquivo, quando essas não são factuais, mas

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combinam com a fala do jornalista. No entanto, emissoras como a Rede Record têm

aproveitado o recurso para criar uma atmosfera de informalidade na narração de fatos ao vivo

ou também de assuntos gravados. Ou seja, um repórter ou produtor ou até editor entra por

telefone e responde a perguntas do âncora ou apresentador. Esse jornalista pode estar (e na

maioria das vezes está) na própria redação, e poderia entrar ao vivo, no estúdio, mas opta-se

pelo diálogo telefônico. O objetivo, como dissemos, é criar uma intimidade com o

telespectador, que tem a sensação de estar escutando uma conversa por telefone entre dois

conhecidos. Também passa a esse telespectador a sensação que a notícia é urgente e muito

importante, um fato que teria acabado de acontecer, e, por isso, o repórter está por telefone,

passando as primeiras informações. É bom lembrar que esse artifício também é bastante

usado para narrar imagens aéreas, feitas por helicópteros equipados com câmeras, sejam

transmissões ao vivo ou não. O helicóptero sobe apenas com o piloto e o operador, e o

jornalista faz a narração da redação, por telefone.

Carvalho (2010) observa, nesse conjunto de técnicas utilizadas como uma necessidade

da televisão de passar uma sensação, ao telespectador, de que ali ele “tudo vê”.

A narrativa do telejornal e seus elementos, as imagens, o off (locução do repórter), os apresentadores, os depoimentos e as imagens se articulam para dar a sensação de tudo ver, ou melhor, de se ver um mundo completo, absoluto e articulado, gerando assim um forte efeito de veracidade (CARVALHO, 2010, p.52).

O resultado desse conjunto de narrativas é o telejornal. Como foi colocado, mesmo

sem ligações entre elas, as notícias formam uma grande narrativa. E, mesmo que o

telespectador não encontre ligações entre os assuntos, associa tanto os acontecimentos do

mesmo dia entre si como acontecimentos que foram mostrados em outras exibições do

telejornal, e que ficaram na sua memória, criando uma opinião própria sobre esses fatos.

Na grade de programação das emissoras, os telejornais, produtos de informação de maior impacto na sociedade contemporânea, “vendem” credibilidade e atraem investimentos. Além disso, ofertam conceitos, ideias, e representações da cultura e da realidade nacionais, partilhadas por grande parte dos brasileiros. É no espaço simbólico dos noticiários que – ao contrário da novela, não se apresenta, ao menos aparentemente, como ficção – acompanhamos, julgamos e construímos o cotidiano da nação, sob e sobre o olhar dos âncoras, repórteres e editores (BECKER, 2005, p.48).

Já quando alguns acontecimentos extrapolam a cobertura em apenas uma edição, eles

acabam sendo novamente assunto de reportagem no telejornal. Por meio de suítes, os fatos

são relembrados e atualizados. Essa cobertura, que pode perpassar várias edições, acaba se

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transformando em outra narrativa, uma narrativa diacrônica, que agrupa todos os fatos

relativos ao mesmo assunto, divulgados no telejornal. E é essa narrativa diacrônica, da revolta

dos policiais militares de 1997, que será foco de nosso estudo.

4.2 Aporte teórico-metodológico para análise dos telejornais

Diferentemente dos estudos citados no capítulo anterior, esta dissertação objetiva a

análise da narrativa das emissoras de TV mineiras – entendemos como “mineiras” as

emissoras que fizeram a cobertura tanto nos jornais locais, exibidos apenas no território

mineiro, como também para os jornais de rede, exibidos para todo o país, mas com equipes de

reportagem sediadas na capital – sobre o evento. Conforme discutido nos capítulos anteriores,

nos interessam a ressignificação e a espetacularização da revolta.

A crise no Polícia Militar mineira não começou no dia 13 de junho de 1997; naquele

dia, ela apenas ganhou forma, visibilidade. Os policiais de braços cruzados nos quartéis

significavam a possibilidade das emissoras de televisão ter uma imagem que ilustrasse o

episódio. A partir daí, durante cerca de 20 dias de revolta, as emissoras de TV foram

constantemente alimentadas por imagens que propiciaram ou potencializaram a criação de

uma narrativa de caos, de medo, de confusão, de tumultos e tiroteio.

Se analisarmos, mais uma vez, detalhes da cobertura da imprensa escrita, vai ser

verificado que houve vazamento de documentos oficiais que mostravam, cerca de um ano

antes da revolta, inquietação na tropa. Podemos observar que nesse período as notícias dos

veículos impressos mostravam o risco de revoltas nos quartéis, mas as emissoras de televisão

não fizeram nenhum tipo de reportagem sobre o assunto.

Porém, a partir do começo da revolta, a TV, de um modo geral, desenvolveu a

cobertura e a narrativa da revolta contaminadas pelo processo retroalimentar da midiatização.

As emissoras foram solicitadas pelos revoltosos para divulgação de suas perspectivas,

potencializando, assim, ações espetaculares. Almeida (2010) observou que os revoltosos

perceberam, desde logo, a importância da mídia para o sucesso do trabalho de conquistar

novos praças para as passeatas e assembléias. O sargento Rodrigues e o cabo Júlio definiram

desta maneira a participação da mídia durante a revolta:

A televisão estava acompanhando o movimento. Eram matérias do SBT, na Manchete e na Globo. A imprensa prestou um papel histórico, inquestionável, porque ela registrou a revolta dos praças, a busca da cidadania. A imprensa mineira buscou compreender o movimento, ela não fez o jogo do governo. Mostrou o choro, os gritos, as palavras de ordem, a revolta. Claro que tinham, de vez em quando,

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aqueles colunistas ligados ao Palácio do governo, fazendo crítica. Eu concedi inúmeras entrevistas e fotos (ALMEIDA, 2007, p.232).

Cada entrevista que eu dava, e que saia na imprensa, o coronel me ligava. Eu já lhe disse que não quero que você fale nada. A cada notícia que eu dava, eu ficava entre a cruz e a espada. Eu tinha de usar a mídia para poder convocar o pessoal para as assembléias. Quanto mais gente aparecesse, quando maior fosse a movimentação, maior seria o instrumento de pressão para o nos atender. Mas eu não podia fazer isso: era crime militar (ALMEIDA, 2007, p.241).

Fica claro, pelas falas do sargento Rodrigues e do cabo Júlio, que a mídia era um

instrumento para os revoltosos, que sabiam do seu poder e da capacidade de atingir todos os

policiais, mesmo no interior do Estado, que, por algum motivo, não tivessem acesso a

informações sobre novas decisões. Para ter êxito no seu objetivo comunicacional, os praças

perceberam logo que, ao contrário do que tinha acontecido antes do começo da revolta, era

preciso alimentar a mídia com novos fatos e novas imagens, para, daí, conseguir o retorno

esperado. E cada vez que a mídia reproduzia os acontecimentos, o fazia com uma nova

significação, pois embutia, nesses fatos, novos valores, novas formas de percepção do factual,

gerando, assim, a ressignificação dessa realidade.

É importante lembrar, entretanto, que esse acordo tácito entre mídia e revoltosos só foi

possível dentro da lógica do espetáculo, na qual as emissoras, no intuito de se destacar na

cobertura de fatos espetaculares, perderam o que já foi citado anteriormente, a tendência a se

manterem aliadas ao poder constituído.

4.2.1 Recorte empírico

Para permitir mais objetividade durante a análise, já que o acesso ao arquivo das

emissoras não é facilmente franqueado, optamos por examinar as reportagens no período do

dia 12 ao dia 28 de junho de 1997, em que a revolta foi mais visível na mídia. Serão

analisados os jornais locais, do horário do começo da noite, das emissoras Globo Minas,

Record Minas e Band Minas.

O material da Globo foi analisado por meio de matérias disponíveis no site Youtube,

pois a emissora, mesmo depois de receber um ofício solicitando a liberação do material

editado no período, não forneceu os vídeos e não permitiu nossa consulta aos arquivos. Já no

caso da Record Minas e Band Minas, tivemos acesso a todo o material produzido pelas

emissoras, mas fora do contexto dos jornais, devido ao fato das matérias terem sido

arquivadas separadamente.

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Outro estudo que vai ser feito é sobre a ausência do conteúdo. Um exemplo é o

vazamento de relatórios secretos da PM no jornal Estado de Minas, meses antes do começo da

revolta. O assunto, apesar de inédito, não foi explorado pelas emissoras de TV. Houve outros

episódios, como reportagens veiculadas em emissoras de rádio, mas que não pautaram as

TVs, como é de costume. Esse desinteresse que deixou as TVs e sua audiência longe do

processo de revolta também é um importante objeto de análise.

3.2.2 Movimentos da narrativa

Os estudos vão ser feitos utilizando-se a metodologia desenvolvida por Motta (2008).

Para o autor, existem reportagens que podem ser consideradas histórias com começo, meio e

fim, se tornando, assim, narrativas fechadas. Mas não é esse o caso que ele propõe analisar, e

não é também o nosso caso. No estudo, “(...) vamos analisar um conjunto de notícias isoladas

sobre um mesmo tema, publicadas dia após dia, que aparentemente não possuem

narratividade” (MOTTA, 2008, p.145). Assim, vamos entender todo o conjunto de notícias

sobre a revolta dos militares como algo único, um acontecimento singular, englobando

também, é importante dizer, as notícias publicadas, por outros veículos, antes do “estopim”

que detonou a crise. Isso porque, como Motta (2008) observou, “(...) as narrativas são formas

de relações que se estabelecem por causa da cultura, da convivência entre seres vivos com

interesses, desejos, vontades e sob os constrangimentos e as condições sociais de hierarquia e

poder” (MOTTA, 2008, p.146).

O autor apresenta seis movimentos, que devem ser observados na narrativa, para que

haja uma análise mais objetiva, porém, não é necessário e não vamos também seguir à risca

todos os passos e nem manter a ordem apresentada.

1º movimento: recomposição da intriga ou do acontecimento jornalístico.

É preciso religar as partes da narrativa jornalística, que é, quase sempre, e no caso do

nosso objeto, feita de fragmentos com significações parciais. Faz-se necessário a reunião

desses fragmentos para que se consiga, a partir daí, um corpus único. Motta (2008) chama

essa síntese de “(...) acontecimento jornalístico, que irá reorientar toda a análise a partir de

então” (MOTTA, 2008, p.148).

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2º movimento: identificação dos conflitos e da funcionalidade dos episódios

A narrativa jornalística lida com ruptura, logo o conflito é o elemento estruturador

dessa narrativa. Pode ser a falta ou o excesso de alguma coisa, uma inversão ou transgressão,

um conflito manifesto ou implícito, um crime, um choque, um fenômeno da natureza, social;

é fundamental a identificação desse conflito – com dois ou mais lados envolvidos –, que

permitirá discernir e compreender como funcionam os episódios. É bom lembrar que, na

narrativa jornalística, é comum a história começar pelo seu clímax, que seria um corte na

situação dita estável. Porém, na nossa análise, vamos observar também o processo que

provocou esse corte.

3º movimento: a construção de personagens jornalístico-discursivas

Junto com os episódios, é preciso identificar as personagens que produzem os fatos.

Elas podem ser protagonistas, antagonistas, heróis, anti-heróis, doadores, ajudantes e outros.

Nas reportagens, os personagens costumam ganhar contornos fortemente individualizados,

fazendo com que toda a narrativa circule por eles. Mas é importante também observar que

vamos analisar, aqui, as versões narrativas apresentadas sobre os fatos. A história em si,

reconstruída no segundo capítulo, também em uma narrativa particular, permanecerá sempre

como pano de fundo.

4º movimento: estratégias comunicativas

Na ficção, o narrador está sempre presente, de forma clara ou não. Na narrativa

jornalística, esse narrador tenta, na maioria das vezes, desaparecer. A fala é dissimulada

como se ninguém estivesse por trás da narração. Porém, existe, sim, um narrador, que deve

ser percebido e compreendido. Estudar essa narrativa é descobrir os dispositivos retóricos

utilizados pelos repórteres, editores e outros jornalistas na luta para conseguir passar, ao

público, a sensação de real, o efeito de real. É preciso detectar também o “jogo” que é feito

entre esse efeito de real e os demais efeitos de sentido, como a comoção, a dor, a compaixão,

a ironia, o riso, entre outros. Assim, observando todos os efeitos é possível perceber como é o

efeito político do jornalismo.

Nessa construção do real, o jornalismo oferece, ao receptor, a condição de observar o

mundo, de imaginar o passado e especular sobre o futuro. Ou seja, dá, ao seu público, uma

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visão de mundo. Para uma análise bem-sucedida, é preciso, então, perguntar, à narrativa:

quais recursos da linguagem jornalística procuram transformar os fatos em algo natural, como

se fossem parte dessa narrativa? Como é possível “vender” ao leitor, ouvinte ou telespectador,

essa representação fiel da realidade do mundo? E que efeitos usa essa narrativa para dar ao

leitor uma interpretação subjetiva dos fatos, para que a história desperte também interesses

emocionais? As manchetes, de um modo geral, remetem à surpresa, ao espanto, à

perplexidade, ao medo, à compaixão, ao riso, ao deboche, à ironia, tudo para cativar o

receptor. E essa poiética tem de ser percebida durante a análise.

5º movimento: a relação comunicativa e o “contrato cognitivo”

Devemos perceber que existe um certo contrato entre o ouvinte, leitor ou telespectador

e o narrador. Esse narrador passa ao receptor a capacidade de realizar uma fusão entre as

histórias jornalísticas e as histórias de sua vida. Analisar essa “integração” faz com que

reconheçamos essa ligação entre os dois. O receptor acaba reconfigurando, com o auxílio de

sua memória cultural, a história apresentada, após unir as partes factuais com o a sua memória

cultural. A narrativa jornalística também aproveita desse “contrato” e usa termos que são

carregados de valores, como “terroristas”, “radicais”, “pivetes”, entre outros. Advérbios

também são muito usados: “apenas”, “só”, “de novo”, “ainda”... Mesmo com o uso de tantos

recursos, o desejo do jornalista de objetividade é validado pelos receptores, que acreditam

estar lendo, vendo ou ouvindo a verdade dos fatos. Esse pacto gera uma estabilidade entre os

interlocutores que torna possível e eficiente a comunicação. Só entendendo esse processo é

possível fazer uma análise das violações das máximas jornalísticas e das consequências que

elas podem provocar no conjunto da comunicação.

6º movimento: metanarrativas – significados de fundo moral ou fábula da história.

Toda narrativa se constrói em um fundo ético e moral. Logo, a notícia é quase sempre

uma transgressão dessa moral, dessa ética, de um consenso cultural. Portanto, é preciso,

durante a análise, entender e elucidar esse significado simbólico. Isso porque, no dia a dia da

produção das notícias, dificilmente tanto jornalistas como o público se dão conta do

significado exemplar ou fabular dos relatos noticiosos. E é nesse significado que é possível

encontrar os mitos mais profundos da nossa sociedade e que habitam as metanarrativas

jornalísticas: “o crime não compensa”, “a corrupção tem de ser punida”, “a propriedade tem

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de ser respeitada”, “o trabalho enobrece”, “a família é um valor supremo”, “a nação é

soberana”, e assim sucessivamente.

4.3 Análise dos telejornais

4.3.1 A ausência de reportagens como sinônimo de alienação e alinhamento com o poder

Antes de realizar a análise das reportagens veiculadas nos telejornais das emissoras

Record Minas, Band Minas e Globo Minas, como anunciado, é preciso fazer um estudo do

que já havia sido publicado pela mídia impressa e radiofônica antes da eclosão da revolta. Isso

é necessário para que possamos ter elementos empíricos para comprovar que a crise na

instituição já se arrastava há meses, sem que tivesse recebido qualquer tipo de divulgação por

parte das emissoras de TV mineiras.

O desinteresse pode ser explicado, como já foi teorizado anteriormente, pelo

alinhamento que a imprensa tem com o poder constituído, associado à alienação existente nos

noticiários televisivos, como também já foi demonstrado pelos estudos de Eco (1984).

É fato que o Comando de Policiamento da Capital, coordenado pelo coronel José

Guilherme do Couto, já se preocupava, dois meses antes da revolta, com a situação de penúria

vivida pela tropa. Essa preocupação pode ser comprovada com o envio de um memorando

oficial (nº 046.1/97) pedindo a criação de listagens com histórico de militares que estivessem

em situação de extrema pobreza, ou com desajustes conjugais, sociais ou emocionais. A lista

ficou pronta um mês depois, e foi encaminhada, em forma de ofício (nº 235.1/97), para o

chefe do Estado Maior.

Porém, o documento, que era confidencial, acabou vazando, e foi publicado, quase na

íntegra, pelo jornal Estado de Minas, meses antes da revolta. Três anos depois, quando

produziu um caderno especial sobre o assunto, o jornal comentou que havia feito o alerta:

Dois meses antes de estourar nas ruas o movimento dos policiais militares, o Estado de Minas publicou um relatório confidencial, confeccionado por comandantes de batalhões, no qual eram apontados a insatisfação da tropa e o risco de uma greve. A crise financeira que atingia os soldados, cabos e sargentos foi dissecada nesse dossiê, inclusive com relatos dramáticos de suicídios, assassinatos e alcoolismo. Após esta matéria, o jornal acompanhou as movimentações nos quartéis e outros órgãos de imprensa, especialmente a Rádio Itatiaia, alertaram para o risco do levante (SEIXAS, 2000, p.2).

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Juntamente com essas reportagens, boatos tomavam conta das tropas nos quartéis,

dando conta de que o governo não tinha nenhuma simpatia pelos policiais, como observou um

dos líderes da revolta, o cabo Júlio:

Um dos boatos dava conta de que o governador não gostava da PM. Dizia-se que um filho dele teria atirado cerveja no rosto de um soldado que estava na geral do Estádio Mineirão num dia de jogo. Também circula a história da punição de um policial do 22 º Batalhão de Polícia Militar que, num posto de gasolina na Avenida Nossa Senhora do Carmo, aborda o filho do governador e diz: “fala para o seu pai dar um aumento para a gente”. O comentário do militar chegou ao conhecimento do Comando, que o puniu com uma transferência para o interior. (RANGEL, 1997, p. 20).

O segundo boato, entretanto, acabou confirmado durante uma entrevista à rádio CBN,

concedida pelo coronel José Guilherme do Couto, que afirmou, para justificar a possível

punição do soldado, que a Polícia Militar era um serviço voluntário, e quem não estivesse

satisfeito com os salários poderia, muito bem, pedir dispensa e procurar outro tipo de

atividade.

Apesar de a televisão muitas vezes se pautar por jornais impressos ou por escutas

feitas nas rádios – que historicamente e pelas características do veículo, são mais ágeis na

obtenção das notícias –, nenhum desses episódios provocou qualquer tipo de pauta nas

redações das emissoras de TV mineiras. Durante meses, os praças se mostraram revoltados

mas nada motivou qualquer tipo de reportagem, por menor que fosse, na tela das TVs.

Críticos podem dizer que a TV precisa se pautar por imagens, e o assunto não as oferecia para

que a história fosse contada. Porém, a própria imagem do relatório já permitiria a execução de

uma reportagem, isso sem mencionar a possível exemplificação da realidade por meio de

personagens, já que militar em situação de crise financeira era algo comum, mesmo que esses

entrevistados não fossem identificados.

4.3.2 A Band Minas e o relato “isento e factual”

Apesar de os jornais impressos do dia 13 de junho de 1997, como foi mostrado no

segundo capítulo, estamparem fotos de praças de braços cruzados no Batalhão de Choque, a

emissora somente começou a cobrir a revolta dos praças no dia 13. No dia 12, quando até

colchões foram queimados no batalhão, não houve nenhuma cobertura no jornal do começo

da noite. A primeira reportagem localizada no arquivo da emissora sobre a revolta foi da

repórter Renata Peret. Ela começa com a informação de que a madrugada tinha sido de

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concentração no Batalhão de Choque, onde ninguém tinha saído nem para ronda nem para

registro de ocorrências. Informa depois que pela manhã um grupo de policiais desarmados

tinha começado uma marcha por melhores salários e condições de trabalho. Um contracheque

mostrava que um soldado com 13 anos de serviço ganhava menos de duzentos reais por mês.

Depois, mostrou o apoio de alunos de uma escola estadual aos revoltosos. Na Praça Sete, a

reportagem mostra mais apoio da população e ressalta que militantes da CUT, a Central Única

dos Trabalhadores, que tentaram participar da caminhada, foram retirados e uma bandeira da

entidade rasgada. Na passagem, a repórter informa apenas que os manifestantes chegaram até

o Palácio da Liberdade, onde foram recebidos com os portões fechados.

Figura 11: Reprodução de passagem da repórter Renata Peret em frente ao Palácio da Liberdade. Fonte: Band Minas, 13 de junho de 1997.

Depois mostrou que os praças vaiaram o comando, cantaram o Hino Nacional,

queimaram os contracheques e receberam voz de prisão por parte do comando da PM, que,

entretanto, não explicou como eles seriam presos. A reportagem afirma ainda que uma

comissão tentou negociar com o governo, mas sem sucesso, e finaliza com uma fala do

secretário de Governo, Agostinho Patrus, que afirma que o governador espera autorização da

Assembléia para estender o aumento também aos praças.

Na reportagem nacional, a cobertura é mais completa. O repórter Guilherme Menezes

acompanhou os grevistas de volta à Praça Sete e rodoviária de Belo Horizonte, onde

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aconteceu uma assembléia. O repórter disse então que os líderes decidiram continuar a

paralisação, agora dentro dos quartéis, sem sair para o trabalho. E avisou que o comando

ameaçava prender e expulsar os revoltosos, terminando com a sonora de um comandante

dizendo que a reivindicação é válida, mas não daquela forma.

Figura 12: Reprodução de passagem do repórter Guilherme Menezes. Fonte: Jornal da Record, 13 de junho de 1997.

Se forem aplicados os movimentos da narrativa, de Motta (2008), na cobertura feita

pela Band Minas no primeiro dia da revolta, é possível chegar a algumas conclusões. No

primeiro movimento, não há como pensar em fazer uma síntese das narrativas, já que a

emissora se pautou apenas pelo factual, sem fazer nenhum outro tipo de reportagem sobre o

assunto. No segundo movimento, é possível concluir que a cobertura jornalística começa

mesmo pelo clímax, já que a passeata dos praças foi o ponto mais importante do começo da

cobertura. Porém, no terceiro movimento, é fácil perceber uma história, um enredo, mas

faltam os personagens. Existe um personagem só, que são os milhares de revoltosos, mas

nenhum líder, nenhum policial que se apresente como exemplo da falta de condições de vida,

deixando assim a cobertura bastante impessoal, calcada apenas na narração dos fatos, sem

nenhum tipo de análise. No quarto movimento fica evidente a tentativa, mais uma vez, de

demonstrar impessoalidade na cobertura, quando os repórteres usam uma narrativa

absolutamente factual, e se limitam a reproduzir os acontecimentos, apesar de essa narração

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estar carregada de impressões pessoais, como do tipo “a população apóia”, entre outras. A

própria passagem da repórter, dizendo que os praças chegaram ao Palácio da Liberdade e

encontraram os portões fechados, já é um exemplo de uma forma de observar o tipo de

tratamento que o governo estava dando aos grevistas, de desprezo pela revolta. No quinto

movimento, é possível perceber a memória que é ressaltada nas matérias quando policiais

entrevistados, sem se identificar, dizem que são a melhor polícia do Brasil. O minuto de

silêncio, além do fato dos militares cantarem o hino, demonstram também fortes valores

patrióticos, muito reforçados na caserna. O sexto movimento talvez seja o mais facilmente

perceptível. Existe, nas reportagens, uma ruptura histórica como a disciplina. Isso fica claro

quando os comandantes informam que todos os praças estão presos, sem informar como.

Questiona-se um mito, porém não é percebido um repúdio por parte nem da imprensa e nem

do público.

A espetacularização da notícia pode ser percebida na escalada16 do Jornal da Band, o

jornal mais importante da emissora e em rede nacional. O apresentador alerta que a PM de

Minas, a mais antiga do Brasil, para e queima os contracheques. Na cabeça17, lida pelo

âncora Paulo Henrique Amorim, é possível perceber também fortes valores morais, como o

fato de a PM mineira ser a mais antiga do Brasil e de Tiradentes ter sido seu alferes, além da

corporação ter sido a primeira a marchar na “revolução de 1964”. E destaca: pela primeira

vez, em 222 anos, a PM entrou em greve. A análise da narrativa demonstra um grau de

independência em relação ao Governo do Estado, o que não aconteceu na primeira

reportagem da cobertura local.

No segundo dia, quando foi realizada uma assembléia, a cobertura continuou bastante

factual, porém já foi mais humanizada com a presença de um casal de bombeiros que levou o

filho para a reunião, e dizia que lutava por melhores condições de trabalho porque aquela era

a profissão escolhida pelos dois.

16 Primeira parte do jornal televisivo, onde as principais notícias são manchetadas, junto com as imagens mais impactantes sobre os assuntos. 17 Parte em que o apresentador ou âncora faz o “chamado” da matéria, lendo um resumo do que vai ser mostrado na reportagem.

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Figura 13: Reprodução de matéria que mostra pai e filho bombeiro e líder da revolta. Fonte: Jornal da Band, 14 de junho de 1997.

A reportagem também já apresentava um líder, o cabo Júlio, que informava o intuito

de esperar uma posição do governo, nos próximos dez dias, para só depois os praças

decidirem o que fazer. Como o próprio cabo reconheceu, ele utilizava as entrevistas para

repassar, à tropa, em todo o Estado, o que tinha sido definido e como deveria ser a atuação

dos revoltosos nos próximos dias. Na reportagem, também é possível perceber uma diferença

no estado emocional dos militares quanto a dois assuntos: as questões disciplinares e os

baixos salários: um soldado, aparentando muita revolta, reclamou que os mais velhos eram

tratados com falta de respeito nos quartéis, e que isso deveria mudar. É possível perceber uma

diferença do estado de espírito dele em relação a um bombeiro, que pedia apenas aumento de

salário. Quando o assunto era dinheiro, não havia exaltação, além de palavras de ordem e

queima de contracheques. Mas quando o assunto era o Código Disciplinar, os ânimos ficavam

claramente exaltados, como se falar sobre as punições ferisse o senso de hombridade dos

militares. A matéria, como já foi colocado, se apresentou mais humanizada, com a narrativa

demonstrando mais liberdade, sem se preocupar apenas em narrar os fatos.

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Figura 14: Reprodução de matéria que mostra soldado revoltado com punições. Fonte: Band Minas, 14 de junho de 1997.

Durante a trégua entre governo e manifestantes, a Band Minas fez matérias mostrando

a expectativa dos dois sobre o fim do conflito. Em um 3x418, o governador alegou que os

números estavam sendo manipulados e que o menor salário de um soldado no Estado era de

pouco mais de R$ 500,00, e não duzentos como alegam alguns praças. A emissora também

informou que o governo ofereceu um abono de R$ 120,00, proposta que seria discutida em

assembléia. Porém, sem a espetacularização das passeatas, a Band Minas não se aprofundou

no assunto com, por exemplo, reportagens que poderiam esclarecer a população sobre as

consequências da revolta para o futuro da polícia militar.

O assunto voltou ao noticiário logo depois que terminou o prazo dado pelos

manifestantes ao governo. No dia marcado para a assembléia da categoria, a reportagem

acompanhou os praças de um batalhão de Contagem, na região metropolitana, até a

Associação de Praças e Soldados, onde seria realizada uma assembléia. O repórter André

Werlang observou que a determinação do comando de que os policiais não comparecessem

armados foi descumprida, demonstrando certo temor sobre os rumos da revolta.

18 Quando, depois que o locutor ou âncora lê uma cabeça chamando a entrevista, entra apenas uma fala do entrevistado e logo depois a imagem retorna para o apresentador.

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Figura 15: Reprodução de matéria que mostra policial armado em passeata. Fonte: Band Minas, 24 de junho de 1997.

Logo depois, confirmou que os policiais decidiram seguir em passeata até o Palácio da

Liberdade, mesmo com a discordância dos líderes, que queriam apenas negociar com o

governo. Fica clara aí uma sensação de que a revolta estava sem controle, e que havia risco

para a população, mas não é emitida nenhuma opinião; o repórter apenas narrou os fatos. A

reportagem terminou com a grande passeata seguindo pela Praça Sete, e recebendo o apoio

dos transeuntes. É possível perceber que outro repórter cobriria o final da manifestação, no

Palácio da Liberdade, mas por algum motivo o material não foi arquivado. Porém, na

reportagem exibida em rede, no Jornal da Band, é sensível a busca pelas melhores imagens e

pelas informações corretas e completas sobre tudo que aconteceu na praça. O repórter

Guilherme Menezes emite um juízo de valor (o primeiro observado em toda a cobertura)

quando chama de “tragédia” o que iria acontecer na praça. E explica: os manifestantes não

pararam no cordão de isolamento feito por outros PMs para proteger o quartel general da

corporação. Ali, percebendo que o clima ficou tenso, o repórter resolveu fazer uma passagem

explicando a situação e dizendo que uma comissão de manifestantes tentava negociar, mas o

que se percebia era um reforço no policiamento em frente ao prédio. Logo depois, aconteceu o

que parecia inevitável: a tentativa de invasão. O repórter narra a confusão utilizando vários

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ângulos de câmeras, inclusive de outra emissora, a Manchete, mas com imagens seladas19, que

mostram o momento exato do tiro.

Figura 16: Reprodução de matéria que mostra cabo sendo baleado em manifestação. Fonte: Jornal da Band, 24 de junho de 1997.

Uma cena que normalmente não é permitida em jornais de emissoras – poças de

sangue – é mostrada pela reportagem, como se, nesse caso, a violência e a morte fossem

diferentes das cenas de crimes comuns, que são temas de matérias durante todos os dias. A

reportagem termina com o Exército ocupando o Palácio da Liberdade e o quartel da Polícia

Militar.

Não é necessário citar todos os movimentos de Motta (2008) para perceber que o

narrador tenta ficar isento dos fatos, mas acaba emitindo, como já foi dito, juízo de valor,

além de demonstrar desaprovação pelo caos provocado pelos manifestantes, ficando ainda

mais clara a reprovação quando resolve exibir, como também já foi dito, a mancha de sangue.

É bom lembrar também que é possível perceber o chamado contrato com o telespectador,

observado no quinto movimento de Motta (2008), já que o público aceita assistir a cenas

fortes, como a mancha de sangue e os vários ângulos da cena do cabo sendo baleado, sem

sentir repugnância, como aconteceria no caso de um crime comum. Ao final, como uma

19 Quando a emissora tem uma imagem importante, que é fornecida para os concorrentes, mas com a sua logomarca na tela.

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espécie de salvador da ordem, aparece a figura do Exército, que ocupa a praça e devolve a

tranquilidade ao local. Não existe, na matéria, porém, uma discussão sobre quem deu os

outros tiros. O repórter analisa as imagens e conclui, sem se preocupar com a explicação de

um perito, que o tiro que matou o cabo partiu dos manifestantes. Fica claro aí um

comportamento típico de uma imprensa controlada pelo espetáculo, que, na necessidade de

informar com rapidez e impacto, não observa que é preciso esperar laudos ou confirmações

oficiais antes de emitir conclusões sobre crimes.

Figura 17: Reprodução de matéria que mostra cabo baleado em manifestação. Fonte: Jornal da Band, 24 de junho de 1997.

No dia seguinte, as reportagens mostravam que a população está dividida. Uns apóiam

a luta dos policiais por melhores salários, mas outros reprovavam a confusão e o tiroteio. O

prédio do comando da PM é mostrado sendo limpo, enquanto peritos retiram as balas que

ficaram nas paredes. O governador aparece em um pronunciamento oficial, dizendo que todos

os limites da tolerância tinham sido ultrapassados, mas que iria garantir a segurança da

população. Nas ruas, existia uma grande preocupação de comerciantes com a falta de

policiamento, e alguns reclamavam que já tinham sido vítimas de furtos. O líder da revolta,

cabo Júlio, é mostrado colocando um colete à prova de balas e deixando a sua casa, depois

que teria sofrido ameaças de morte. A chefe do pronto socorro onde o cabo Valério estava

internado confirmou que ele tinha passado por uma cirurgia, e que o estado era grave. Sobre

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o autor do tiro, a informação era bastante oficial, com o repórter se limitando a dizer que o

comando já sabia quem tinha atirado e que o soldado deveria ser preso a qualquer momento.

A reportagem parece apenas ser uma suíte20 dos acontecimentos, de forma burocrática e sem

explorar as imagens do dia anterior. Passa-se também a impressão de não haver interesse em

“alimentar” as polêmicas sobre o tiroteio. Uma das versões apresentadas pelos praças, de que

o coronel José Eleutério, chefe do Comando de Policiamento da Capital, teria atirado no cabo

Valério foi levantada apenas na matéria nacional, que explora novamente as imagens do

tiroteio e mostra uma entrevista com um cabo que viu o coronel trocando de arma com um

cadete. Também é mostrado que o governador se recusou a dar entrevista, e que fez apenas

um pronunciamento na TV. Apesar de não haver nenhuma crítica, a impressão que fica ao

telespectador é de um governador que tinha perdido o comando da situação, que evitava se

expor ainda mais dando declarações.

Nas outras reportagens, tanto locais como nacionais, fica a preocupação com a

segurança da população e com o risco de um possível conflito com o Exército. O general

Patrício, comandante da 4ª Região Militar, lembrou que os manifestantes são brasileiros, e

que o exército não tem a missão de ser uma força de ocupação dentro do próprio país,

reforçando a questão do mito, apresentado no sexto movimento de Motta (2008). Porém, aqui

a afirmação parece ser no sentido de combater a idéia de que o Exército Brasileiro sempre

interveio em momentos de crise nacional, aproveitando, como em 1964, para tomar o poder.

Porém, o desfile de tropas é um espetáculo à parte. Quando informaram que até tanques

estavam posicionados na região central da cidade, as reportagens passaram uma ideia de que o

Estado estava pronto para evitar qualquer tipo de baderna.

Nos dias posteriores, as matérias mostraram que o estado de saúde do cabo Valério

havia piorado, além de mostrar mais tropas do Exército chegando à capital e uma mudança

nas negociações: o governador, que continuava sem dar entrevistas, tinha resolvido se

encontrar com os revoltosos para negociar. A mensagem é de que um acordo estava perto, já

que o próprio cabo Júlio dava entrevista dizendo que se o governo melhorasse a proposta, não

ia haver mais passeatas nem assembléias. Novamente a entrevista do cabo parece uma

mensagem para o governo e para toda a tropa, de que um acordo poderia ser fechado a

qualquer momento, mas que os dois lados teriam ter de ceder para que isso acontecesse. Nas

últimas reportagens, foram mostradas imagens e entrevistas com os líderes da revolta fazendo

o sinal da vitória. Em entrevista, o cabo Júlio afirmou que a hierarquia tinha continuar como a

20 Suíte é o jargão usado em redações de TV para denominar matérias que são continuação de outras reportagens.

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base do funcionamento da PM, mas que, a partir daquele momento, com mais justiça,

reforçando, assim, a construção de personagens (movimento 3) da revolta e também o mito da

ordem e da disciplina (movimento 6) como algo tão importante para os militares e também

para os mineiros de um modo geral. As imagens do sucesso das negociações e dos praças

fazendo o “V” da vitória com as mãos passavam a sensação que tudo tinha sido resolvido. As

tropas do Exército também foram filmadas deixando o Palácio, já que não havia mais

necessidade de demonstrar força. Era o fim do espetáculo.

Novas reportagens mostraram, dias depois, a morte do cabo Valério e o começo das

retaliações aos líderes da revolta, indicando que nem tudo terminou tão bem assim para os

praças. Mas essas reportagens não fazem parte da nossa proposta de análise.

4.3.3 A TV Record e a realimentação da revolta

Uma ou duas coisas que sei sobre a greve da PM: a greve dos policiais militares de Minas Gerais, a primeira, no Brasil pós- ditadura, foi feita, em grande parte, pela mídia. Desde o primeiro momento, o tamanho da corporação, a importância da mesma, e a ira dos soldados nos mostraram que havia ali algo de diferente, de inusual. As assembléias eram concorridas. Eu e meu cinegrafista acompanhamos a pé a caminhada dos soldados, depois de uma assembléia num clube no bairro Gameleira até o grande confronto na porta do Copom, que culminou com a morte do cabo Valério. À maioria de nós, era importante não só reportar com fidelidade o que acontecia como participar do acontecimento. Distanciamento? Quem era capaz de? Foi um espetáculo? Claro que foi. Mas ninguém pode acusar de sensacionalismo. A coisa toda era sensacional, mas havia muita responsabilidade nossa por haver muita coisa envolvida e por ter gente armada o tempo todo envolvida. Mas o trabalho jornalístico foi perfeito. Exceto na visão do governo e dos comandantes. Praticamente todos os jornais, todas as tevês e rádios acompanhavam pari passu a movimentação. Não teve quem não recebesse as notícias em qualquer rincão de Minas Gerais. Mas teve o lado obscuro da mídia corrupta. No instante em que o cabo Valério tomou o tiro e seus colegas o socorriam, a fotógrafa de um semanário de Juiz de Fora, que estava tão ao lado dele, que teve a roupa salpicada do sangue, tirou a foto do momento. Cabo Valério carregado, com a cabeça pendendo, como o Cristo de Mel Gibson sendo transportado pelos apóstolos. Pois, por o jornal estar comprometido com o governo da época, a foto foi relegada na edição.Uma outra fotógrafa, que clicou momentos depois, ganhou um famoso premio de fotografia. Por muitos anos, a fotógrafa censurada mostrou a foto com um misto de melancolia e resignação (TOM PAIXÃO21).

A cobertura feita pela Record Minas começou antes da realizada pela Bandeirantes.

Demonstrando menos alinhamento com o poder constituído, a emissora divulgou, ainda no

dia do enterro do cabo Glendyson Hércules de Moura Costa, uma lapada22 onde informava

21 Texto repassado por Tom Paixão, então repórter da TV Record Minas, via internet, em 30/08/2011). 22 Um tipo de nota coberta, onde são colocados vários assuntos de menor importância, em sequência, e lidos pelo apresentador do jornal, e normalmente separados por uma vinheta. É uma forma, hoje não muito usada, de

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que os policiais do Batalhão de Choque tinham feito dezenas de ligações para a redação

reclamando que estavam presos no quartel e impedidos de ir ao velório do colega, que

acontecia em um cemitério em frente ao prédio. Também foram mostradas imagens de

dormitórios onde colchões teriam sido queimados durante os protestos sendo lavados. Foi a

primeira, apesar de tímida, informação sobre o protesto passada por uma emissora mineira ao

público.

Figura 18: Reprodução de matéria sobre protesto de PMs que queimaram colchões em batalhão. Fonte: Record Minas, 12 de junho de 1997.

A Record Minas também cobriu o velório do militar. A repórter começava o texto

dizendo que havia, no local, além da tristeza, uma revolta velada por causa das péssimas

condições de vida dos militares. Porém, não houve nenhuma menção sobre uma possível

censura por parte do comando da PM, apesar de haver poucos praças e muitos oficiais no

local. Em cada entrevista feita pela repórter com um praça, havia oficiais por perto, como se

estivessem vigiando tudo que era declarado. No enterro, enquanto o caixão descia, uma irmã

do cabo desabafou: “Cadê a justiça? Nem falar pode!” (citação oral23). A frase encerrou a

reportagem. No dia seguinte, quando os praças se recusaram a sair do Batalhão de Choque, o

colocar no ar assuntos que não bons o suficiente para se tornar uma reportagem. Em média, são usadas três frases para cada tema. 23 Entrevista obtida em reportagem do Jornal InformeMG, da Rede Record Minas, exibido em 06/1997.

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repórter Sergio Utsch utilizou um texto bastante crítico quando citou a posição do comando

da corporação sobre a crise. Em uma passagem na porta do prédio do comando geral, ele

afirmava que a informação que o Alto Comando da PM sempre tentou negar ficou “clara

hoje”, com policiais parados no Batalhão de Choque e pouquíssimo policiamento nas ruas. Ao

contrário do que mostra o quarto movimento de Motta (2008), o narrador aqui quis se mostrar

presente, deixando claro o seu descontentamento com a negação, por parte do comando, da

crise. Logo depois da matéria, o jornal local exibiu uma entrevista com um praça que, sem se

identificar, fez graves denúncias, dizendo que os militares estavam passando fome e sendo

maltratados pelos oficiais nos quartéis. Com o uniforme coberto e uma meia-calça na cabeça,

o militar passou, ao telespectador, uma impressão de medo, de suspense. A voz distorcida

também impressionava. Ficou claro o terceiro movimento, com o uso do personagem, mesmo

ele não tendo sido identificado, já que representou toda uma categoria.

Figura 19: Reprodução de passagem do repórter Sérgio Utsch em quartel da PM onde acontecia paralisação dos praças. Fonte: Record Minas, 12 de junho de 1997.

No dia da primeira passeata, entretanto, a linha editorial mudou. No lugar de uma

matéria completa, foi exibida uma nota coberta sem som ambiente e apenas narrando os fatos.

Quando narra a fogueira feita pelos militares para queimar os contracheques, o narrador diz

que eles fizeram uma “pequena fogueira”, passando a impressão de que foi apenas um

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pequeno protesto. Porém, a nota coberta termina com uma sonora de um praça de costas, sem

identificação, reclamando que o único local onde não existe democracia no país é na Polícia

Militar de Minas Gerais. Caso o objetivo da nota coberta fosse dar pouco destaque ao assunto,

a sonora acabou provocando um efeito contrário. Porém, o narrador, conforme o quarto

movimento de Motta (2008), caso não tenha conseguido sumir, ficou pouco perceptível. Se o

jornal local não deu destaque à passeata, o Cidade Alerta, então programa nacional da Rede

Record, transformou a passeata em um grande espetáculo. O repórter Tom Paixão, bastante

popular, chamava a atenção para cada movimento dos grevistas, lembrando sempre que isso

nunca tinha acontecido na história da PM; fez questão de mostrar também que a população

apoiava o protesto, além de se apresentar como alguém muito favorável à revolta, sem a

menor preocupação em ao menos parecer imparcial.

Na Praça da Liberdade, Tom Paixão fez questão de mostrar a revolta de um policial

mais velho, que também foi entrevistado pela TV Band Minas (e citado na nossa análise sobre

aquela cobertura), nervoso em falar do salário e indignado ao questionar a forma como era

tratado dentro do quartel: “precisamos de tratamento como homem dentro do quartel, pois

existe abuso de autoridade” (informação verbal24). Tudo para Tom Paixão parecia espetacular:

a queima de contracheques, o Hino Nacional, o minuto de silêncio. Todos esses fatos eram

motivo para chamar a atenção do telespectador. É fácil perceber o quinto movimento de Motta

(2008), com utilização de termos como “revoltados”, “humilhados”, “homens que nos

protegem”, entre outros. Foi quase uma catarse do repórter, que se viu livre para questionar

um governo que até então era pouco ou quase nada criticado pela mídia.

Durante o intervalo entre uma passeata e outra, a Record Minas fez duas matérias

sobre a revolta. Uma delas dava conta das decisões do governo sobre aumentos e informava

que, depois de o chefe do executivo se reunir por horas com assessores e secretários, ele

decidiu dar, aos praças, um abono de R$ 102,00. E disse, em termos de ameaça: “Esse

patrimônio não pode ser atingido por grupos que querem agir como se não fossem militares.

E, portanto, a disciplina, a ordem e o respeito são fundamentais e deverão ser mantidos, neste

momento, na vida do Estado de Minas Gerais” (citação oral25). Na outra reportagem, os

líderes dos praças, agora já definidos pela mídia e pelos revoltosos, apareceram em um

encontro discutindo os rumos da revolta. Tanto o sargento Rodrigues como o cabo Júlio

foram entrevistados, sendo que o cabo se preocupou em aproveitar a mídia para pedir a

24 Entrevista obtida em reportagem do Jornal Cidade Alerta, da Rede Record, exibido em 16/06/1997. 25 Entrevista do então governador de Minas Gerais, Eduardo Azeredo, obtida em reportagem do Jornal InformeMG, da Rede Record Minas, exibido em 19/06/1997.

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convocação de todos os praças na assembléia que seria realizada no dia 24, no Clube de

Cabos e Soldados da Polícia Militar. Com esse tipo de reportagem, a mídia, mesmo que de

forma involuntária, acabou contribuindo para que as lideranças tivessem um canal de

comunicação com todos os praças. Aí também fica claro o terceiro movimento, de Motta

(2008), já que os líderes se tornaram personagens da reportagem, sendo legitimados por ela.

Assistindo às matérias sobre a passeata do dia 24, produzidas pelos jornalistas da

Record Minas, é possível perceber que houve, desde o início, uma tentativa de conseguir os

melhores ângulos, as melhores informações, e divulgá-las; mas a Record acabou falhando, por

falta de estrutura. O repórter Tom Paixão fez, para o programa Cidade Alerta, uma cobertura

completa da movimentação, desde a chegada dos praças ao Clube dos Cabos e Soldados,

antes da assembléia, até o final da passeata. Tudo parecia espetacular. Com uma narração

apaixonada, o repórter mostrava o encontro entre praças de quartéis diferentes, a caminhada

pela cidade, pela Praça Sete, o apoio da população, e a chegada à Praça da Liberdade. Quando

os revoltosos resolveram passar pela barreira feita por outros PMs para proteger o prédio do

COPOM, o Comando do Policiamento, o clima da narração ficou ainda mais empolgante.

Porém, repórter e cinegrafista se posicionaram à frente do prédio e não filmaram o momento

dos tiros. Primeiro, Tom Paixão achou que eram bombas de efeito moral, mas o cinegrafista

se escondeu e acabou perdendo o momento do tiroteio. A emoção do repórter veio à tona de

forma expressiva quando ele percebeu que um PM tinha sido baleado, narrando que tinham

matado um PM!

Figura 20: Reprodução de passagem do repórter Tom Paixão na tentativa de invasão do COPOM, em passeata de PMs em MG. Fonte: Cidade Alerta – Record Minas, 24 de junho de 1997.

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Na reportagem feita para o jornal local, o repórter Sérgio Utsch apresenta uma

narrativa que tenta ser bastante factual, objetivando repassar como foram os acontecimentos

anteriores aos tiros e ao ferimento do cabo Valério. Provavelmente por falta de tempo, não

explora bem as imagens produzidas antes e depois do tiroteio, mas informa, sem grande

preocupação com a apuração dos fatos, que o tiro que atingiu o cabo “teria sido disparado

pelo coronel Eleutério, comandante de Policiamento da Capital” (informação verbal26).

Apesar de usar o verbo no pretérito imperfeito, o repórter não se preocupou em verificar se os

disparos teriam partido também da multidão, demonstrando pouca preocupação com uma

apuração mais detalhada dos fatos, comum dentro da lógica do espetáculo, quando os

jornalistas, objetivando sair na frente da concorrência, tentam conseguir e repassar ao público,

o mais rápido possível, todas as informações, abrindo mão assim de uma apuração mais

elaborada.

No dia seguinte, o jornalismo da emissora se concentrou em fazer o “rescaldo” da

confusão, também de forma bem factual, sem emitir opinião sobre a revolta e, desta vez, sem

levantar hipóteses sobre quem atirou no cabo. Apenas informou que o comando da PM

tentava localizar um soldado que seria o autor do disparo, e continuava negando que o coronel

Eleutério teria disparado contra o cabo. Mostrou os líderes da revolta em uma audiência na

Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais, tentando apoio para a revolta, e também foi

ao HPS, para informar o quadro de saúde do cabo Valério. A parte espetacular ficou por conta

da chegada de mais tropas do Exército a Belo Horizonte, com imagens de caminhões lotados

de soldados se deslocando para os quartéis, e afirmou que o general responsável pelas tropas

reconheceu que havia uma intervenção federal no Estado. Porém, o comandante não disse isso

de forma clara, apenas que estava cumprindo ordens, do Governo Federal, de auxiliar Minas

para controlar as possíveis “rebeliões” no Estado.

As reportagens seguem mostrando as tentativas de negociação para encerrar o

impasse. Porém, mostram também a população da cidade com medo por causa do pouco

policiamento nas ruas, o que demonstra o certo esgotamento do apoio dado aos policiais

revoltosos. Pouco depois, entretanto, o governo cedeu à pressão e reajustou o piso salarial de

soldado e detetive para R$ 615,00, colocando fim à revolta. Depois do acordo, as tropas do

Exército deixaram Belo Horizonte. A cobertura, nesse período, foi bastante objetiva, sem

nenhum tipo de espetacularização. Cenas impactantes e polêmicas somente na reportagem

sobre a morte do cabo Valério, quando repórteres questionaram parentes do militar,

26 Parte de texto de matéria do repórter Sérgio Utsch exibida no jornal InformeMG, da Record Minas, no dia 24/06/1997 .

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argumentando que ele teria morrido logo depois de ser baleado e mantido por aparelhos

apenas para evitar um clima ainda mais tenso na tropa. Os parentes negaram a hipótese. No

enterro, mais episódios típicos do espetáculo, como o desespero dos familiares, que

desmaiaram durante a cerimônia, e a pergunta que continuou sem resposta: teria ou não o

coronel Eleutério atirado no cabo? A matéria também mostrou a situação do soldado suspeito

de ser o autor do disparo, que já estava preso, mas continuava negando o crime. É possível

perceber o sexto movimento de Motta (2008), como na fala de um entrevistado: “o cabo foi

um herói, ele foi um exemplo, morreu para salvar os companheiros, a polícia tem de ser

preservada” (citação oral). Ou seja, a morte reafirmou os mitos que corroboraram com o

caráter exemplar das notícias.

Figura 21: Reprodução de matéria sobre o enterro do cabo Valério. Fonte: InformeMG – Record Minas, 28 de junho de 1997.

Apesar de não fazer parte do nosso foco de estudo, é interessante mostrar que a

Record Minas ainda mostrou, 21 dias depois da segunda passeata, a primeira matéria sobre a

possível punição dos revoltosos. O sargento Rodrigues era o primeiro a ser ouvido por um

oficial responsável pelos inquéritos. Mas o clima agora não era de espetáculo, e sim, de “fim

de festa”. Na entrevista do sargento, é possível encontrar novamente o quinto movimento de

Motta (2008), quando o militar afirma que não tinha cometido crime nenhum e estava com a

consciência tranquila. Era quase uma afirmação para o público de que ele não tinha quebrado

regra nenhuma, que também se importava com valores da sociedade, e que não deveria ser

punido.

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4.3.4 Rede Globo Minas: mais ângulos e imagens do espetáculo

A Globo Minas, infelizmente, não autorizou o nosso acesso ao acervo de matérias

sobre a revolta dos praças de 1997. Primeiro fizemos um pedido formal, por meio de ofício,

solicitando a cópia das matérias, o que nos foi negado. A emissora permitiu apenas que a

consulta fosse feita no CEDOC, o Centro de Documentação da empresa. Porém, quando

solicitamos a permissão para assistir ao material, nos informaram que o gerente de

comunicação estava de férias e só ele poderia permitir o nosso acesso ao acervo. A solução

encontrada para que a pesquisa fosse realizada foi recorrer à internet. No site Youtube27 existe

um grande número de matérias da época da revolta (cerca de uma hora de gravações), sendo

15 produzidas pela Globo Minas. Utilizamos, então, o acervo para desenvolver a pesquisa.

A primeira matéria exibida sobre o protesto foi do repórter Eduardo Tchao e mostra a

passeata dos praças. Com um texto bastante objetivo, casado com as imagens, o repórter tenta,

na parte do tempo - até quando os manifestantes saíram da frente do Palácio da Liberdade - ,

“não ser notado”, não emitir nenhum tipo de comentário, como sugere o quarto movimento de

Motta (2008). Porém, quando os manifestantes retornaram ao centro da Capital, a narrativa

mudou. Em um tom que mistura pena e reprovação, ele conta que um PM resolveu pedir

esmolas. Segue a entrevista em que o militar diz preferir pedir a roubar. Existe aí um

elemento a ser avaliado a partir do quinto movimento previsto por Motta (2008): o

telespectador é motivado a associar o drama de um trabalhador, de um policial, a mendigos,

um problema que é vivido cotidianamente por quem mora em grandes cidades. Logo depois, o

repórter diz que um grupo de bombeiros invadiu uma companhia, obrigando os colegas a

parar de trabalhar. O termo invadir não parece o mais isento para denominar o que aconteceu,

já que as imagens mostram um bombeiro pegando rádio e convocando os colegas, inclusive

de outros batalhões, a aderir à revolta. O operador do rádio não se revolta e muito menos tenta

impedir que o fato se concretize, demonstrando apoio aos “invasores”. O repórter também

afirma que os bombeiros colocaram fogo em um quartel, sendo que as imagens mostram uma

janela incendiada, e não todo o prédio. Logo depois da afirmação, não há nenhuma entrevista

que confirme que o fogo foi mesmo criminoso. A matéria termina com um pronunciamento

do secretário da Casa Civil, Agostinho Patrus, garantindo que o governo só espera autorização

da Assembléia Legislativa para fazer as correções nos salários dos praças da Polícia Militar.

27 As matérias foram postadas pelo cabo Júlio e por um usuário chamado André e que usa o título de LibertasQseratamen. Ambos postaram as imagens a partir de 2009.

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Se na matéria houve uma certa preocupação em se manter isento, logo depois o

locutor, do estúdio do MGTV, chama outra matéria, desta vez uma nota coberta, carregada de

apoio aos grevistas. Ele afirma que a crise salarial na PM já fez pelo menos 23 vítimas em

um ano e meio. Os militares teriam se matado por não conseguir pagar as dívidas. No ano de

1996, 17 praças se mataram. Em 1997, já havia ocorrido seis suicídios. Mostra também um

sargento internado depois de tomar mais de 20 comprimidos de um calmante. Na entrevista, o

militar diz que deve à mercearia na frente da casa dele e outros comerciantes e que não tem

mais “cara” de sair na rua. Como se ainda fosse necessário, o texto reafirma que a crise é por

causa dos baixos salários. Em seguida, são mostradas fotos antigas da PM, enquanto o locutor

diz que a corporação tem um histórico de apoio aos governos, e cita que foi assim no Golpe

de 1964, quando os militares marcharam em apoio ao então governador, Magalhães Pinto, um

dos golpistas.

Na matéria exibida no “Jornal Nacional”, também da Rede Globo, a narrativa começa

com o sargento já mostrado na matéria local, deitado em uma cama de hospital, mas evita usar

a sonora, dizendo apenas que ele não consegue sustentar os seis filhos com um salário de R$

350,00 e que, por isso, teve uma crise de depressão e tentou ser matar. Na época, o sargento

estava na PM há dezesseis anos. Mas, se evitou usar a entrevista do sargento dizendo que

queria ser matar, a repórter informou que os baixos salários estavam levando os PMs a

trabalhar para bandidos, como denunciava um disquete entregue à equipe de reportagem, que

também informava sobre privilégios para o alto comando da Corporação. Mas, ora, qualquer

um pode digitar algumas frases em um disquete e entregá-lo à imprensa. Percebe-se aí que,

dentro da lógica do espetáculo, os jornalistas abriram mão de apurações mais rigorosas e

utilizaram um simples disquete como prova de graves denúncias. Não teria sido mais fácil

dizer que as denúncias partiam dos praças que participavam da manifestação? Pode-se

também perceber novamente o quinto movimento, de Motta (2008), já que o disquete faz

suscitar no telespectador uma idéia de espionagem, de mistério, muitas vezes associada às

matérias policiais. A matéria segue dizendo que a revolta dos praças ganhou as ruas por causa

do aumento dado apenas para os oficiais e mostrando o “sobe som” 28 do bombeiro no rádio

do quartel também exibido na matéria do jornal local. Mostrou, ainda, o policial pedindo

esmolas, mas sem a entrevista, e terminou dizendo que o comando da polícia ia punir os

responsáveis, com a fala de um tenente-coronel. Não há nenhuma citação do governo do

Estado, pelo menos durante a matéria.

28 Recurso da televisão em que a narração do repórter é interrompida para a inserção de uma fala ou ruído captado fora da condição de entrevista.

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Figura 22: Reprodução, retirada da internet, de matéria do “Jornal Nacional”, sobre a greve dos PMs mineiros em 1997. Fonte: Youtube – Rede Globo, 13 de junho de 1997.

No dia seguinte, o repórter Eduardo Tchao entrevistou um policial (que não mostrou o

rosto e teve a voz distorcida), denunciando a rigidez e o anacronismo das regras dentro dos

quartéis. Entre as punições, quem chegava atrasado para trabalhar ficava preso por cerca de

três dias: “Um cabo que brigou com a namorada tomou três dias de prisão, militar solteiro não

pode ser chefe de família. Os oficiais comunicam que vão casar, já os praças tem de pedir

autorização. É proibido até falar língua estrangeira dentro dos batalhões” (EDUARDO

TCHAO, citação oral29).

29 Parte de locução de matéria que faz parte do vídeo “ Greve PMMG de 1997 Parte III”.

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Figura 23: Reprodução da internet de matéria da Rede Globo Minas sobre a greve dos PMs em Minas Gerais em 1997. Fonte: Youtube – Rede Globo, 14 de junho de 1997.

Dias depois, outra reportagem começa na Assembléia Legislativa, mostrando que o

governo tinha ampla maioria na casa e poderia, assim, conseguir a autorização para dar

aumento aos praças quando quisesse. Novamente podemos perceber o quarto movimento de

Motta (2008), já que o texto tenta parecer imparcial, porém, deixa claro que o governo não

deu o aumento aos praças porque não quis, e não porque não tinha autorização, como vinha

informando. Da Assembléia, o repórter passa para uma reunião do secretário da Casa Civil

com o comando da PM e uma comissão dos revoltosos, na qual ele afirma que vai dar o

aumento que pode ser pago pelos caixas do Estado. E, na passagem, o repórter informa que o

governo já definiu o aumento, que não passou de 20 por cento, e que o líder dos manifestantes

- que queriam 90 por cento - não tinha gostado nada do que ouviu. Encontramos aí o terceiro

movimento de Motta (2008), fazendo o cabo Júlio como personagem e líder, já que havia

outros representantes dos praças na reunião. E o mesmo cabo Júlio, que não deu entrevista,

aproveitou para passar um recado tanto para o governo como para a tropa: “se o governo

mantiver o índice baixo de reajuste, a tropa vai parar” (EDUARDO TCHAO, Citação oral30).

30 Idem citação 25.

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Figura 24: Reprodução da internet de passagem em reunião entre revoltosos e governo. Fonte: Youtube – Rede Globo, junho de 1997.

Não foi possível recuperar toda a matéria do dia da segunda passeata, por motivos já

explicados anteriormente, porém tivemos acesso, via site Youtube, 31 à narrativa da tentativa

de invasão do prédio do COPOM – Comando de Policiamento. Foi uma matéria feita na

redação, com texto escrito por editor e lido pela apresentadora do jornal, no caso o MGTV.

Mas nem por isso o tom é de menos emoção. É bom perceber que é um momento de conflito,

de clímax, que Motta (2008) apresenta, no segundo movimento, como algo típico do

jornalismo, que costuma pegar apenas esse “corte” como se fosse a notícia. Porém, não é o

caso do que acontece aqui. A tentativa de invasão foi o clímax, porém como finalização de

todo um processo, e não como começo. Quando Motta (2008) sugere analisar o processo que

acontece antes desse clímax, talvez aqui devêssemos inverter o ensinamento, e nos preocupar

também em analisar o que aconteceu depois. Porém, isso é um trabalho para as próximas

matérias.

Voltando à matéria, a narração é dramática e as cenas são impressionantes. Começam,

claro, com os praças tentando invadir o prédio, logo depois entra um sobe som e o pedido de

calma por parte de um dos líderes. A confusão aumenta e a locutora avisa que tiros foram

disparados. Mais sobe-som e é mostrado, no detalhe e em câmera lenta, que um homem sacou

31 Material disponível no vídeo “Greve PMMG de 1997 Parte III”.

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o revólver a abriu fogo, no meio dos praças. Uma das balas atingiu a cabeça do cabo Valério,

que pedia calma. A partir daí, as imagens e os sons são ainda mais impressionantes. O cabo é

carregado, com a cabeça toda ensanguentada, e pessoas, principalmente jornalistas, gritam.

Não é preciso lembrar que aqui também existe uma concessão na linha editorial da emissora,

que, acreditamos, dificilmente permitiria a veiculação de imagens de uma pessoa ferida e

sangrando com tanta intensidade. O sobe som do horror dura mais de 20 segundos, quando,

em televisão, o usual, são cinco segundos.

Figura 25: Reprodução da internet de reportagem mostrando o cabo Valério sendo carregado depois de baleado e veículo onde coronel estaria sendo atacado. Fonte: Youtube – Rede Globo, 24 de junho de 1997.

O espetáculo comandando o jornalismo prossegue nas próximas falas da locutora. Ela

diz que o acusado de ter dado o tiro é o coronel Edgar Eleutério, o comandante do

Policiamento da Capital, que teria fugido em uma viatura em meio a protestos dos

manifestantes. Mas a afirmação é, no mínimo, precipitada, já que a confusão por si só já

impedia uma análise rápida e confiável de qual ponto partiu o disparo. Na própria matéria foi

mostrado que um tiro foi disparado do meio dos manifestantes, e o coronel estava na parte de

cima do prédio. No entanto, com base na acusação, a editoria fez uma arte com a foto e o

currículo do militar, o que reafirmou, mesmo que de forma tácita, a convicção de que ele seria

o culpado. Logo depois, o repórter Eduardo Tchao entrou, ao vivo, do local da confusão, para

dizer que o coronel, acusado do disparo (sem dizer quem o acusava), não teria fugido, e sim

estaria no prédio do comando. Ele também já teria entregado a arma que portava para um

promotor de Justiça. Os exames comprovariam se o militar teria ou não atirado. O repórter

informou também que o cabo foi levado para o pronto-socorro com um tiro do lado direito da

cabeça. Sobre a situação do praça, o repórter teve o cuidado de dizer que as informações

foram contraditórias: um delegado disse que ele morreu, mas o hospital garantia que ele

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estava sendo operado. O que Eduardo Tchao não explicou foi se o delegado deu a informação

oficialmente ou não e como ele teria conseguido a confirmação, já que não era médico.

Figura 26: Reprodução da internet de matéria ao “vivo” na Rede Globo Minas, depois do confronto na porta do Copom, em Belo Horizonte. Fonte: Youtube – Rede Globo, 24 de junho de 1997.

No dia seguinte, a repórter Adriana Araújo mostra que os grevistas estão novamente

tentando negociar com o governo, que acena com outras vantagens para os praças (como

ajuda na construção de casas), com o objetivo de acabar com a revolta. Mas os praças não

abriram mão do aumento de salários, e o governo, que antes era intransigente, cedeu. A

repórter Adriana Araújo afirma isso na matéria que tem, também, uma entrevista do

governador dizendo que o aumento foi muito acima do que era possível, mas o governo

preferiu evitar o pior. Os líderes da revolta aparecem sorridentes, e fazendo o “V” da vitória, e

dizendo, como foi mostrado nas outras emissoras, que a hierarquia tem de continuar, mas de

uma forma diferente, mais democrática. É visível na matéria a sensação de derrota do governo

e de vitória dos revoltosos. Essa sensação já não é tão grande no dia seguinte, quando outra

reportagem mostra o cabo Júlio no batalhão, recebendo visitas de policiais de outros estados.

Na sonora, ele disse que o clima agora na polícia era melhor, mas não é o que ele aparentava

na fisionomia. E a Globo Minas continuou acompanhando o desenrolar dos acontecimentos

relativos à revolta. Uma comissão da Assembléia Legislativa ouviu o coronel Eleutério que

negou ter atirado, e o repórter Eduardo Tchao lembrou, no off, que um exame já havia

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detectado pólvora na mão do coronel. Mais uma vez, ao contrário do que mostra o quarto

movimento de Motta (2008), aqui o narrador não quis ficar incógnito, e emitiu uma opinião,

com certa revolta, já que a emissora havia dado quase certeza de que o coronel era o autor do

disparo que atingiu o cabo e, nos dias seguintes, nada foi confirmado.

Em uma audiência no fórum, no processo sobre a morte do cabo Valério, a emissora

voltou a ter a cobertura jornalística espetacularizada, quando mostrou um encontro entre as

irmãs do cabo morto e o cabo Júlio, no corredor do prédio. Uma delas diz a ele: “Por que você

não colocou a sua mãe lá no lugar de colocar o meu irmão? (citação oral32). A fala é pouco

educada e dificilmente seria exibida em alguma reportagem, se não fosse algo espetacular,

que foge às normas que balizam o jornalismo. O cabo Júlio tentou argumentar, dizendo que o

cabo Valério era amigo dele, mas a irmã retrucou e ele saiu, como disse o repórter, chorando.

Figura 27: Reprodução da internet de matéria que mostra irmã do cabo Valério brigando com o cabo Júlio. Fonte: Youtube – Rede Globo Minas, junho de 1997.

Poucos dias depois das reportagens mostrando a alegria dos revoltosos, a emissora

passou a mostrar que os líderes estavam sendo perseguidos e submetidos a processos por

indisciplina. Em uma delas, o cabo Júlio chega a anunciar uma nova mobilização dos praças,

32 Parte da fala da irmã do cabo Valério retirada de matéria exibida pela Rede Globo Minas, que faz parte do vídeo “Greve PMMG de 1997 Parte IV”.

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mas a revolta não acontece. Nas reportagens seguintes, fica claro o desespero das mulheres

dos praças, ameaçados agora de expulsão em massa, e a exclusão do cabo Júlio, que dá uma

entrevista dizendo que não reconhece ter feito nada de errado, a não ser mostrar que os praças

estavam passando fome. Mesmo diante de reportagens como essa, em que cabo Júlio e outros

líderes denunciam perseguição, o governo demitiu mais de uma centena de revoltosos.

Figura 28: Reprodução da internet de matéria que mostra cabo Júlio, dias antes de ser expulso da PM. Fonte: Youtube – Rede Globo Minas, 1997.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A revolta dos praças da Polícia Militar mineira surpreendeu a opinião pública e boa

parte da imprensa. Pelos telejornais, de um momento para o outro, praças saíram pelas ruas da

capital sem comando, sem motivo aparente. Nos seus 222 anos, a PM mineira nunca tinha

sofrido um racha dentro de suas fileiras. A imagem de inviolabilidade da unidade reforçava

ainda mais o conceito de ser uma das melhores, senão a melhor força policial da Federação.

Essa tradição fazia com que a população, as autoridades e a imprensa jamais desconfiassem

que os praças fossem capazes de se organizarem politicamente para reivindicar seus direitos,

tanto trabalhistas como de cidadãos, de ter um tratamento digno nos quartéis.

Porém, como observou Motta (2008), a imprensa tem a tendência de fazer do gatilho

de determinado acontecimento a notícia principal, quando, na maior parte dos casos, é esse é

apenas o resultado de um processo. Foi exatamente essa a percepção deste estudo sobre a

revolta dos militares. Seria muita ingenuidade pensar que, de um dia para o outro, os militares

de um determinado quartel resolveram se revoltar e provocar uma marcha pelas ruas de Belo

Horizonte, como quiseram mostrar alguns veículos de comunicação.

O processo é bem mais complexo, e exigiu alguma teorização para que pudéssemos

concluir que a questão da revolta estava ligada não apenas à questão salarial ou a algumas

outras reivindicações trabalhistas, mas a uma necessidade de questionar uma ordem antiga,

aplicada ainda, naquela época, aos quartéis. Apesar dos avanços democráticos conseguidos

pela população brasileira, os policiais militares de baixa batente ainda tinham, por exemplo,

de pedir autorização ao superior para poder se casar. Por mais que a burocracia, como

mostrou Weber (2004), garantisse a unidade da Corporação e a protegesse dos “ventos

democráticos” que varriam a sociedade, houve um momento que aconteceu a ruptura. Não a

ruptura completa, no sentido de destruir a instituição, mas uma ruptura de hierarquia, de

valores, contra o abuso de poder dos coronéis.

E, como instituição criada dentro da modernidade, e responsável pela manutenção da

ordem, valor tão caro aos modernos, foi justamente no Batalhão de Choque, responsável pela

repressão a tumultos, manifestações, greves, passeatas, ou seja, tudo que ameace, mesmo que

de forma não muito preocupante, o Estado constituído, que começou o protesto dos praças.

Como afirmou o então repórter da Record Minas, Sérgio Utsch: “para quem não tinha muita

experiência no ramo, eles até de se mostraram bastante organizados” (SÉRGIO UTSCH,

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citação oral33). Havia aí, tentamos demonstrar, uma crise da modernidade tardia. Não é

possível uma instituição sobreviver “ilhada” às mudanças que atingem todo o mundo, todas as

sociedades. Apesar de moderna, a Polícia Militar foi obrigada, mesmo que de forma

traumática, a mudar.

Não é possível exigir da imprensa, que corre contra o tempo para conseguir levar as

notícias para seus receptores, que faça uma análise aprofundada do motivo de uma revolta.

Porém, também precisamos ficar atentos para se ter uma percepção um pouco mais crítica dos

acontecimentos. Os próprios praças perceberam a importância da imprensa, e principalmente

da televisão - que, em 1997, com a internet ainda incipiente, era o veículo mais poderoso na

divulgação de imagens -, a grande responsável pela divulgação da revolta nos rincões do

Estado, todos equipados com aparelhos de TV. A partir do momento em que se rebelaram, os

policiais passaram a fazer ligações para as redações pedindo para que os protestos fossem

noticiados.

Outra percepção durante os estudos foi que a televisão, como mostrou Eco (1984), tem

uma tendência a se alienar dos acontecimentos importantes e se autoalimentar com

reportagens banais, sobre acontecimentos que apenas divertem os telespectadores, deixando

de lado, muitas vezes, fatos relevantes, que não tragam em si uma potência espetacular. A

crise na PM mineira já tinha sido motivo, como mostramos, de reportagens nas rádios e

jornais impressos, sem, com isso, se tornar pauta para as emissoras de TV. Depois, entretanto,

quando a revolta ganhou as ruas, foi transformada em um espetáculo midiático. Os jornalistas

passaram a lutar entre si, a partir do começo das manifestações, para conseguir as melhores

imagens, o “furo”. Mas acreditamos que os jornalistas de TV também têm de possuir uma

percepção de que algo não vai bem em determinadas instituições (como acontecia na PM

mineira) e ter a coragem de informar isso ao público, mesmo quando não há acontecimentos

com grande potencial midiático a serem noticiados. Sobreviver apenas do espetacular é um

atalho imediatista e perigoso.

Por outro lado, o espetáculo, como fenômeno imprevisível, permitiu, em 1997, a

desestabilização de possíveis alinhamentos entre mídia e poder constituído, registrando e

potencializando a revolta. É bom lembrar que em 2004 os praças da Polícia Militar mineira, já

insatisfeitos com as conquistas obtidas em 1997, ensaiaram novos protestos e manifestações,

mas que, segundo depoimentos, foram ignorados pelos veículos. De acordo com o então

33 Citação retirada de uma das reportagens feitas por Sérgio Utsch, na cobertura da revolta, e exibidas na Record Minas em 06/1997.

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presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais, Aloísio Lopes, houve um ajuste entre

mídia e governo para que as manifestações não tivessem visibilidade:

Nós detectamos um alinhamento editorial favorável ao Governo do Estado e detectamos a ausência de opiniões divergentes aos programas e atividades do Governo do Estado. (...) Nós recebemos ligações de colegas de Belo Horizonte e de várias redações, como rádio, TV, como impresso, de que estava tendo vigilância nas redações por parte dos diretores das empresas para que não saísse nenhuma matéria que fosse desfavorável ao Governo do Estado. Existe um acordo empresarial por trás disso. Então, os donos de veículos são co-responsáveis (ALOÍSIO LOPES, citação oral34).

E o subtenente Luiz Gonzaga, presidente da Associação dos Praças e Bombeiros

Militares (ASPRA), também afirmou: “Em 1997 a imprensa teve uma liberdade grande e de

alguma forma até construiu e potencializou a liderança. O governo aprendeu a lição de 1997,

e implantou o que nós chamamos aí da mordaça e da censura econômica” (LUIZ GONZAGA,

citação oral35).

No entanto, ao mesmo tempo em que provoca uma ruptura das relações de poder,

desestabilizando a cobertura midiática mais acomodada, o espetáculo pode tomar para si

mesmo o foco das atenções, reduzindo a capacidade de compreensão dos elementos

estruturais envolvidos no processo. Uma possível forma de combater esses efeitos, tanto do

espetáculo como do controle, seria a produção de um telejornalismo mais politizado e

combativo, não tão submisso aos índices de audiência, e que estivesse atento constantemente

às reivindicações de setores da sociedade, narrando, assim, o cotidiano de modo mais

complexo e revelando os mecanismos das crises e, não somente, a emergência delas.

34 Declaração retirada do vídeo “Liberdade, essa palavra”, de 2006. 35 Idem nota 30.

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