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A MULTIMENSIONALIDADE DA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES: RECONFIGURANDO SABERES DIDÁTICOS, CURRICULARES E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS Este painel tem como eixo central a formação inicial de professores no âmbito dos Cursos de Licenciatura (Pedagogia e Química) a partir da multidimensionalidade da atividade docente do qual a didática e as práticas pedagógicas, embora tenham identidades próprias, constituem-se em elementos fundantes e articulados, tendo em vista seu estatuto epistemológico e relações que são estabelecidas entre educação, conhecimento e o contexto social mais amplo. O primeiro artigo, decorrente de pesquisa documental, discute a formação de pedagogos a partir da análise do estágio curricular supervisionado desenvolvido na disciplina Didática II, do Curso de Pedagogia. Objetiva discutir a importância do estágio como espaço privilegiado de formação do pedagogo e, de maneira mais específica, discutir um programa de estágio que, ancorado na disciplina de Didática, procurando favorecer a compreensão do futuro professor acerca da profissionalidade docente. O segundo decorre de pesquisa, que busca compreender, à luz da Análise de Discurso de Matriz Francesa e estudos sobre Formação de Professores, em que condições de produção a prática da reescrita de textos acadêmicos possibilita a emergência da autoria. O corpus é constituído por depoimentos escritos de quarenta estudantes do curso de Licenciatura em Química, a respeito de sua relação com a escrita. Os resultados, assinalam que os estudantes que se relacionam negativamente com a escrita ocupam principalmente a posição de enunciadores de sentidos legitimados. O terceiro, integra uma pesquisa sobre práticas de leitura e escrita a partir da História Cultural, reúne documentos de vinte e seis graduandas que cursam Pedagogia, acerca de suas leituras, em diferentes contextos sociais. A pesquisa aponta que as participantes vivenciam diferentes práticas de leitura e sentem a necessidade de intensificá-las em seu cotidiano. Assim sendo, este Painel traz para discussão e análise as possibilidades formativas que se situam no contexto da Didática, enquanto área multidimensional que fundamenta o ensinar e aprender. Palavras-Chave: Formação Inicial, Curso De Pedagogia, Saberes Didáticos. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 401 ISSN 2177-336X

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A MULTIMENSIONALIDADE DA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES:

RECONFIGURANDO SABERES DIDÁTICOS, CURRICULARES E PRÁTICAS

PEDAGÓGICAS

Este painel tem como eixo central a formação inicial de professores no âmbito dos

Cursos de Licenciatura (Pedagogia e Química) a partir da multidimensionalidade da

atividade docente do qual a didática e as práticas pedagógicas, embora tenham

identidades próprias, constituem-se em elementos fundantes e articulados, tendo em

vista seu estatuto epistemológico e relações que são estabelecidas entre educação,

conhecimento e o contexto social mais amplo. O primeiro artigo, decorrente de pesquisa

documental, discute a formação de pedagogos a partir da análise do estágio curricular

supervisionado desenvolvido na disciplina Didática II, do Curso de Pedagogia. Objetiva

discutir a importância do estágio como espaço privilegiado de formação do pedagogo e,

de maneira mais específica, discutir um programa de estágio que, ancorado na disciplina

de Didática, procurando favorecer a compreensão do futuro professor acerca da

profissionalidade docente. O segundo decorre de pesquisa, que busca compreender, à

luz da Análise de Discurso de Matriz Francesa e estudos sobre Formação de

Professores, em que condições de produção a prática da reescrita de textos acadêmicos

possibilita a emergência da autoria. O corpus é constituído por depoimentos escritos de

quarenta estudantes do curso de Licenciatura em Química, a respeito de sua relação com

a escrita. Os resultados, assinalam que os estudantes que se relacionam negativamente

com a escrita ocupam principalmente a posição de enunciadores de sentidos

legitimados. O terceiro, integra uma pesquisa sobre práticas de leitura e escrita a partir

da História Cultural, reúne documentos de vinte e seis graduandas que cursam

Pedagogia, acerca de suas leituras, em diferentes contextos sociais. A pesquisa aponta

que as participantes vivenciam diferentes práticas de leitura e sentem a necessidade de

intensificá-las em seu cotidiano. Assim sendo, este Painel traz para discussão e análise

as possibilidades formativas que se situam no contexto da Didática, enquanto área

multidimensional que fundamenta o ensinar e aprender.

Palavras-Chave: Formação Inicial, Curso De Pedagogia, Saberes Didáticos.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

401ISSN 2177-336X

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INVESTIGAÇÕES SOBRE PRÁTICAS DE LEITURA DE GRADUANDAS EM

PEDAGOGIA: CONTRIBUIÇÕES PARA FORMAÇÃO E ATUAÇÃO

PROFISSIONAL

Maria Betanea Platzer

Centro Universitário de Araraquara – UNIARA

Resumo

O presente trabalho, que integra uma pesquisa mais ampla sobre práticas de leitura e

escrita realizadas por graduandas que cursam Pedagogia, reúne especificamente

discussões sobre as vivências das cursistas acerca de suas leituras, em diferentes

contextos sociais. Objetivamos, a partir de discussões na área da História Cultural e de

pesquisas sobre a formação inicial de professores, investigar as experiências leitoras das

futuras pedagogas. Realizamos um estudo de natureza qualitativa. Como instrumentos

metodológicos, aplicamos questionários a 26 alunas que frequentam o terceiro ano do

curso de Pedagogia, em uma Instituição de Ensino Superior privada, localizada em um

município do interior do estado de São Paulo. Após essa etapa, entrevistamos 10 alunas

pertencentes a esse grupo. As análises dos dados assinalam que: a) a maioria das alunas

revela que gosta de ler; todavia, algumas delas destacam que sentem dificuldade em

realizar a leitura de alguns gêneros textuais, sobretudo, científicos, b) uma parte

significativa de estudantes aponta que realiza a leitura por vários motivos, entre eles, a

aquisição de novos conhecimentos e há alunas que afirmam realizar com maior

frequência as leituras exigidas pela faculdade, c) as graduandas estão cientes da

importância da leitura para sua formação e futura atuação profissional, almejando, no

decorrer do curso e após formadas, intensificarem as suas práticas de leitura, d)

destacam, entre as atividades de leitura vivenciadas na graduação, um Projeto

organizado pelo curso que promove a leitura do gênero textual de literatura, algo que

para a maioria é bastante gratificante. A pesquisa aponta que as participantes vivenciam

diferentes práticas de leitura e sentem a necessidade de intensificá-las em seu cotidiano.

Consideramos importante o olhar atento às práticas de leitura de graduandas de

Pedagogia, valorizando suas vivências e seus anseios, possibilitando, ao longo de sua

formação inicial, o contato com diferentes gêneros textuais.

Palavras- chave: Formação Inicial, Leituras, Experiências.

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Introdução

Verificamos vários estudos acerca do processo de ensino e aprendizagem do

código escrito no contexto da Educação Básica, apresentando problemas acerca dessa

temática e ainda pontuando caminhos para que os educandos possam ter acesso a

práticas de leitura e escrita que lhes sejam significativas (SILVA, 2010; GERALDI,

1999).

Nesse cenário de discussões, há pesquisas que se centram na formação de

professores, especialmente, daqueles que serão responsáveis pelo processo de

alfabetização e de letramento de crianças que frequentam os anos iniciais do ensino

fundamental.

Rezende (2009), ao enfatizar a formação de leitores, aponta a leitura e a escrita

como ferramentas que são indispensáveis, uma vez que propiciam o acesso à instrução,

mas também à formação continuada para a escolaridade e para a vida.

Assim, torna-se fundamental que o professor desenvolva atividades de leitura e

escrita que possibilitem aos educandos a ampliação de seus conhecimentos linguísticos

e o uso do código escrito de forma autônoma e dinâmica no seu dia a dia. Para tanto,

consideramos de suma importância que o professor, em sua formação, possa ter acesso a

diferentes gêneros textuais, dominando-os com desenvoltura para que, dessa forma,

possa usufruir do código escrito na perspectiva apontada por Rezende (2009) e, ainda,

envolver os seus alunos em situações reais acerca do ler e do escrever.

A partir dessas reflexões, focamos no presente trabalho, aspectos sobre a

formação de professores, em especial, graduandos que cursam Pedagogia, visando a

investigar, especialmente, as práticas de leitura que realizam em seu cotidiano com

intuito de (re)conhecer suas relações com a leitura em diferentes contextos sociais,

incluindo o curso de formação inicial. Outro objetivo é o de verificar como entendem o

papel do professor na formação leitora de alunos que frequentam a Educação Básica.

Destacamos que este trabalho, que integra uma pesquisa mais ampla sobre

práticas de leitura e escrita de graduandos em Pedagogia em diferentes espaços sociais,

visando a refletir sobre sua formação leitora e escritora e suas implicações no seu

processo de formação e atuação profissional, foi aprovado pelo Comitê de Ética

(CAAE: 36755814.6.0000.5383) e está vinculado a parte de atividades que são

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desenvolvidas como docente e pesquisadora em um curso de Mestrado Profissional em

Educação.

Fundamentação teórica

Nossas discussões referentes às práticas de leitura estão fundamentadas nas

ideias defendidas pela História Cultural, sobretudo os estudos de Chartier (2001, 1999),

em pesquisas que versam sobre formação de professores (REZENDE, 2009;

PIMENTA, 1999) e, ainda, nas discussões sobre leituras e escola (KLEBIS, 2008;

SOUZA, 2004; YASUDA, 2004; LERNER, 2002).

Com intuito de alcançarmos os objetivos propostos especificamente neste

estudo, realizamos uma pesquisa de natureza qualitativa (LÜDKE; ANDRÉ, 1986), em

uma Instituição de Ensino Superior privada, localizada em um município do interior do

estado de São Paulo.

Como estratégias metodológicas, aplicamos questionário a um grupo de 26

alunas que frequentam o terceiro ano de graduação em Pedagogia, no período noturno.

Desse grupo, realizamos entrevista semiestruturada individualmente com 10 cursistas.

As principais temáticas que nortearam a elaboração dos instrumentos de coleta

de dados foram:

- o gosto pela leitura;

- razões que levam as alunas a praticarem a leitura;

- dificuldades manifestadas em relação a leituras realizadas;

- atividades de leituras presentes no decorrer da graduação em Pedagogia;

- relação leitura, formação de professores e atuação profissional.

Discussões e resultados

1. Leituras, escola e formação de professores: algumas reflexões

Ler e escrever, conforme pontua Lerner (2002), são palavras familiares aos

educadores e, em se tratando especialmente do papel da escola no que se refere à

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formação de comunidades de leitores, é necessário formar esses alunos para que possam

recorrer aos textos e, assim, possam, buscar

[...] resposta para os problemas que necessitam resolver, tratando de

encontrar informação para compreender melhor algum aspecto do

mundo que é objeto de suas preocupações, buscando argumentos para

defender uma posição com a qual estão comprometidos, ou para

rebater outra que consideram perigosa ou injusta, desejando conhecer

outros modos de vida, identificar-se com outros autores e personagens

ou se diferenciar deles, viver outras aventuras, inteirar-se de outras

histórias, descobrir outras formas de utilizar a linguagem para criar

novos sentidos (LERNER, 2002, p.18).

Como podemos observar, são vários desafios que o educador assume na tarefa

de desenvolver com seus alunos atividades de leitura que lhes sejam instigantes e

permitam o alcance da formação descrita acima.

Apontamos, nesse cenário, a relevância de o professor (re)conhecer as práticas

de leitura realizadas pelos seus alunos nos diferentes espaços sociais (PLATZER, 2009),

com intuito de valorizá-las e intensificá-las, visto que a escola deverá oportunizar aos

alunos o acesso a diversos gêneros textuais, possibilitando a ampliação de suas relações

com a linguagem escrita, em especial, com a leitura.

Recorremos aos estudos de Kaufman e Rodrígues (1995), ao apresentarem

reflexões sobre tipologias de textos, verificando a necessidade do educando ter acesso a

diversidade textual. Nesse cenário, as autoras pontuam que nem todos os professores

apresentam conhecimento adequado acerca das características peculiares dos diferentes

tipos de texto. Dessa forma, seu trabalho limita-se “[...] a permitir e a propiciar um

contato geral dos alunos com tais textos, porque faltavam ao professor ferramentas mais

específicas para enriquecer este contato, o que otimizaria o aprendizado” (KAUFMAN;

RODRÍGUES, 1995, p.07).

Consideramos que para realizar um trabalho pedagógico e didático que permita

aos alunos a ampliação de suas competências como leitores, é preciso que o educador

tenha uma formação (inicial e continuada) que o possa levar a refletir sobre a relevância

da leitura na atual sociedade, na perspectivas da alfabetização e do letramento

(ASSOLINI, 2013). O educador também deverá ter consciência de suas práticas de

leitura realizadas no seu dia a dia, visto que para formar novos leitores, defendemos que

o professor reflita sobre suas próprias leituras, com intuito de entendê-las, valorizá-las,

ampliá-las e intensificá-las; isso porque, como pontua Rezende (2009, p.XVII): “A

leitura permeia o fazer pedagógico, o ensinar e o aprender. [...].”

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Se são vários os problemas referentes ao ensino da leitura na escola, entre eles,

como destaca Souza (2004, p.76), “[...] Trabalha-se com a leitura da escola e não com a

leitura na escola. [...]”, precisamos, assim, refletir sobre possibilidades para esse essa

atividade seja realizada em uma perspectiva coerente e atraente para alunos e

professores.

Com propostas de estratégias de ensino que sejam adequadas para o processo de

aprendizagem dos educandos na educação básica, consideramos a relevância de, ao

longo de sua formação inicial, foco central das discussões apresentadas neste trabalho, o

graduando em Pedagogia vivenciar situações de leituras que lhes sejam também

significativas.

Para Pimenta (1999), considerando que a natureza do trabalho do professor é

ensinar como contribuição ao processo de humanização de educandos situados

historicamente, os cursos de licenciatura deverão desenvolver nos graduandos

conhecimentos e habilidades, atitudes e valores que lhes possam possibilitar irem

construindo de maneira permanente seus saberes-fazeres docentes a partir dos desafios e

da necessidade que o ensino na condição de prática social lhes apresenta no dia a dia.

Podemos afirmar que, entre outros conhecimentos, o domínio do código escrito é

fundamental no processo de formação e atuação profissional docente. Conforme pontua

Rezende (2009, p.33), “[...] a leitura é matéria-prima no processo de ensino e

aprendizagem, supostamente os cursos de formação de professores deveriam dedicar a

ela especial atenção e cuidados”. Daí, um olhar atento às práticas de leitura vivenciadas

pelos graduandos com o intuito de conhecê-las e intensificá-las.

Para investigações sobre as práticas de leitura realizadas pelas graduandas de

Pedagogia que participaram da pesquisa desenvolvida, recorremos aos estudos de

Chartier (2001, p. 101), ao afirmar que na história da leitura, entendida esta como

prática, “[...] há a cada dia milhões de indivíduos que realizam milhões de atos de

leitura [...].”

2. Graduandas em Pedagogia e suas práticas de leitura: experiências significativas

Apresentamos, a seguir, vivências manifestadas pelas participantes desta

pesquisa acerca de suas práticas de leitura no seu cotidiano, visto que suas

manifestações são fundamentais quando refletimos sobre a formação docente na

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atualidade. Ressaltamos que, por uma questão de ética, os nomes registrados são

fictícios.

Ao questionarmos as 26 cursistas do terceiro ano de Pedagogia sobre o gostar de

ler, verificamos que a maioria manifesta uma relação positiva com a leitura, retratando

que gostam de ler por vários motivos, entre eles, obter informações, adquirir novos

conhecimentos, ampliação de vocabulário e, ainda, possibilidade de desenvolvimento da

imaginação.

Observamos que três cursistas afirmam gostar “mais ou menos” de ler e

justificam suas respostas pelo fato de ser cansativo e às vezes leituras pouco atraentes.

Mesmo assim, afirmam que precisam se esforçar para realizar as leituras, conforme

pontua a estudante Paola:

“[...] tem textos que são muito chatos, difíceis de se entender, mas é por isso que temos

que nos empenhar e ler uma, duas três [...]”.

Como podemos perceber, as estudantes de Pedagogia participantes desta

pesquisa assumem, em sua maioria, uma relação positiva com a leitura.

Sobre o que costumam ler no dia a dia, há uma diversidade de textos apontados

pelas estudantes, destacando com base na tipologia apresentada por Kaufman e

Rodrígues (1995), literários, humorísticos (história em quadrinhos), informações

científicas, seguidos de instrucionais e epistolares.

Ao citarem a leitura de textos literários, a maioria das estudantes aponta a

participação, desde o primeiro ano do curso, em um Projeto de Leitura desenvolvido

pela instituição. Nessa atividade, os estudantes de Pedagogia devem escolher três obras

literárias a serem lidas no decorrer de aproximadamente 5 meses do ano letivo e

realizarem um Portfólio sobre as leituras realizadas. As obras literárias são indicadas

por professores do curso e estes acompanham as leituras realizadas pelos graduandos.

Da relação de obras indicadas, os estudantes escolhem duas e, ainda, podem escolher

mais uma obra a seu critério (que não consta na listagem). Conforme pontuam as

estudantes:

“Para mim, a melhor e maior experiência é o projeto de leitura, porque os textos

didáticos são vistos como na maioria das vezes como obrigação e não um prazer”.

(Claudia)

“O que me ajudou muito no curso foram as leituras do projeto ler.” (Patrícia)

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Em se tratando das razões que as levam a praticar a leitura, encontramos uma

diversidade de intenções nas respostas, destacando: curiosidade, prazer, interesse em

determinados assuntos e aspectos ligados à religião. Algumas alunas, ainda que a

minoria, destacam que leem para seus alunos (considerando que há graduandas que já

atuam como docentes na Educação Básica).

Verificamos também a questão do vínculo afetivo proporcionado pela leitura,

uma vez que encontramos as seguintes respostas:

“Ver a felicidade dos meus filhos, quando interpreto a história, sua atenção [...].”

(Joana)

“Gosto bastante de ler historinhas para os meus priminhos, imitar a voz dos bichos

durante a leitura [...].” (Rita)

Podemos afirmar que as práticas de leitura estão presentes em situações

diversificadas e, no caso das estudantes Joana e Rita, permitem a aproximação entre as

pessoas por meio de leituras partilhadas entre mãe e filhos e também entre os primos.

Não é apenas um ato individual, solitário de leitores com o texto, mas cria e intensifica

vínculos, carregados de afetividade (PLATZER, 2009).

Fica evidente, ainda, a leitura como uma forma de distanciamento da própria

realidade, proporcionando o “viajar” pelo mundo da imaginação para, então,

experimentar novas emoções, no caso, que sejam prazerosas.

“Principalmente quando acontece alguma briga, eu leio livros para tentar não pensar

na minha vida.” (Heloísa)

As estudantes, em grande parte, afirmam que leem também para realização das

atividades solicitadas no curso de graduação, ou seja, trabalhos em sala de aula e

avaliações, considerando o processo de sua formação profissional.

“[...] Quando estão chegando as provas ou quando estou fazendo algum trabalho para

a faculdade.” (Verônica)

“Agora a leitura é com mais frequência, pois o curso que estou fazendo exige muito a

prática de leitura.” (Eduarda)

Ainda que grande parte das graduandas manifestou o gostar de ler diversificados

tipos de textos e por motivos diversos, verificamos que muitas delas neste momento de

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formação, terceiro ano do curso de graduação, revelaram que parte significativa das

leituras realizadas está relacionada aos textos científicos solicitados pelos seus

professores. Nesse contexto, algumas estudantes apontam que sentem dificuldades na

leitura de textos acadêmicos, mas consideram leituras essenciais para a sua formação

como pedagogas.

“A maioria dos textos lidos na faculdade são textos acadêmicos [...] Os textos lidos na

faculdade não são os meus favoritos, são poucos os que me trazem satisfação em lê-

los, mas a leitura desses textos me trazem muitos benefícios.” (Elisabete)

“Não são todos que consigo ler, às vezes eles têm uns termos muito difíceis e termino

esperando o professor explicar.” (Joana)

Ao investigarmos as práticas de leitura das estudantes de Pedagogia, fica

evidente que possuem diversas experiências e vivências com a leitura. É importante

nesse processo de formação inicial, conforme ressaltamos, que o professor universitário

(re)conheça essas leituras e, a partir daí, amplie e intensifique o contato de estudantes

com a diversidade textual.

Ressaltamos a importância de instigar os graduandos a realizarem leituras de

textos científicos, fundamentais para a sua formação na área da educação. Independente

do gosto, os licenciandos precisam se aproximar de forma densa com as leituras

acadêmicas, visto são suportes fundamentais para o seu futuro fazer docente. Como

vimos, há alunas que sentem maior dificuldade na leitura e interpretação de textos dessa

natureza e, por isso, há desafios referentes à docência no ensino superior, entre eles, a

realização de estratégias de ensino que permitam a ampliação de conhecimentos

linguísticos dos futuros docentes, visto que a relação com a leitura deverá ser algo

presente de forma contínua na profissão do professor. Para tanto, fundamentamo-nos na

concepção de estratégia apresenta por Anastasiou e Alves (2003), ao descrevê-la como a

arte de aplicar ou explorar os meios e as condições que se constituem favoráveis e

disponíveis para que a ensinagem se efetive.

Em estudos referentes à formação leitora de graduandos em Pedagogia

(PLATZER, 2014), são retratadas, entre outras, a possibilidade de ampliar e intensificar

as leituras dos graduandos, considerando a necessidade de conhecer suas práticas no

sentido de valorizá-las e compreendê-las. Apontamos essa estratégia como uma

possibilidade de aproximação com os graduandos, em especial, a relação que

estabelecem com a leitura por meio de suas vozes e percepções. Essa aproximação com

as leituras dos estudantes poderá também ser uma possibilidade de o professor

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universitário promover aos estudantes o contato com outros gêneros textuais, entre eles,

os acadêmicos. Nesse sentido, partirá das vivências de seus alunos, respeitando-as e

ampliando-as.

Sabendo que os graduandos em Pedagogia serão futuros professores na

Educação Básica, no caso, poderão atuar na Educação Infantil, nos anos iniciais do

Ensino Fundamental e no primeiro segmento da Educação de Jovens e Adultos,

questionamos como as estudantes percebem a relação leitura, formação de professores e

atuação profissional.

As graduandas afirmam a importância de o professor ser um leitor durante sua

formação inicial e no decorrer de sua prática como docente, visto que para elas a leitura

contribuirá para si próprias e também para a formação de seus alunos.

“É de suma importância para o pedagogo ter total domínio da leitura, pois e ele quem

vai ensinar os alunos. E para esse domínio o educador tem sempre que se atualizar,

lendo e pesquisando [...].” (Vânia)

“O pedagogo precisa estar sempre atualizado e em busca de seu desenvolvimento

profissional. Isso ocorrerá através da leitura de textos científicos e textos que

auxiliarão em sua profissão. Através da leitura, o pedagogo aumentará o seu repertório

de palavras e de conhecimento, contribuindo para uma melhor escrita. [...]”. (Luana)

“Importantíssimo, pois o pedagogo tem que saber aquilo que diz. E ensinar quem está

aprendendo” (Flávia)

“Um pedagogo preocupado com sua formação como leitor vai despertar o interesse em

seus alunos, como também poderá desenvolver trabalhos científicos.” (Daniela)

Como podemos verificar, há a consciência pelas estudantes da relevância da

leitura no seu processo de formação na graduação e as implicações desse contato com a

leitura na sua atuação como professoras e formadoras de leitores. Nesse sentido,

manifestam, como pontuamos, que sentem dificuldades na realização e interpretação de

alguns tipos de textos, mas em suas falas retratam que necessitam ler, de forma cada vez

mais frequente e densa.

Considerações Finais

Conforme descrevemos neste trabalho, a temática sobre a leitura se caracteriza

como um aspecto de grande relevância nos debates atuais acerca da formação de

professores. Há diferentes enfoques para se refletir sobre essa questão e, entre eles,

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objetivamos investigar as práticas de leitura vivenciadas por graduandos em Pedagogia

no sentido de (re)conhecê-las, valorizá-las, considerando a possibilidade de intensificá-

las e fortalecê-las no decorrer de sua formação.

Como uma possibilidade de investigar as leituras vivenciadas pelos cursistas, é

fundamental adentrarmos em suas práticas, por meio de suas vozes acerca de suas

leituras cotidianas, visto que são amplas e diversificadas.

Como destaca Certeau (1994, p.265): “[...] a história das andanças do homem

através de seus próprios textos está inda em boa parte por descobrir.” É nesse cenário

que se insere o presente trabalho: a tentativa de pesquisar as leituras de estudantes de

Pedagogia, procurando, “[...] adentrar nessa realidade e compreendê-la. [...]”, ainda que

cientes da impossibilidade de esgotarmos as vivências de leitura pelo grupo de

graduandas pesquisadas.

Com bases nos instrumentos e análise de dados coletados, observamos um

universo complexo acerca das leituras realizadas pelas estudantes.

Fica evidente que a maioria das alunas aponta que gosta de ler; contudo,

algumas delas afirmam que sentem dificuldade na realização das leituras de alguns

gêneros textuais, especialmente, de natureza científica.

Verificamos que uma parte significativa de alunas aponta que realiza a leitura

por vários motivos, entre eles, curiosidade e aquisição de novos conhecimentos. Há

alunas que afirmam realizar com maior frequência as leituras exigidas pela faculdade.

Entre as atividades de leitura vivenciadas na graduação, a maioria das cursistas

destaca a relevância da participação em um Projeto de Leitura organizado pelo curso,

que promove a leitura do gênero textual de literatura, considerado pelas estudantes

como bastante gratificante.

Observamos, também, que as futuras pedagogas estão cientes da importância da

leitura para sua formação e futura atuação profissional, vislumbrando, no decorrer do

curso e após formadas, intensificarem as suas práticas de leitura.

Este trabalho releva a diversidade de práticas de leitura pelas estudantes e a

importância de intensificá-las em seu dia a dia. Nesse sentido, defendemos a relevância

do olhar atento às práticas de leitura de graduandos de Pedagogia, valorizando suas

experiências e seus anseios, permitindo, ao longo de sua formação inicial, o contato com

diferentes gêneros textuais.

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ESTÁGIO SUPERVISIONADO E DIDÁTICA: ENTRE RESSIGNIFICAÇÕES E

POSSIBILIDADES DE FORMAÇÃO NO CURSO DE PEDAGOGIA

Cristina Cinto Araujo Pedroso

FFCLRP/USP/GEPEFE

[email protected]

Noeli Prestes Padilha Rivas

FFCLRP/USP/GEPEFE

[email protected]

Resumo

Este texto tem como objetivo discutir a importância do estágio como espaço

privilegiado de formação do pedagogo e, de maneira mais específica, pretende discutir

um programa de estágio que, ancorado na disciplina de Didática, procura favorecer a

compreensão do futuro professor acerca da profissionalidade docente. Tem-se como

pressuposto o estágio curricular supervisionado como campo de conhecimento, o qual

dispõe de condições para a construção da identidade docente e a ressignificação dos

saberes implicados na ação pedagógica, e como atividade científica, amparada no

fundamento de que a pesquisa deve permear a formação do pedagogo. Trata-se de um

estudo qualitativo, tendo por corpus o programa de estágio da disciplina de Didática II

(Didática e Práticas Pedagógicas: Planejamento e Currículo), o qual foi analisado na

perspectiva da análise documental. O programa em pauta compreende: atividades de

campo (observação participante em sala de aula; atividades de apoio durante o recreio;

análise do projeto político-pedagógico, do currículo e do plano de ensino do professor;

participação em reuniões pedagógicas e atividade de docência, bem como, produção dos

registros e elaboração de relatórios. O desenvolvimento do estágio conta com

supervisão periódica na universidade realizada por docente e educador. As análises

empreendidas permitiram destacar o potencial do estágio como lócus privilegiado de

formação de pedagogos, sobretudo por fomentar a reflexão e a investigação sobre a

escola, o ensino e as práticas docentes. Além disso, reforçam os argumentos de que as

práticas colaborativas com a escola são essenciais na direção da unidade teoria e prática.

Por fim, evidenciam que a troca de saberes entre docente, educador, estagiário e

professor da escola básica é fundamental na formação do pedagogo.

Palavras-chave: Curso de Pedagogia, Didática, Estágio Curricular Supervisionado,

Currículo.

ESTÁGIO SUPERVISIONADO E DIDÁTICA: ENTRE RESSIGNIFICAÇÕES E

POSSIBILIDADES DE FORMAÇÃO NO CURSO DE PEDAGOGIA

Introdução

Este texto tem como objetivo discutir a importância do estágio como espaço

privilegiado de formação do pedagogo e, de maneira mais específica, pretende discutir

um programa de estágio que, ancorado na disciplina de Didática II (Didática e Práticas

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Pedagógicas: Planejamento e Currículo), do Curso de Pedagogia, do Departamento de

Educação, Informação e Comunicação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de

Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, procura favorecer a compreensão do

futuro professor acerca da profissionalidade docente. Assim considerado, este texto

discute primeiramente a Didática em sua dimensão disciplinar nos curso de formação de

professores e, na sequência, a contribuição da proposta de estágio articulado a essa

disciplina.

O lugar da Didática no âmbito da formação de professores, enquanto campo

epistemológico, disciplinar e de práticas pedagógicas, tem sido debatido e

problematizado por pesquisadores da área, principalmente Pimenta, Libâneo, Almeida,

Fusari e Franco, os quais têm procurado ressignificá-la em meio às contradições

impostas pelo atual contexto socioeconômico, histórico e político, o qual coloca em

questionamento o papel do ensino, da aprendizagem, da escola e dos professores.

A Didática, ao longo da história, sempre foi sensível e reverberou os desafios

que o contexto propõe à tarefa educativa. Desde o seu início ela surge do e no

enfrentamento das contradições. Por exemplo, no século XVII ela tentou responder aos

desafios da reforma protestante e da proposta de universalização do saber buscando

romper com a hegemonia da educação católica medieval e no século XX, na década de

1980, ela reflete o cenário constituído pelos movimentos sociais dos trabalhadores no

período pós-ditadura e pelos movimentos sociais de reorganização da sociedade civil

brasileira. Dentre outras questões, tais movimentos colocaram em questionamento as

escolas, os currículos e as práticas pedagógicas e impulsionaram a organização dos

professores em sindicato, o surgimento das greves e a ampliação dos cursos de

formação de professores (FUSARI; FRANCO, 2010). Nesse contexto, a Didática

assumiu as questões pedagógicas como base de sua produção e situou as questões

políticas como determinantes das pedagógicas. Diante desse cenário entendeu-se que

[...] a Didática deveria propiciar a análise crítica da realidade do

ensino por parte dos professores em formação, inicial ou continuada,

buscando compreender e transformar essa realidade, de forma

articulada a um projeto político de educação transformadora

(FRANCO, 2010, p. 89).

Na atualidade, a Didática compromete-se com a superação das desigualdades e

com a construção de um mundo mais democrático, justo e igualitário. Nesse contexto,

ela assume o ensino (indissociável da aprendizagem) como seu principal objeto de

análise e investigação, o que demanda certa delimitação de seu campo específico, qual

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seja, as relações entre o ensino e a aprendizagem (LIBÂNEO, 2010). O ensino é

entendido como prática social complexa, específica e multideterminada que se realiza

na práxis social entre os sujeitos envolvidos nesse processo, portanto, ocorre em

situações historicamente situadas, ou seja, nas aulas e demais situações de ensino das

áreas do conhecimento, nas escolas, nos sistemas de ensino, nas culturas, nas

sociedades, estabelecendo-se os nexos entre eles (PIMENTA, 2010; ALMEIDA;

PIMENTA, 2014). Portanto, o ensino de qualidade será aquele que resulte em qualidade

formativa; ensinar é organizar intencionalmente as condições para sua realização

visando ao desenvolvimento do exercício da crítica para transformação das condições

vigentes (ALMEIDA; PIMENTA, 2014). Complementando essas dimensões, a Didática

é chamada a responder aos desafios da escola contemporânea, sobretudo a pública. Para

tanto, enquanto disciplina dos cursos de formação de professores, cabe a ela oferecer

aos futuros professores os recursos teórico-práticos que poderão abrir novos caminhos

na busca de condições mais dignas para o trabalho docente e para a aprendizagem dos

alunos (FRANCO, 2010).

Apoiadas em Libâneo (2012), compreendemos que a Didática enquanto campo

disciplinar reúne duas dimensões: a lógica dos saberes disciplinares e a lógica da

relação pedagógica as quais são permeadas pelas práticas socioculturais, a trajetória

social dos alunos, a vida cotidiana, as mídias, as identidades sociais e culturais, dentre

outros aspectos que atravessam os processos de ensinar e aprender. Em outras palavras

[...] a didática é concebida como disciplina que busca melhor

compreender como ações de ensino podem gerar ações de

aprendizagem, tendo como referência os conteúdos das disciplinas,

para propor meios que favoreçam a mútua transição de um a outro

(LIBÂNEO; ALVES, 2012, p. 28).

No nosso entender, a Didática nos cursos de Pedagogia pode oferecer os

recursos teórico-práticos necessários à reflexão sobre o ensino como prática social

contextualizada que tem como intenção a aprendizagem futura dos alunos. Para

Pimenta, Franco e Fusari (2014)

Aí está o papel contemporâneo da Didática que estamos denominando

de Didática Multidimensional: uma Didática que tenha como foco, a

produção de atividade intelectual, no aluno e pelo aluno, articulada a

contextos nos quais os processos de ensinar e aprender ocorrem. Uma

Didática que se paute numa pedagogia do sujeito, do diálogo, onde a

aprendizagem seja mediação entre educadores e educandos (p. 3).

Para tanto, é preciso revigorar a Didática, teórica e profissionalmente,

contemplando a necessidade de: retomar do estudo aprofundado do campo teórico e

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investigativo da Pedagogia; priorizar a pesquisa didática sobre e na escola e sobre e na

sala de aula, destacando as mediações pedagógicas; ampliar seus elementos

constitutivos visando clarear os contextos e as condições concretas em que ocorrem os

processos de ensino e de aprendizagem considerando as questões socioculturais,

antropológicas, linguísticas, estéticas, comunicacionais e midiáticas (LIBÂNEO, 2010).

Todavia a “Didática, certamente, precisa manter fidelidade aos seus elementos

constitutivos clássicos: o que ensinar, para quem ensinar, como ensinar, ou seja, os

elementos que a definem como mediação da aprendizagem” (LIBÂNEO, 2010, p. 69).

As questões anteriormente colocadas mostram que a Didática, nas dimensões

epistemológica, disciplinar e de práticas pedagógicas, está profundamente

comprometida com o ensino e a aprendizagem. Isso evidencia a identidade dessa

disciplina com os cursos de formação de professores bem como o seu potencial

privilegiado de nortear e subsidiar o estágio supervisionado.

O estágio supervisionado tem ocupado posição de destaque na discussão acerca

da formação de professores no Brasil. Diferentes autores, com destaque para Pimenta,

Almeida, Lima, Gomes e Carvalho, têm se preocupado em ressignificar o sentido do

estágio nos cursos de formação de professores e apontar caminhos teórico-

metodológicos para a superação dessa atividade na perspectiva meramente instrumentar.

Se, por um lado, ele tem o potencial de se configurar como espaço privilegiado de

formação por outro pode se configurar apenas como uma atividade meramente técnica e

instrumental, com pouca ou nenhuma articulação com o projeto do curso e sem

aproximação, com o aprofundamento necessário, com o campo de atuação profissional

do pedagogo.

O estágio neste trabalho é entendido como atividade teórica instrumentalizadora

da prática, isto é, como campo de conhecimento e atividade científica (PIMENTA;

LIMA, 2008, p.61). Como campo de conhecimento pode possibilitar ao professor em

formação ressignificar continuamente a prática e a descobrir novas maneiras de

compreender o fazer pedagógico (LIMA, 2012). Isso implica aferir-lhe um estatuto

epistemológico que rompa com sua tradicional concepção, ou seja, atividade prática

instrumental assentada em modelos que foram produzidos pela cultura escolar

dominante e que reduziram a atividade docente a um fazer artesanal.

Conceber o estágio como atividade científica pressupõe potencializá-lo como

espaço de pesquisa, como caminho para a formação de futuros professores no sentido de

analisar, refletir e ampliar a compreensão das situações vivenciadas e observadas pelos

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estudantes de Pedagogia nas escolas, nos sistemas de ensino e demais espaços

educativos. Nesse âmbito, reconhecê-lo como campo de pesquisa significa desenvolver

um processo formativo integrado em que os atores (estagiários, professores formadores

e professores da educação básica) tenham possibilidade de buscar conhecimentos que

permitam a análise de questões educativas e da profissão docente em contextos

históricos, sociais, culturais, organizacionais e de si mesmos como profissionais

(PIMENTA; LIMA, 2008).

Assim,

o estágio propicia aproximações com a escola (ambiente de trabalho

dos professores), com as práticas didático-pedagógicas (quando

professores e alunos estabelecem relação com o conhecimento por

meio de ações coletivamente desenvolvidas) e com os professores e

alunos (aproximando-se das compreensões e atitudes dos sujeitos

envolvidos na aula) (ALMEIDA; PIMENTA, 2014, p. 16).

Nessa perspectiva, a aproximação com a escola, futuro campo de atuação

profissional do pedagogo, pressupõe uma atitude investigativa, ou seja, espera-se que os

estudantes levantem dados, observem a prática de profissionais mais experientes,

reflitam, analisem, conceituem, busquem articular as teorias estudadas com as situações

práticas, procurem articular os vários elementos que estão percebendo na realidade

observada de modo que avancem no seu desenvolvimento pessoal e na constituição dos

seus estilos de atuação (ALMEIDA; PIMENTA, 2014, p. 29). Portanto, essa

aproximação com a escola e a sala de aula deve ser analítica, ou seja, por meio dela o

estagiário analisa as condições de ensino, as interações entre professor e aluno, a

organização da aula, a visão de ciência predominante, o conteúdo ensinado, os impactos

das políticas educacionais e curriculares na prática docente, dentre outros aspectos

(CARVALHO, 2012). A Resolução CNE/CP 2/2002 (BRASIL, 2002) destaca que o

estágio se caracteriza por “uma relação pedagógica entre alguém que já é um

profissional reconhecido em um ambiente institucional de trabalho e um aluno

estagiário [...]”.

Em síntese, o estágio discutido nesse texto é percebido pelo conceito de práxis,

ou seja, como atividade que compreende e transforma a realidade. Assim, é exercício

teórico de conhecimento, fundamentação, diálogo e intervenção na realidade, que

valoriza a prática profissional como momento de construção de conhecimento por meio

de reflexão, análise e problematização dessa prática e como espaço privilegiado da

construção da identidade de professor (PIMENTA; LIMA, 2008). As questões

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anteriormente colocadas apontam para a importância de estudos que se proponham a

analisar a organização do estágio no curso de Pedagogia.

Percurso Metodológico

A pesquisa foi realizada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão

Preto, da Universidade de São Paulo.

Trata-se de um estudo qualitativo, tendo por corpus o programa de estágio da

disciplina de Didática II (Didática e Práticas Pedagógicas: Planejamento e Currículo),

o qual foi analisado na perspectiva da análise documental (LUDKE e ANDRÉ, 1986 e

CELLARD, 2008). Dessa forma, entendemos tratar-se de uma pesquisa exploratório-

descritiva, na qual se busca, preponderantemente, a descrição e análise dos dados de

forma articulada e aprofundada (LUDKE e ANDRÉ, 1986).

O estágio supervisionado no âmbito da disciplina de Didática II do Curso de

Pedagogia da FFCLRP: entre ressignificações e possibilidades formativas

A análise do programa de estágio para este estudo foi realizada em função dos

seguintes aspectos: organização geral do estágio, campo de estágio, atividades

propostas pelo programa e relação do programa com o programa da disciplina de

Didática II.

O Curso de Pedagogia, do Departamento de Educação, Informação e

Comunicação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da

Universidade de São Paulo contempla 400 horas de estágio curricular. Essa carga

horária atende o que preconiza a legislação, especialmente a Resolução CNE/CP nº

2/2002 (BRASIL, 2002) e o Parecer CNE/CP nº 2/2015 (BRASIL, 2015), bem como,

o Programa de Formação de Professores da USP (PFPUSP). Os estágios no Curso de

Pedagogia em tela ocupam papel relevante no processo formativo, sendo ofertados e

organizados ao longo do curso em formatos distintos que visam propiciar ao futuro

professor diferentes experiências teórico-práticas de docência, na perspectiva da

polivalência na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, e de gestão.

Quanto à organização geral do estágio proposto pela disciplina Didática II

ocorre no quarto semestre do curso e contempla uma carga horária de 30 horas,

objetivando que os estudantes se aproximem da realidade vivenciada em uma sala de

aula de Ensino Fundamental I. Assim organizado, possibilita aos estudantes

compreender os contextos históricos, sociais, culturais, organizacionais nos quais se dá

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a atividade docente (LIMA; AROEIRA, 2011). Da mesma maneira que os demais

estágios do curso, este está organizado a partir dos seguintes princípios: do trabalho

coletivo e democrático, da valorização da escola pública e da atividade científica como

eixo formativo. A realização dos estágios em duplas fundamenta-se no pressuposto de

que o “trabalho do professor pode ser potencializado se houver um projeto que tenha

sido pensado, construído e avaliado coletivamente” (CORRÊA, 2010, p. 39).

Orientado por esses princípios, o campo de estágio é exclusivamente a escola

pública (das redes municipal e estadual de Ribeirão Preto). A escolha de ter como

campo de estágio somente escolas públicas ancora-se no compromisso que o referido

curso de Pedagogia assumiu, desde sua concepção, de contribuir com a melhoria da

qualidade do ensino das escolas públicas, bem como, em um dos princípios do

programa de forção de professores dessa universidade o qual reconhece a escola pública

como parceira na formação dos futuros professores e foco prioritário de interesse de

pesquisas, projetos e intervenções propostos pela universidade pública.

Em relação às atividades propostas pelo programa de estágio verificou-se

que o mesmo contempla: observação participante das aulas; participação nas

reuniões pedagógicas; atividade de análise do projeto político-pedagógico da escola

e do plano de ensino desenvolvido pelo professor; desenvolvimento de atividade

durante o recreio e atividade de docência (regência de aula). Assim organizado

verifica-se que o programa supera e muito a perspectiva meramente instrumental e

técnica a qual se baseava, predominantemente, na observação e na reprodução de

modelos.

Por meio da observação participante o estudante é levado a olhar de maneira

investigativa para as situações de ensino, estabelecendo os nexos necessários para

compreendê-la na sua complexidade, superando a visão simplista dos problemas de

ensino e aprendizagem e do cotidiano escolar (CARVALHO, 2012). Além disso,

possibilita a aproximação do pedagogo em formação com as situações reais vivenciadas

pelo professor na sala de aula, com seus limites e possibilidades. Essa aproximação

possibilita o necessário encontro do estagiário com a “real condição das escolas e suas

contradições entre o escrito e o vivido, o dito pelos discursos oficiais e o que realmente

acontece” (ALMEIDA; PIMENTA, 2014, p. 34). Assim, o estágio como reflexão da

práxis possibilita a construção de conhecimento sobre a organização do ensino

subsidiada por estudo, análise, problematização, reflexão e proposição de caminhos

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mais apropriados para as situações de ensinar e aprender, tal como é proposto por

Pimenta e Lima (2008).

A análise do programa permitiu verificar que o mesmo prevê atividades que

possibilitam o conhecimento acerca do processo de planejamento, com destaque para

a análise do projeto político pedagógico, do currículo, do plano ensino do professor

e da formação continuada que ocorre nas reuniões pedagógicas.

A atividade durante o recreio tem como objetivo propiciar o conhecimento dos

espaços escolares, bem como, da vida fora da sala de aula. Os estudantes elaboram um

plano das brincadeiras que serão desenvolvidas, com a descrição dos materiais

necessários. Essa atividade é objeto de reflexão dos estudantes nas situações de

supervisão, pois nesse momento eles podem perceber como a escola está organizada e

como se dão as relações dos adultos com as crianças.

A atividade de docência ocorre após a observação participante. Pela análise do

programa verificou-se que os estudantes constroem um projeto de intervenção de

comum acordo com a professora da classe estagiada e sob a orientação das docentes e

educadora responsáveis pelo estágio. O projeto de intervenção é elaborado por meio de

uma Unidade Didática. Essa atividade coloca o estagiário em uma situação de

docência, supervisionada pelo professor responsável pela classe.

A Unidade Didática é elaborada a partir do referencial tratado na disciplina de

Didática II sobre planejamento, bem como, da obra de Dermeval Saviani, Escola e

Democracia, na qual ele discute um processo que, na perspectiva histórico crítica, deve

nortear a relação com o conhecimento. Esse processo considera a prática social do aluno

o ponto partida e de chegada, fazendo o seguinte movimento: prática social inicial,

problematização, instrumentalização, catarse e prática social refletida (SAVIANI,

2011). Interessante destacar que essa orientação teórico-metodológica pode contribuir

para que os estagiários percebam o ensino não como transmissão, mas como fenômeno

complexo que se realiza na práxis social entre os sujeitos situados em contextos, e que

por isso é modificado e modifica os sujeitos envolvidos nesse processo. Essa atividade

de docência garante a aproximação entre o professor em formação e o professor em

ação e seus modos de desempenhar o trabalho. Organizado como campo de

conhecimento o estágio propicia ao futuro professor formular suas representações sobre

a docência e ampliar suas compreensões conceituais a respeito de como ensinar e

aprender (ALMEIDA; PIMENTA, 2014).

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A docência desenvolve-se num quadro permeado de determinações, o que lhe

confere complexidade, bem como pressupõe autonomia e responsabilidade do professor.

Esteves (2012) argumenta que em relação a outras formas de trabalho, a “docência

define-se por ser uma ação sobre o outro, no contexto de uma classe ou turma de alunos,

onde ocorre uma relação pedagógica, uma interação, que escapa em certa medida à

padronização e à racionalização contínua” (p.21). Entendendo-se que o estágio

curricular não é a prática em si, mas uma reflexão sobre ela, depreende-se que a relação

que os estagiários estabelecem com a docência no programa de estágio analisado pode

contribuir para seu processo identitário. Dessa forma, o estágio passa a ser um retrato

vivo da prática docente (PIMENTA; LIMA, 2008, p. 127).

O programa de estágio prevê atividades de reflexão e de planejamento que se

realizam na Universidade nas supervisões periódicas em pequenos grupos, realizadas

pelo educador e pelo docente. Os estagiários são provocados a refletir sobre as situações

observadas e vivenciadas à luz do referencial teórico da disciplina de Didática. Os dados

obtidos por meio das atividades de estágio são registrados sistematicamente em diário

de campo e os mesmos são objeto de reflexão nas supervisões e a análise deles compõe

o relatório. Assim, o estudante vivencia o estágio na perspectiva investigativa, ou seja, o

estágio com pesquisa, tal como propõe Almeida e Pimenta (2014) e Carvalho (2012).

Por fim, a elaboração do relatório é uma atividade que sistematiza todas as

vivências e experiências do estágio articuladas com as discussões teóricas da Disciplina

de Didática II, portanto, representa um espaço de elaboração teórica, de pesquisa e de

autoria. De acordo com Pimenta e Lima (2008, p. 127) “A pesquisa no estágio como

método de formação dos estagiários, futuros professores, se traduz pela mobilização de

investigações que permitam a ampliação e análise onde os estagiários se realizam”.

Todas as atividades propostas no programa de estágio encontram suporte teórico

na disciplina de Didática II. Essa relação entre estágio e a disciplina Didática II leva

os estudantes a perceber a importância dessa disciplina, rompendo com a perspectiva

meramente técnica e mágica. Tratando o ensino como fenômeno complexo e prática

social a disciplina de Didática ajuda a criar respostas novas, assumindo, portanto, um

caráter explicativo, compreensivo e projetivo sobre o ensino, tal como recomendam

Almeida e Pimenta (2012).

As atividades propostas para o estágio e sua disposição ao longo do semestre

atreladas ao programa da disciplina e as discussões em supervisões de pequenos grupos,

favorecem aos estudante de Pedagogia condições para construção de sua identidade

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como professor, bem como de se perceber preparado para se inserir nos contextos e

neles intervir (PIMENTA, 2001).

Considerações Finais: construindo algumas sínteses acerca do estágio na

formação do pedagogo

A realização do estágio curricular sob a forma de interação e de intervenção

mostra-se como um caminho teórico-metodológico que melhor possibilita a

concretização dos fundamentos e objetivos do curso: proceder à mediação entre o

processo formativo e a realidade no campo social. Por intermédio da atitude

investigativa frente à prática docente que se desenvolve na escola e, principalmente,

frente às diversas atribuições do professor (ensinar, orientar o estudo, ajudar

individualmente os alunos, regular as relações, preparar materiais, saber avaliar,

organuizar espaços e atividades, etc...) o estudante, apoiado no referencial teórico da

disciplina de Didática II, vai produzindo nessa experiência de estágio suas

compreensãoes pessoais, seus saberes e compromisso ético profissional com a

escolarização das crianças e jovens.

Por fim, o programa de estágio analisado propõe uma experiência

desencadeadora de observações, problematizações, investigações, leitura, análises e

formulações de novos conhecimentos essenciais à atuação docente.

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PRÁTICAS DE REESCRITA: CONTRIBUIÇÕES PARA A FORMAÇÃO

INICIAL DE PROFESSORES

Filomena Elaine P. Assolini

FFCLRP-USP

RESUMO

Como docente de cursos de graduação, preocupa-nos, há certo tempo, a formação inicial

de estudantes, particularmente os de Pedagogia, licenciandos que irão atuar no Ensino

Fundamental, quer seja no âmbito da sala de aula, quer na gestão escolar. Essa

inquietação instigou-nos a realização de uma pesquisa, que buscou compreender, à luz

da Análise de Discurso de Matriz Francesa e dos estudos sobre Formação de

Professores, se e em que condições de produção a prática da reescrita de textos

acadêmicos possibilita a emergência da autoria. Buscamos observar também, se essa

prática, a reescrita, permite ao estudante ressignificar sua relação com a escrita,

sobretudo quando essa relação é caracterizada por sentidos negativos. O corpus dessa

investigação foi constituído por depoimentos escritos de quarenta estudantes do curso

de Pedagogia, a respeito de sua relação com a escrita, bem como por cerca de duzentos

e sessenta textos, produzidos por eles, a partir de práticas de reescritas. Os resultados

das análises discursivas assinalam: a) estudantes que se relacionam negativamente com

a escrita ocupam principalmente a posição de enunciadores de sentidos legitimados; b) a

prática da reescrita possibilita ao estudante reler o texto por ele produzido, e, assim,

escutar os sentidos que ali circulam; c) reescrever textos oferece ao estudante

oportunidades para olhar o texto a partir do lugar de autor, o que lhe permite

empreender movimentos linguístico-discursivos e interpretativos responsáveis por

contribuir para a instauração da autoria; d) uma das condições favoráveis de produção

de textos acadêmicos envolve discussões desses textos, o que contribui para a ampliação

do arquivo do estudante, a respeito dos temas a serem reescritos. Entendemos que a

formação inicial tem importante papel na preparação profissional do estudante, que

pode aprender a construir textos caracterizados pela autoria.

Palavras-Chave: Formação inicial, Pedagogia, Reescrita.

INTRODUÇÃO

Como docente do Ensino Superior, vimos observando a dificuldade de alguns

estudantes universitários na produção de textos acadêmicos, em especial no que se

refere à (im) possibilidade de posicionarem-se como autores de seu próprio dizer. Nossa

preocupação com tais dificuldades, particularmente no âmbito das denominadas

“disciplinas pedagógicas”, no curso de Licenciatura em Química, motivou-nos a

investigar a relação que estabelecem com a escrita. A pesquisa por nós desenvolvida,

em 2014, denominada Estudantes Universitários e a Escrita Acadêmica: relações e

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426ISSN 2177-336X

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consequências para a produção textual, trouxe indícios de que muitos estudantes não se

relacionam positivamente com a escrita, o que afeta o processo de instauração de

autoria, nos textos por eles produzidos.

As conclusões a que chegamos, a partir da citada pesquisa, instigou-nos à

elaboração e realização de um projeto de trabalho que objetivou oferecer aos estudantes

de Licenciatura em Química, em processo de formação inicial, subsídios linguístico-

discursivos para melhorar sua escrita acadêmica. O projeto ao qual nos referimos

denomina-se “Práticas de Reescrita” e parte do pressuposto de que a reescrita possibilita

ao sujeito ocupar o lugar de autor de seu próprio dizer.

Para o filósofo francês Michel Foucault (1969), o autor é considerado como

princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações,

como centro de sua coerência. O autor é aquele que inaugura e instaura uma

discursividade, como, por exemplo, os estudiosos Karl Marx, Sigmund Freud e

Ferdinand Saussure.

Orlandi e Guimarães (1988), diferentemente de Foucault (1969), consideram que

o autor é uma das posições que pode ser ocupada pelo sujeito do discurso. Para tanto,

deve construir um texto claro, coerente e “completo”, isto é, com unidade (começo,

meio e fim). É necessário preocupar-se com o interlocutor e responsabilizar-se pelos

efeitos de sentidos, que podem vir a ser produzidos a partir das formações discursivas

nas quais se inscreve e, consequentemente, pelas formações ideológicas a que se

remetem.

Para dialogar com os teóricos acima, trazemos as contribuições de Tfouni

(1995). De acordo com a linguista, “(...) o autor é uma posição de sujeito a partir da qual

ele consegue estruturar seu discurso (oral ou escrito), de acordo com um princípio

organizador contraditório, porém necessário (...)” (TFOUNI, 1995, p.42). Isso porque

existe no processo de produção de um texto, movimentos de deriva e dispersão de

sentidos inevitáveis, que devem ser controlados pelo autor, a fim de que possa dar ao

seu discurso uma unidade aparente.

Assumimos, em nossas pesquisas, o conceito proposto por Tfouni (1995, 2001),

pois, em concordância com a estudiosa, entendemos que a autoria pode instalar-se

também em discursos orais, o que nos possibilita reconhecer e valorizar essa

modalidade discursiva, na qual podem ser observadas características do discurso da

escrita.

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Ainda nessa seção, destinada à introdução, gostaríamos de destacar que

compreendemos a formação inicial como um processo múltiplo, não linear, cujas vozes,

memória discursiva, saberes, práticas e experiências, acumulados ao longo da história

do sujeito e, portanto, de seu percurso histórico-social e ideológico, afetam

sobremaneira o modo como se relaciona com os objetos do conhecimento, de maneira

ampla e com a escrita, de forma particular, além de afetarem também a constituição da

identidade profissional do sujeito estudante, que, futuramente poderá atuar nos dois

primeiros ciclos da Educação Básica, ensino infantil e ensino fundamental, assim como

na coordenação e gestão educacional.

Para apresentarmos os resultados da investigação que dizem respeito às práticas

de reescrita, organizamos o presente artigo em quatro diferentes seções: a primeira traz

alguns conceitos centrais do arcabouço teórico ao qual nos filiamos e que sustenta

nossos estudos, desde sempre, em seguida, na segunda seção, expomos como se deu a

constituição do corpus. Dedicamo-nos, por fim, às análises discursivas dos recortes

selecionados e concluímos o presente trabalho com algumas considerações finais.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: conceitos centrais

Iniciando a apresentação de alguns dos inúmeros conceitos, princípios e

definições da Análise de Discurso de Matriz Francesa, destacamos o conceito de

discurso: “(...) efeito de sentidos entre interlocutores, sócio-historicamente

determinados” (PÊCHEUX, 1990, p. 168). Compreender o que é efeito de sentidos é

compreender que o sentido não está alocado em lugar nenhum, mas se produz nas

relações: dos sujeitos, dos sentidos, e isso só é possível porque sujeito e sentido se

constituem mutuamente pela sua inserção no jogo das múltiplas formações discursivas.

É importante dizer que a Análise de Discurso de Matriz Francesa (doravante

AD) é um campo teórico formado por três regiões do conhecimento: a linguística, o

materialismo histórico e a psicanálise. A linguística nos permite compreender que a

língua não é neutra nem evidente; ela tem sua ordem e é marcada por materialidade

específica; o marxismo mostra-nos que o homem faz história, mas ela não lhe é

transparente e a psicanálise, por sua vez, traz a noção de sujeito que se coloca como

tendo sua opacidade: ele não é transparente nem para si mesmo.

Dando sequência, ressaltamos que, de acordo com a perspectiva discursiva, o

sujeito ocupa diferentes posições discursivas, a partir das quais enuncia. Não

trabalhamos com a noção de indivíduo, sujeito empírico ou psicológico, mas sim de um

sujeito que fala a partir de um lugar, reconhecido institucionalmente. Assim, dentro do

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Discurso Pedagógico Escolar, DPE, temos, por exemplo, a posição sujeito professor,

posição sujeito estudante, coordenador-pedagógico, dentre outras. O sujeito da AD é,

também, o sujeito do inconsciente e sujeito da ideologia, cujo discurso mantém sempre

relação com outros dizeres.

Outro princípio fundamental para a AD é o que se refere à consideração de que

há uma relação constitutiva entre linguagem e exterioridade. Dessa forma, os

interlocutores e as posições de sujeito por eles ocupadas, a situação, quer seja em

sentido estrito (o aqui e o agora), onde ocorre o dizer, quer seja em sentido lato

(contexto histórico-social e ideológico e ainda a memória) isto é, as condições de

produção, não são meros complementos, mas sim características dos dizeres produzidos

pelos sujeitos, segundo Pêcheux (1995) e, portanto, devem ser consideradas, no

processo de análise.

O conceito de memória é relevante para o presente trabalho, pois partimos do

pressuposto de que tanto a escrita quanto a reescrita são formadas por enunciados que

não vêm apenas de um imaginário “ponto de origem” ou “ponto de partida”, mas sim de

enunciados provenientes de outros discursos. Assim, o dizer não é propriedade

particular do sujeito, as palavras não são exclusivamente suas, visto que significam pela

história e pela língua. Dessa forma, o que já foi dito em outro lugar, sentidos já

formulados e enunciados continuam ecoando em suas palavras, produzindo

significados.

Cumpre esclarecer que, de acordo com o enfoque discursivo, entendemos

memória social como “aquela que é inscrita no seio das práticas discursivas”

(COURTINE, 1981, p. 45). Não se trata, portanto, de memória de um ponto de vista

psicológico ou cognitivo.

Para dialogar com o autor acima, mobilizamos Pêcheux (1999), que nos diz:

uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas

bordas seriam transcendentais históricos e cujos conteúdo seria um

sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é

necessariamente um espaço de desdobramentos, de réplicas,

polêmicas e contra-discursos (PÊCHEUX, 1999, p. 10).

É a memória que nos permite reconhecer, na reescrita, efeitos de reprodução, de

deslocamentos ou de transformações de sentidos, pois todo dizer encontra-se na

confluência dos dois eixos, o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação).

No processo de reescrita, o sujeito está submetido, inconscientemente, tanto a

uma memória social, quanto à memória discursiva (memória particular), memórias essas

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429ISSN 2177-336X

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que o conduzem a um determinado gesto interpretativo, e este, por sua vez, estabelece a

predominância de um sentido em detrimento de outros, fazendo parecer, em alguns

casos, que o sentido escolhido é o único possível.

Seguindo com a nossa exposição, destacamos os conceitos de formação

ideológica e de formação discursiva. Esta impõe o que dizer aquela, o que pensar. As

formações ideológicas projetam no discurso as formações discursivas, que são práticas

que estão em constante movimento, entrecruzando-se e, consequentemente,

(trans)formando-se e (re)produzindo saberes, por meio do interdiscurso. Elas são

frequentadas pelo discurso do outro e suas fronteiras são fundamentalmente instáveis,

fluidas e heterogêneas.

Prosseguindo com a exposição teórica, voltamos nossas atenções para os

conceitos de autoria, tal como pensada por três diferentes estudiosos: Foucault (1969),

Orlandi e Guimarães (1988) e Tfouni (1995, 2001).

ASPECTOS METODOLÓGICOS: constituição do corpus e procedimentos

de análise

A fundamentação teórica deste trabalho, a AD, inscreve-se em um paradigma de

ciência específico, fundamentado na interpretação, tal como proposto por Ginzburg

(1989), que nos ensina a buscar, reconhecer e valorizar pistas, indícios e sinais, até

mesmo os imperceptíveis. Os procedimentos de análise consideram os indícios

linguístico-discursivas. que nos levam ao processo discursivo, possibilitando-nos

explicar o funcionamento do discurso e a relação entre esse funcionamento e as

formações discursivas que, por sua vez, remetem às formações ideológicas.

Nesse contexto, é importante dizer que, de acordo com a perspectiva discursiva,

só podemos falar em corpus a partir de um “recorte” de dados, determinado pelas

condições de produção, levando-se em conta os objetivos e princípios teóricos que,

orientando toda a análise, possibilitam uma leitura não subjetiva dos dados, entendidos

aqui como fatos linguísticos, posto que têm historicidade e memória; elementos que se

inscrevem na língua e no discurso.

O corpus dessa pesquisa foi constituído por entrevistas semiestruturadas,

realizadas com vinte e oito estudantes do curso de Licenciatura em Química, de uma

universidade pública do interior do Estado de São Paulo. Integram também o corpus

depoimentos, desses mesmos vinte e oito sujeitos, a respeito de suas relações com a

escrita acadêmica, e, ainda, 148 (cento e quarenta e oito reescritas), por eles produzidas,

a partir de textos que versam sobre diferentes temas educacionais, relacionados às

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disciplinas pedagógicas, por eles cursadas ao longo da graduação, Licenciatura em

Química.

A partir desse “amplo espaço discursivo” (MAINGUENEAU, 1997), realizamos

alguns recortes, compreendidos aqui como fragmentos correlacionados de linguagem e

situação. Desses recortes nasceram as seqüências discursivas de referência, SDR, tais

como formuladas por Courtine (1981).

Para esse evento, analisaremos três fragmentos de práticas de reescrita, sendo

que o primeiro deles é um recorte de um extenso trabalho acadêmico, denominado

“relatório de estágio”, realizado como uma das atividades propostas pela disciplina de

Didática Geral, no ano de 2015. O citado fragmento foi construído sem qualquer

mediação, ou intervenção de docente, educador ou colega de classe. O segundo, por sua

vez, é produto de um trabalho de reescrita, ou melhor, de reescritas, visto que esse

processo exigiu que o mesmo texto fosse reescrito três diferentes vezes, até chegar à

versão “final”, que será, mais adiante, exposta e analisada.

Tendo apresentado alguns dos mais relevantes conceitos teórico-metodológicos

que nos amparam, dedicar-nos-emos, a seguir, à análise discursiva do recorte

selecionado.

CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO CURSO DE EXTENSÃO

Tendo em vista nosso propósito de contribuir com ações que pudessem

melhorar a escrita dos sujeitos estudantes universitários, desenvolvemos um projeto de

extensão universitária, para o qual elegemos a reescrita de textos, como alternativa que

pudesse lhes ajudar no processo de aprendizado e aprimoramento da escrita acadêmica.

A prática da reescrita, concebida aqui como “(...) conjunto de modificações

escriturais pelas quais diversos estados do texto constituem as sequências recuperáveis

visando um texto terminal” (FIAD, 2009, p. 148), é por nós tratada como sendo

alternativa viável para o sujeito do discurso ocupar o lugar de autor, visto que este pode

retroceder, retomar o seu dizer e suas interpretações, o que pode lhe ajudar a aprender a

escutar os sentidos que (re)produz.

Os estudantes foram convidados a participar do projeto e a ele aderiram

espontaneamente. Foram concretizados dez encontros de seis horas cada um, no âmbito

de uma universidade pública do interior do estado de São Paulo. Os materiais, textos

fotocopiados, foram disponibilizados gratuitamente para os estudantes Os encontros

aconteceram aos sábados Ao final de cada uma das reescritas, dávamos devolutivas

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escritas das correções dos textos reescritos, tanto em reuniões gerais, envolvendo todo o

grupo de cursistas, como em reuniões individuais, com fins específicos.

Os textos “originais”, ou seja, os que serviram como ponto de partida para a

elaboração das reescritas, foram escolhidos por nós, em alguns casos, como, por

exemplo, resenhas de livros, capítulos de dissertações e teses, artigos científicos

publicados em periódicos qualificados, e, em outras oportunidades, trabalhamos com

textos trazidos pelos próprios estudantes, por exemplo, relatórios de estágio, de visitas

técnicas, de iniciação científica, de finais de conclusão de disciplina ou curso e artigos

científicos, em processo de elaboração.

O fragmento que mostraremos a seguir refere-se à seção denominada

“conclusões” de um relatório de estágio, elaborado pelo sujeito estudante “M.J.”, no

mês de maio de 2015.

GESTOS DE INTERPRETAÇÃO

Recorte Número 2 - Produção Linguística Escrita- Relatório de Estágio

Podemos agora concluir este relatório, pois apresentamos tudo o que vivemos no

longuíssimo e difícil estágio que nos ensinou muitas coisas, como, por exemplo, que os

estudantes notam de verdade o que fazemos, o que falamos, o que escrevemos, o que

damos de matéria; embora não conseguisse relatar e contar tudo, aprendi sim muito e

podemos falar que os estágios ajudam a gente a amadurecer, a crescer e agora falando

de novo eu afirmo que a experiências que fizemos no laboratório foram muito válidas

porque os alunos gostaram e nós também gostamos muito e ficou claro que não dá para

ensinar Química sem ir no laboratório, a gente, eu e a minha dupla falamos desde o

começo que o laboratório era esquecido, depósito de lixo, que ninguém ia lá. (Sujeito

Estudante-Universitário “M.J.”).

É possível observar que a posição de sujeito “M.J.”, embora anuncie que “já

pode concluir o relatório” não consegue fazê-lo, pois não dá conta de organizar o seu

texto de forma a dar-lhe um caráter conclusivo, o que implicaria o uso de certos

conectivos da língua portuguesa, que o ajudariam a produzir o efeito de sentido de

“fechamento” e de “finalização”. Um dos motivos pelos quais não consegue “fechar” o

“texto” que produz tem a ver com o fato de utilizar esse espaço para reproduzir

descrições e argumentos já apresentados anteriormente, sem que a eles sejam

acrescentadas análises críticas ou considerações outras, baseadas em argumentos que

poderiam lhe ajudar a sustentar suas afirmações e possíveis conclusões.

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Outros elementos que podem se notados dizem respeito à ausência de coesão

textual, que evitaria o efeito de sentidos de contradição dos fatos narrados. As

sequências apresentamos tudo o que vivemos no longuíssimo e difícil estágio e embora

não conseguisse relatar e contar tudo materializam nossos argumentos. Os enunciados

destacados indiciam que, nessa produção linguística, a posição de sujeito universitário

deixa-se capturar pelas duas ilusões do sujeito (a número 1 e a número 2), tais como

pensadas por Pêcheux (1990). Essas ilusões lhe fazem acreditar que há uma relação

direta entre pensamento, linguagem e mundo e, também, que é a origem do que diz, um

sujeito que supostamente inauguraria sentidos. Sob a regência dessas ilusões, o sujeito

não consegue pressupor a incompletude da linguagem e dos sentidos.

A posição de sujeito “M.J”, não consegue distanciar-se de sua produção

linguística e olhá-la de outro lugar, denominado por Tfouni (2001) de “lugar de autor”.

Ocupar esse lugar permitir-lhe-ia retornar aos enunciados e articulá-los, evitando, assim,

a produção de um efeito de sentido que nos dá a percepção de que escreveu somente

para frente, ou seja, sem considerar e retomar enunciados anteriores.

Cumpre dizer que concebemos autor como uma posição discursiva, diferente de

escritor e de narrador (MAINGUENEAU, 1997) e o seu trabalho consiste em organizar

a afluência dos significantes, mediante a elaboração de “rascunhos mentais”, como

propõe Vygostsky (1984).

Concentremo-nos no recorte abaixo, observando como ficou a terceira versão

do fragmento, após ser reescrito.

Recorte Número 3 – Terceira Reescrita do Fragmento Referente ao

Relatório de Estágio.

Concluímos esse relatório dizendo que, embora o estágio tenha sido longo e

difícil, trouxe-nos muitos aprendizados, dentre eles o de que os estudantes sempre nos

observam, em nossas ações, atitudes, comportamentos e conhecimentos dos conteúdos

da matéria.

Além disso, eu e meu parceiro. L.H. observamos que os experimentos

desenvolvidos no laboratório motivam os alunos, ajudando-os a se interessarem pelo

ensino de Química e compreenderem alguns complexos conceitos. Entendemos,

portanto, que esse espaço deve ser cuidado e preservado, tanto pelos professores e

gestores como pelos alunos.

Para finalizar nosso relatório, queremos dizer que o estágio nos trouxe

amadurecimento pessoal e contribuiu para nossa formação profissional (Sujeito

Estudante-Universitário M.J.).

O recorte que acima expusemos traz a terceira reescrita do fragmento em análise,

tendo sido realizada em condições de produção que instigaram o estudante reler a sua

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primeira escrita, retomá-la e observar a ausência de elementos essenciais, como a

coesão e a coerência. Apresentamos, também, exemplos de relatórios e artigos

científicos, nos quais podíamos identificar parágrafos finalizadores.

É possível notar que o fragmento acima se constitui em um texto, no qual a

posição de sujeito “M.J.” organiza o seu dizer, antes caracterizado pela dispersão, num

todo coerente, conferindo-lhe, assim, unidade e coesão, indícios de emergência de

autoria, de acordo com Tfouni (1995, 2005.). Para essa estudiosa, o autor precisa ter

domínio de certos mecanismos discursivos, a fim de assegurar a progressão textual, que

pode ser desenvolvida a partir da inserção de argumentos que se concatenam aos já

explicitados. No caso em questão, podemos observar que a utilização do conectivo,

além disso, no início do segundo parágrafo, contribui para a evolução textual, sem

contradizer o argumento anterior. É possível observar, também, que o sujeito consegue

produzir efeitos de sentido de fechamento, marcados linguisticamente pelas expressões

“portanto” e “para finalizar”. O efeito de sentido de “fechamento” é outro importante

indício de autoria, posto que o processo de “finalização” exige que o sujeito retroaja

linguisticamente, a fim de concatenar os enunciados.

Outro indício de emergência de autoria, no recorte acima, é a expressão “esse

espaço”, que retoma “no laboratório”. O uso correto do pronome “esse”, seguido do

substantivo “espaço”, assinala que a posição de sujeito retroagiu sobre o processo de

produção de sentidos, procurando “amarrar” a dispersão, que “(...) está sempre

virtualmente se instalando, devido à equivocidade da língua”, como afirma Tfouni,

(1995, p.83). Dessa forma, consegue olhar para o enunciado de um outro lugar, que a

autora denomina “lugar de autor” (TFOUNI, 1995, p. 83).

A breve análise por nós empreendida mostra, portanto, que o trabalho com a

reescrita, quando realizado em condições favoráveis de produção, pode auxiliar o

sujeito estudante a produzir textos acadêmicos, nos quais a dispersão e a deriva de

sentidos são controladas, o que já é passo importante para que possa se posicionar como

autor de seu próprio dizer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho linguístico-pedagógico com a reescrita exige a criação de reais

espaços interpretativos, que permitam aos estudantes inscreverem-se no interdiscurso

que lhes constitui, criar sítios de significância e historicizar “seus” sentidos, colocando-

os ativos no funcionamento da linguagem. É necessário considerar também a

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subjetividade do sujeito educando e sua memória particular de sentidos (memória

discursiva), em relação aos diferentes campos de conhecimento, temas, posto que esses

fatores reverberam no seu dizer atual, quer seja na escrita ou na reescrita.

Alternativas educacionais que ofereçam aos estudantes condições de produção

para que se inscrevam em formações discursivas que lhes permitam relacionar-se de

forma crítica com a escrita, compreendendo-a em sua densidade e em seu

funcionamento linguístico-histórico-ideológico, podem contribuir para que se

desloquem dos lugares de enunciador de sentidos alheios e de reprodutor de paráfrases.

Se, de fato, queremos um ensino que conduza os estudantes pelos quais somos

responsáveis à posição de sujeito-autor, é premente que possamos ajudá-los a

inscreverem-se em outras e novas formações discursivas.

Nessa direção, a reescrita apresenta-se como uma proposta exequível, pois se

trata de um processo que afeta e promove a (re)significação, não apenas dos aspectos

linguístico-discursivos da língua e da escrita, propriamente ditas, mas, também, de

sentidos silenciados, da subjetividade e da identidade do sujeito-estudante, em processo

de formação profissional para o exercício da docência. Nessa linha de pensamento,

destacamos nossa concordância com Hall (2006), que nos ensina que a identidade fixa,

plenamente unificada, coerente é um equívoco, pois ao longo de nossas vidas e,

portanto, em nossas histórias, somos confrontados por uma multiplicidade de

identidades, com cada uma das quais podemos nos identificar, por certo tempo.

No trabalho realizado, pudemos observar que a reescrita provocou nos sujeitos

envolvidos o desencadeamento de “outras” ideias e “novos sentidos”, permitindo-lhes

ressignificar suas relações com as práticas sociais de leitura e de escrita. Dito de outra

forma, a reescrita configurou-se também como um espaço para que pudessem refletir

sobre os seus próprios processos de leitura, de interpretação e de escrita propriamente

dita, configurando-se assim como um espaço onde puderam “falar de si” (FOUCAULT,

1969).

Tendo em vista que esses sujeitos, em breve, ocuparão a posição de sujeitos-

professores, em uma sociedade pós-moderna, acreditamos que serão melhor formados à

medida que se entenderem como sujeitos capazes de contrapor-se ao instituído, às

verdades absolutas, aos “discursos da verdade” sobre o professor, seus saberes e

práticas.

Fechamos este trabalho valendo-nos da imagem do manteau d’Arlequim que

acolhe a ideia de que a constituição do sujeito é marcada pela heterogeneidade de vozes,

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práticas, identidades e incompletude, o que no processo de desenvolvimento e formação

profissional docente nos conduz à certeza de que nada está pronto, acabado. Ao

contrário, estamos em processo ininterrupto de formação, (re) escrevendo-nos, sempre.

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