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FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

SOLETRAS, Ano XI, Nº 21, jan./jun.2011. São Gonçalo: UERJ, 2011 2

ISSN 1519-7778

SOLETRAS Revista do Departamento de Letras

Faculdade de Formação de Professores Ano 11, n° 21, jan./jun.2011

São Gonçalo (RJ)

2011

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DEPARTAMENTO DE LETRAS

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EXPEDIENTE

SOLETRAS é um periódico semestral do Departamento de Letras da Faculdade de Formação de Professores da UERJ destinado a veicular sua produção de conheci-mentos e reflexões científicas, estando aberto a contribuições de pesquisadores de ou-tras universidades no terceiro milênio.

Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Edição e Diagramação José Pereira da Silva Projeto de Capa Silvia Avelar Silva CONSELHO EDITORIAL CONSELHO CONSULTIVO Prof. Dr. Afrânio da Silva Garcia Prof. Dr. Amós Coêlho da Silva Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior Prof. Dr. Antônio Elias Lima Freitas Prof. Dr. Antônio Sérgio C. da Cunha Profª Dra. Cilene da Cunha Pereira Profª Dra. Délia Cambeiro Praça Prof. Dr. Claudio Cezar Henriques Prof. Dr. Eduardo Tuffani Monteiro Profª Dra. Iza Quelhas Prof. Dr. Fernando Monteiro de Barros Jr. Prof. Dr. Leonardo Pinto Mendes Prof. Dr. José Mario Botelho Prof. Dr. Manoel Pinto Ribeiro Profª Dra. Maria Cristina Cardoso Ribas Prof. Dr. Nataniel dos Santos Gomes Profª Dra. Maria Lúcia Mexias Simon Prof. Dr. Ricardo Stavola Cavaliere Prof. Dr. Paulo César Silva de Oliveira Profª Dra. Regina Celi Alves da Silva Profª Dra. Vera Lúcia Teixeira da Silva Profª Dra. Victoria Wilson

DISTRIBUIÇÃO A SOLETRAS é distribuída às Bibliotecas Públicas e Faculdades ou Institutos

de Letras que o solicitarem, através do pagamento das despesas postais ou de inter-câmbio (aceita-se intercâmbio com periódicos das áreas de Linguística e Letras).

Os pedidos devem ser feitos à SOLETRAS – Rua Francisco Portela, 794 – Para-íso – 24435-000 – São Gonçalo – RJ.

Telefax: (21) 2569-0276 Endereço eletrônico: [email protected]

SOLETRAS VIRTUAL

http://www.filologia.org.br/soletras

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DEPARTAMENTO DE LETRAS

COORDENAÇÃO DE PUBLICAÇÕES

Reitor Ricardo Vieiralves de Castro

Vice-Reitora Maria Christina Paixão Maioli

Sub-Reitora de Graduação Lená Medeiros de Menezes

Sub-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron

Sub-Reitora de Extensão e Cultura Regina Lúcia Monteiro Henriques

Diretora do Centro de Educação e Humanidades Glauber Almeida de Lemos

Diretor da Faculdade de Formação de Professores Maria Tereza Goudard Tavares

Vice-Diretor da Faculdade de Formação de Professores Catia Antonia da Silva

Chefe do Departamento de Letras Maria Cristina Cardoso Ribas

Subchefe do Departamento de Letras Leonardo Pinto Mendes

Coordenador de Publicações do Departamento de Letras José Pereira da Silva

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SUMÁRIO

0. Apresentação – José Pereira da Silva ..................................................05

1. A educação romana e o destino do latim peninsular – Afrânio da Silva Garcia ........................................................................................................07

2. A Faculdade Paulista de Letras e Filosofia (1º de junho de 1931) – Edu-ardo Tuffani ...............................................................................................22

3. A visão sintática de Júlio Ribeiro – Ânderson Rodrigues Marins ........30

4. Anáfora: da abordagem clássica à abordagem discursiva – Rachel Maria Campos Menezes de Moraes ......................................................................39

5. Campo lexical e neologia: criatividade linguística em favor da argumen-tação – Anderson de Souto .........................................................................50

6. Morte e vida Proeja: leitura, escrita e experiência de vida – Aytel Marce-lo Teixeira da Fonseca e José Enildo Elias Bezerra ..................................63

7. Mosaicos epistolares na MPB – Luciana M. do Nascimento e João Ga-briel Lopes de Brito.....................................................................................71

8. Por uma proposta para a didatização de gêneros no ensino fundamental – Sílvio Ribeiro da Silva ................................................................................82

9. Sociedade, identidade e lingua(gem) na educação de jovens e adultos – Juliana Sousa Trajano ...............................................................................94

10. Trabalhando com literatura de cordel no ensino fundamental: relato de uma vivência – Marcella Braga Cobian, Mariana Fernandes de Lima Costa e Maria Isaura Rodrigues Pinto ...............................................................110

11. Um pouco de digressões acerca da complementação verbal – José Mario Botelho .....................................................................................................117

12. Uma análise funcionalista sobre o uso dos satélites fonte em notícias “on-line” – André William Alves de Assis ................................................134

13. Visões do Rio de Janeiro nas crônicas de Joaquim Manoel de Macedo e João do Rio e suas projeções no ensino de literatura – Maria Cristina Ribas, Carolina Santiago e Rafaela Ramos ........................................................147

DOCUMENTO: Bases Analíticas da Ortografia Simplificada da Língua Portuguesa de 1945, renegociadas em 1975 e consolidadas em 1986 .....159

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APRESENTAÇÃO

O Departamento de Letras da Faculdade de Formação de Pro-fessores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro tem o prazer de apresentar-lhe o número 21 de sua revista SOLETRAS, do primei-ro de 2011, que sai com treze importantes artigos e um documento sobre a ortografia da língua portuguesa, com a participação de quatro professores de seu quadro efetivo e cinco alunos ou ex-alunos, além de nove participantes externos, destacando-se, quantitativamente, a produção relativa à história e ao ensino de língua e de literatura.

Dezenove colegas colaboraram neste número, em que estão disponibilizados treze excelentes artigos e um documento linguísti-co: Afrânio da Silva Garcia (p. 07-21), Anderson de Souto (p. 50-62), Ânderson Rodrigues Marins (p. 30-38), André William Alves de Assis (p. 134-146), Aytel Marcelo Teixeira da Fonseca (p. 63-70), Carolina Santiago (p. 147-158), Eduardo Tuffani (p. 22-29), João Gabriel Lopes de Brito (p. 71-81), José Enildo Elias Bezerra (p. 63-70), José Mario Botelho (p. 117-133), Juliana Sousa Trajano (p. 94-109), Luciana M. do Nascimento (p. 71-81), Marcella Braga Cobian (p. 110-116), Maria Cristina Ribas (p. 147-158), Maria Isaura Rodri-gues Pinto (p. 110-116), Mariana Fernandes de Lima Costa (p. 110-116), Rachel Maria Campos Menezes de Moraes (p. 39-49), Rafaela Ramos (p. 147-158) e Sílvio Ribeiro da Silva (p. 82-93).

Dois artigos (o décimo e o décimo terceiro) foram produzidos por bolsistas de graduação, com a coautoria dos seus orientadores (Maria Isaura Rodrigues Pinto e Maria Cristina Ribas), sendo que apenas mais dois são de professores do próprio Departamento: o primeiro e o décimo primeiro, respectivamente de Afrânio Garcia e de José Mario.

A história entrelaçada da educação e da evolução da língua portuguesa está presente no artigo do professor Afrânio (primeiro), que trata da educação romana, tecendo sua relação com a evolução do latim, e no artigo de Eduardo (segundo), apresentando a história da Faculdade Paulista de Letras e Filosofia, assim como no docu-mento sobre os acordos ortográficos não implementados, de 1975 e de 1986.

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A preocupação com o ensino parece ter rondado a maioria dos articulistas, abordando, cada um deles, um detalhe específico e inte-ressante: dois artigos (sexto e nono) versaram sobre o programa de educação de jovens e adultos; dois outros trataram de recursos e téc-nicas para melhoramento do ensino fundamental (oitavo e décimo), sendo que o décimo terceiro artigo tratou do ensino da literatura.

A teoria linguística também está presente em quatro artigos: dois deles referentes a questões de sintaxe (terceiro e décimo primei-ro), um sobre a evolução do tratamento da anáfora (quarto) e outro sobre o léxico e a formação de novas palavras (quinto), aos quais se pode acrescentar um quinto, de André, que estuda a função do satéli-tes-fonte, especialmente na elaboração das notícias on-line.

Por fim, vislumbramos, no artigo da Luciana, uma preocupa-ção maior em valorizar um gênero de discurso que desponta nos anos sessenta, que são as letras de música como construções poéticas.

Agilizando os trabalhos de publicação do Departamento de Letras da Faculdade de Formação de Professores, o Conselho Edito-rial aprovou esses textos para publicação e fechamos o número ainda no final do mês de abril, deixando todos os artigos submetidos a par-tir do início de maio para o número 22, que será publicado no segun-do semestre deste ano de 2011.

Para concluir, pedimos que nos aponte as falhas encontradas na publicação desses trabalhos, ciente de que é a partir da crítica que progredimos na produção intelectual, agradecendo antecipadamente qualquer observação apresentada, prometendo levá-la rigorosamente a sério nos próximos números. Por isto, ficaremos muito feliz se conseguirmos críticas sinceras a este trabalho para que ele possa re-fletir o melhor que disponibilizamos à comunidade.

Se quiser conhecer mais a SOLETRAS, acesse a sua página oficial, em http://www.filologia.org.br/soletras ou consulte-a no Al-manaque CiFEFiL.

Rio de Janeiro, maio de 2011.

José Pereira da Silva

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A EDUCAÇÃO ROMANA E O DESTINO DO LATIM PENINSULAR

Afrânio da Silva Garcia (UERJ)

1. Introdução

O objetivo deste trabalho é o de apresentar, da maneira mais completa e clara possível, o sistema de educação romano e como ele influiu no destino que teve o latim na Península Ibérica.

Para fins de clareza e organização, dividi meu trabalho em três partes: na primeira, procurei dar uma visão geral do que foi a educação romana, suas partes constitutivas e os objetivos a que se propunha; na segunda, eu faço uma análise de como essa educação se processou na Hispânia romana., de que maneira ela se enquadra na Idade Média latina e quais as suas características que mais influ-ência tiveram na Idade Média; por último, eu exponho as conclusões a que cheguei com meus estudos.

Quanto à validade de meu trabalho, acho-o de enorme impor-tância para o avanço da pesquisa e dos estudos em meu país, visto que somos, de certa maneira, devido à nossa língua e à nossa origem portuguesa, continuadores da tradição latina. Por outro lado, o fato de termos tão poucos trabalhos disponíveis nessa área, como foi ates-tado pelo fato de eu ter sido forçado a basear minha pesquisa, princi-palmente, em trabalhos de autores estrangeiros, quer no original, quer traduzidos, confere ao meu trabalho não apenas validade, como a necessária originalidade.

2. A educação romana

A educação romana variou bastante no curso da história de Roma. O período que mais nos interessa é a época “imperial”, que compreende os séculos I e II depois de Cristo, pois foi durante esse período que a educação romana mais se efetivou na Península Ibéri-ca, moldando, desse modo, a posterior educação romano-cristã das “escolas conventuais”. Segundo Messer (apud CASSANI, 1952) “es-ta época se caracteriza pela perda do caráter nacional e cívico da e-

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ducação, o domínio do cosmopolitismo e do individualismo, o senti-do egoísta, utilitário e lucrativo, o refinamento e o virtuosismo orató-rio”.

A educação romana distinguia os três tipos básicos de educa-ção:

1) Primária ou elementar;

2) Secundária;

3) Superior e profissional.

Como um todo, no entanto, fundava-se ela, principalmente ao tempo da civilização hispano-gótica, nas sete “artes liberales”: a gramática, a retórica e a dialética, por um lado, e a aritmética, a ge-ometria, a música e a astronomia, que constituíam as chamadas artes matemáticas, por outro. Artes indicava algo bem distinto do signifi-cado moderno de arte; significava “conjuntos de regras que ensinam a fazer corretamente alguma coisa” (algo como o “know-how”). Li-berais indicava serem artes dignas de um homem livre, ao contrario das “artes mechanicae”, que servem para ganhar dinheiro e são mais próprias de um escravo.

Dentre as artes, estudava-se de maneira muito mais ampla e profunda as três primeiras: a gramática, a retórica e a dialética, chamadas de “trivium” a partir do século IX, do que as do “quadrivi-um” ou artes matemáticas: a aritmética, a geometria, a música e a astronomia. A mais estudada de todas era, porém, a gramática, que compreendia, de acordo com Quintiliano (apud CURTIUS, 1979): “recte loquendi scientiam et poetarum enarrationem” (uso correto da língua e explicação dos poetas). Só muito mais tarde é que as pala-vras gramática e literatura (do grego gramma e sua tradução latina littera, ambas significando letra) passam a designar os conceitos dis-tintos que hoje lhes atribuímos.

A educação romana, no entanto, não se limitava ao ensino das sete artes liberais. Tanto em Roma como na Espanha Romana, ensinava-se ainda: filosofia, medicina, direito, engenharia e arquite-tura, artesanato, pintura, escultura, dança, etc., como nos dão prova as Etimologías de Santo Isidoro (livros IV, V, IX e XI a XX), assim como as esplêndidas edificações que deixaram. Não obstante, as ar-

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tes representarão, para a Idade Média, a ordem fundamental do espí-rito até o século XII.

2.1. O ensino elementar

O infante, que antes do período imperial era atentamente diri-gido e vigiado pelos pais, passa a ser negligenciado por eles, entre-gues que estavam aos novos prazeres e ocupações, e confiados a mãos servis, muitas vezes de indivíduos ineptos ou nocivos. Muitos autores combatiam essa despreocupação prejudicial dos pais, aconse-lhando-os a dedicar atenção pessoal ao infante ou a serem mais cui-dadosos na escolha do preceptor.

Entre os seis e sete anos, passavam as crianças a receber o primeiro aprendizado formal, em escolas públicas ou particulares, sendo que o ensino público era preferido mesmo pelos romanos mais abastados. A escola primária romana era mista, acorrendo a ela, in-distintamente, meninos e meninas. Quanto aos professores, o “peda-gogus” ou “ludi magister”, eram geralmente de baixa origem, muitas vezes escravos, e muito mal pagos, o que os obrigava a desempenhar outras tarefas, como a de escrevente, para poder subsistir. Por estas razões, os alunos os menosprezavam e não lhes respeitavam, deven-do o pobre pedagogo usar de castigos físicos para obrigá-los a cum-prir as tarefas. O açoite estava na ordem do dia, constituindo verda-deira tortura para os alunos e meio de desafogar o espírito malsão de certos professores.

A carência de meios dos pedagogos refletia a carência dos meios materiais de ensino. Não havia qualquer tipo de edificação es-colar. Os mestres davam suas aulas onde lhes permitiam seus meios, às vezes num simples cubículo. A esta pobreza de local de estudo somava-se a pobreza dos utensílios de ensino: um ábaco, dois ou três sólidos para as aulas de geometria e pouca coisa mais. As classes tomavam todo o dia, com um breve descanso para almoçar, e eram suspensas no verão, para as “nundinas” e as “quintratus”.

Com meios tão parcos e preparação tão deficiente, que podi-am ensinar tais mestres? Muito pouco: somente noções elementares de leitura, escritura e cálculo. Começava-se por ensinar a ordem das letras e logo, por meio de memorizações, a maioria das vezes à custa

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de açoite, obrigava-se ao aluno a realização de um novo esforço: a-grupá-las em sílabas e, posteriormente, em palavras. O ensino de es-critura era ainda pior: a mão do mestre levava a do aluno e, logo em seguida, este devia reproduzir os traços que lhe punham à frente. O mesmo acontecia com a aritmética: consistia num monótono escutar e repetir e breve era cobrado do aluno realizar as mais complicadas operações. Esse sistema de ensino, com seus meios precários, em que os alunos eram forçados a repetir ate o esgotamento coisas que os enfastiavam, era muito pouco eficiente. Daí o grande numero de analfabetos existentes então. Só mesmo os alunos muito bem dota-dos podiam superar a escola elementar de maneira produtiva e pegar apego aos estudos.

Aproximadamente o mesmo tipo de ensino era ministrado aos filhos de escravos e aos habitantes das províncias. O motivo princi-pal da implantação de escolas romanas na província era o de garantir a fidelidade dos cidadãos mais importantes e, ao mesmo tempo, des-lumbrá-los com o aparato com que tratava seus filhos, mas havia também o intuito de instruir a população, para que se formasse nela uma consciência de serem parte do Império Romano, de modo a ga-rantir uma base firme para a administração romana. Não podemos concordar com Plutarco (apud CASSANI, 1952), quando diz que os romanos fingiam instruir os jovens espanhóis, mas na verdade “os tomavam como reféns”, pois a educação, juntamente com os jogos, o teatro, as estradas, etc., fazia parte do esforço romano de dominação pacífica, em suma, de romanização das regiões conquistadas.

2.2. O ensino secundário ou do gramático

Concluí do o trabalho do “ludi magister”, numa idade apro-ximada de doze anos, passavam os meninos, já com certa prepara-ção, a receber a instrução do “gramaticus”. Tal ensino, inspirado nos moldes gregos, havia começado no século II antes de Cristo. Seu ob-jetivo era capacitar os jovens romanos a administrar e governar sem inconveniente as novas terras conquistadas. Por isso mesmo, era ele privilégio da classe dominante, de modo a evitar que esta perdesse sua hegemonia e, consequentemente, a da Cidade Eterna. Para esse tipo de ensino, os romanos aproveitaram-se inicialmente dos emi-grantes políticos da Ásia Menor ou do Egito. Os professores roma-

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nos herdaram destes seu uso; daí, a retórica continuar sempre a ser ensinada em grego, enquanto a gramática era ensinada em grego e latim.

Nas escolas desse tipo, ensinava-se aproximadamente as ma-térias conhecidas com o nome de “trivium” e “quadrivium”: gramá-tica, retórica e dialética; aritmética, geometria, música e astronomi-a. É importante notar, entretanto, que a retórica gozava de uma posi-ção privilegiada dentro desse contexto, já que tanto Cassani quanto Curtius dedicam a ela capítulos separados: o primeiro dedica um ca-pítulo a Literatura e Educação e outro a Retórica, enquanto o segun-do separa O ensino secundário ou do gramático do Ensino de retó-rica. Nesta seção, abordaremos os elementos constitutivos da retóri-ca, conforme os apresenta Isidoro, na parte referente ao ensino se-cundário, deixando para apresentar as características das classes de retórica para a parte referente ao ensino superior e de ofícios.

O gramático devia dedicar o máximo de seus esforços a de-senvolver no aluno o maior desembaraço possível no falar e escre-ver, mediante o estudo tenaz dos textos dos autores. A princípio, os textos eram especialmente Homero, os trágicos, os cômicos, os líri-cos e as obras de Esopo, ao passo que os textos latinos se limitavam a Lívio Andronico, Ênio e Terêncio, mas logo a situação se modifi-cou e os autores latinos, principalmente depois da reação de Cecílio Epirota, passaram a ser privilegiados: Virgílio e Cícero, inicialmente, e depois Sêneca, Horácio, Ovídio, Lucano e outros.

Os gramáticos eram mais bem vistos que os mestres elemen-tares, mas nem por isso eram muito melhor pagos: recebiam menos do que um cocheiro bem sucedido. Os métodos em que se baseavam os gramáticos estavam apoiados, como quase toda a instrução roma-na, na memória. Consistiam na repetição de textos, seguida de seu exame detalhado, como segue:

a) Ditado do texto.

b) Repetição memorizada.

c) Imitação. Tradução de verso em prosa ou vice-versa.

d) Análise das palavras.

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e) Composição (Geralmente explicação de uma máxima ou elogio de uma boa ação).

Sem dúvida alguma, esse tipo de ensino dependia muito da preparação do gramático, que resultava muitas vezes deficiente. Es-tudaremos agora a constituição das matérias básicas desse ensino, o chamado trívio: gramática, retórica e dialética, deixando de lado as matérias do quadrívio, que pouco nos interessam para esse trabalho.

2.2.1. A gramática

Segundo Isidoro, o ensino de gramática era “a origem e fun-damento das disciplinas liberais”. O princípio do ensino da gramáti-ca seria o ensino das letras comuns, ou seja, ler e escrever. Tal ensi-no era feito de uma maneira bem pouco científica, com narrações a-cerca das origens das letras e a inclusão do estudo das letras “místi-cas”. Ao mesmo tempo, é ensinada a correlação de determinadas le-tras com números, como em I e X. Ele discorre também acerca do nome, da figura, do poder, da ordem e do acento das letras.

À parte essas informações aleatórias, ele faz também distin-ção entre vogais, semivogais e mudas. É importante notar que, embo-ra utilizassem a mesma denominação que hoje em dia se usa, o signi-ficado de semivogais e mudas era bastante diferente: semivogais e-ram aquelas letras cujo nome começava pela letra e, como r, f, m., n, l e s, enquanto mudas são aquelas letras cujo nome acaba com a letra e, como b, c, d, g etc. As semivogais e mudas formavam as consoan-tes, cuja definição, assim como a das vogais, era a mesma que a atu-al.

As partes da oração eram divididas em oito partes: nome, verbo, pronome, advérbio, particípio, conjunção, preposição e inter-jeição. Isidoro concorda com Aristóteles em que a oração se divide em duas partes principais: nome e verbo, já que as demais estariam a estas relacionadas (uma relação bastante semelhante a atual relação entre determinante e determinado). O nome se distinguia, no entanto, da noção de determinado, por incluir o substantivo e o adjetivo, chamado epíteto. O nome era dividido em inúmeras categorias, entre as quais principais (primitivos) e derivados, sinônimos e homônimos, relativos (quando partes de um contraste) e várias outras, de acordo

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com o significado ou o número de casos possíveis ou a sua ascen-dência. Distinguia o nome as categorias de comparação (positivo, comparativo e superlativo), gênero (masculino, feminino, neutro, comum e epiceno), número (singular e plural) e casos.

O pronome se dividia em determinado (pessoal), indetermi-nado (indefinido) e menos que determinado (possessivo ou demons-trativo), em primitivo ou derivado (como qualquer). O demonstrati-vo, quando adjetivo, chama-se artigo.

O verbo tinha tempo: passado, presente e futuro; forma: medi-tativa (mostra desejo ou intenção), incoativa (progressivo) e frequen-tativa; modo: indicativo, imperativo, optativo (hipotético), conjunti-vo (para orações subordinadas) e infinitivo; conjugação e gênero (voz): ativo, passivo, neutro (como em jazer), comum (recíproco) e depoente. Isidoro distingue o verbo dos gramáticos do dos retóricos: oração, fala.

O advérbio é definido como algo que se une “ad verbum” pa-ra fazer sentido. O particípio é definido como algo que toma parte nas condições do nome (gênero e casos) e do verbo (tempo e signifi-cado). A conjunção é aquilo que conjunge os conceitos ou orações. Podem ser copulativas (aditivas), disjuntivas (alternativas), subjunti-vas (integrantes), expletivas (que completam a coisa proposta, como se não... ao menos), comuns (as que podem ser mudadas de posição), causais e racionais (definição confusa, exemplificada por como). As preposições podem ser de acusativo, de ablativo ou prefixais (como em deduzir). As interjeições tinham a mesma definição que hoje.

Depois, Isidoro discorre acerca da parte fônica da língua e da métrica. A sílaba era dividida em breve, longa e comum (que pode ser longa ou breve). A métrica era muito bem estudada. Distinguiam-se vinte e quatro diferentes tipos de pés, de acordo com o número de sílabas (de dois a seis) e a relação entre “arsis” (a parte acentuada) e “thesis” (a parte não acentuada). Os metros, por sua vez, recebiam várias classificações, conforme os pés, os inventores, quem mais u-sava, a matéria de que tratavam ou as situações a que se aplicavam. Estudava-se também o que era poesia e suas partes. Os acentos compreendiam os atuais, os de quantidade, os de aspiração e a diás-tole, que era o oposto do hífen. A pontuação era feita pela posição do ponto: vírgula (o ponto ficava abaixo da linha), cólon ou dois pontos

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(o ponto ficava no meio da linha), e ponto mesmo (o ponto ficava a-cima da linha). Estudavam-se as siglas das sentenças (atuais sinais tipográficos), em número de vinte e seis, além de outras siglas: vul-gares, jurídicas, militares e de cartas. Isidoro fala do uso de sinais com os dedos e logo passa a ortografia, citando 30 exemplos, sem nenhuma metodologia de escolha, puramente ao acaso.

Em seguida, ele fala de relações de significado. A analogia era baseada no conceito de semelhança, diferenciada da anomalia (semelhança de sons entre palavras díspares, como lupus e lepus). A etimologia consistia na maioria das vezes, na verdade, do que hoje se chama etimologia popular. A glosa seria a explicação de uma coisa por seu sinônimo, enquanto a diferença era a explicação pelo contrá-rio.

Os vícios são: barbarismo (erro de pronúncia), solecismo (er-ro de construção), cacófato, pleonasmo; perissologia (pleonasmo e-xagerado), macrologia (redundância), tautologia, elipse, cacossínde-to e anfibologia (ambiguidade).

Os metaplasmos ou transformações se deviam à licença poé-tica e são: prótese, paragoge, ectase, epissinalefa, eclipse, “antíte-sis” (troca de letras) e metátese.

A gramática romana era abundante em figuras do discurso, divididas em esquemas, figuras de construção, e tropos, figuras de palavras. As figuras de gramática, importantes para a explicação dos poetas, e as figuras de retórica distribuíam-se, sem muito rigor, nu-ma ou noutra categoria. Curtius diz: “A tropologia não possui uma sistemática satisfatória”. Essa discrepância deve-se, bem como a “va-riação das enumerações e característica das figuras”, à diversidade de opiniões das escolas.

Isidoro classifica os seguintes esquemas: prolepse ou inver-são, zeugma (um verbo para várias orações), hipozeuxis (um verbo por oração), silepse (ausência de concordância), anadiplose (começo de verso pela palavra final do anterior), anáfora (repetição no início de vários versos), epanáfora (repetição no início e meio do verso), epizeuxis (repetição seguida), epanalepse (repetição no início e fim de verso), paranomásia (palavras de som semelhante e sentido diver-so), “squesis onomaton” (palavras associadas), “paromeon” (alitera-

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ção), “homoteleuton” (mesma terminação), “hemeoptoton” e “polyp-toton” (figuras casuais), “hirmos” (oração intercalada por outra), po-lissíndeto e assíndeto, antítese e hipálage.

Os tropos eram: metáfora, catacrese, metalepse (o anteceden-te pelo consequente e vice-versa), metonímia e sinédoque; antono-másia (dizer por rodeios) e perífrase; epíteto, onomatopeia; hipérba-to (dividido em: anástrofe, “histeron proteron”, parênteses, “tmesis” e “synthesis”); hipérbole, alegoria, ironia, antífrase, enigma, eufe-mismo, paremia (uso de provérbios), sarcasmo, “homeosis” (subdi-vidido em ícone, parábola e paradigma) e símile.

Isidoro define a prosa e a fábula, dividindo esta em esópicas (em que não há homens) e libísticas (onde os homens interagem com os animais). A história, por sua vez, é definida como a narração do acontecido. Os primeiros historiadores são Moisés, Dares da Frígia, Heródoto e Ferecides. A utilidade da história é a de esclarecer o presente pelo passado.

2.2.2. A retórica

Retórica é a arte da oração, a ciência de bem falar nos assun-tos civis, de forma a persuadir pela eloquência. Constituiu ela um i-deal de vida, de beleza, uma coluna básica da cultura antiga. Mas a retórica que penetrara a Hispânia, ao tempo do Imperium, já tinha assumido outra feição. Como diz Curtius:

A queda da república influiu na eloquência romana, no mesmo sen-tido que o domínio macedônio, e depois romano, na grega. Sob o princi-pado de Augusto e sucessores, o discurso político teve de emudecer. A retórica torna-se eloquência escolar. Promove exercícios (declamationes) sobre processos forenses simulados. Tácito estudou o declínio da retórica em seu Dialogus de Oratoribus. Mas já de há muito se abrira à retórica um novo campo, com a sua passagem para a poesia romana. Isso foi obra de Ovídio. Ele “tomava um tema para versar ou, como acontecia nas de-clamações, mandar que outra pessoa falasse. (. . .) Aqui a retórica entra a serviço de uma poesia amena e espirituosa, e eleva com a sua graça o en-canto da matéria interessante. Mas a retórica também consegue tirar o maior efeito de um conteúdo trágico, pela acumulação da tragédia, ten-são, gradação e exagero. Aparece, depois, o estilo patético, representado nos tempos neronianos pelas tragédias de Sêneca e pela epopeia de Lu-cano...

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Afora esse uso literário da retórica, transforma-se esta em pura eloquência escolar.

A retórica antiga compreendia cinco partes: invenção, dispo-sição, elocução, memória e ação, sendo as últimas duas de pouca monta. Dentre as outras, a mais importante era a disposição, que se dividia em exórdio, narração, argumentação, refutação e conclusão. A perda da liberdade na época imperial levou a perda da importân-cia da refutação, a qual nem é citada por Isidoro.

Havia três gêneros de causas ou de eloquência: o discurso fo-rense ou judicial, o deliberativo, que dizia o que se deve ou não fa-zer, e o laudatório ou demonstrativo, também usado para censura. Com o Império, desaparece o discurso forense, reduzido a simples exercício escolar, e desenvolve-se enormemente o discurso laudató-rio ou pomposo. Nas argumentações, os oradores costumavam usar uma série de argumentos pré-fixados pela tradição, apropriados à descrição, ao desenvolvimento e a variação: os topos ou “loci com-munes”. Esses topos foram tão importantes que geraram uma disci-plina: a tópica.

Além dos topos, usavam-se muitos recursos para persuadir a audiência: as sentenças e exemplos, comuns à retórica e à gramática; a linguagem, que devia ser isenta de vícios, correta e com bom uso das figuras de palavras, como anadiplose, antítese, etc., e figuras de sentenças, como paradoxo, ironia, etc.; e o estilo, que devia usar de etopeia (personificação histriônica), grandeza ou moderação (con-forme a causa).

2.2.3. A dialética

A dialética ou lógica é uma divisão da filosofia. A filosofia é o conhecimento das coisas humanas e divinas. Divide-se em física, que estuda as coisas naturais e abrange as disciplinas do quadrívio, em ética, que estuda a moral, e em lógica, que estuda as causas das coisas, o que e racional. O estudo da dialética romano baseava-se na “Isagoge” de Porfírio: “O homem é um animal racional, mortal, ter-reno, bípede e capaz de rir”; e nas “Categorias” de Aristóteles: qua-lidade, quantidade, substância, relação, tempo, hábito, atividade e passividade. Os silogismos (argumentações) dialéticos eram de vá-

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rios tipos, de acordo com os critérios de universal versus particular e afirmação versus negação. As definições das coisas eram feitas a partir de descrição, comparação ou associação. Os tópicos eram di-vididos em intrínsecos, extrínsecos e afeitos (relacionados) à causa. Isidoro apresenta, ainda, uma excelente descrição dos opostos, em que apresenta a diferença, atualmente vigente na linguística, que di-vide os opostos em graduáveis e não graduáveis; temos, então, os contrários, como branco e negro, os relativos, como único e duplo, a privação, como cegueira e visão, e a negação, como “Sócrates lê” e “Sócrates não lê”.

A partir do século XII, o aumento de prestígio da dialética ira ser responsável pela derrocada dos autores didáticos, junto a outros fatores.

2.3. O ensino de retórica e o ensino superior

O orador de Catão, “vir bonus et discendi peritus” (o homem bom e perito na arte de falar), deixa de existir no Império Romano. A eloquência, privada de sua capacidade de ação, torna-se uma coisa vazia, uma simples arte do palavrório. Suetônio (apud CASSANI, 1952) diz: “chega a um ponto que faz temer pela sorte de um povo que deixa o melhor de sua juventude se alimentar com tão mesqui-nho conteúdo intelectual”, preparando-o, como disse Sêneca, “non vitae sed scholae”.

Havia um desprezo geral por parte dos escritores de impor-tância contra a falsa posição dos professores de retórica que, mesmo quando bem intencionados, equivocavam o caminho ao utilizar um método que conduzia ao contrario do que pregavam.

Os professores de retórica, regiamente pagos em muitos ca-sos, mal pagos em outros, foram um elemento característico de sua época, exercendo muita influência sobre as gerações romanas, em classes muito numerosas. Se a influência foi boa ou má, é outro caso: embora a maioria se pronuncie contra, há quem ache que os exercí-cios monótonos desenvolviam as condições de atenção e raciocínio do aluno.

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Ademais, a eloquência era considerada uma necessidade para o homem culto e, especialmente, para chegar a melhores posições e escalar socialmente.

O estudo superior na Roma Imperial era dividido, basicamen-te, no estudo dos “autores” e no exercício prático das matérias. A importância dos autores, aliás, é uma das principais características da educação romana, como um todo. Ainda não existia uma ciência ou disciplina, na acepção moderna do termo.

O que existia era um estudo dos grandes autores e sábios des-ta ou daquela matéria; a dialética era o estudo da “Isagoge” de Porfí-rio e das “Categorias” de Aristóteles; a gramática era o estudo da “ars minor" e “ars maior” de Donato, da Institutio Grammatica de Prisciano e, a partir do século I, da parte da Institutio Oratoria de Quintiliano referente à gramática, além de uma infinidade de senten-ças e exemplos de outros autores; a retórica consistia, basicamente, na Retórica a Herênio, de autor desconhecido, no Da Invenção de Cícero e na Institutio Oratoria de Quintiliano, além de máximas e exemplos tomados a vários autores; a medicina fundava-se em Gale-no e Hipócrates; a história é a história de Heródoto ou de Orósio ou a da Bíblia, e assim por diante.

3. O destino do latim peninsular

Os romanos chegaram a Península Ibérica no século III a.C., durante a guerra com Cartago, guerra que se prolongou de 264 a 146 a.C. A anexação da Hispânia como província, porem, só se deu em 197 a.C.

A dominação de Roma continuou até 395 d.C. , data que mar-ca o fim do Império Romano do Ocidente e começo da Idade Média, com a queda de Roma, invadida pelos bárbaros germânicos. A His-pânia, no entanto, mantém-se como província romana independente até a chegada dos alanos, asdingos, silingos e quadossuevos em 409.

A última província hispânica a ser anexada foi a Lusitânia, em 25 a.C. Os cantabros, porém, nunca foram dominados e perma-necem até hoje como um povo à parte: os bascos. Devido às diferen-ças peculiares a cada região, os romanos dividiram a Hispânia em

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três regiões ou províncias: Bética, a de dominação mais antiga, a mais romanizada e a mais importante; Lusitânia, a segunda em im-portância, mas bem menos romanizada; e Tarraconense, a mais atra-sada, submetida a invasões e revoltas constantes.

Os romanos, grandes administradores que eram, trataram logo de procurar romanizar, isto e, adaptar à sua cultura e civilização, os povos vencidos. Para tanto, valiam-se principalmente da educação, das artes e da diversão, sendo a educação o fator mais importante da romanização.

A educação romana foi amplamente difundida na Península Ibérica, não só na Bética, como na Lusitânia e na Tarraconense, em todas as suas formas: elementar, secundária e superior. Disso dão provas as “Lex Metalli Vipascensis”, que atestam a existência de “ludi magistri“ em Portugal já no século I a. C., e também quatro inscrições procedentes de Écija, Abdera e Tarragona (duas inscri-ções), sobre pedagogos; as inscrições de Astorga, Sagunto, Clunia e Tricio, sobre a atividade de certos “gramáticos”; e as inscrições de Cádiz e Collipot a respeito de “rhetores”.

Além dessas provas documentais do vulto da educação roma-na, temos ainda a evidência da importância dessa educação no gran-de número de escritores hispânicos talentosos: Sêneca, o Reitor; Sê-neca, o Filósofo; Marcial; o grande Lucano; Quintiliano, o mestre de retórica; Pompônio e Mela. Também servem para atestar a importân-cia da Hispânia os imperadores romanos nascidos na Hispânia: Tra-jano, Adriano e Marcos Aurélio.

A organização da educação romana, centrada na gramática e na retórica e, bem menos, na dialética, foi importantíssima para o destino do latim na Península Ibérica. Como todas essas três “artes” são vinculadas à fala, à habilidade no falar, o estudante de qualquer uma delas estava sempre, de uma maneira ou outra, estudando latim. Por outro lado, o estudo dos autores, em todas as disciplinas, refor-çava ainda mais esse aprendizado eminentemente linguístico. Não é à toa que a Hispânia produziu um autor do porte de Quintiliano, cujo Institutio Oratoria constitui o modelo da retórica, não só da época imperial, como de toda a Idade Média.

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O latim que chegou aos hispânicos influiu, também, no desti-no do latim peninsular. Como a Hispânia foi a terceira região a ser anexada ao Império Romano, em 197 a.C., apenas cerca de 40 anos após a Sicília e a Córsega e Sardenha, cerca de 100 anos antes da Gália, recebeu um latim vulgar bem menos modificado do que o das regiões conquistadas posteriormente. Essa seria uma das causas prin-cipais de ser o português, hoje em dia, juntamente com o sardo, as duas línguas que mais semelhança guardam com o latim.

Outra causa dessa extraordinária semelhança entre o latim vulgar (“sermo vulgaris”) e o português, que faz com que pratica-mente não se distingam as tendências de evolução do latim vulgar daquelas do português, é o fato de, tendo a romanização se proces-sado por toda a Península Ibérica, após a separação entre Portugal e Espanha, esta passa a funcionar como um estado-tampão, profunda-mente romanizado, contra a influência de transformação linguística do resto da Europa e da África.

Não menos importante, para o destino que teve o latim na Pe-nínsula Ibérica, foi o fato de os germanos, ao invés de imporem sua cultura aos vencidos, adaptarem-se a esta. Curtius diz: “Logo que tomavam pé, os seus reis cercavam-se de mestres de retórica, juristas e poetas”, e depois, “A invasão dos bárbaros não mudou os traços es-senciais da vida espiritual no espaço do Mediterrâneo ocidental”. Por isso, pode-se dizer que, a partir de 586, com a conversão de Recare-do por Isidoro de Sevilha, o Império Romano volta a existir, não mais centrado na Itália, mas na Espanha romano-goda, e continuará a existir, como centro irradiador da cultura latina, de sua língua e de sua educação, até a invasão dos árabes, em 711. Mas a cultura lati-na, difundida por Isidoro de Sevilha, continuará a ser a tônica domi-nante de toda a Idade Média, daí a tese moderna de Idade Média la-tina.

4. Conclusão

Pelo que vimos, a educação romana desempenhou um papel de profunda importância no desenvolvimento que sofreu o latim na Península Ibérica. Por ser um aprendizado eminentemente linguísti-co, ajudou a romanizar a Península Ibérica, assim como ajudou a dar

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uma diretriz normativa uniforme, devido à importância primordial da gramática; por ter sido difundido nos mais remotos rincões do país, impediu, de certo modo, uma dialetação exagerada; por terem man-tido suas características, a despeito das influências externas, ajuda-ram na conservação da língua latina na forma mais pura em que ela sobrevive, como a “última flor do Lácio, inculta e bela”: o portu-guês.

BIBLIOGRAFIA

ALTON, E. H. Ovid in the Medieval schoolroom. In: ___. Proceed-ings of the classical association. Cambridge, 1937, p. 32-35

CÂMARA JUNIOR, J. M. História e estrutura da língua portugue-sa. 3. ed. Rio de Janeiro: Padrão, 1979, p.7-25

CASSANI, J. L. Aportes al estudio del processo de la romanización de Espana. Las instituciones educativas. In: Cuadernos de historia de España. Buenos Aires, 1952, p. 50-70

COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. 7. ed. rev. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976, p. 29-52

CUNHA, Celso & CARDOSO, Wilton. Estilística e gramática his-tórica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 47-56

CURTIUS, Ernest Robert. Literatura europeia e Idade Média latina. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979, p. 1-81

HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. 4. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, vol. I, p. 181-226

SEVILLA, San Isidoro de. Etimologías. Trad. Luis Cortés y Gongo-ra. Madrid: Editorial Católica, 1951, p. 1-79 (Introduccion general) e 5-73 (Libros I e II).

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A FACULDADE PAULISTA DE LETRAS E FILOSOFIA (1o DE JUNHO DE 1931)

Eduardo Tuffani (UFF) [email protected]

Logo que passei a me dedicar à elaboração de um panorama histórico dos estudos latinos no Brasil, notei que alguns dos nossos manuais de História da Educação às vezes repetiam-se em certos pontos, evidenciando-se a necessidade de um trabalho mais aprofun-dado para esclarecer fatos muito importantes. De tais obras, acabei me norteando por A transmissão da cultura de Fernando de Azevedo (1976). Esse título é a terceira unidade de A cultura brasileira do mesmo autor (idem, 1971). As outras duas primeiras partes são “Os fatores da cultura” e “A cultura”. Se criticada pela desatualização e mesmo por lacunas, a obra F. de Azevedo é um dos clássicos no gê-nero, pois o autor teve boa formação humanística, fecunda atividade administrativa e foi grande professor e pesquisador.

Em se tratando de História da Educação no Brasil, causa es-tranheza como certos fatos são tratados apesar de haver publicações que os esclareçam. Quanto a obras mais antigas, a perplexidade é maior já que a proximidade no tempo não poderia justificar algumas omissões. Uma vez publicado o artigo “Os estudos latinos no Brasil” (TUFFANI, 2000/2001, p. 396), ficou claro daí em diante que o cur-so de Letras mais antigo no Brasil datava de 1925, oferecido pela Faculdade de Filosofia de São Paulo, mais tarde Faculdade de Filo-sofia, Ciências e Letras de São Bento. O curso de Letras do Instituto “Sedes Sapientiae”, tido até então como o mais antigo, teve a sua fundação em 1933, considerado também o Instituto o primeiro esta-belecimento de ensino superior instalado após a reforma do ensino universitário de 1931 por Francisco Campos, Ministro da Educação e Saúde Pública.

No que toca às primeiras universidades e faculdades de Filo-sofia brasileiras, Ernesto de Souza Campos não trata da Universidade de São Paulo, a primeira, de iniciativa privada, fundada em 1911, instalada em 1912, em atividade até 1919, segundo minhas pesquisas (trabalhos em andamento). “Primeira” para diferenciá-la da Univer-

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sidade de São Paulo, estadual, instalada em 1934. A primeira univer-sidade brasileira, a Escola Universitária Livre de Manaus, depois U-niversidade de Manaus, criada em 1909, estabelecida em 1910, é tra-tada por E. de Souza Campos como uma simples faculdade ao dis-correr sobre a Faculdade de Direito do Amazonas “ligada a uma ins-tituição que se denominou Escola Universitária Livre de Manaus” (CAMPOS, 1941, p. 318). Como outros, E. de Souza Campos pouco escreve sobre as primeiras faculdades de Filosofia:

No mesmo esquecimento ficaram as Faculdades de Filosofia, Ciên-cias e Letras. Instituições seculares em todas as partes do mundo [o itá-lico é meu] eram desconhecidas no Brasil, até recente data. Só medraram em São Paulo [e no Rio de Janeiro], em data muito recente. (CAMPOS, 1940, p. 467.)

Das primeiras faculdades de Filosofia, E. de Souza Campos cita as duas faculdades mais tradicionalmente pesquisadas, a Facul-dade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento e o Instituto “Se-des Sapientiae” (id., ibid., p. 488). Ambas as Instituições foram in-corporadas à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Para as primeiras universidades brasileiras, deve-se consultar Luiz Antônio Cunha (1986, p. 198-211). Para a primeira Universidade de São Pau-lo, além de L. A. Cunha, especialmente Heladio Cesar Gonçalves Antunha (1974, p. 241-245). Até onde se pesquisou, houve oito cur-sos ligados às Humanidades antes da fundação da Faculdade de Filo-sofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (Tuffani, 2005, p. 259). As primeiras faculdades de Filosofia ainda não foram estudadas satisfatoriamente, continuando a ser a melhor referência o trabalho de Américo Jacobina Lacombe (1974, p. 151-157). Seria demais exigir de A. J. Lacombe um estudo exaustivo. A Faculdade de Letras do Ceará, fundada em 12 de junho de 1913, de muito curta duração, só foi por mim arrolada ao compulsar um antigo periódico (Arch. Univ. Manáos, jan./mar. 1914, p. 8). Causa embaraço, no en-tanto, o fato de A. J. Lacombe não mencionar a Faculdade de Filoso-fia do Rio de Janeiro, em atividade de 1924 a 1937. A. J. Lacombe cita a “Faculdade de Letras e Filosofia de São Paulo” antes da refor-ma universitária de Francisco Campos (LACOMBE, 1974, p. 155). Ao comentar um livro de Francisco Isoldi, faz uso de [sic] (id., ibid.) pois na folha de rosto da obra de F. Isoldi há uma referência à “Fa-culdade Paulista de Letras e Filosofia” (ISOLDI, 1932), denomina-ção correta da Faculdade Paulista, como se mostrará à frente no pou-

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co que se sabe dessa Faculdade que foi, na verdade, a primeira de acordo com o Decreto nº 19.851, de 11 de abril de 1931, ligado ao Estatuto das Universidades Brasileiras. J. F. de Almeida Prado foi autor de outro livro oriundo de curso ministrado na Faculdade Pau-lista de Letras e Filosofia: “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira” (PRADO, 1935, p. 11).

E. de Souza Campos foi sócio-fundador e presidente da Soci-edade de Filosofia e Letras de São Paulo, criada em 27 de novembro de 1930 em local cedido pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, sendo João Cruz Costa o secretário do evento (Campos, 1954, p. 421-422). Tal Sociedade deu origem à Faculdade Paulista de Le-tras e Filosofia. Além de pouco tratar da Faculdade, E. de Souza Campos afirma que o seu diretor foi Antonio Piccarolo, aludindo à curta duração da Faculdade Paulista (id., ibid., p. 425). O diretor da Faculdade foi, pelo que se atestou, José de Alcântara Machado. Co-mo a Faculdade de Letras do Ceará, a Faculdade Paulista não teve longa atividade, acreditando-se que não tenha sobrevivido muito a-lém de 1932. Se houve alguma relação com a Revolução, não se po-de afirmar até onde se sabe. A Faculdade Eclesiástica de São Paulo, faculdade pontifícia de Filosofia, ligada ao Seminário Provincial, manteve-se de 1908 a 1914, não tendo o seu fim nenhum vínculo com o início da Primeira Grande Guerra. Pouquíssimos autores dedi-caram-se à Faculdade Paulista de Letras e Filosofia, o que dificultou a pesquisa para um relato mais detalhado das atividades da Faculda-de. Como algumas faculdades anteriores chamavam-se “Faculdades de Filosofia e Letras”, além do fato de haver então em São Paulo um curso superior de Letras, julguei que a Faculdade Paulista tivesse o-ferecido o segundo curso de Letras no País, no que me enganei como se lerá mais adiante. Deve-se lembrar que o curso de “Letras” cea-rense tratava-se de um curso superior de Ciências e Letras, pois nele ensinavam-se Ciências, Filosofia e Humanidades, sendo tal curso de “Letras” uma evocação do bacharelado de “Letras” dos liceus impe-riais.

Diante da escassez de informações, decidi consultar o diário O Estado de S. Paulo, compulsando-o de março a junho de 1931. Duas notícias coletadas anunciavam para breve a instalação da Fa-culdade, o que não se deu talvez em razão do Decreto n. 19.851, de

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11 de março de 1931. A primeira matéria, de fim de março, informa-va:

Este instituto de instrucção superior, de cuja fundação falávamos ha dias, está definitivamente constituido e será solennemente inaugurado para os meiados de Abril proximo. (Faculdade, 25-3-1931, p. 4.)

No mesmo espaço, era divulgado o Conselho Superior: Dire-tor, [José de] Alcântara Machado; Vice-Diretor, Ricardo Severo; Se-cretário-Geral, Antonio Piccarolo; Consultor Jurídico, Spencer Vam-pré; Tesoureiro, Artur Mota (id., ibid.). A segunda notícia, de fim de abril, tratava de uma conferência realizada na véspera por Antonio Piccarolo, intitulada “As Faculdades de Letras e Philosophia e o es-pirito universitario”, confirmando para logo a instituição da “Facul-dade Paulista de Letras e Philosophia” (As Faculdades, 24-4-1931, p. 4). No início de junho, finalmente, a Faculdade foi inaugurada:

No pavilhão do Jardim da Infancia, anexo ao Instituto Pedagogico, realisou-se, hontem á noite, a sessão solenne de instalação dos cursos da Faculdade Paulista de Letras e Philosophia, recentemente fundada nesta capital. Presidiu a cerimonia o professor Alcantara Machado, director da Faculdade, que, abrindo os trabalhos, pronunciou uma oração, expondo o programa do novo estabelecimento [...]. (Faculdade, 2-6-1931, p. 6.)

Uma vez que a Faculdade oferecia cursos superiores de Letras e Filosofia, as matérias de ensino estavam reunidas em dois grupos, o literário e o filosófico. Compunham o grupo literário as seguintes cadeiras obrigatórias: Literatura Luso-Brasileira (Prof. Arthur Mot-ta), Língua e Literatura Latina (Prof. Antonio Piccarolo), Língua e Literatura Grega (Prof. Othoniel Motta), Geografia e Etnografia (Prof. Sud Men[n]ucci), Introdução à História e Crítica Histórica (Prof. Francisco Isoldi), Glotologia, História Antiga, Medieval e Moderna, Línguas Novilatinas, Literaturas Novilatinas, Arqueologia e Paleografia, Arqueologia Americana, História da América e do Brasil e Estética Literária. Ao grupo filosófico pertenciam as cadei-ras obrigatórias de Biologia (Prof. Ulysses Paranhos), Psicologia (Prof. [Manoel Bergström] Lourenço Filho), Lógica, Estética, Socio-logia, História da Educação, História da Filosofia e História das Re-ligiões. Havia também cadeiras livres, como Fisiologia, História e Filosofia do Direito, Línguas e Literaturas Orientais e Modernas, Psicanálise, Literatura Universal (Prof. Francisco Azzi), História das Instituições Primitivas (Prof. Spencer Vampré), etc. Quando a Fa-culdade foi inaugurada, alguns professores ainda não tinham uma

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cadeira designada, sendo tal a situação de Affonso [d’Escragnolle] Taunay, [José de] Alcantara Machado, Ricardo Severo, Alberto Sea-bra, Americo [Braziliense] de Moura, Henrique Geenen, Mario de Andrade, Mario de Souza Lima, Guilherme de Almeida, Roldão Lo-pes de Barros, Carlos da Silveira e Oscar Stevenson (id., ibid.). Man-tive a grafia original ao arrolar os professores, fazendo uso de col-chetes, quando necessário, por motivo de clareza.

A matrícula podia ser efetiva ou condicional, e os alunos, re-gulares ou ouvintes. O aluno regular fazia todas as matérias obrigató-rias dos dois grupos oferecidos, podendo também optar por um único grupo apenas. Para obter o(s) diploma(s), o aluno regular era avalia-do em exame final. O aluno ouvinte recebia atestados de frequência e certificados de habilitação das cadeiras por ele cursadas. Previam-se títulos de Doutor em Letras e Filosofia, Doutor em Letras e Doutor em Filosofia (id., ibid.).

Para o ensino livre, divulgavam-se os seguintes cursos espe-ciais a serem ministrados: “Questão Homérica” por Alexandre Cor-rêa e “Teatro Brasileiro” por Antonio de Alcantara Machado (id., i-bid.). É bom registrar os cursos pois graças a publicações deles ori-ginadas sabemos que o curso de “Letras” da Faculdade Paulista teve frequência. Demonstram o caso os livros de F. Isoldi e de J. F. de Almeida Prado. Diante das matérias que compunham tal curso, che-ga-se à conclusão de que o curso de “Letras” da Faculdade era um curso de Letras e História, e não de Letras stricto sensu. Na folha de rosto da sua obra mais divulgada, José Marques da Cruz apresenta-se como ex-professor de Filologia Portuguesa da extinta Faculdade Paulista de Letras e Filosofia (CRUZ, 1955). No que tange ao curso de Filosofia, sabe-se que todos os cursos desse domínio anteriores ao da Faculdade Paulista tiveram frequência, o mesmo não se atestando com relação a cursos de outras especialidades. Quando publiquei uma “Nota comemorativa” pelos oitenta anos dos cursos de Letras no Brasil, afirmei que a “Faculdade de Letras e Filosofia de São Pau-lo” era a menos conhecida (TUFFANI, 2005, p. 261). Hoje não se pode dizer o mesmo, nem chamá-la como aparece na imprenta do ci-tado livro de F. Isoldi. Para se conhecer mais sobre a Faculdade Pau-lista de Letras e Filosofia, devem-se consultar mais os diários da é-poca, biografias, memórias e correspondências dos professores que

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atuaram nessa antiga Faculdade, a primeira instalada após a Reforma Francisco Campos.

P. S.: Após a conclusão deste trabalho, tomei conhecimento de um discurso de um ex-aluno para um ex-professor da Faculdade Paulista. Nesse discurso, Plínio de Barros Monteiro se dirige a Anto-nio Piccarolo, aludindo à fundação e ao fechamento da Faculdade:

Anos atrás, quando se fundava uma Escola de Filosofia, nesta cida-de, defrontamo-nos pela primeira vez: eu, simples estudante, e vós, con-sagrado mestre de humanidades. A escola, que mal havia nascido do es-pírito a da abnegação de um pugilo de letrados e professores, findava os seus dias de existencia, quando mal completara o seu segundo aniversa-rio. (MONTEIRO, 1939, p. 53.)

A fonte é muito importante pois é a publicação de um discur-so feito no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Também tem a seu favor o fato de datar da década em que a Faculdade Paulis-ta esteve em atividade. Não ignoro alguns títulos, sobretudo de Odi-lon Nogueira de Matos, em que se fazem citações à Faculdade Pau-lista. Estou convencido, no entanto, de que a busca por fontes da é-poca tem prioridade. O. N. de Matos afirma que a Faculdade esteve aberta em 1934 e 1935 (MATOS, out./dez. 1986, p. 341), o que está em desacordo com P. de B. Monteiro, para quem a Faculdade deixou de existir em meados de 1933. O que é certo é que a Faculdade fun-cionou à noite na antiga Escola Normal da Praça da República, sendo o seu principal idealizador Antonio Piccarolo (MATOS, jan./mar. 1996, p. 160), que, se também a dirigiu, foi após a gestão de José de Alcântara Machado. Também atuou como professor Alfredo Ellis Júnior (Matos, id., ibid.), nome que não consta por ocasião da abertu-ra da Faculdade Paulista de Letras e Filosofia. Se fechou em meados de 1933, até onde se documenta, o fato se deu por vários motivos, aos quais talvez estejam ligados o impacto do Movimento de 1932, a fundação do Instituto “Sedes Sapientiae” em 1933 e a iminência da criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Este trabalho está sujeito a revisão caso surja uma fon-te da época que aprofunde a questão do fechamento da Faculdade Paulista. Para terminar, se funcionou até 1935 inclusive, houve tem-po para conclusão de curso. Pesquisando com esse objetivo, ainda não encontrei notícia de alguém formado pelos cursos da Faculdade.

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A VISÃO SINTÁTICA DE JÚLIO RIBEIRO

Ânderson Rodrigues Marins (UFF) [email protected]

INTRODUÇÃO

No cenário linguístico-historiográfico brasileiro, o período denominado gramática científica inicia com a publicação da Gram-matica Portugueza, de Julio Ribeiro, em 1881. (CAVALIERE, 2000, p. 19). Nessa nova época, o método histórico-comparativo europeu passou a ser seguido nos estudos e obras acerca da língua portugue-sa. Assim, nossa historiografia começava a dar seus passos iniciais no século XIX, surgindo eminentemente marcada pela influência de autores de origem inglesa e alemã. A história da língua nacional pas-sou a ser escrita com um maior senso de objetividade graças à con-tribuição do espírito germânico. Esse espírito se expressa na maior preocupação com os dados objetivos, na leitura atenta das fontes do-cumentais (objetividade dos documentos) e através da isenção de preconceitos e orientações tendenciosas.

Julio Ribeiro inaugurou o modo de encarar os fatos gramati-cais como método de investigação científica, modernizando os estu-dos dessa área, partindo do exame objetivo e imparcial da realidade idiomática, afastando as orientações do ensino de nossa língua ma-terna da gramática filosófica. Para isso buscou os novos procedimen-tos adotados pelos estudiosos alemães, ingleses e franceses, tendo deveras, como autor de uma gramática, um lugar de responsabilidade como intelectual e uma posição de autoridade em relação à singula-ridade da língua portuguesa no Brasil.

Alguns princípios historiográficos, como o caso da influência (KOERNER, 1995, p. 19), orientam quanto à natureza e o objetivo da obra de J. Ribeiro, porquanto o filólogo brasileiro não oculta sua busca às bases teóricas europeias para compor seu trabalho. Como Cavaliere assevera: “De Bain absorve o minucioso modelo de apre-sentação da teoria gramatical, mediante divisão binária em lexeolo-gia e sintaxe” (CAVALIERE, 2000, p. 53). Ante os conceitos das dicotomias continuidade (= permanência) x descontinuidade (= rup-tura) (KOERNER, 1995, p. 15), a Grammatica de Julio Ribeiro re-

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presenta uma ruptura com as ordens teóricas metafísicas então vigen-tes no tradicionalismo gramatical do século XIX no Brasil.

Enquanto objeto histórico de que se pode dispor para a socie-dade brasileira, a gramática constitui lugar de construção e represen-tação de unidade e de identidade. Ao trazerem para si o ato da auto-ria, os primeiros gramáticos brasileiros como Julio Ribeiro, João Ri-beiro, Maximino Maciel, Lameira de Andrade e Pacheco Silva, e ou-tros, participaram da construção do Estado brasileiro. A partir da se-gunda metade do século XIX, os estudos da língua portuguesa no Brasil começaram a ganhar um caráter destacado e específico dentro do ambiente intelectual da época. Desde então, por um lado, muitos pensadores se dedicaram a demonstrar que o português falado no Brasil era diferente do português falado em Portugal e, por outro, de-senvolveu-se um movimento de gramatização brasileira do português que produziu tecnologias e instrumentos linguísticos tais como di-cionários e gramáticas (GUIMARÃES; ORLANDI, 1996, p. 127). E dentro deste processo de gramatização, a filologia desempenhou um papel importante, servindo de base teórica e científica para a prepa-ração dos instrumentos linguísticos que foram produzidos no final do século XIX e ao longo do século XX.

O contexto sociocultural do pensamento positivista também influenciou na análise dos fatos gramaticais, ao contribuir para que se tivesse como paradigma a ordem e a pesquisa empírica, e que a veracidade dos fatos fosse comprovada cientificamente. Consoante Sevcenko (2003):

As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX as-sinalaram mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira. (...) Os fenômenos históricos se reproduziram no campo das letras, insinuan-do modos originais de observar, sentir, compreender, nomear e exprimir. (SEVCENKO, 2003, p. 286)

Logo, nos anos entre 1880 e 1930, sobressaiu uma tendência gramatical de clara inspiração positivista, assinalando uma legítima inflexão na escrita gramatical que vinha se estendendo ao longo de todo o século XIX, cuja referência era, certamente, a Grammaire Génerale et Raisonnée de Port-Royal (1660).

É assim que a publicação da Grammatica Portugueza (1881), de Julio Ribeiro, que por ser de extração positivista, inaugurou no

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Brasil uma visão da linguagem como um conjunto de preceitos cien-tíficos positivos, que devem ser seguidos como normas prescritivas invariáveis.

Dos diversos nomes que compõem a tradição gramatical bra-sileira, aqueles que se incorporam nos limites dos cinquenta anos a-qui determinados formam um grupo distinto. Isso se deve não apenas por se situarem nesse período nomes que serviriam de modelo teóri-co para todos os estudos gramaticais brasileiros posteriores, mas es-pecialmente por se tratar de uma época mediadora entre um modelo gramatical firmado numa tradição clássica de natureza filosófica – da qual a Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (1822), de Jerônimo Soares Barbosa, viria a ser uma das mais expressivas re-presentantes – e uma nova perspectiva linguística, vigente durante quase todo o século XX, de natureza científica.

Esse período da historiografia gramatical agrupa, portanto, fi-guras exponenciais de magnífica distinção no conjunto de autores de gramáticas produzidas no Brasil, a principiar por Julio Ribeiro, que de fato inaugurou no âmbito da construção gramatical, o método his-tórico-comparativo. Vindo após ele, gramáticos como João Ribeiro, Maximino Maciel, Manuel Pacheco da Silva Júnior, Lameira de An-drade, Eduardo Carlos Pereira, entre outros. Se do ponto de vista teó-rico se inspiraram nos pressupostos teóricos positivistas que avança-ram século XX adentro, do ponto de vista prático, apoiaram-se nas modificações promovidas no ensino brasileiro, a partir de 1870, so-bretudo com o desempenho de Fausto Barreto na direção do Colégio D. Pedro II.

Assim sendo, do conjunto das contribuições trazidas por Júlio Ribeiro aos nossos estudos gramaticais, o objetivo deste artigo con-siste em analisar a visão sintática do filólogo na Grammatica Portu-gueza (1911). Fica, no entanto, certo, que à natureza deste trabalho impõe-se uma apreciação concisa de fatos que requerem maior aten-ção em local e momento oportunos.

A SINTAXE NA GRAMMATICA PORTUGUEZA

Pour les langues, la méthode essentielle est dans la comparaison et la filiation. – Rien n’est explicable

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dans notre grammaire moderne, si nous ne con-naissons notre grammaire ancienne (LITTRÉ, a-pud RIBEIRO, 1911, folha de rosto).

Pelo princípio da contextualização (KOERNER, 1995, p. 17), a epígrafe utilizada como amparo doutrinário por Julio Ribeiro em sua Grammatica Portugueza (1911) ratifica que a obra é de caráter histórico-comparativo.

O filólogo não oculta sua consideração às teorias linguísticas de Willian Dwight Whitney: “Abandonei por abstractas e vagas as definições que eu tomára de Burgraff: preferi amoldar-me ás de Whitney, mais concretas e mais claras” (RIBEIRO, 1911, p. 1). É de Whitney em Essentials of English Grammar (LONDON, 1887), in-clusive, a concepção de gramática assumida por Ribeiro: “Gramma-tica é a exposição methodica dos factos da linguagem” (RIBEIRO, 1911, p. 7).

Do uso dos termos exposição e factos, podemos depreender que a postura adotada não é normativa, porém descritiva. O próprio Ribeiro elucida melhor o assunto:

A grammatica não faz leis e regras para a linguagem; expõe os fac-tos della, ordenados de modo que possam ser aprendidos com facilidade. O estudo da grammatica não tem por principal objecto a correcção da linguagem. Ouvindo bons oradores, conversando com pessôas instruidas, lendo artigos e livros bem escriptos, muita gente consegue fallar e escre-ver correctamente, sem ter feito estudo especial de um curso de gramma-tica (RIBEIRO, 1911, p. 7).

Cabia ao gramático descrever o que se entendia como norma culta escrita, ao discriminar como impróprios para a descrição pro-posta os fatos não descritos, trazia consigo uma normatização tácita (CAVALIERE, 2000, p. 47).

Nas palavras de Margarida Petter (2004):

A tarefa do gramático se desdobra em dizer o que é a língua, des-crevê-la e, ao privilegiar alguns usos, dizer como deve ser a língua. Na verdade, a conjunção do descritivo e do normativo efetuada pela gramá-tica tradicional opera uma redução do objeto de análise que, de intrinse-camente heterogêneo, assume uma só forma: a do uso considerado corre-to da língua. (PETTER, 2004, p. 19)

O projeto de fazer da gramática um registro do estado do por-tuguês escrito e falado pelas pessoas cultas da época, levou Julio Ri-

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beiro a registrar numerosas observações, além de oferecer seu pró-prio testemunho como exemplo dos fatos linguísticos. Em face dessa atitude, de extensa aplicação na linguística descritiva, obteve injusta crítica de alguns que a ele se opunham, como Maximino Maciel: “... E, quanto à sintaxe, ao invés de exemplos hauridos aos monumentos literários, dava-lhos ele próprio, quase sempre” (MACIEL, apud BECHARA, 2006, p. 15).

Maciel na sua Grammatica Descriptiva (1914), “baseada nas doutrinas modernas”, forneceu-nos seguro painel das influências es-trangeiras na gramática brasileira, encontradas no rodapé de cada pá-gina, onde faz referência às fontes que consultou. Assegura que “as-sim procedemos, porque a probidade scientifica aconselha citar-se um autor, desde que lhe estejamos de accordo com as opiniões atti-nentes a um ponto, para mostrarmos as fontes a que recorremos”. E quanto à sintaxe sanciona:

Ainda nos esforçamos por estudar a lingua nos seus monumentos li-terarios, consolidando-lhe por isso os factos e a doutrina com exemplos selectos, hauridos aos principaes escriptores que se nos afigurou pode-rem servir de normas á syntaxe da lingua. (MACIEL, 1914, prólogo)

A descrição gramatical em Ribeiro constitui-se da bipartição lexeologia e syntaxe, aquela “considera as palavras isoladas, já em seus elementos materiaes ou sons, já em seus elementos morphicos ou fórmas”, esta “considera as palavras como relacionadas umas com as outras na construcção de sentenças, e considera as sentenças no que diz respeito á sua estructura, quer sejam simples, quer se com-ponham de membros ou de clausulas” (RIBEIRO, 1911, 3, p. 221). Assim, apreendemos que a palavra ocupa o núcleo das atenções, na lexeologia e na sintaxe. Não obstante esta última constitua a segunda parte do raciocínio gramatical, na prática não vai além de uma dila-tação da primeira.

Da gramática inglesa Ribeiro importou a concepção de clau-sulas e elucida: “Chamam-se clausulas os membros da sentença, quando são tão connexos entre si que um depende do outro e até o modifica” (RIBEIRO, 1911, p. 223). Maximino Maciel na Gramma-tica Descriptiva (1914, p. 326-7) adotaria, em detrimento de clausu-las, phrases, setenças ou orações o termo proposições, “por ser este mais geral e estar mais de accordo com as theorizações da logica e simplificar mais a aprendizagem”, às quais se relacionavam três ou-

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tros conceitos: coordenação, quando independentes entre si, subor-dinação, quando dependentes entre si e coordenação e subordina-ção, quando duas ou mais proposições, além de independentes ou coordenadas entre si se acham cada uma delas desenvolvidas por proposições subordinadas.

Outra questão notável que cumpre destacar reside nos casos abaixo analisados por Julio Ribeiro:

a) A idéia que se liga ao sujeito: chama-se predicado propriamente dito.

b) O laço que prende o predicado propriamente dito ao sujeito: chama-se copula.

Pedro ama, - ama decompõe-se em am thema, e a terminação: o thema am fica tido como predicado propriamente dito, e a terminação a, como copula. (RIBEIRO, 1911, p. 222-3)

A morfossintaxe, consolidada a partir da segunda metade do século XX, bem antes, porém, já se podia depreender na análise su-pracitada de Julio Ribeiro como conexão das categorias gramaticais às funções sintáticas na sentença. Fê-lo realizando um dos primeiros casos de análise morfossintática. Assim, Ribeiro considera um ponto de atrelagem entre a morfologia e a sintaxe: “a copula grammatical de todas as sentenças consiste na flexão do verbo” (RIBEIRO, 1911, p. 223).

phonetica phonologia prosodia ortographia lexeologia taxeonomia morphologia kampenomia grammatica etymologia lexica syntaxe logica regras de syntaxe

Plano sinótico da Grammatica Portugueza, de Julio Ribeiro (1911).

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Em sua proposta descritiva Ribeiro (1911, p. 223) subdivide a sintaxe em léxica e lógica, aquela referente ao estudo das “palavras como relacionadas umas com as outras na construcção de sentenças”, esta ocupada do estudo das “sentenças no que diz respeito á sua es-tructura, quer sejam ellas simples quer sejam ellas compostas”, isto é, a primeira ocupa-se das palavras inter-relacionadas na oração, a segunda da estrutura das orações. Cumpre ressaltar que na proposta descritiva da sintaxe Ribeiro analisa a relação e não a função sintáti-ca. Na estrutura de Ribeiro interatuam vocábulos, não sintagmas. O que se apresenta é uma relação direta, termo a termo, em forma de:

1) Relação subjetiva: A do sujeito para com seu predicado.

2) Relação predicativa: Em que o predicado de uma sentença está para com seu sujeito.

3) Relação atributiva: A da palavra que representa alguma qualidade com a que representa a coisa.

4) Relação objetiva: Em que está para com um verbo de ação transitiva o objeto a que se dirige, ou sobre que exerce essa ação.

5) Relação adverbial: A que vincula uma dada palavra a um adjetivo, verbo ou a um advérbio.

Para Ribeiro nas sentenças: Pedro é rico (p. 224), está em re-lação subjetiva; O menino corre (p. 225), o verbo corre está em rela-ção predicativa com o sujeito menino; A casa de Pedro (p. 225), o substantivo precedido da preposição de está em relação atributiva com casa; em O cão levantou a cabeça (p. 226), o substantivo cabe-ça está em relação objetiva para com o verbo levantou; na sentença Paulo deu-me um livro (p. 226), o pronome pessoal incluído como complemento verbal está em relação objetiva – adverbial.

Ademais, Julio Ribeiro (1911, p. 257-8) delineia concisa ano-tação sobre a presença do emprego pleonástico dos pronomes subs-tantivos em relação subjetiva, objetiva, adverbial e objetiva adverbi-al em várias línguas românicas, como se observa a seguir:

Estes processos pleonasticos, que contribuem muito para a clareza e elegancia da expressão, encontram-se em varias linguas romanicas, em Latim barbaro, em Latim classico, em Grego moderno, em velho Alto Allemão, em Inglez, em Dinamarquez, em Sueco. (RIBEIRO, 1911, p. 259)

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E ainda sobre a questão do pronome substantivo sujeito de um verbo no infinito, dependente de um verbo no finito, posto em rela-ção objectiva:

Esta syntaxe, commum a varias linguas romanicas, é tomada direc-tamente do Latim, em o qual o sujeito do verbo no infinito vai para o ac-cusativo. E’ erro vulgar no Brazil usar-se em casos taes da relação sub-jectiva: diz-se, por exemplo: Vi ELLE caminhar ás pressas. – Deixa EL-LE ir. (1911, p. 262)

Estes fragmentos constituem exemplos significativos do bom agasalho que se deu ao método histórico-comparativo no Brasil. Pro-dutivo não somente em trabalhos de pesquisa, mas ainda em com-pêndios gramaticais, o referido método favoreceu o critério de preo-cupação com a evolução da língua, fato que se pode corroborar nas palavras do próprio Julio Ribeiro: “Nós temos mais de estudar as fórmas varias porque passou a nossa lingua, temos de comparar essas fórmas com a fórma actual, para que melhor entendamos o que esta é e como veiu a ser o que é” (RIBEIRO, 1911, p. 1, 2).

Por fim, cabe-nos ainda observar que a produção gramatical brasileira a partir de Julio Ribeiro, em meio às alterações de observa-ção e reflexão sobre o estudo do vernáculo, reflete um diálogo tanto com a tradição greco-latina quanto com a corrente científica. Assim, vivia-se um momento de transição e mudanças, não só de âmbito in-telectual, mas ainda político e social, que de certa maneira, a língua não poderia deixar de registrar. Consideremos o valor que se deve dar à gramática científica no cenário linguístico-historiográ-fico bra-sileiro, pois:

O que se percebe de notável, (...) é que o elenco de obras filológicas produzidas a partir do trabalho inaugural de Julio Ribeiro cria os funda-mentos da moderna gramática brasileira, nos moldes em que, mutatis mutandis, até hoje se organizam. (CAVALIERE, 2000, p. 55)

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ANÁFORA: DA ABORDAGEM CLÁSSICA À ABORDAGEM DISCURSIVA

Rachel Maria Campos Menezes de Moraes (UFF) [email protected]

1. Introdução

Neste trabalho, faz-se um panorama histórico sobre o estudo das anáforas, que se inicia na abordagem clássica (anos 1970) e se-gue até a abordagem discursiva (anos 2000). Para tanto, baseamo-nos em diversos trabalhos a respeito de referenciação e de anáfora, como em Araújo (2004), Koch (2002), Marcuschi (2005) entre ou-tros. Nota-se, com base nesse panorama, que as ideias e os pensa-mentos sobre referenciação modificam-se de acordo com o tempo e com a escola filosófica e linguística à qual se relacionam. Deste mo-do, para que seja compreensível observar os avanços no estudo das anáforas, faz-se necessário que se desenvolva um panorama da pró-pria teoria da referenciação e das ideias de alguns filósofos e linguis-tas, que, de acordo com seu tempo e com a escola ou linha a que se vinculavam, propuseram diferentes explicações para a teoria da refe-renciação ou da referência. Dentre elas, destacam-se as ideias de Saussure, segundo o qual os referentes não se relacionam diretamen-te aos signos linguísticos a que se referem. Também será discutida a ideia do “espelho”, exposta em Mondada e Dubois (2003), segundo a qual os referentes refletem a realidade concreta, ou seja, para se falar de uma coisa, seria necessário que ela pertencesse, necessariamente, à realidade. Será discutida, finalmente, a abordagem discursiva da re-ferenciação (KOCH, 2002), segundo a qual os referentes não fazem, necessariamente, parte da realidade concreta, mas de uma realidade discursiva, isto é, construída no e pelo discurso.

2. Referenciação: Abordagem clássica

A linguagem foi, em todos os tempos, uma das grandes preo-cupações do ser humano. Até o século XIX, contudo, não havia uma

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ciência que estudasse separadamente a linguagem, ficando, desta forma, este estudo vinculado à filosofia.

Dentre as questões propostas pelos filósofos, inseriam-se questões a respeito do significado, da realidade, de proposições e até mesmo da referência. Já no século I a. C. os estoicos elaboraram uma teoria a respeito da linguagem.

Segundo Araújo (2004, p. 19-20), para eles,

A razão recebe as ideias mediante as sensações, a memória e a expe-riência. Daí nascem os conceitos. A representação, sendo intelecção pela qual se reconhece a verdade das coisas, permite que haja assentimento, compreensão e pensamento. O pensamento é enunciativo, exprime com palavras o material recebido da representação, que são as proposições completas em si, podendo ser verdadeiras ou falsas porque dizem algo sobre o que foi expresso. No processo de significação, há três elementos: o significado, o signo e a coisa, que pode ser uma entidade física, uma ação, um acontecimento.

Os estoicos já distinguiam, portanto, entre expressão, conteú-do e referente. Sua análise distinguia, ainda, sons produzidos fisiolo-gicamente de sons articulados, isto é, a palavra que precisa de um correlato para subsistir.

A distinção entre expressão, conteúdo e coisa, como observa Eco (1991, p. 39) já tinha sido aventada por Platão e Aristóteles. Os estoicos, todavia, elaboraram o problema da linguagem: é possível ouvir um som produzido pela voz humana e não compreendê-lo co-mo querendo dizer algo. Desta forma, para os estoicos, só se diz al-go, só há palavra, se houver um conteúdo de caráter não sensível, in-corpóreo, ente da razão. O dizível, que pertence a essa categoria, po-de ser aproximado à noção de proposição. As palavras que a com-põem são os significados. As partes da proposição (sujeito e predica-do) são entendidas como conteúdos, unidades culturais. Nota-se, en-tre os estoicos, referência ao que, mais tarde, seria chamado de teoria da referência e, no século XX, de teoria da referenciação. Para eles, o valor de um signo depende da relação deste signo com um fato ante-rior.

Merece destaque, também, a contribuição de Agostinho (354-430) para uma teoria do signo e sua relação com a realidade.

Segundo Araújo (op. cit., p. 21),

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Na obra De Magistro, ele considera que falar é exteriorizar “o sinal de sua vontade por meio da articulação do som”. A linguagem serve para ensinar ou recordar, serve também para a fala interior, que é o pensamen-to de palavras aderidas à memória. Este processo traz à mente as próprias coisas. As palavras são sinais dessas coisas. Contudo, há palavras que [apesar de serem sinais], nada significam, [como, por exemplo, as con-junções e preposições, já que não remetem a coisa alguma] (ARAÚJO, 2004, p. 21).

Agostinho afirma que, quando não for possível indicar o sig-nificado das palavras abstratas apontando para algo, este sinal deve ser interpretado por meio de outro sinal, como um gesto, por exem-plo. Se alguém, por outro lado, não conhecer o sinal, ele poderá ser explicado pela ação correspondente. Se, ainda assim o sinal não for compreendido, acrescentam-se mais sinais. Segundo Agostinho, são considerados sinais gestos, palavras ou letras. As palavras, por sua vez, são sinais verbais que remetem a outros sinais, o que demonstra haver, por parte de Agostinho, conhecimento a respeito do que, mais tarde, será explicado como teoria da referência.

As orações, segundo ele, se compõem de nomes e a presença de verbo assegura tratar-se de uma proposição. Faz-se necessário ressaltar que a palavra resulta da verbalização, enquanto o nome se relaciona ao que o espírito conhece ou compreende. Para memorizar, portanto, se pergunta o nome de algo e não a palavra utilizada para nomear. Agostinho esboça, desta forma, o problema da nomeação.

Vale destacar que, para Agostinho (1979, apud ARAÚJO, 2004, p. 21-22),

O significado se esvazia se não houver referente, conteúdo, coisa significada, tanto que conhecer as coisas é preferível que conhecer os si-nais correspondentes; falar é valioso porque possibilita [...] usar os sinais no discurso. Apesar de a maioria das coisas depender do sinal para ser transmitida e ensinada, o conhecimento resultante é mais valioso do que os sinais. [...] (AGOSTINHO, 1979)

Agostinho não leva em conta que a ação esteja carregada de sentido. Desta forma, fatos e objetos, para ele, não são fonte de co-nhecimento. Deste modo, o conhecimento não vem das palavras que significam os objetos, mas dos próprios objetos.

Agostinho ressalta que a palavra não se torna sinal pelo fato de se aprender seu significado, mas pelo fato de se aprender ao que ela se refere, sua denotação. Na primeira vez que é ouvido, o som,

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segundo ele, não é compreendido como sinal. Deste modo, o sinal é aprendido somente ao se fazer remissão a algo.

O nominalismo, do qual Quine foi um dos maiores defenso-res, também merece destaque. Para este estudioso, “[...] os conceitos referem não pela relação com as coisas, mas devido a certas relações que as classes estabelecem. [...]”

A teoria de Saussure (1852-1913), considerado o pai da lin-guística e do estruturalismo, também merece destaque.

Para Saussure, não há relação direta entre os signos linguísti-cos e os referentes aos quais se referem estes signos.

Para este estudioso, as questões que envolvem a referência não fazem parte da linguística, já que a linguística, que, segundo ele, estuda somente a langue, se ocupa somente de relações intrassígni-cas. Desta forma, a referência é vista como uma relação extralinguís-tica.

Finalmente, na abordagem clássica da referência, ainda mere-ce destaque a teoria do “espelho”, exposta por Mondada e Dubois (2003). Segundo esta teoria, os referentes pertencem, necessariamen-te, à realidade concreta e atuam como um “espelho” que reflete esta realidade. Deste modo, é possível fazer referência, somente, ao que existe na realidade concreta e, portanto, no mundo real.

A este respeito, afirmam Mondada e Dubois (op. cit., p. 18):

[...] As respostas a respeito das questões de como a língua refere o mundo são diferentes, de acordo com os diversos quadros conceituais. A maior parte delas, porém, pressupõe ou visa uma relação de correspon-dência entre as palavras e as coisas, correspondência dada, preexistente e perdida, [...] Esta perspectiva se exprime através das metáforas do espe-lho e do reflexo e, mais recentemente, do “mapeamento” (mapping mat-ching), que se referem todas a uma concepção especular do saber e do discurso, considerada como uma representação adequada da realidade. (RORTY, 1980 apud MONDADA; DUBOIS, 2003)

Segundo Menezes (2009, p. 37), “[...] a trajetória do pensa-mento sobre referência é acompanhada pelo dilema das dicotomias, o que de alguma forma também ocorre com as trajetórias de concepção de outros fenômenos de linguagem.” Ainda segundo a autora, no que diz respeito aos estudos sobre este assunto, há uma noção objetivista de referência, que enfatiza a relação língua e realidade concreta, ver-

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sus uma noção subjetivista, que focaliza a relação língua e pensa-mento. Há ainda outra dicotomia, representada por uma concepção de estabilidade referencial, que corresponderia ao estado das coisas no mundo, versus uma concepção de desestabilidade generalizada, que impediria qualquer possibilidade de apreensão.

Neste item, foram apresentadas as teorias mais importantes para a abordagem clássica da referência, representadas pelos estudos de Agostinho, Quine, Saussure e Mondada e Dubois.

3. Referência e anáfora

Há diversas formas de se fazer referência a algo. Estas for-mas, assim como todo o estudo linguístico, modificaram-se através do tempo e de acordo com a escola a que pertenciam seus autores. Os procedimentos responsáveis por introduzir e manter a referência em determinado texto (seja ele oral ou escrito) são denominados es-tratégias de referenciação e, mais recentemente, estratégias de pro-gressão referencial.

Uma das estratégias de progressão referencial muito utilizada é a anáfora.

Neste item, será discutida a abordagem clássica desta estraté-gia de progressão referencial. Será estudado, em particular, o que ho-je se denomina anáfora direta, e dentro deste grupo, as anáforas por repetição e anáforas por elipse ou anáfora zero.

Segundo Marcuschi (2005, p. 54), “originalmente, o termo anáfora, na retórica clássica, indicava a repetição de uma expressão ou de um sintagma no início de uma frase”.

Nos anos 1970, período em que se estudava a abordagem clássica da anáfora, esta estratégia de progressão referencial era en-tendida como sinônimo de uma simples retomada de um referente anteriormente explícito no texto. Deste modo, um dos tipos de anáfo-ra mais comuns era a anáfora por repetição (normalmente represen-tada por pronomes pessoais do caso reto e do caso oblíquo) que con-sistia em nada mais que uma simples retomada de um referente ati-vado anteriormente e, portanto, já explícito. A anáfora é, deste modo, compreendida, na abordagem clássica, como um processo de reativa-

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ção de referentes prévios. A anáfora estabelece, além disso, uma re-lação de correferência entre o elemento anafórico e seu antecedente. A anáfora direta, neste caso, atuaria como uma espécie de substituto do elemento retomado.

Segundo Marcuschi (op. cit., p. 55),

[A] visão clássica e linear da anáfora não considera o problema da referenciação textual em toda sua complexidade, pois nem sempre há congruência morfossintática entre a anáfora e seu antecedente; nem toda anáfora recebe uma interpretação no contexto de uma atividade de sim-ples atribuição de referente. (MARCUSCHI, 2005, p. 55)

O autor afirma que o caso da anáfora correferencial não é pa-radigmático das anáforas em geral e que o pronome, ao contrário do que se postulava na época, não é uma classe de palavras tipicamente anafórica, já que, para este estudioso, não existe uma classe de pala-vras funcionalmente anafórica. A anáfora é, portanto, em sua essên-cia, um fenômeno de semântica textual de natureza referencial e não de clonagem referencial.

Merece destaque, ainda a respeito da abordagem clássica da anáfora, o estudo feito por Halliday e Hasan, na década de 1970, a respeito das anáforas por elipse. Segundo Halliday e Hasan (1976, apud KOCH, 2002), “a referência da elipse ou anáfora zero é possí-vel de ser construída em contextos de correferência”.

4. Referenciação e anáfora: Abordagem discursiva

Neste item, estuda-se a abordagem discursiva da referencia-ção e, consequentemente da anáfora, defendida, atualmente, por di-versos linguistas, como Ingedore Koch, Luiz Antônio Marcuschi e outros.

De acordo com esta abordagem, a referenciação é vista como uma atividade discursiva e cognitiva, isto é, uma atividade construí-da no e pelo discurso. Os referentes, deste modo, não são entidades congeladas, mas uma instância de referencialidade efêmera. Para Koch,

[...] a referenciação é uma atividade discursiva [...] pressuposto este que implica uma visão não referencial da língua e da linguagem, uma posição

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também defendida por Mondada (1995, 278) e [outros] [...]. (KOCH, 2002, p. 79).

Diversos autores, como mencionado acima, compartilham, atualmente, a visão da referenciação como uma atividade discursiva e cognitiva, defendida em Koch, (2002, p. 79).

Segundo Marcuschi,

Tudo indica que o melhor caminho não é analisar como representa-mos, o que representamos, nem como é o mundo ou a língua e sim que processos estão envolvidos na atividade de referenciação em que a língua está envolvida. Não vamos analisar se o mundo está ou não discretizado nem se a língua é um conjunto de etiquetas ou não. Vamos partir da ideia de que o mundo e o nosso discurso são constantemente estabilizados num processo dinâmico levado a efeito por sujeitos sociocognitivos e não sujeitos individuais e isolados diante de um mundo pronto (MAR-CUSCHI, 2004 apud CAVALCANTI, 2005, p. 125).

Assim como as ideias sobre referenciação passaram de uma abordagem clássica a uma abordagem discursiva, ocorreu, com o conceito de anáfora, a mesma modificação.

A anáfora, na atualidade (anos 2000), é entendida discursiva-mente e não mais como repetição de palavras ou de expressões. Tal entendimento possibilita a ampliação do conceito de anáfora , assim como das ideias a respeito de referência e referenciação, em geral.

Segundo Marcuschi (op. cit., p. 55)

[...] hoje, na acepção técnica, [o conceito de anáfora] anda longe da noção original [...] [Este] termo é usado para designar expressões que, no texto, se reportam a outras expressões, enunciados, conteúdos ou contex-tos textuais (retomando-os ou não), contribuindo assim para a continui-dade tópica e referencial. (MARCUSCHI, 2005, p. 55)

Ocorre, na abordagem discursiva da anáfora, a divisão desta estratégia de progressão referencial em diversos tipos de anáfora, que apresentam características divergentes entre si.

Dentre estes, destaca-se o que Marcuschi (2005) denomina anáfora indireta.

Segundo o autor,

[...] [a anáfora indireta] é geralmente constituída por expressões no-minais definidas, indefinidas e pronomes interpretados referencialmente

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sem que lhes corresponda um antecedente (ou subsequente) explícito no texto. (MARCUSCHI, 2005, p. 53)

Desta forma, pode-se afirmar que a anáfora indireta (AI) tra-ta-se de uma estratégia endofórica de ativação de referentes novos e não de reativação de referentes tratando-se, portanto, de uma estraté-gia de progressão referencial implícita.

Dentre as características das AI, destaca-se o fato de este tipo de anáfora não reativar referentes, porém ativar referentes implícitos no texto e se ancorar no universo extratextual (cotexto).

Pode-se afirmar ainda, que a anáfora, na abordagem discursi-va, possibilita, em muitos casos, a recategorização de referentes.

A recategorização, uma estratégia própria da progressão refe-rencial, pode ser compreendida como a reativação de um objeto ante-riormente ativado na realidade discursiva.

Segundo Neves (2006, p. 114), “[...] o objeto pode não ter si-do configurado apenas discursivamente, e, desse modo, pode já ter recebido uma designação no texto”. Ainda segundo a autora, ele po-de já ter sido nomeado (categorizado) e, nesse caso, ocorre uma reca-tegorização.

Para exemplificar a abordagem discursiva da anáfora, será utilizado um trecho de uma crônica de Moacyr Skliar, publicada no jornal Folha de São Paulo, em 27 de setembro de 2010.

Duras na Queda

Moacyr Scliar

JÁ NOS PRIMEIROS ENCONTROS, três coisas nela o impressio-naram: a beleza, a inteligência e, detalhe surpreendente, a força com que ela o abraçava. Jamais ele havia sido abraçado com tamanha energia. Depois de muito hesitar, ele acabou manifestando sua admiração e per-guntando-lhe a respeito: qual a explicação para aquele vigor, para aquela esplêndida forma física? Ela riu, revelou algo sobre o qual até então não tinham falado: Eu sou judoca. [...]

.......................................................................................................

Neste trecho da crônica “Duras na Queda”, é possível perce-ber o uso de anáforas diretas e indiretas, de acordo com a abordagem discursiva desta estratégia de progressão referencial. Nesta crônica, ocorre, em primeiro lugar, a ativação dos referentes: na primeira fra-

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se do texto, a contração “nela” faz menção ao referente que, a partir do pronome “ela” pode ser identificado como "namorada" e o pro-nome oblíquo "o", em "o impressionaram", faz menção ao referente que pode ser identificado como "namorado". Tanto a contração quanto o pronome oblíquo acima, que se ancoram na expressão “já nos primeiros encontros”, são exemplos de anáfora indireta, pois, pa-ra serem compreendidos, é necessário que o leitor faça inferência, is-to é, que, através do contexto e do seu próprio conhecimento de mundo, ele infira que o encontro do qual trata a crônica é um encon-tro de namorados e, a partir disto, que “nela” se refere à “namorada” e “o” se refere ao “namorado”. Ainda nesta frase, no trecho "a força com que ela o abraçava", ocorrem dois exemplos de anáfora, pois tanto "ela" que se refere à namorada como "o" que se refere ao "na-morado" foram anteriormente explícitos no texto. Na passagem em estudo, em “ela o abraçava”, o pronome “ela” é correferencial ao pronome da contração “nela” e o pronome “o” é correferencial ao pronome “o” em “o impressionaram”.

Correferenciais são dois itens de formas diferentes ou iguais, que ativam o mesmo referente. Em muitos casos há correferência com recategorização. Quando se trata de formas pronominais, contu-do, em geral não há recategorização.

No decorrer da crônica, estes mesmos referentes são reativa-dos, na maioria das vezes por anáforas também correferenciais, re-presentadas por pronomes de terceira pessoa (do caso reto: ele, ela) e oblíquo: lhe, lhes, (o, a).

Também ocorrem, nesta crônica, anáforas por elipse (marca-das pela desinência verbal, como em “revelou”, que indica a terceira pessoa do singular e se refere à “namorada”). A partir destes exem-plos, é possível destacar que, na abordagem discursiva da anáfora, de modo inverso ao que ocorria na abordagem clássica, o discurso e, por sua vez, o contexto, tornam-se imprescindíveis para a compreen-são desta estratégia de progressão referencial. Pode-se notar este fato em todos os tipos de anáfora, tanto na anáfora indireta que, para que seja compreendida necessita de que algum elemento a “ancore” no texto e, portanto, requer que o leitor faça inferências, quanto na aná-fora direta, ou simplesmente anáfora, que, apesar de não necessitar

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de uma “âncora”, necessita do contexto para ser compreendida com eficácia.

Deste modo, nota-se que, na abordagem discursiva da anáfo-ra, o contexto exerce função essencial no que diz respeito à constru-ção dos referentes ativados ou reativados.

5. Conclusão

Neste trabalho, fez-se um panorama histórico dos estudos so-bre anáfora que teve início na abordagem clássica (anos 1970) e tér-mino na abordagem discursiva (anos 2000). Como a anáfora é uma estratégia de progressão referencial, fez-se necessário, com o intuito de facilitar a compreensão das mudanças na abordagem das anáforas, se fazer uma revisão a respeito dos estudos sobre referência e refe-renciação, na qual se tentou demonstrar visões de diferentes estudio-sos, de épocas diversas e ligados a diferentes escolas filosóficas e linguísticas a respeito destes temas.

Dentre elas, destaca-se a teoria de Saussure, segundo a qual os referentes não se relacionam diretamente aos signos linguísticos a que se referem. Mostrou-se também a teoria do “espelho” exposta em Mondada e Dubois (2003), segundo a qual os referentes perten-cem, necessariamente, à realidade concreta e refletem esta realidade.

A respeito da abordagem discursiva da referenciação, vale destacar a teoria defendida por Koch (2002), segundo a qual os refe-rentes não fazem, necessariamente, parte da realidade concreta, mas são construídos e reconstruídos em uma realidade discursiva, ou seja, uma realidade construída no e pelo discurso. Para se fazer o panora-ma citado acima, foram consultados diversos trabalhos como Koch (2002), Araújo (2004), Marcuschi (2005), Mondada e Dubois (2003), entre outros.

Desta forma, traçou-se um panorama a respeito dos estudos de referenciação e de anáfora, com o objetivo de estudar a evolução dos conceitos e das teorias através do tempo, possibilitando mostrar que o procedimento anafórico é muito mais complexo do que uma mera retomada de um termo antecedente, e que, na nova visão, a a-

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náfora compreende fatores semânticos e pragmáticos da produção textual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola, 2004.

CAVALCANTI, Mônica. Anáfora e dêixis: Quando as retas se en-contram. In: KOCH, I. et al. Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005.

KOCH, Ingedore G. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. A. Anáfora indireta: O barco textual e suas âncoras. In: KOCH, I. et al. Referenciação e discurso. São Pau-lo: Contexto, 2005.

MENEZES, Vanda Maria Cardozo de. Da referência à referenciação. In: XII CNLF, 2009, Rio de Janeiro. Cadernos do CNLF, Rio de Ja-neiro: CIFEFIL, 2009, v. 12, p. 37-44.

MONDADA, Lorenza; DUBOIS, Danièle. Construção dos objetos de discurso e categorização: Uma abordagem dos processos de refe-renciação. In: CAVALCANTI, M. et al. (Org.) Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003.

NEVES, Maria Helena de Moura. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006.

SCLIAR, M. Duras na queda. In: Folha de São Paulo. 27 de setem-bro de 2010, São Paulo: Folha Press, 2010. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/inde27092010.htm. Con-sulta em: 01/10/2010.

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CAMPO LEXICAL E NEOLOGIA: CRIATIVIDADE LINGUÍSTICA

EM FAVOR DA ARGUMENTAÇÃO

Anderson de Souto (UERJ) [email protected]

1. Introdução

Este trabalho tem por objetivo refletir sobre a exploração do campo lexical e da criação neológica como estratégia argumentativa na construção de um artigo de opinião, de André Petry, publicado em agosto de 2007 na revista Veja.

Privilegio, para esse fim, aspectos importantes sobre o fenô-meno da neologia, considerando-o como manifestação da criativida-de linguística presente em discursos diversos. Além disso, considero seu uso intencional, associado à exploração do campo lexical, como recurso estratégico para construir argumentação.

Por fim, apresento a validade da abordagem do texto nas au-las de língua portuguesa, revendo o trabalho com o texto argumenta-tivo. Assim, as noções de autor e de leitor “estrategistas” são funda-mentais, pois trazem uma postura que considera a criatividade e a ar-gumentatividade como peças importantes para o desenvolvimento da competência linguística (de modo amplo) e da competência lexical (de modo específico) dos estudantes.

2. Competência e criatividade linguística: a presença da neologia nos diversos discursos

O linguista romeno Eugenio Coseriu, em favor da mediação entre os conhecimentos linguístico-discursivos e a prática da educa-ção linguística, traz um grande auxílio ao redimensionamento desta. Ele discute, em Competência Lingüística: elementos de la teoria del hablar (1992), o que considera pertinente ao saber linguístico prático

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(geral) dos falantes. Falo dos três níveis que compõem a competên-cia linguística1 e que estão presentes em cada ato discursivo:

● no nível universal, está o saber elocucional, que é o conhecimento de mundo do falante, evidenciado naquilo que é possível ser dito em qual-quer língua, a que se atribui o juízo da congruência;

● no nível histórico, está o saber idiomático, que é o saber falar uma de-terminada língua, seguindo as regras intrínsecas a suas construções, compondo a dimensão morfossintática e lexicossemântica, a que se atri-bui o juízo da correção;

● no nível individual, está o saber expressivo, que é o saber estruturar e compreender textos diversos nas modalidades escrita e falada, bem co-mo, através deles, se comportar socialmente, nas mais diversas situações de interação comunicativa, a que se atribui o juízo da adequação.

No bojo dessa competência (saber complexo que se desenvol-ve em três níveis), em relação aos saberes idiomático e expressivo, está o que se considera nos estudos linguísticos como competência lexical.

A competência lexical permite ao falante compreender a sig-nificação das palavras de uma língua, seus processos morfossintáti-cos e semânticos de criação, assim como seu intercâmbio com outros itens léxicos, o reconhecimento de novas formas e seu uso intencio-nal (FERRAZ, 2008). Ela desenvolve-se ao longo das interações comunicativas do falante. Essa competência evidencia uma das pro-priedades intrínsecas à linguagem: a criatividade.

Para Coseriu (1987), a criatividade é algo que faz parte da es-sência da linguagem. Argumenta o autor que é ela própria (a lingua-gem) atividade criativa humana, identificando-a com a poesia, por meio da etimologia do termo grego poiesis: criação.

Assim, é através dela que o homem apreende o mundo e o manifesta, dando existência discursiva aos objetos do real, ordenan-do-os (COSERIU, 1987). Desse modo, a criatividade estará presente em qualquer manifestação linguística humana.

1 Para Coseriu (1992), a competência linguística constitui um saber intuitivo ou técnico depen-dente da cultura, que se desenvolve nos três planos do falar em geral, e é mobilizado para a construção de discursos sempre novos em situações concretas de interação verbal.

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O léxico, o inventário aberto de palavras da língua de uma de-terminada comunidade, que reflete as diversas experiências tradicio-nais de uma comunidade linguística (FERRAZ, 2008), é um grande campo para o exercício dessa criatividade.

Em relação à criação linguística no nível do léxico, há no uso estético da linguagem literária inúmeros exemplos, haja vista cria-ções realizadas por Guimarães Rosa e por Drummond, dois de nos-sos maiores escritores. Esses autores exploram constantemente o lé-xico, desviando normas linguísticas, de acordo com as diversas pos-sibilidades do sistema, de modo expressivo e inovador.

É inegável que na literatura surgem muitas criações linguísti-cas e que o uso criativo do léxico constitui-se um de seus maiores exemplos. Porém, a exploração das potencialidades lexicais não ser-ve somente à literatura, e seu uso expressivo não está presente ape-nas no universo artístico, conforme argumenta Coseriu (1987).

Ela serve comumente ao enriquecimento do inventário voca-bular da língua, configurando um dos aspectos de seu processo di-nâmico2, com palavras formadas para suprir necessidades surgidas nas mudanças sociais.

Além disso, a criatividade não se configura apenas na intro-dução de formas sempre novas e originais3. Se assim o fosse, a lin-guagem se tornaria um amontoado de formas heterogêneas, perdendo sua dimensão histórica, deixando de servir à comunidade de falantes como manifestação da intersubjetividade.

Há constantemente, na sociedade, exigência de novos termos e significados para se referir a fenômenos, objetos, processos que surgem ao longo do tempo. A língua, em sua função social, acompa-nha essas exigências, haja vista termos da linguagem técnico-cien-

2 Coseriu (1979) expõe que “a própria funcionalidade atual implica uma superação possível do ‘atual estado de língua’ para o futuro [...] para os próprios falantes a língua atual não é apenas conjunto de formas já realizadas, modelos atualizáveis, mas também é técnica para ultrapas-sar o realizado, ‘sistema de possibilidades’ (sistema)” (p. 231).

3 Sobre o papel da criatividade, explica Carlos Franchi (2006, p. 100) que “é preciso, porém, ampliar a concepção de criatividade. Ela não pode limitar-se ao comportamento original, à ins-piração e ao desvio [...] mas também se cria quando se seguem as regras históricas e sociais como as regras da linguagem”.

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tífica cunhados a cada nova descoberta. Não se pode negar, entretan-to, que novos termos servem também a intencionalidades expressivas surgidas no cotidiano.

Esses processos de criação de novos vocábulos recebem o nome de neologia (ALVES, 2007) e o novo termo, resultado desse processo, neologismo. Essa palavra encontra seu étimo numa forma-ção híbrida do latim (neo – novo) e do grego (logos – palavra), cons-tituindo-se uma novidade linguística.

A linguagem corrente apresenta constantemente criações des-se tipo, contribuindo para a renovação do acervo lexical (ALVES, 2007). Esses neologismos apresentam-se em diversas esferas sociais, como a jornalística, a política, a científica, a cotidiana etc. Sobre sua presença em diferentes linguagens, observa André Valente:

Gostaria de ressaltar que a literatura [...] sempre teve papel decisivo na criação de neologismos. Se Camões consolidou a língua portuguesa e Guimarães Rosa a reinventou, a criação neológica esteve presente neste percurso poético-linguístico. Atualmente, junto à literatura, é inegável que linguagens várias têm contribuído para a renovação do nosso léxico. (VALENTE, 1997, p. 98)

O autor deixa entrever em seu texto que a criação vocabular, embora sirva, e muito, ao uso estético da linguagem, não é terreno apenas deste. Muitas são as manifestações criativas presentes, com diversas finalidades, no cotidiano que figuram ao lado do literário.

A manifestação da produtividade lexical pode, em diversas linguagens, sobretudo no discurso jornalístico, ser associada à explo-ração dos campos lexicais. É importante, aqui, conceituar campo le-xical e distingui-lo de campo semântico.

Câmara Jr. (1968) apresenta uma conceituação para os dois termos. Para o autor: o primeiro (campo lexical) refere-se à família léxica, palavras que têm em comum a mesma base significativa (ra-iz), que se multiplica através dos processos de formação de palavras; o segundo (campo semântico) refere-se à associação de significação para certo número de palavras de distintas bases, que se relacionam a um mesmo fenômeno, como por exemplo, palavras da área política (político, governo, partido etc.).

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A seguir, apresento uma análise detida de um artigo de opini-ão, no qual discuto o uso expressivo do neologismo e do campo lexi-cal, cuja finalidade é ser uma estratégia4 que objetiva a defesa de um ponto de vista.

3. Neologismo, campo lexical e construção da argumentação

Em meados do ano de 2007, houve um gravíssimo acidente aéreo com um avião Airbus da TAM (voo nº 3054) no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, no qual morreram todos os passageiros, chocando a sociedade. Após, buscavam-se as causas do acidente, o que certamente afetaria seus responsáveis.

O acidente gerou diversos textos publicados em algumas edi-ções da revista Veja, que anunciavam erro humano como causa do acidente. Porém, embora o piloto tivesse errado, outras causas pode-riam ter contribuído para seu agravamento, como o fato de a pista de pouso e decolagem do aeroporto ser curta. Essas causas secundárias atribuiriam responsabilidades a políticos, inclusive ao ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, responsável pela obra de expansão do ae-roporto em 2005.

Após o acidente, houve uma grande especulação política so-bre o caso, que dividiu governo e oposição. Essa especulação é criti-cada por André Petry no seguinte artigo de opinião publicado em a-gosto de 2007:

Dentro do politicovil

André Petry

Tudo já indicava que estamos cada vez mais distantes da política e mais próximos da politicalha, mas a tragédia de Congonhas jogou uma luz intensa sobre essa deformação nacional. A politiquice pós-tragédia dividiu Brasília em dois bandos. Os politiqueiros do governo torcem pa-ra que a principal explicação do desastre seja um defeito no avião ou erro do piloto, aliviando a barra governista. Os politiqueiros da oposição fa-zem figa para que a pista de Congonhas seja a grande culpada, o que

4 Ingedore Koch (2006) defende que produtor e interpretador de textos são estrategistas, que mobilizam uma série de recursos, para atuarem linguisticamente na construção de sentidos. Esse agir pressupõe intencionalidade por parte do produtor, constituindo, assim, seu projeto de dizer.

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compromete o governo. Como as investigações iniciais sugerem que o problema principal ocorreu na cabine do avião, e não na pista do aero-porto, politiquinhos governistas talvez se sintam autorizados a voltar a brincar de top, top, top.

Essa versão amesquinhada da política não é exclusividade brasileira, mas nas democracias mais maduras os politicastros ao menos se empe-nham em esconder seus impulsos. Aqui, as coisas estão mais debocha-das. É impressionante a incapacidade dos nossos politicantes de fazer a política grande, nobre, a política que, apesar de todas as divergências, le-va em conta que, afinal, vivemos todos juntos. Mas nossos politicóides são indiferentes a esse projeto de bem comum. Vulgarizaram-se tanto que se apartaram do sentimento do brasileiro médio, que se espantou de verdade, se chocou de verdade com o avião explodindo, se solidarizou de verdade com o drama das famílias. O senhor Marco Aurélio “Top, Top, Top” Garcia é exemplo dessa alienação. Filmado, como ele diz, de “for-ma clandestina”, Garcia mostrou preocupar-se menos com a comoção nacional e mais com o impacto eleitoral da tragédia. Coisa de politiqui-lho.

Com o mesmo alheamento, o presidente Lula sumiu por três dias depois do maior acidente aéreo do país, tal como fazem os oposicionistas na hora em que são postos à prova. José Serra desapareceu quando o PCC colocou São Paulo de joelhos. Agora, como Congonhas não é obra sua, Serra aparece em Congonhas. E Lula, como Congonhas é obra sua, some de Congonhas, some de Porto Alegre e cancela visitas a toda a Re-gião Sul do país, exatamente para onde deveria viajar se vencesse a co-vardia da politicagem, se deixasse de fazer politicócoras.

Com politicalhões assim, corremos o risco de ficar numa situação algo parecida com a condição a que o nazismo relegou suas vítimas, con-forme a formulação de Hannah Arendt: não eram consideradas seres hu-manos, apenas futuros cadáveres.

Basta de politicoveiros. Precisamos de políticos.

(Veja. 1/8/2007. http://veja.abril.com.br/010807/andre_petry.shtml. A-cesso em: set. de 2010)

O artigo de opinião é um gênero5 que se organiza no tipo tex-tual argumentativo, que se justifica por ser uma ação verbal segundo a qual se pretende defender uma tese sobre acontecimentos polêmi-cos atuais. É escrito geralmente por uma autoridade que possui noto-

5 Marcuschi (2005) conceitualiza o termo gênero como um evento textual flexível, dinâmico e um fenômeno histórico que surge das necessidades e das atividades socioculturais; por isso, está arraigado à vida cultural e social do homem, de modo a atrelar-se a seus eventos socio-comunicativos, que, por serem diversos, manifestam diversidade dos gêneros.

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riedade no assunto e dirige-se a um público leitor considerado, po-tencialmente, envolvido no debate.

André Petry escolhe tal gênero (anunciando já nesta escolha seu projeto de dizer), parar compartilhar com os leitores sua opinião sobre a atitude de políticos brasileiros que tentam fazer de uma tra-gédia chocante para a população, um caso eleitoreiro.

Apresenta-se, pois, contrário a essa postura, na tentativa de convencer os leitores de que, para uns (os governistas), a tragédia mancharia suas reputações junto ao grande público (eleitores) e de que, para outros (os oposicionistas), ela poderia ser uma via de aces-so a críticas, fazendo aqueles (os governistas) perderem votos na e-leição vindoura à época.

Tese lançada, para concretizar seu propósito de dizer, o autor lança mão de alguns procedimentos argumentativos6 instados na ma-croestrutura do texto7, para desenvolvê-lo de modo a conduzir o lei-tor à conclusão: exemplifica a “deformação nacional” de nossa polí-tica com atitudes de políticos governistas e oposicionistas em relação ao acidente de Congonhas; compara “essa versão amesquinhada da política” com a de outras democracias; exemplifica o interesse pes-soal com o caso de Marco Aurélio Garcia; exemplifica “o alheamen-to político” com as atitudes de Lula e Serra; compara a atitude dos nossos políticos, no pós-tragédia, a dos nazistas no holocausto.

Ao lado desses recursos argumentativos mais amplos, ele ma-nuseia, por conseguinte, instâncias gramaticais8, postas no nível mi-croargumentativo como “pistas” para defender sua tese. Suas opções baseiam-se na construção do campo lexical da política.

O autor, então, explora a produtividade léxica de modo ex-pressivo e intencional. Usa, para tanto, de variados termos já dicio-

6 Procedimentos argumentativos, para Citelli (1994), são mecanismos, estratégias, recursos comuns à modalidade de convencimento e persuasão.

7 Organização do todo do texto.

8 Para Citelli (1994), as instâncias gramaticais são outros recursos para construir argumenta-ção. Compõem usos léxicos e gramaticais, como: escolhas vocabulares, expressões de valor fixo, figuras de linguagem, estruturas sintáticas etc. Dentre elas, elenco o neologismo e o cam-po lexical.

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narizados9, todos de sentido pejorativo, para caracterizar a imagem dos políticos, que julga afastarem-se da política “grande” e “nobre”.

O vocábulo primitivo política é, então, empregado, no texto, em seu sentido positivo (ação de governar para promover o bem co-mum, o bem estar do Estado), em oposição a seus derivados já exis-tentes na língua, todos de sentido negativo, enfatizando, assim, as ações dos políticos frente ao acidente com o voo 3054:

▪ politicalha – substantivo feminino formado de político + alha, usado, com intenção pejorativa (como em gentalha), para indicar o grupo de maus políticos que se dedicam a interesses pessoais, em detrimento do bem do povo.

▪ politiquice – substantivo feminino formado de política + -ice (sufixo de valor pejorativo, presente em chatice, canalhice etc) que se refere às a-ções dos políticos no pós-tragédia, consideradas pelo autor como sujas, mesquinhas, vergonhosas, uma “deformação nacional”, indiferentes a uma catástrofe que chocou todo o país.

▪ politiqueiros – adjetivo substantivado formado de político + -eiro, refe-rente aos políticos governistas e oposicionistas praticantes da “má” polí-tica, que não escondiam suas ações negativas nem com elas se constran-giam.

▪ politicastros – substantivo masculino, formado de político + -astro (a-quele que faz as vezes de), referente aos políticos das democracias mais maduras, que, ao menos, escondem suas ações negativas, sendo menos explícitos. Os politicastros são aqueles parecem políticos, no sentido po-sitivo do termo, são aqueles que estão na posição de políticos, mas não praticam a política “nobre”.

▪ politicantes – substantivo masculino formado de político + -ante (aquele que pratica), referente aos políticos brasileiros em geral, praticantes das políticas partidárias ou das “políticas pessoais”.

▪ politicoides – adjetivo substantivado composto por político + -oide (va-lor pejorativo presente em palavras como intelectualoide – falso intelec-tual), que se refere também aos políticos brasileiros, considerados pseu-dopolíticos, de pouco valor.

▪ politiquilho – substantivo composto por político + -ilho (sufixo de valor diminutivo ou pejorativo), referente a Marco Aurélio Garcia, exemplo da política negativa, que, filmado, “mostrou preocupar-se menos com a co-moção nacional e mais com o impacto eleitoral da tragédia”.

9 Presentes no Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa, de Silveira Bue-no, da Editora Saraiva, publicado em Portugal, em 1968.

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▪ politicagem – substantivo formado por política + -agem, referente à ati-tude política no mau sentido, a dos arranjos e conchavos, mais relaciona-da a interesses próprios, em detrimento dos interesses do povo.

▪ politicalhões – substantivo masculino composto por político + -alho + -ão, que categoriza os figurões negativos da política, os maus políticos brasileiros, exemplificados no texto.

Além do uso estratégico-persuasivo do campo lexical, o autor explora também criações neológicas vocabulares a partir da palavra político. Esses neologismos contribuem para a construção da orien-tação argumentativa do texto10, contrária às atitudes dos políticos, sendo mais um recurso importante para sua argumentatividade11. E-les buscam atribuir aos políticos valor negativo, reafirmando a tese defendida:

▪ politicovil – neologismo criado por Petry, introduzido no título – Dentro do políticovil –, formado por processo de composição, em que se agluti-nam as palavras político e covil, gerando uma nova significação, já que se associa o valor semântico do termo político ao sentido pejorativo con-tido em covil. O vocábulo designa, pois, antro, espaço ocupado por polí-ticos malfeitores, corruptos.

▪ politiquinhos – neologismo criado a partir da junção da base político ao sufixo –inho, explorando a polissemia sufixal, conferindo novo matiz semântico a político, que adquire valor depreciativo. Os políticos do go-verno se amesquinham, tornando-se “politiquinhos”.

▪ politicócoras – neologismo referente à atitude de Lula, que não apareceu em Congonhas após o acidente. Vocábulo formado por composição, u-nindo a palavra político à cócoras, que adquire sentido irônico, de tom provocativo, ressaltando a indignação do autor à atitude de Lula, consi-derando-o como alguém que ignora uma situação trágica ou que com ela pouco se preocupa, mostrando-se covarde, envergonhando a si próprio.

▪ politicoveiros – outro neologismo formado por composição em que se unem as palavras político e coveiro, cujo sentido, no texto, é do político que contribui para mortes ou que se isenta de qualquer atitude para evitá-las, mostrando-se, apenas, como aquele que abre covas. Petry relaciona

10 Oliveira (2008) explicita que a orientação argumentativa é a conclusão (tese) a que o produ-tor do texto quer fazer o leitor chegar, provando-a com argumentação coerente, segundo a qual pode haver escolhas linguísticas que ressaltem melhorativa ou pejorativamente os discur-sos.

11 Para Koch (2002), o discurso, ação verbal plena de intencionalidade, que tenta agir sobre o comportamento do interlocutor, buscando fazê-lo compartilhar uma opinião, é ato que possui argumentatividade, sob o qual subjaz uma ideologia, dentro de um contexto social e histórico.

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esses políticoveiros aos nazistas do holocausto, para quem seus próprios eleitores “não são considerados seres humanos”, mas “apenas futuros ca-dáveres”.

Essas estratégias estilístico-argumentativas, que conferem va-lor pejorativo ao comportamento dos políticos envolvidos no caso e aos políticos brasileiros em geral, são ratificadas, no texto, pelas es-colhas lexicais do campo semântico da bandidagem, como a palavra bando, presente no primeiro parágrafo do texto.

Com isso, Petry, intencionalmente, constrói “pistas” discursi-vas, marcando-as no texto, para fundamentar seu ponto de vista, ex-pressando sua indignação em relação à nossa política. Ele, portanto, mostra-se solidário “ao sentimento do brasileiro médio”.

4. Repercussões pedagógicas: considerações finais

É comum, em contexto escolar, ao se abordar argumentação, ensinar aos estudantes, que um texto argumentativo exige, na sua macroestrutura, um modelo básico: a introdução com a explicitação da tese a ser defendida; o desenvolvimento com parágrafos que am-pliam e defendem a tese com argumentos; e a conclusão com a fina-lização do texto com a retomada da tese.

Em relação ao desenvolvimento de tal tipo de texto, as práti-cas pedagógicas, atestadas inclusive por muitos livros didáticos, gi-ram em torno de procedimentos “tradicionais” para a construção de parágrafos argumentativos. Geralmente, focam-se métodos de enu-meração, exemplificação, comparação/contraste, definição, alusão histórica, causa e consequência, citação ou testemunho12 etc.

Essa postura restringe o trabalho com a argumentação na es-cola, fazendo surgir algumas visões que reduzem o fenômeno do ar-gumentar: o texto argumentativo passa a ser o único dotado de ar-gumentatividade; sua liberdade de organização se engessa em estru-turas pré-definidas; os procedimentos para desenvolvê-lo não privi-legiam usos intencionais dos recursos linguísticos; geralmente não se

12 Cereja e Magalhães (2005) veem tais aspectos como fundamentais no texto dissertativo-argumentativo, sem privilegiar outros que certamente são bem presentes em diversos gêneros (editoriais, cartas de leitor etc.) organizados no modo argumentativo.

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define um gênero determinado para a produção, apenas se solicita um texto dissertativo-argumentativo etc.

No entanto, muitas são as estratégias possíveis para se cons-truir efeitos argumentativos, e tais efeitos não são próprios apenas do texto dissertativo-argumentativo canônico13. Pode-se construí-los explorando diversos recursos verbais e não verbais: imagens, dia-gramação, aspectos gráficos, figuras de linguagem, recursos gramati-cais etc.

O texto de Petry serve de mote às aulas de língua portuguesa, de modo a se desenvolver, a partir dele, um trabalho de leitura críti-ca, com vistas a perceber a exploração da diversidade de recursos linguísticos em favor da argumentação.

Isso permitirá aos estudantes conscientizarem-se de que fatos são sempre apresentados a partir de um modo de ver, e de que as es-colhas lexicais são fruto de intenções carregadas de valor ideológico: falamos sempre de um lugar determinado, de um modo determinado, para cumprir funções determinadas. Todo texto (não apenas o argu-mentativo) possui, de modo subjacente, um “querer dizer”, que deixa “marcas” linguísticas.

Ao participarem ativamente da compreensão do texto, aten-tando para a carga ideológica presente nas escolhas do autor, os es-tudantes compreenderão que os usos linguísticos são dotados de ar-gumentatividade, chegando à conclusão de que ler e escrever são ativi-dades que requerem mais do que compreender e organizar textos.

O uso estratégico dos neologismos e do campo lexical consti-tui-se, assim, um importante recurso para a compreensão e a produ-ção de textos na escola. Porém, requer um redirecionamento da visão de língua em tal contexto.

A concepção de língua e de texto coerente com tal ensino é a dialógica, segundo a qual o texto é o lugar da interação entre os fa-

13 Ingedore (2002) explicita que o ato de argumentar, orientação discursiva para determinada conclusão, questiona a distinção entre dissertação (exposição de ideias de modo neutro) e ar-gumentação (exposição de ideias com um determinado posicionamento), considerando que a simples opção por uma opinião posiciona o sujeito em relação a um fato. Assim, a narração e a descrição possuiriam também, numa gradação, argumentatividade.

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lantes e estes são sujeitos ativos no processo interacional linguageiro, isto é, são agentes sociais que, de modo dialógico, constroem senti-do, de acordo com um agir estratégico (KOCH, 2010).

De um lado dessa interação, está o leitor que, mobilizará uma série de conhecimentos, atuando cooperativamente, na tentativa construir sentidos a partir das “pistas” verbais, materializadas no tex-to. Do outro, está o autor que atuará sobre os recursos linguísticos disponíveis, lançando mão de uma série de estratégias de organiza-ção textual, orientando o leitor por meio de “pistas”, no intuito de concretizar seu propósito de dizer. Assim constrói-se a ideia de auto-res e leitores estrategistas (KOCH, 2006).

Com isso, ser estrategista é ser atuante no jogo da linguagem, na tentativa de alcançar seus objetivos comunicativos. Essa perspec-tiva perfaz um caminho que prevê uma indissociável relação entre leitura, gramática, léxico e produção de textos.

Abre-se, a partir dessa visão, espaço, nas aulas de língua, para ampliar a noção de argumentação e de estratégias para concretizá-la. É, nesse sentido, que a exploração dos campos lexicais e dos neolo-gismos pode surgir como uma dessas estratégias, que visam ao de-senvolvimento da competência lexical (em sentido restrito) e da competência linguística (em sentido amplo) dos estudantes, pois par-te da exploração de recursos linguísticos com finalidade intencional e expressiva, mobilizando usos criativos.

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MORTE E VIDA PROEJA LEITURA, ESCRITA E EXPERIÊNCIA DE VIDA

Aytel Marcelo Teixeira da Fonseca (UERJ e FCCAA) [email protected]

José Enildo Elias Bezerra (IFAP) [email protected]

1. Introdução

Nosso objetivo, com o presente trabalho, consiste em relatar uma experiência de leitura e de produção de texto literário com alu-nos da modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos) de um insti-tuto federal de ensino técnico em Pernambuco. O ponto de partida foi o Morte e Vida Severina, do também pernambucano João Cabral de Melo Neto, e o ponto de chegada, a peça Morte e Vida PROEJA, dos próprios estudantes.

Pretendemos ainda, por meio do relato, evidenciar a necessi-dade de se considerarem as especificidades do público da EJA no processo de ensino-aprendizagem, o que aponta para uma formação mais sólida dos professores, principalmente de língua portuguesa.

Com vista a tornar a prática pedagógica mais eficiente, base-amo-nos nas concepções teóricas desenvolvidas por Cosson (2009), Jouve (2002), Lerner (2002) e Soares (2010).

2. Perfil dos alunos

Os estudantes envolvidos no trabalho estavam matriculados, em julho de 2010, nos cursos de mecânica industrial e de refrigera-ção de um programa de jovens e adultos (PROEJA) do Instituto Fe-deral de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco.

Tinham idades variadas, de 25 a 55 anos, o que justifica a di-versidade de experiências de vida existente em sala de aula. Mas em vez de conflitos de geração, solidariedade e entrosamento.

Grande parte deles interrompeu os estudos na juventude, por variados motivos: necessidade de trabalhar para sustentar a família (a

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principal razão), falta de interesse pela escola, escassez de unidades de ensino etc.

Agora, eles retornam à sala de aula e esperam acolhimento e um ensino que mantenha coerência com suas reais necessidades, co-mo, por exemplo, a melhoria nas condições de trabalho, almejando maiores salários e, consequentemente, mais qualidade de vida.

Outra constatação relevante diz respeito ao histórico limitado de leituras de textos literários. Muitos dos estudantes nunca tinham lido qualquer romance ou livro de poema, apresentando dificuldades na construção de sentidos e mesmo alguma resistência inicial ao tra-balho com a obra de João Cabral de Melo Neto.

3. O desafio

A resistência inicial de alguns estudantes à leitura de texto li-terário aguçou ainda mais nosso desejo de superar o desafio a que nos lançamos.

Pretendíamos ler efetivamente a obra Morte e Vida Severina, de modo a considerar as vivências do aluno, que precisa alcançar não apenas o sentido, resultado do deciframento da obra, mas também (e sobretudo) a significação, relacionada à maneira particular como re-age ao texto, que detém o poder de mudar a existência do sujeito (JOUVE, 2002).

Em outras palavras, não nos daríamos por satisfeitos apenas com o falar sobre a obra, com uma explicação para cada verso (pro-cesso comum nas escolas), almejávamos ainda o falar com a obra, ou seja, o diálogo estabelecido entre o criado no universo literário e o existente na vida do aluno, respondendo às indagações: como o li-vro pode mudar a existência do estudante? O que há do leitor-aprendiz nesse texto, de modo que, ao chegar à última página, ele a-prenda mais sobre si mesmo?

Por trás desse objetivo, nossa crença na ideia de que, quanto mais o leitor se identifica com o texto, melhor e mais proveitoso será o processo de construção de sentidos.

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4. O estigma

Todo desafio pressupõe obstáculos. O primeiro advém dos materiais didáticos disponíveis, raramente voltados para as particula-ridades da EJA, ora com uma linguagem infantilizada, ora saturados de conteúdos, nomenclaturas, exercícios repetitivos, que em nada sa-tisfazem as necessidades dos discentes.

Por tal motivo, ao procurarmos materiais didáticos para fun-damentar e facilitar nosso projeto, não tivemos êxito. Em relação ao trabalho com a leitura, observamos, quase sempre, o estudo de frag-mentos de textos, resumos de obras do cânone e o predomínio de textos referenciais, informativos, com pouquíssimo destaque para poemas e contos, por exemplo.

Além disso, enfrentamos um desafio maior: a superação de um estigma, reforçado pelo senso comum e mesmo por outros pro-fessores da instituição federal de ensino: “EJA não precisa de Litera-tura”, “Esses alunos nunca conseguirão ler um texto mais denso”.

Nessas afirmações, exemplos de preconceito. Por um lado, subestima-se a capacidade do aluno e limita-se seu objetivo ao estu-dar, como se seu interesse fosse apenas por melhores oportunidades no mercado profissional, sem necessitar do prazer estético propor-cionado por uma obra de arte. Por outro lado, supervaloriza-se o tex-to literário, considerado o “suprassumo cultural”, algo disponível pa-ra um público seleto, comprovando uma atitude claramente elitista.

Se os estudantes não leem textos literários, realidade que en-frentamos em sala de aula, não é por uma incapacidade cognitiva ou algo parecido, mas justamente por esses dois motivos apontados (en-tre outros tantos): materiais didáticos inadequados e professores des-crentes e detentores de uma visão estreita sobre ensino.

5. A importância da Literatura: o Letramento Literário

A concepção de letramento literário (COSSON, 2009), à qual recorremos durante o projeto, desfaz, sem muito esforço, as ideias equivocadas que ouvimos sobre a relação entre EJA e literatura.

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Letramento literário é um tipo específico de letramento, termo já bastante conhecido pelos educadores. Nas palavras de Soares (2010, p. 39), letramento é o “resultado da ação de ensinar a apren-der as práticas sociais de leitura e escrita”; ou seja, é mais que apenas conhecer o código linguístico, por englobar o uso da língua em de-terminada situação comunicativa.

Assim, um indivíduo pode ser alfabetizado, mas não ser letrado:

Alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; já o indiví-duo letrado, o indivíduo que vive em estado de letramento, não é só a-quele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura, a escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às deman-das sociais de leitura e de escrita (Idem, p. 40).

Uma compreensão equivocada de letramento permite concluir que somente aqueles textos com uma função social bem definida (manual de instrução, bula de remédio, notícia, etc.) contribuem para a formação do estudante. Já os textos literários, em patamar elevado, não participariam do processo de letramento, existiriam apenas para a contemplação.

Por isso, a necessidade de especificar o letramento literário, que deve responder às seguintes perguntas: de que maneira a literatu-ra contribui para a atuação social do leitor? Por que ler um romance ou um poema?

Cosson (2009, p. 17) responde:

A experiência literária não só nos permite saber da vida por meio da experiência do outro, como também vivenciar essa experiência. Ou seja, a ficção feita palavra na narrativa e a palavra feita matéria na poesia são processos formativos tanto da linguagem quanto do leitor e do escritor. Uma e outra permitem que se diga o que não sabemos expressar e nos fa-lam de maneira mais precisa o que queremos dizer ao mundo, assim co-mo nos dizer a nós mesmos.

Dessa forma, a literatura aumenta a percepção de nós mesmos e do mundo, e potencializa nosso diálogo com ele. A partir da expe-riência relatada por outros, aprendemos mais sobre esse mistério que é a vida. Ler, de fato, pode ser tornar-se mais humano.

Além disso, na literatura, tomamos contato com a linguagem em estado de criação. Daí o encantamento por uma rima, por uma

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construção sintática melódica ou inusitada, por um casamento inédi-to entre substantivos e adjetivos...

Por esses motivos, em protesto às declarações preconceituo-sas e infundadas, reforçamos a fala de Cosson (Idem, p. 18):

É por possuir essa função maior de tornar o mundo compreensível transformando sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas que a literatura tem e precisa manter um lugar especial nas escolas.

6. A superação

A prática pedagógica com Morte e Vida Severina ancorou-se no trabalho com projeto (LERNER, 2002).

O projeto caracteriza-se por envolver todos os alunos da tur-ma que, dentro de um prazo combinado em equipe e seguindo etapas previamente programadas, caminham para um ponto de chegada em comum, para um determinado produto final (produção de um vídeo, montagem de um jornal, encenação de uma peça etc.).

Organizamos o projeto em três etapas, muito bem delimitadas.

6.1. 1ª etapa: foco na oralidade

Morte e Vida Severina foi lido coletivamente em sala de aula. No decorrer das atividades, instigamos os alunos a falarem sobre o que liam e ouviam.

Como eles conheciam os aspectos geográficos e climáticos re-tratados no texto de João Cabral de Melo Neto, a compreensão do poema ficou mais fácil e prazerosa.

Os estudantes, identificando-se com as situações vividas por Severino, chegavam a diferentes conclusões. Todas tiveram sua im-portância registrada, enriquecendo muito mais a aula.

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6.2. 2ª etapa: foco na escrita

Com base nos relatos orais, os alunos redigiram textos, ex-pondo a toda turma e ao professor opiniões, impressões, lembranças revividas durante o contato com o poema.

Trabalhamos com os gêneros discursivos “resenha” e “auto-biografia”. Por meio deles, os estudantes relacionavam a história de Severino com suas próprias vidas, aprofundando a compreensão do texto.

Mais que atividade valendo nota, “redação escolar”, todos es-ses textos foram oportunidades de nos aproximarmos melhor dos a-lunos, que tiveram autorização (poucas vezes dada, infelizmente) de escrever, entre os muros da escola, sobre suas próprias experiências de vida, visões de mundo, tendo ao lado leitores interessados.

6.3. 3ª etapa: releitura do poema

Por iniciativa dos discentes, construiu-se a peça Morte e Vida PROEJA, título que expressa uma nova interpretação da obra de João Cabral: a morte significando a desistência, a evasão escolar de mui-tos colegas, que abriram mão de concluir os estudos; e a vida repre-sentando a renovação da luta por dias melhores, a busca por solução para tantas inquietudes surgidas diante de dificuldades enfrentadas dentro da própria instituição, como a inadequação dos métodos de ensino às peculiaridades do público da EJA.

Na peça, os alunos viraram Sereverinos e a travessia do rio Capibaribe foi representada, metaforicamente, pela superação dos preconceitos sofridos por eles desde o primeiro contato com o insti-tuto de educação.

Traduziram-se as palavras de João Cabral de Melo Neto:

Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?

(Texto de João Cabral de Melo Neto)

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Os alunos escreveram:

Seu José, mestre carpina, Tô pensando em desistir. Não se tem compreensão cá Alguns dizem que a velho não se ensina Ele já deu tudo que tem pra dá.

Nesses poucos versos, um protesto contra a discriminação que enfrentam cotidianamente.

Em outro momento da peça, um diálogo com um interlocutor, Severino explicita as dificuldades que precisa superar, como quase todos os colegas da turma, para continuar os estudos.

Interlocutor

Abriu o vestibular. Ora, vai lá. É um programa do governo. Você volta a estudar.

Severino

Poxa, faz tanto tempo. A memória faz falhar. Já não tenho conhecimento. O que tem pra mim lá?

Interlocutor

A oportunidade é essa. Você vai alcançar. E ainda não tem que pagar. Além de tudo, vale a pena tentar.

Severino

Sei não... Não sei no que vai dar. Sou pai de família. Trabalho. Cinco filhos pra criar. Como posso estudar?

Além dos textos, os estudantes produziram o cartaz de divul-gação, o figurino e o cenário. Envolvimento total com o projeto.

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7. Considerações finais

A partir da experiência que vivenciamos, podemos tirar, no mínimo, três conclusões.

– O aluno, sem a imposição de uma leitura correta, buscou seu próprio significado para a obra. Participou ativamente da construção de sentidos, porque se reconheceu nas palavras de João Cabral. Parte de sua vida estava ali nas páginas.

– Morte e Vida Severina possibilitou aos estudantes manifes-tarem suas críticas em relação à própria escola. A visão de mundo ficou mais crítica. Em outras palavras, passaram pelo processo de letramento literário.

– Além disso, os alunos envolvidos puderam reconstruir a i-magem que faziam de si mesmos, vendo-se agora capazes de usufruir o prazer estético do texto literário e de aprender for-mas de expressão oral e escrita diferentes das que praticam no dia a dia.

De fundamental importância foi o papel desempenhado pelo professor, o que enfatiza a necessidade de se repensar a formação desse profissional:

O professor de Literatura não pode subscrever o preconceito do tex-to literário como monumento, posto na sala de aula apenas para reverên-cia e admiração do gênio humano. Bem diferente disso, é seu dever ex-plorar ao máximo, com seus alunos, as potencialidades desse tipo de tex-to (COSSON, 2009, p. 29).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.

JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

LERNER, Délia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o ne-cessário. Porto Alegre: Artmed, 2002.

SOARES, Magda Becker. Letramento: um tema em três gêneros. Be-lo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

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MOSAICOS EPISTOLARES NA MPB

Luciana M. do Nascimento (UFAC) [email protected]

João Gabriel Lopes de Brito (UFAC)

1. Introdução

Podemos afirmar que as letras de música constituem textos poéticos, se as lermos sob a perspectiva dos estudos sobre as funções da linguagem de Roman Jakobson ou sob a ótica dos estudos de Oc-tavio Paz sobre a linguagem da poesia, em especial, seu famoso en-saio “poesia e poema”. Neste ensaio, o crítico e poeta mexicano nos ensina que poesia é essência, sendo que esta não se realiza apenas num poema canônico, mas em muitos outros espaços, como na músi-ca, na pintura, na prosa etc. Podemos observar que as letras de músi-ca, sem dúvida, são constituídas de recursos estilísticos que cum-prem a função de despertar fantasias e emoções no ouvinte e tais re-cursos poéticos se fazem presentes no modo de organização do dis-curso. Como bem afirma Eneida Maria de Souza:

(...) Não causa mais espanto o fato de a literatura brasileira e, especi-ficamente, a poesia brasileira, conceber a música popular como parte in-tegrante de seu cânone (...). Em decorrência da abertura nos estudos se-miológicos e culturais, respectivamente a partir dos anos 1960 e 1980, a hegemonia da abordagem literária – voltada para a exclusividade de tex-tos representativos da literatura – começa a ceder terreno para o caráter interdisciplinar e pluralista das manifestações artísticas. (SOUZA, 2002, p. 147)

Tradicionalmente, o discurso lítero-musical tem sido estudado pelos departamentos de literatura das universidades ou por críticos li-terários que também são escritores (poetas, romancistas ou drama-turgos). Há diversos autores que escreveram importantes textos sobre a música popular brasileira e fizeram relevantes reflexões sobre a música e sua vinculação à poesia, podemos cita alguns deles, a saber: Affonso Romano de Sant'Anna (1986), Augusto de Campos (1968), José Miguel Wisnik (1996), dentre outros. Affonso Romano de Sant'Anna:

Os textos de música popular brasileira passaram a ser estudados ro-tineiramente nos cursos de literatura de nossas Faculdades de Letras. Isto

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se deve a uma expansão da área de interesse dos professores e alunos, e a uma confluência entre música e poesia que cada vez mais se acentua desde que poetas como Vinícius de Morais voltaram-se com força total para a música popular e que autores como Caetano e Chico se impregna-ram de literatura (SANT´ANNA, 1986, p. 99).

Muitos autores realizaram as duas práticas simultaneamente, a saber: o fazer literário e a composição musical. Um exemplo mode-lar dessa prática foi o caso do letrista, compositor e poeta Vinícius de Moraes. Ele iniciou seu trabalho artístico com a canção “Loura ou morena” (1932), um ano antes da Publicação de seu primeiro livro de poesias, “Caminhos para a distância” (SANT´ANNA, 1986, p. 214).

Sendo Vinícius também músico, o seu trabalho com a literatu-ra aliou as duas práticas, tendo em vista a grande quantidade tanto de letras de música quanto de poesias publicadas, tendo frequentado tanto os círculos de poetas quanto os de músicos. É consenso nos meios literários que a origem de trabalho de Vinícius está na literatu-ra, como atestam as palavras de Affonso Romano de Sant´Anna: “a análise global da obra de Vinícius de Moraes talvez pertença mais aos estudos literários propriamente ditos, porque ele está comprome-tido, na origem com esses valores culturais elitistas e tradicionais”. (SANT’ANNA, op. cit., p. 215)

Será objeto de nosso estudo, a linguagem poética aliada aos estudos das técnicas de composição e estruturação utilizadas pelos músicos (Vinícius de Moraes e Djavan), além de verificarmos tam-bém as relações intertextuais presentes nas canções “Samba em pre-lúdio”, de Vinícius de Moraes e Baden Powell e “A Carta”, de Djavan.

2. Gênero carta

De acordo com Bakthin, em todas as esferas de comunicação utilizamos um gênero específico para determinada situação de uso da língua, sendo a enunciação um produto da inter-relação social:

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de se sur-preender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. (BAKTHIN, 1995, p. 248)

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A música como forma de comunicação artística se apropria de gêneros típicos da comunicação cotidiana, como é o caso do gênero carta, presente na canção “Samba em prelúdio”, de Vinícius de Mo-raes e Baden Powell, composta em 1962.

Na canção “Samba em prelúdio”, de Vinícius de Moraes, com a parceria de Baden Powell, sobressai um elemento de grande impor-tância, a começar pelo título “Samba” e “Prelúdio”, como veremos a seguir. O samba é um gênero musical de raízes africanas, que remon-ta ao séc. XVII, na Bahia onde escravos originários de Angola e do Congo aportaram, difundindo suas rodas de Semba, cuja tradução se-ria umbigada. (GONÇALVES; COSTA, 2000). O Samba sofreu um processo de urbanização gradual, mas já apresentando como traços característicos, a marcação binária e um ritmo fortemente sincopado (GROVE, 1994).

Como composição feita em plena efervescência da Bossa No-va, “Samba em Prelúdio” apresenta-se como um samba em tom me-nor; já o prelúdio constitui um movimento musical destinado a pre-ceder uma obra maior ou grupo de peças. Os prelúdios evoluíram a partir de improvisações feitas pelos instrumentistas para testar a afi-nação, o toque e o timbre de seus instrumentos. (GROVE, 1994). No prelúdio de “Samba em Prelúdio”, pode-se observar uma espécie de carta-confissão endereçada à amada. Tal gênero textual corresponde um meio útil para manter a comunicação. Mesmo à distância, a carta proporciona a interação entre duas ou mais pessoas, pois pode ser es-crita ou lida colaborativamente, sendo que de modo geral, é enviada de um indivíduo para outro. É uma forma de comunicação muito presente nas obras literárias, não só nos próprios romances epistola-res, ou seja, naqueles escritos sob a forma de cartas, gênero que flo-resceu no século XVIII, mas também perdurando com alguns inter-textos, nos romances do século XIX. Lembremos alguns exemplos, tais como “A Moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo ou “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco, sendo esse dois romances de fins do século XIX, que apresentam como Leit Motiv, a escrita de uma carta. Ressalte-se também a presença da epistolografia na Bí-blia, com a exortação dos povos ao Cristianismo.

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Pode-se dividir a canção-poema “Samba em Prelúdio” em du-as partes: “prelúdio”, parte lírica, de Vinícius de Moraes e o “sam-ba”, a segunda parte, que foi composta por Baden Powell.

No texto, de modo geral, predomina um sujeito poético que se expõe sem medidas, manifestando um amor-adoração, típico das cantigas dos trovadores medievais. No tocante amor medievo, Ale-xandre Pinheiro Torres atesta que na manifestação lírica nesse perío-do, o amor surge como o grande e sempre eterno tema da poesia tro-vadoresca, o qual se manifestou na sociedade feudalista e tornou-se conhecido ainda pela expressão “amor cortês”. É por meio do “amor cortês” que o trovador poetiza um atroz sofrimento de amor, as fa-mosas “coitas de amor” (penas de amor). (TORRES, 1997, p. 5-7). A tradicional e feliz combinação entre música e poesia foi popularizada pelas cantigas trovadorescas. Nesse cenário, trovadores e menestréis eram sinônimos de poetas. Com relação aos trovadores, o crítico por-tuguês afirma que nos tempos medievos, o trovador utilizava de téc-nicas musicais bem sofisticadas, pois os poemas eram escritos sem-pre com certo rigor no que diz respeito às questões métricas e rítmi-cas, não havendo, dessa forma, espaço para a liberdade nas composi-ções.

Vinícius nos fala de um amor de caráter submisso para com sua amada, tornando-se passivo e refém do sentimento que possui. Nesse caso, diferentemente das cantigas medievais, encontramos um homem sofredor que apesar de atrelar sua existência à amada, tam-bém compara a não concretização desse amor a algumas ações im-possíveis de ocorrer no plano material, o que pode ser observado a partir de expressões, como ‘’chama sem luz‘’, por exemplo.

Essa carta-confissão tem suas origens na própria criação da música, pois, inicialmente, Vinícius e Baden possuíam apenas a mú-sica e, segundo narra o filho de Powell, ao final de uma noite regada à whisky, o poetinha, escreveu rapidamente um poema em uma folha de papel e estava pronto o “Samba em Prelúdio”. Conforme narra o filho de Baden Powell, assim surgiu a composição de “Samba em prelúdio”:

Toda música tem uma história, era o que o Baden costumava dizer sobre sua parceria com Vinicius de Moraes. Dentre as várias histórias que ouvi ele contar em shows e em casa, tem uma que considero especial

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– sobre uma das mais belas e conhecidas canções de Baden e Vinícius. Resolvi manter a versão original do fato tal como o papai contava.14

Prelúdio

Eu sem você Não tenho porque Porque sem você Não sei nem chorar Sou chama sem luz Jardim sem luar Luar sem amor Amor sem se dar. Eu sem você Sou só desamor Um barco sem mar Um campo sem flor Tristeza que vai Tristeza que vem Sem você, meu amor, eu não sou ninguém.

Samba

Ai, que saudade Que vontade de ver renascer nossa vida Volta querida (querido) Os teus braços precisam dos meus. Meus braços precisam dos teus. Estou tão sozinho (sozinha) Tenho os olhos cansados de olhar para o além Vem ver a vida Sem você, meu amor, eu não sou ninguém.

Podemos notar ao logo do “Prelúdio”, o predomínio do ilógi-co no amor, ao observarmos os pares: “chama sem luz”; “barco sem mar”; “campo sem flor”. Tais pares expressam diversas situações, a saber: a analogia do sujeito poético aos elementos da natureza, a au-sência da pessoa amada, que metaforicamente é expressa como ele-mento de aniquilação da beleza de tal natureza, sendo que o sujeito desejante conclui seu prelúdio com a total anulação de si: “Sem vo-cê, meu amor, eu não sou ninguém”.

14 Disponível em: http://meuespasmo.blogspot.com/2009/11/boa-historia-de-samba-em-preludio.htm. Acesso em: 11/12/2010)

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No “samba”, o sujeito poético prossegue clamando pela au-sência da pessoa amada, porém, diferentemente do “prelúdio”, o eu lírico clama pela volta dessa pessoa, num movimento de memória: “Que vontade de ver renascer nossa vida / Volta querida (querido) / Os teus braços precisam dos meus. / Meus braços precisam dos teus”, mostrando que o encontro amoroso pode se concretizar, afas-tando-se da confissão do “prelúdio” e ao final, o sujeito poético con-clama à pessoa amada a “ver a vida”, utilizando-se da possibilidade de anulação de si como estratégia de convencimento dirigida àquela: “Sem você, meu amor, eu não sou ninguém.”

2.1 Alguns elementos da estruturação musical

Samba em Prelúdio

Intro: Am7

Am7 E7 Eu sem você não tenho porque A7 Dm7 Porque sem você não sei nem chorar Bm5-/7 E7 Am7 Sou chama sem luz, jardim sem luar B7 E7 Luar sem amor, amor sem se dar Am7 E7 E eu sem você sou só desamor A7 Dm7 Um barco sem mar, um campo sem flor Bm5-/7 E7 Am7 Tristeza que vai, tristeza que vem B7 E7 Am7 E7 Sem você, meu amor, eu não sou ninguém Am7 E7 A7 Dm7 Ai que saudade, que vontade de ver renascer nossa vida Bm5-/7 E7 Am7 B7 Vol ... ta querida, os teus braços precisam dos meus E7 Meus abraços precisam dos teus Am7 E7 A7 Dm7 Estou tão sozinho, tenho os olhos cansados de olhar para o além Bm5-/7 E7 Am7 Vem ver a vida Sem você, meu amor, eu não sou ninguém

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Ritmo melódico: Melodia, ritmo e harmonia são considerados os três elementos fundamentais da música; encará-los como inde-pendentes, seria uma simplificação excessiva. O ritmo é componente importante da própria melodia não apenas porque cada nota tem uma duração, mas também porque a articulação rítmica numa escala mais ampla lhe dá forma e vitalidade; por outro lado, a harmonia geral-mente desempenha papel essencial, ao menos na música ocidental, na determinação do contorno e direção de uma linha melódica, cujas implicações harmônicas podem, por sua vez, dar vida á melodia.

Ritmo: A subdivisão de um lapso de tempo em seções percep-tíveis; o agrupamento de sons musicais, principalmente por meio de duração e ênfase. Com a melodia e Harmonia o ritmo é um dos três elementos básicos da música. (Grove).

Segundo Schafer, ritmo é algo mais orgânico e sensorial, con-forme explica em seu livro “O ouvido Pensante”: “O ritmo é a dire-ção. O ritmo diz: “eu estou aqui e quero ir para lá”. Ainda de acordo com o autor, originalmente Ritmo e rio estavam etimologicamente ligados, sugerindo mais o movimento de um trecho do que sua divi-são.

No caso da Música “Samba em Prelúdio”, temos este “fluir” na forma de samba, que como foi dito anteriormente, trata-se de uma divisão temporal binária e sincopada.

Harmonia: É a combinação de notas soando simultaneamente, para produzir acordes e sua utilização sucessiva para produzir pro-gressões de acordes. (GROVE, 1994). Juntamente com a harmonia e como consequência desta, aparece o que chamamos de tonalidade. De acordo com Grove, o termo designa a série de relações entre no-tas, em que uma em particular, a “tônica”, é central. O termo se apli-ca mais comumente ao sistema utilizado na música erudita ocidental, do séc. XVII ao XX. Nesse sistema, diz-se que a música tem uma de-terminada tonalidade, quando as notas predominantemente utilizadas formam uma escala maior ou menor, a tonalidade é a da tônica ou nota final dessa escala, e é maior ou menor segundo as alturas das notas que a escala abrange. (GROVE, 1994)

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3. Djavan e “A Carta”

Seguindo o exemplo de Vinícius, temos um autor como Dja-van, sendo este pertencente a um grupo da MPB mais recente, que por seu turno, pode ser considerado como Poeta, compositor e músi-co, sem prejuízo do discurso poético ou da estruturação musical.

A canção “A Carta”, de Djavan, foi composta em 1998 em parceria com Gabriel, o Pensador e tem como eixo temático a junção e a dinâmica de gêneros distintos entre si na cena poética. Fazemos aqui um parêntese, ao nos remetermos, a título de exemplo, à carta-ensaio, de E.M. Melo e Castro. (Apud. Galvão e GOTLIB, 2000). MELO e CASTRO nos fornece bons elementos para o estudo da di-nâmica comunicativa da carta e como texto sob a forma de carta po-de se diluir em outros gêneros textuais, tornando-se um outro texto que já não é mais a carta nem o ensaio. A carta constitui um tipo es-pecífico de interação, um processo de comunicação com suas parti-cularidades, sendo, portanto, diferente, por exemplo, do telegrama, do telefonema, do fax, do e-mail, da conversação face a face.

Na canção de Djavan, não só o título nos fornece indícios do gênero epistolar, como também a estrutura das notícias que vão sen-do dadas passo a passo, para um possível interlocutor distante. Pri-meiramente, a música se abre com os conselhos de bem viver de um sujeito poético, que se põe a ler uma carta para o seu possível inter-locutor. Inclusive, ressalte-se que a citação da “carta” é feita entre aspas, o que nos mostra a presença da citação, ainda que de caráter ficcional do discurso de outrem como processo intertextual. Tal cita-ção cumpre a função de conferir relevância às notícias enviadas do Brasil ao sujeito poético, sendo que nesse momento, a música modi-fica seu arranjo melódico para um tom mais próximo da fala, bem como se aproxima da estrutura do Rap, com todos os seus elementos de contestação.

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3.1 Elementos da estruturação musical

A Carta

C#m7 D#m7 E7M D#m7 Não vá levar tudo tão a sério C#m7 D#m7 E7M D#m7 Sentindo que dá, deixa correr C#m7 D#m7 E7M D#m7 Se souber confiar no seu critério C#m7 D#m7 E7M D#m7 Nada a temer C#m7 D#m7 E7M D#m7 Não vá levar tudo tão na boa C#m7 D#m7 E7M D#m7 Brigue para obter o melhor C#m7 D#m7 E7M D#m7 Se errar por amor Deus abençoa C#m7 Seja você A7(9) G#m7 C#7(9) No que sua crença vacilou A7(9) G#m7 C#7(9) A flor da dúvida se abriu F#m7 B7(9) G#m7 Vou ler a carta que o Biel mandou C#7(9) Pra você, lá do Brasil: A7(9) OBS: Trecho cantado em (RAP) Eles me disseram tanta asneira, disseram só besteira feito todo mundo diz Eles me disseram que a coleira e um prato de ração era tudo que um cão sempre quis Eles me trouxeram a ratoeira como um queijo de primeira que me, que me pegou pelo nariz Me deram uma gaiola como casa, amarraram minhas asas e disseram para eu ser feliz Mas como eu posso ser feliz num poleiro? Como eu posso ser feliz sem pular? Mas como eu posso ser feliz num viveiro? Se ninguém pode ser feliz sem voar? Ah, segurei o meu pranto para transformar em canto E para o meu espanto minha voz desfez os nós Que me apertavam tanto E já sem a corda no pescoço, sem a grade na janela E sem o peso das algemas na mão Eu encontrei a chave dessa cela

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Devorei o meu problema e engoli a solução Ah, se todo o mundo pudesse saber Como é fácil viver fora, fora dessa prisão E descobrisse que a tristeza tem fim E a felicidade pode ser simples como um aperto de mãoEntendeu? C#m7 D#m7 E7M É esse o vírus que eu sugiro que você contraia D#m7 C#m7 Na procura pela cura da loucura D#m7 E7M D#m7 Quem tiver cabeça dura vai morrer na praia E7M D#m7 C#m7 É esse o vírus que eu sugiro que você contraia D#m7 E7M Na procura pela cura da loucura D#m7 C#m7 D#m7 Quem tiver cabeça dura vai morrer na praia

4. Considerações finais

Ao levantarmos os elementos textuais bem como àqueles re-lacionados à estruturação musical, foi possível perceber a relação en-tre música e poesia bem como a absorção de outros gêneros musicais e textuais em um mesmo texto musical, o que constitui farto material para o professor de Língua Portuguesa e Literatura explorar na sala de aula, na perspectiva do estudo do texto baseado na teoria dos gê-neros discursivos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1968.

Dicionário Grove de Música/ Edição concisa preparada por Stanley Sadie e Alison Latham. Trad. Eduardo Francisco Alves. Rio de Ja-neiro: Jorge Zahar, 1994.

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GONÇALVES, Guilherme; COSTA, Mestre Odilon. O batuque ca-rioca. As baterias das escolas de Samba do Rio de Janeiro.

NORTON, W.W. A History of Western Music. 2. ed. Trad. Ana Luí-sa Faria. Janeiro de 2001.

PAZ, Octavio. A dupla chama, amor e erotismo. São Paulo: Sciliano, 1994.

PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária. São Paulo: Á-tica, 1988.

Revista Livro Aberto. Música e literatura. São Paulo: Cone Sul, n. 7, março-maio, p. 08-16, 1998.

SANT'ANNA, Affonso R. de. Música popular e moderna poesia brasileira. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1978.

SCHAFER, Murray R. O ouvido pensante. Trad. Maria Trench de O. Fonterrada; Magda R. Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal. São Paulo: UNESP, 1991.

SIQUEIRA JÚNIOR. Carlos Leoni R. Letra, música e outras con-versas. Rio de Janeiro: Gryphus, 1995.

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

TATIT, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.

TORRES, Alexandre Pinheiro. Antologia da poesia trovadoresca galego- portuguesa. Porto: Lello & Irmão, 1977.

WISNIK, José Miguel. O som e o sentido – uma outra história das músicas. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.

MELO E CASTRO, E. M. Carta-ensaio. In: GALVÃO, Walnice Nogueira e GOTLIB, Nádia. Prezado senhor, prezada senhora: es-tudos sobre cartas. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

http://meuespasmo.blogspot.com/2009/11/boa-historia-de-samba-em-preludio.htm. Acesso em: 11/12/2010.

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POR UMA PROPOSTA PARA A DIDATIZAÇÃO DE GÊNEROS NO ENSINO FUNDAMENTAL15

Sílvio Ribeiro da Silva (UFG) [email protected] e [email protected]

1. Considerações iniciais

Apresentar uma proposta de trabalho com os gêneros na escola pode não ser tarefa fácil, uma vez que parece não existir muita clareza quanto a isso nem mesmo nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN). No entanto, o que apresento neste pequeno ensaio é o que acredito ser essa proposta, com um trabalho que seria desenvolvido do 6º ao 9º anos do Ensino Fundamental. Espero poder, com isso, incendiar um pouco mais as discussões já existentes sobre o assunto.

2. Didatizando gêneros

Primeiramente, penso ser necessário o professor de língua materna encarar a língua e a linguagem como práticas sociais e lugar de interação entre sujeitos sociais. Faz-se necessário que a sala de aula seja considerada um espaço de produção de linguagem. Ela de-ve ser vista como o lugar onde atividades interlocutivas são construí-das por sujeitos (alunos e seus respectivos professores e alunos/alu-nos). Também é preciso que a linguagem seja entendida como inte-ração, saindo do universo tão amplamente divulgado pela escola de que ela é um simples código estático. É necessário que a língua seja vista enquanto forma de ação social e histórica. O que é comum per-cebermos é uma visão de língua que não a vê como totalidade. Da mesma forma, o texto não é visto enquanto parâmetro da realização linguística. Em segundo lugar, seria preciso que se tivesse certa ori-entação teórica a respeito do gênero.

15 Este trabalho contribui com as investigações referentes às práticas de reflexão sobre a língua desenvolvidas pelos integrantes dos grupos Grupo de Estudos da Linguagem: análise, descrição e ensino (UFG/CNPq) e Livro Didático de Língua Portuguesa – Produção, Perfil e Circulação (UNICAMP/IEL/CNPq).

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Sabe-se que a palavra gênero sempre foi bastante utilizada pe-la Retórica e pela Literatura com um sentido especificamente literá-rio, identificando os gêneros clássicos – lírico, épico, dramático – e os gêneros modernos, como novela, drama, conto etc. Mikhail Bakh-tin – pesquisador russo que, no início do século XX, dedicou-se aos estudos da linguagem e da literatura – foi o primeiro a empregar a palavra gênero com um sentido mais amplo (CADORE, 1996)16.

Para Bakhtin (1974), todos os textos que produzimos, orais ou escritos, trazem em si um conjunto de características relativamente estáveis, por mais que não tenhamos consciência delas. Essas carac-terísticas dão forma a um variado conjunto de gêneros, cuja caracte-rização pode ser feita por três aspectos básicos coexistentes: o tema, a estrutura e o estilo (procedimentos recorrentes de linguagem). Para Bakhtin (1974), os gêneros podem ser divididos em dois grandes grupos: gêneros primários e gêneros secundários. Os primários, em geral mais espontâneos, costumam ser produzidos nas situações cor-riqueiras de comunicação, predominantemente orais, mas não so-mente. Os secundários exigem uma ação discursiva específica, por se apresentarem mais presos a certas situações discursivas formais. A-presentam predomínio da escrita, mas não somente.

As diferentes linhas de pesquisa linguística de orientação ba-khtiniana têm demonstrado que a atuação do professor de língua por-tuguesa no ensino fundamental, quando feita pela perspectiva dos gêneros, não só amplia, diversifica e enriquece a capacidade do alu-no de produzir textos orais e escritos, mas também aprimora sua ca-pacidade de recepção, isto é, de leitura/audição, compreensão e in-terpretação de textos (ANTUNES, 2002). Além disso, conscientiza o aluno das funções sociais dos diferentes tipos de texto e seus usos em sua comunidade discursiva (HYON, 1994, apud MOTTA-ROTH, 2000).

O ensino de produção de texto, feito por essa perspectiva, continua a abordar os tipos textuais17 tradicionalmente trabalhados

16 Em minha tese de doutorado, defendida em 2008 no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UNICAMP, apresento ampla discussão sobre a origem dos estudos sobre gênero no mundo.

17 Segundo Marcuschi (2002a, p. 20), o termo tipo textual é usado para designar uma espécie de sequência teoricamente definida pela natureza linguística de sua composi-

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em cursos de redação – a narração, a descrição e a dissertação, in-corporando-os numa perspectiva mais ampla, de variedade de gêne-ros. Defendo a ideia de que o trabalho apenas com os tipos textuais não é totalmente eficiente, vez que oferece problemas para o ensino, tendo em vista que não é possível ensinar narrativa em geral, por-que, embora possamos classificar vários textos como sendo narrati-vos, eles se concretizam em formas diferentes – gêneros – que pos-suem diferenças específicas (BARBOSA, 2000, p. 156). Isso justifi-ca o porquê da prioridade pelo ensino do gênero, não pelo tipo textu-al, embora todo gênero realize necessariamente uma ou mais sequên-cias tipológicas e todos os tipos inserem-se em algum gênero.

Até recentemente, o ensino de produção de textos (muito mais voltado para a perspectiva da redação) era feito como um procedi-mento único e global, como se todos os textos fossem iguais e não apresentassem determinadas dificuldades e, por isso, não exigissem aprendizagens específicas. A metodologia de ensino de escrita, pre-sente nessa prática – a qual consiste no trabalho com a trilogia narra-ção, descrição e dissertação –, tem seus fundamentos baseados uma concepção voltada substancialmente para a obtenção de dois objeti-vos: a formação de escritores literários (caso o aluno se aprimore nas duas primeiras modalidades textuais) ou a formação de cientistas (caso da terceira modalidade) (ANTUNES, 2002). Além disso, essa concepção guarda em si uma visão equivocada de que narrar e des-crever seriam ações mais “fáceis” do que dissertar, ou mais adequa-das à faixa etária, razão pela qual esta última tenha sido reservada às séries finais – tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio.

Meurer (apud MOTTA-ROTH, 2000, p. 169) argumenta em favor de uma visão do ensino de línguas que se baseie no desenvol-vimento da competência de uso de um número crescente de gêneros em termos do desenvolvimento de uma compreensão das práticas discursivas e das relações sociais associadas aos usos de diferentes gêneros. O ensino de produção de texto pela perspectiva dos gêneros garante um resultado mais satisfatório, já que põe o aluno, desde sempre, em convívio com uma verdadeira diversidade textual, com

ção (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas). Os tipos textuais são limitados e o autor os classifica em narração, argumentação, exposição, descri-ção injunção.

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os diferentes gêneros em uso social. Além disso, a aprendizagem de-ve ser em espiral18. Os gêneros devem passar por um processo de progressão, conforme sugerem Dolz e Schneuwly (2004).

Acredito que, no Ensino Fundamental, dentre outros, os gêne-ros que podem ser trabalhados são os seguintes19: o bilhete, a carta, o telegrama, o conto, a lenda, a fábula, a crônica, o poema, a receita, o editorial, a carta argumentativa, a carta do leitor, o texto argumenta-tivo, a entrevista, o texto publicitário, o editorial, a bula, o texto de opinião, o texto científico, o diário, os gêneros virtuais, da esfera di-gital.

Ao falar em gêneros virtuais, da esfera digital, não podemos deixar de considerar o trabalho na escola com o gênero mídia virtual (MARCUSCHI, 2002b), especialmente se levarmos em conta que, atualmente, até mesmo os jovens oriundos de famílias de baixa renda já podem ter acesso ao mundo virtual, frequentando lan houses, on-de, por um preço acessível a quase todos, eles podem ler e enviar e-mails e “frequentar” salas de bate papo, participar de redes sociais, além de jogar e executar outras tarefas.

Concordo com Marcuschi, que não categoriza as home pages como gênero, da mesma forma que não o faz com os jogos interati-vos, uma vez que os primeiros não passam de um catálogo ou uma vitrine pessoal ou institucional, sendo mais bem categorizados como suporte, o mesmo acontecendo com os segundos.

Marcuschi (2002b) diz desconhecer quantos gêneros poderi-am ser identificados na mídia virtual. Entre os gêneros mais conhe-cidos, o autor apresenta os seguintes: 1- e-mail: correio eletrônico na forma com formas de produção típicas; 2- bate-papo virtual em a-berto: inúmeras pessoas interagindo simultaneamente; 3- bate-papo

18 Segundo Dolz e Scheuwly (2004, p. 64), uma proposta de trabalho em espiral é re-levante porque objetivos semelhantes são abordados em níveis de complexidade cada vez maior ao longo da escolaridade. Além disso, um mesmo gênero pode ser aborda-do diversas vezes ao longo da escolaridade, com graus crescentes de aprofundamento.

19 Marcuschi (2002b) diz que não acredita haver gêneros ideais para o ensino de lín-gua. Concordo com ele. Inclusive quando diz que é provável que se possam identificar gêneros com dificuldades progressivas, do nível menos formal ao mais formal, do mais privado ao mais público e assim por diante.

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virtual reservado: variante do item anterior, mas com as falas aces-síveis apenas aos dois selecionados, embora vendo todos os demais em aberto; 4- bate-papo agendado (MSN): variante do item anteri-or, mas com a característica de poder ter sido agendado e oferecer a possibilidade de mais recursos tecnológicos na recepção e envio de arquivos, como, por exemplo, o fato de o receptor ter a possibilidade de ver, ao vivo, a imagem do interlocutor; 5- bate-papo virtual em salas privadas: sala privada com apenas os dois parceiros de diálogo presentes, uma espécie de variação dos bate-papos de tipo 2; 6- en-trevista com convidado: forma de diálogo com perguntas e respos-tas num esquema diferente dos anteriores; 7- aula virtual: interações com número limitado de alunos tanto no formato de e-mail ou de ar-quivos hipertextuais com tema definido em contatos geralmente as-síncronos; 8- bate-papo educacional: interações síncronas no estilo dos chats com finalidade educacional, geralmente para tirar dúvidas, dar atendimento pessoal ou em grupo e com temas prévios; 9- video-conferência interativa: realizada por computador e similar a uma interação face a face, usa a voz pela rede de telefonia a cabo; 10- lis-ta de discussão: grupo de pessoas com interesses específicos, que se comunicam em geral de forma assíncrona, mediada por um respon-sável que organiza as mensagens e, eventualmente, faz triagens; 11- endereço eletrônico: o endereço eletrônico, seja o pessoal para e-mail, seja para home-page, tem hoje características típicas, e é um gênero (MARCUSCHI, 2002b, p. 11).

Sobre os gêneros virtuais que ainda não foram incluídos no trabalho escolar, convém dizer, concordando com Schneuwly e Dolz (2004, p. 80), que a introdução de um gênero na escola é o resultado de uma decisão didática que visa objetivos precisos de aprendizagem que são de dois tipos: a) trata-se de aprender a dominar o gênero, primeiramente, para melhor conhecê-lo ou apreciá-lo, para melhor saber compreendê-lo, para melhor produzi-lo na escola ou fora dela e, b) em segundo lugar, para desenvolver capacidades que ultrapas-sam o gênero e que são transferíveis para outros gêneros próximos ou distantes. Isso tem ocorrido com os gêneros da esfera virtual des-de que foram incluídos na escola.

Convém ressaltar que, segundo Koch (2002), a escolha do gênero se dá em função dos parâmetros da situação que guiam a a-ção. Além disso, como afirmam Schneuwly e Dolz (2004), a adapta-

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ção da escolha dos gêneros deve ser feita de acordo com a situação de comunicação, com as capacidades de linguagem apresentadas pe-los alunos. Os autores dizem, ainda, que é a situação de comunicação a geradora, quase automática, do gênero, e este não é descrito, sequer ensinado, mas aprendido pela prática de linguagem escolar, através das definições próprias à situação e das interações; o gênero nasce da situação.

Por que sugerir o trabalho com os gêneros anteriormente aqui elencados e não com outros? É preciso que se trabalhe com gêneros que sejam fundamentais para a composição de textos que se concre-tizem nesses e noutros gêneros. A utilização que o aluno fará desses gêneros pela vida afora reforça a escolha pelos aqui colocados. Sch-neuwly e Dolz (2004) defendem a ideia de que, na escola, devem ser reproduzidas situações de práticas de linguagem cujo objetivo será fazer com que o aluno domine, o mais perfeito possível, o gênero correspondente à prática de linguagem para que, instrumentado, pos-sa responder às exigências comunicativas com as quais será confron-tado.

Ao final do Ensino Fundamental, o aluno teria convivido com pelo menos, vinte gêneros e com a possibilidade de ter visto uma média de cinco por série, os quais teriam sido estudados, analisados e produzidos a partir de orientações sistemáticas. Seria possível a e-laboração e o desenvolvimento de uma espécie de grade programáti-ca de gêneros. À medida que os anos escolares fossem passando, o aluno iria percebendo a necessidade de uma sistematização melhor com os gêneros já estudados, e a necessidade de conhecimento de novos gêneros, conforme fosse a solicitação de sua atuação social.

Deve-se ter consciência de que a transferência de um gênero para a escola, como a bula, por exemplo, implica em transformação, já que ele sofreu uma mudança de lugar social, diferente da sua ori-gem. Nessa mudança, o gênero não tem mais o mesmo sentido (S-CHNEUWLY; DOLZ, 2004). Não se pode esquecer de que alguns desses gêneros podem ocorrer tanto na modalidade oral quanto na escrita (a entrevista ou o texto publicitário, por exemplo). Nesse ca-so, o interessante é o desenvolvimento de um trabalho com as duas modalidades, mostrando aos alunos as especificidades de cada um nessas modalidades.

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O ensino-aprendizagem de produção de texto pela perspectiva dos gêneros direciona o papel do professor de língua materna atual para outro caminho. Atualmente, ele deixou de ser visto como um especialista em textos literários ou científicos, distantes da realidade e da prática textual do aluno, passando a ser visto como um especialista em diferentes modalidades textuais, orais e escritas, necessárias para a vivência social. Dessa forma, a sala de aula torna-se uma oficina de textos de ação social, cuja concretização se dá a partir da realização de alguns projetos de trabalho e da adoção de certas estratégias didáticas.

O ato de escrever na escola deve ser democratizado: todos os alunos do ensino fundamental devem aprender a produzir variados gêneros. É possível que um aluno, ao se apropriar dos procedimentos que envolvem a produção de um texto narrativo, não apresente tanta habilidade quanto outro aluno, mas ele poderá dar indícios de que argumenta com propriedade em textos argumentativos orais (debates) ou escritos.

Penso que o trabalho com os gêneros no ensino fundamental não deve ser limitado apenas ao ato de ler e escrever textos em gêne-ros diferentes. Aos alunos poderia ser proposta, ainda, a atividade de identificação dos gêneros. Defendo essa atividade com base em Mar-cuschi (2002a), quem diz que é importante levar os alunos a analisar eventos linguísticos e a identificar as características de gênero de ca-da um. É um exercício instrutivo e que também permite praticar a produção textual. O autor afirma (p. 35) que seria muito interessante e produtivo pôr na mão do aluno um jornal diário ou uma revista se-manal e propor a seguinte tarefa: identifique os gêneros textuais aqui presentes e diga quais são as suas características centrais em termos de conteúdo, composição, estilo, nível linguístico e propósitos. Con-forme diz ele, essa atividade, por mais modesta que seja a análise fei-ta pelos alunos, será sempre muito promissora.

A atividade de identificação do gênero serviria para que o a-luno percebesse que os textos funcionam dentro de um determinado grupo, refletindo um comportamento social (ANTUNES, 1996, p. 366).

Ao aluno seriam solicitadas as seguintes tarefas após a leitura de textos: a comparação entre eles, o seu agrupamento por uma rela-ção de semelhança e a apresentação de justificativas que explicitas-

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sem as razões que levaram a tal agrupamento. Poderiam ser feitas ao aluno as seguintes perguntas: com relação aos textos apresentados, quais são diferentes? Se diferentes, o que diferencia um do outro? Como você designaria esses textos? Por quê? A orientação básica que deveria ser dada é que o aluno deveria agrupar os textos a partir do modo como eles dizem as coisas, a partir do seu funcionamento textual e discursivo.

Com essa atividade, provavelmente, ele estaria indo além da simples categorização dos textos quanto ao gênero, uma vez que de-veria observar questões relacionadas a quem produz, quem distribui e quem consome variados textos, quais suas intenções implícitas e explícitas e como e por que os textos adquirem coerência.

Ao falar dessa tarefa de identificação de gêneros, busco apoio em Swales (1984, p. 04), quem diz que a análise de gênero ajuda os estudantes a tornarem-se leitores mais críticos e mais perceptivos de seu próprio texto. Se os alunos são conscientes de como um gênero é organizado, tal conhecimento poderá ajudá-los a produzir textos de boa qualidade e capacitá-los a direcionar a sua própria leitura de uma melhor forma (KUSEL, 1992, p. 460). Para Kusel, se o profes-sor orientar os alunos com relação à organização textual, estes de-senvolverão expectativas sobre a forma de estruturar o texto, contri-buindo para uma melhor percepção da sua coerência (ARAÚJO, 1996).

Levando em consideração que os textos que circulam na soci-edade se manifestam sempre em um ou outro gênero, um maior co-nhecimento do funcionamento desses gêneros é importante, tanto pa-ra a produção quanto para a compreensão de textos.

Convém ressaltar que as considerações que faço aqui deveri-am ser observadas pelo professor de língua materna, levando em conta o fato de que, em quaisquer circunstâncias vividas pelo Ho-mem, o uso da linguagem sempre visa à interlocução e ao preenchi-mento de uma necessidade comunicativa. Tendo em vista essa neces-sidade, um trabalho com língua materna, baseado nos gêneros, traria ao aluno não apenas o cumprimento de um ritual escolar, feito a par-tir da orientação do autor do livro, ou do professor, muitas das vezes produzindo textos que não teriam valor efetivo na sua vida social. Ao contrário disso, ele faria textos que seriam instrumentos de interlocu-

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ção dele com os outros. Se o professor faz com que o aluno tenha consciência de como um gênero é organizado, este poderá usar esse conhecimento para produzir textos de boa qualidade e ainda será ca-paz de direcionar a sua própria leitura de uma melhor forma (KU-SEL, 1992).

O trabalho com gêneros pressupõe a hipótese de que eles são instrumentos para agir em situações de linguagem. Dolz e Schneu-wly (2004) dizem que

O trabalho escolar faz-se sobre os gêneros quer se queira ou não. Eles constituem o instrumento de mediação de toda estratégia de ensino e o material de trabalho, necessário e inesgotável, para o ensino da textualidade. A análise de suas características fornece uma primeira base de modelização instrumental para organizar as atividades de ensino que estes objetos de aprendizagem requerem. (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 51)

Na escola, especificamente com o 6º até o 9º ano, o trabalho com os gêneros é uma ferramenta didática interessante, na medida em que o aluno já traz consigo certo conhecimento sobre gênero, uma vez que faz uso dele no seu cotidiano fora da escola. Intuitiva-mente, as pessoas sabem que os textos se desenvolvem em sequên-cias não aleatórias20. Qualquer texto traz consigo indicadores de suas especificidades de gênero. Como as pessoas conseguem, naturalmen-te, pelo menos grande parte delas, identificar o gênero ao qual o tex-to pertence, poderíamos afirmar que a capacidade de identificação dos gêneros faz parte do conhecimento cultural das pessoas, é parte de seu conhecimento de mundo, de seu letramento.

Uma estratégia didática que pode trazer bons resultados é a-proveitar as experiências vividas pelo aluno com os gêneros cotidia-nos e a metalinguagem naturalmente adquirida nas experiências de leitura e produção escrita.

3. Considerações finais

20 Adam desenvolve a noção de sequências textuais tendo por base a hipótese de exis-tência de unidades mínimas de composição textual, ou seja, protótipos, que, agrupa-dos, constituem o produto final. (ALVES-FILHO; SILVA, 2010)

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Ao longo dos anos de escolaridade, o aluno deveria ampliar o contato e a capacidade de uso de um maior número possível de gêne-ros, desde os mais simples até os mais complexos, os quais exigem maiores capacidades para sua construção e consumo, cabendo à es-cola essa tarefa. O trabalho com variados gêneros daria ao aluno a oportunidade de se capacitar para uma atuação comunicativa melhor em alguns tipos de situação e não em outros.

Uma proposta de ensino de língua que prioriza o trabalho com os gêneros traz aos textos uma dimensão concreta. Além disso, as regras linguísticas (gramaticais) deixam de ser apenas artefatos inte-grantes de um texto, passando a apresentar um caráter funcional, sendo percebidas como particularidades pertencentes a cada gênero21.

Fazendo isso, certamente a escola estaria dando ao aluno a oportunidade de se apropriar devidamente de diferentes gêneros so-cialmente utilizados, sabendo movimentar-se no dia a dia da intera-ção humana, percebendo que o exercício da linguagem será o lugar da sua constituição como sujeito (SILVA, 2010). A atividade com a língua, assim, favoreceria o exercício da interação humana, da parti-cipação social dentro de uma sociedade letrada.

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21 Em Silva e Lima (1999), fazemos uma análise do funcionamento textual-discursivo de conectivos nos gêneros textuais bula de remédio, notícia policial de jornal escrito, propaganda publicitária de carro (veiculadas pela revista Veja). Levamos em conside-ração que os conectivos apresentam funcionamento textual-discursivo variado em di-ferentes gêneros textuais.

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SOCIEDADE, IDENTIDADE E LINGUA(GEM) NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Juliana Sousa Trajano (UERJ e PUC-Rio) [email protected]

1. Para início de conversa...

O homem superior é o que permanece sempre fiel à esperança; não perseverar é de poltrões. (EURÍ-PEDES)

Aristóteles, já na Antiguidade Clássica, afirmava que o ser humano é iminentemente social. Salvo raras exceções, como nos ca-sos exemplificados em filmes como L’enfant sauvage – em que a criança, ao nascer, já é afastada do convívio social –, nascemos den-tro de uma sociedade, de uma comunidade, ou seja, já ao nascer caí-mos em uma teia de relações humanas, já estamos relacionados com outras pessoas. Mesmo antes do nascimento somos identificados so-cialmente, sendo a primeira etiqueta a dos laços familiares.

Na escola parece não ser diferente... No convívio, nas intera-ções que ocorrem no ambiente escolar, papéis sociais e identidades são construídos, modificados, reconstruídos e/ou reproduzidos.

Será a escola mera reprodutora da vida, da sociedade fora dos seus muros? Será a escola uma sociedade à parte, em que os indiví-duos que a compõem exerçam, assumam papéis específicos a estes contextos? É possível pensar na existência da instituição escolar sem se considerar as relações humanas entrelaçadas neste meio? Bom, por experiência daquela que escreve o presente texto, pode-se cons-tatar: a escola, apesar de todo e qualquer avanço tecnológico, é um organismo vivo, tendo como fonte de energia o diálogo, sendo cons-tituída por uma enorme e complexa cadeia de vínculos em micro e macroníveis.

Para dar forma e conteúdo a este debate, visando desenvolver algumas reflexões envolvendo a escola, todos aqueles que, ao intera-girem, a constroem, e a sociedade (seja ela dentro ou fora dos muros da escola), estabelecemos logo aqui o grupo, o segmento a ser foca-lizado ao longo desta discussão. Não, não trataremos das séries inici-

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ais de ensino, tampouco daquelas que abarcam os jovens aspirantes ao ensino superior. Tratar-se-á de uma parte historicamente renega-da, inclusive oficialmente, politicamente, conhecida por seu passado e ainda presente de lutas: a educação de jovens e adultos (EJA).

Ainda, é preciso explicar: por que justamente a EJA para es-tabelecer as conexões entre escola, ensino e sociedade? Ora, porque o contexto da EJA não tem as mesmas características do contexto do ensino regular, que é ponto de partida para muitas das discussões já existentes sobre o assunto. Pela especificidade dos alunos da EJA, as relações envolvidas nos processos pedagógicos deles destoam das que têm lugar no ensino regular. Para permitir que os leitores que não tenham uma noção real do que é a EJA e a que ela se propõe, começamos a discussão por uma rápida ambientação...

2. O que é a EJA?

2.1. Breve retrospectiva

A educação de jovens e adultos – EJA – tem sua história muito mais tensa do que a história da Edu-cação Básica. Nela, se cruzaram e cruzam interes-ses menos consensuais do que na educação da in-fância e da adolescência, sobretudo quando os jo-vens e adultos são trabalhadores, pobres, negros, subempregados, oprimidos, excluídos. (ARROYO, 2001, p. 11)

Para pensar-se sobre a educação de jovens e adultos no Brasil, é necessário fazer uma breve viagem no tempo. Primeira parada: nas décadas de 1940 e 1950, emergiram programas e ações governamen-tais visando suprir a necessidade de oferecer-se educação aos adul-tos, como o Fundo Nacional de Ensino Primário (1942) e a Campa-nha Nacional de Educação de Adultos (1952). Esta última ação en-tendia a educação de adultos como fundamental para a elevação dos níveis de educação da população e ressaltava os efeitos positivos que a educação dos adultos teria sobre a educação das crianças, como in-fluência, como incentivo.

No início dos anos de 1960, iniciativas de caráter regional, in-fluenciadas pelo trabalho de Paulo Freire, que acreditavam na educa-ção como engrenagem fundamental para a transformação social, que

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tinham como princípios educativos o diálogo e a valorização do pa-pel dos alunos como sujeitos ativos na aprendizagem, ganharam des-taque, sendo um exemplo o Movimento de Educação de Base (MEB).

Em 1964, o Ministério da Educação, com seu último progra-ma de corte, exilou Paulo Freire em uma tentativa de exilar suas i-deias. Freire, por sua vez, desenvolveu no exterior sua alfabetização de adultos conscientizadora. O fechamento político e institucional, que marcou o Brasil nos anos de 1970, relegou os movimentos vol-tados à alfabetização inculcados pelo paradigma freiriano à quase marginalização, passando a se desenvolverem em locais alternativos, que não a escola, como igrejas e espaços comunitários.

O governo federal, em 1969, organizou o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), voltado aos adultos analfabetos em di-ferentes regiões do país. Como havia sido lucubrado especificamente para a resolução do problema do analfabetismo, o movimento não conseguia conectar-se ao sistema de ensino básico. Para garantir sua sobrevivência, tentando viabilizar a continuidade do empreendimen-to de alfabetização para iniciativas de educação básica para jovens e adultos, criou-se um programa que condensava o antigo curso primá-rio, justamente para dar fluidez ao processo. Em 1985, já descredita-do e enfraquecido, o Mobral foi extinto.

É interessante, ainda, fazer uma parada a fim de destacar a Lei Federal de 1971, que, além de estender a educação básica para oito anos, continha, pela primeira vez, um capítulo específico sobre o ensino de jovens e adultos, que teria uma realização flexível (poden-do ocorrer em diversas modalidades, como ensino a distância e curso supletivo), sendo, também, vinculado à aceleração do tempo de ensi-no escolar.

Em 1990, é criado o Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania, mas ele fracassa, e a década é marcada por um retrocesso nas políticas de EJA, pela falta de incentivo político e financeiro por parte do governo, sendo grande exemplo desta deslegitimização a Lei de Diretrizes Básicas de 1996, carregada de ideias e nomenclatu-ras preconceituosas, como “idade própria” e “ensino supletivo”, que reforçam o caráter compensatório que a educação de jovens e adultos adquiriu ao longo do tempo, além de medidas que visavam resolver

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problemas do ensino regular, realocando os que eram retidos neste para o chamado “ensino supletivo”, evidenciando seu caráter acele-rador e de válvula de escape dos problemas do ensino regular.

2.2. Apresentação por conexões

É difícil apresentar a educação de jovens e adultos sem citar duas expressões: educação popular e paradigma compensatório. Por ter sua história vinculada à alfabetização de adultos, aos trabalhado-res, à população pobre e aos subempregados, a EJA converge com a educação popular. As duas participam da notória luta política social contra rotulações como “excluídos” e “inadequados” tendo como forte elo a concepção humanista de educação, tendo, ainda, como um de seus principais objetivos oferecer a todos a educação que lhes é direito, educação esta que não deve ser limitada a uma idade especí-fica.

A EJA lida com as aspirações destes considerados “excluí-dos” da sociedade, que almejam, por meio da educação, um novo lu-gar social, o que faz com que seja extremamente ligada à emancipa-ção, à liberdade e à cidadania, sendo a garantia desses direitos a mai-or das lutas travadas por ela.

A trajetória de luta por legitimização da EJA persiste, uma vez que ainda é vista como mecanismo compensatório para dar conta daqueles considerados “inadequados” para o ensino regular, seja por não terem tido oportunidade de começá-lo quando crianças, seja por o terem abandonado (pelos motivos mais diversos, inclusive, inserir-se no mercado de trabalho, por questões de sobrevivência), seja por serem repetentes. A educação de jovens e adultos carrega o paradig-ma de atender aos “defasados”, de compensar déficits escolares. Os alunos da EJA não devem ser vistos como a escória do ensino regu-lar. Aprender é um processo emancipatório, vale lembrar, e, por isso mesmo, não é restrito a uma faixa etária específica. Independente da idade em que queiram ou possam ingressar ou retornar à escola, é di-reito de todo cidadão em nosso País o acesso à escolarização, sendo este, inclusive um dos aspectos constituidores da própria cidadania. O tempo, o contexto e a possibilidade de cada um devem ser respei-

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tados e atendidos, sem fazer com que um adulto sinta-se envergo-nhado por estar na escola.

3. Lugar (d)e aprendizagem

Por que o título desta seção é lugar de aprendizagem, e não escola? A escolha tem a intenção de destacar que, quando se trata da EJA, nem sempre ela está associada à noção de escola como local, construção física destinada a abrigar alunos, professores, inspetores, coordenadores, em salas, e com todas as figuras que nos costumam vir à mente, de imediato, ao pensar-se sobre a “escola”.

A escola da EJA deve ser concebida a partir de suas relações, de seus objetivos, e não do espaço físico. A educação (e não ensino) de jovens e adultos pode ocorrer, ganhar vida em diferentes espaços: em igrejas, associações de moradores, ONGs, “escolas”, a distância...

Vale, aqui, uma pequena pausa para discutir uma diferença, aparentemente ingênua, de nomenclatura. Educação e ensino: apesar de serem comumente postas lado a lado, há sutis, mas relevantes e consideráveis divergências entre as palavras. A principal é que ensi-no é parte do processo de educação, sendo o primeiro destinado à transferência, à passagem, à transmissão sintética de informações e de conhecimento; e a segunda imbui estes conhecimentos de valores, valores que são reflexos da, constituintes da e necessários à integra-ção social.

Por todo o seu caráter político, ideológico e humanista, o “sis-tema” pedagógico destinado aos jovens e adultos tem a alcunha de “educação”, e não apenas “ensino”, como em alguns outros segmen-tos, como ensino regular, ensino fundamental, ensino médio.

A escolha do tema desta seção teve como propósito destacar essa multipossibilidade de lugares-sede da EJA. Mas, para tornar a discussão mais direcionada e clara, discorreremos sobre a EJA den-tro dos muros da escola, espaço físico que costuma sediar também o ensino regular, até porque, uma das intenções deste texto é justamen-te fazer com que o leitor compare o que se dá EJA com o que se dá no ensino regular.

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Assumindo a segunda leitura possível do título da seção, co-mo já tratamos do lugar, tratemos agora da aprendizagem... Não há como não recorrer a algumas ideias de Demo (2001) para refletirmos sobre aprendizagem na EJA, uma vez que o autor defende, precisa-mente, a emancipação e a autonomia no processo de aprendizagem, convergindo com a proposta deste segmento que, como acabamos de observar, não tem o nome de “educação” por acaso.

Tendo como base, inclusive histórica, o paradigma freiriano de educação, a EJA traz à tona a questão da reconstrução do conhe-cimento, da ressignificação de saberes que os alunos já têm. Para a-prender, segundo Demo, é preciso emancipar-se, ter visão crítica, ser um novo autor mesmo que por meio do contato com outros autores.

(...) define a necessidade de submeter toda atividade de ‘ensino’ à motivação da autonomia de quem aprende, apontando a este como figura central; não se emancipa sozinho, mas precisa, em certa medida, saber dispensar apoios externos, em particular aqueles que indicam atrelamen-to e submissão. (DEMO, 2001, p. 51)

O interessante é que, na EJA, uma das tarefas do professor é, exatamente, transpor um conhecimento prático, empírico para o for-mal, científico, demonstrando como o aluno, mesmo sem ter consci-ência disto, já têm conhecimentos que dialogam com muitos outros.

Esta tarefa aponta para uma peculiaridade da abordagem edu-cacional da EJA: pelo histórico dos alunos, que, em sua maioria, já estão inseridos no mercado de trabalho, muitas vezes, o caminho ob-servado no ensino regular: conhecimento teórico, formal prática, é invertido, passando do empírico para formal, valorizando os conhe-cimentos e saberes que o aluno já tenha, como ocorre com pedreiros que diariamente fazem proporções, porcentagens e têm excelentes noções geométricas, mas não têm isso teorizado, podendo utilizar-se dos cálculos e das noções corretamente, mesmo sem saber as fórmu-las que lhe são apresentadas na escola. Outro exemplo da disparidade comum na escola de desvalorização do empírico em favor do teórico é o depoimento de um aluno norte-americano de ensino regular (STEPHEN, 1944, p. 219-220), que pode ser encontrado em anexo.

Mesmo a aprendizagem prática costuma nos ser ensinada, transmitida, por outras pessoas. A formalização destes saberes tende a vir do contato com o professor. Estes dois fatos corroboram com a

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tese de que não se aprende sozinho. Boa parte do conhecimento ad-vém do contato, do diálogo com ideias, saberes e experiências de ou-trem, seja esse contato direto ou não, retomando o que preconizava Bakhtin sobre a polifonia do discurso: o discurso (e o saber) que construo é, conscientemente ou não, tecido por alguns fios de outras vozes.

4. A importância do ensino de língua materna na EJA

Os PCNs de língua portuguesa do ensino fundamental do re-gular estabelecem como um dos objetivos do ensino de língua ma-terna:

No ensino-aprendizagem de diferentes padrões de fala e escrita, o que se almeja não é levar os alunos a falar certo, mas permitir-lhes a es-colha da forma de fala a utilizar, considerando as características e condi-ções do contexto de produção, ou seja, é saber adequar os recursos ex-pressivos, a variedade de língua e o estilo às diferentes situações comu-nicativas (...). (BRASIL, 1998, p. 31)

Para os alunos da EJA, seja de ensino fundamental ou médio, esta mobilidade linguística é muito valorizada. Os alunos da EJA, por seu contexto socioeconômico, por já estarem inseridos no mer-cado de trabalho, têm ciência de que esta flexibilidade linguística, o ser plurilíngue em sua própria língua, é necessária para galgarem po-sições mais altas socialmente. Há uma maior consciência da impor-tância do ensino de língua materna como definidor social e até eco-nômico.

Em trabalho realizado pela autora deste texto com uma turma de ensino médio da EJA em 2009 sobre variedades linguísticas, pôde ser observado o peso que o respeito ao saber dos discentes tem du-rante o processo de aprendizagem. Utilizaram-se textos de gêneros diferentes (conto, poema, letra de música) que tratavam justamente da variação linguística.

A culminância do trabalho foi fazer com que os alunos refle-tissem e conseguissem visualizar em duas letras de música construí-das com variações linguísticas diferentes, mas que tinham o mesmo tema, como é possível dizer-se o mesmo de maneiras distintas, como é possível adequar a linguagem. Ficou claro o valor de dar-se mais

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“voz” ao aluno, trazê-lo para o diálogo, e o peso da afetividade, da quebra de barreiras invisíveis e da aproximação da sala de aula com sua realidade fora dela, pois, “ao dialogar com o aluno, ainda que brevemente, o professor desfaz muros e estabelece laços” (ESTE-BAN, 2004, p. 18). É fundamental que, durante este diálogo, utili-zem-se as peculiares contribuições de cada educando para formar um todo significativo, realçando a importância de cada posicionamento para o coletivo, respeitando, inclusive, o desempenho linguístico de-les neste processo.

É essencial ter em vista que o ensino de língua materna deve basear-se no fato de que como o estilo de comunicação e as identida-des sociais são situados localmente e são tão fluidos, um bom enca-minhamento é fazer com os alunos analisem sua própria experiência comunicativa, linguística, de forma crítica e reflexiva, em vez de te-rem que aprender generalizações sobre o discurso cultural de outrem (ERICKSON, 1996, p. 301).

A reflexão sobre o que eles mesmos produzem não esgota o propósito do ensino de língua materna, mas é um excelente ponto de partida de cunho inclusivo e coparticipativo para que se dialogue posteriormente com outras variações da língua.

5. Papéis e identidades sociais na turma da EJA

Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?

Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber o que as-sinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever.

Ah, não vou. (FREIRE, 2005, p.81)

A epígrafe desta seção, parte do conto Totonha, consegue re-presentar um pouco parte do público da EJA e as barreiras psicológi-cas que devem ser vencidas por eles para que consigam entrar na, voltar à, ou continuar na escola. Como já discutido, a parte que se mostra no trecho é justamente a que traz o rótulo à EJA de abarcar os

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excluídos, os inadequados, os defasados, os impróprios, os margina-lizados. A etiqueta social é tão forte que chega ao ponto de não ser mais externa, fazendo com que os próprios jovens e adultos assu-mam esta etiqueta, passando a ver a educação, inclusive, como ins-trumento de dominação, de subjugação.

Para lidar com estas possibilidades, o professor da EJA deve perder, deixar de lado, os papéis que lhe são comumente atribuídos. Cabe a ele esclarecer que a educação deve ser coparticipativa, descer do seu pedestal imposto e assumido que o separa, isola e destaca dos educandos; cabe a ele mostrar que a educação é o oposto da submis-são, é a emancipação, a autonomia e, porque não, o poder. Cabe ao professor de língua materna, principalmente, fazer com o aluno não condene a plenitude e o amplo domínio de sua língua ao ostracismo, demonstrando que, como ser social que essencialmente é, o discente deve conhecer sua língua, interagir, assumir-se sujeito social e cida-dão.

Dada essa especificidade, é fundamental que o professor não tenha medo de encarar situações como ouvir discursos como o feito por Totonha no conto citado. É preciso ocorrer a quebra da situação lugar-comum da sala de aula caracterizada, que o professor assuma que não é o todo-poderoso, indo contra a posição de que tudo – des-de a aprendizagem ao currículo seja de inteira responsabilidade e domínio do professor e que seu consequente isolamento seja uma norma (BRITZMAN, 1986). Este desafio é ainda maior em turmas da EJA. Se há professores que têm medo de perder o domínio da classe com turmas de ensino regular, como agiriam em turmas de EJA, em que a faixa etária dos alunos é maior, fazendo com que um dos componentes diferenciais entre professor-alunos, a diferença de idade, seja anulada ou até mesmo invertida?

É necessário também que esta tentativa de aproximação não seja feita de forma incisiva, que não se leve a manutenção da face do professor ao extremo, fazendo com que se alcance o efeito inverso, afastando os alunos. Ainda vale lembrar que o professor, ainda mais pela especificidade da EJA, deve estar atento ao seu papel social par-cipativo, mas não totalmente responsável pela aprendizagem e pelas possíveis mudanças decorrentes desta. O professor deve ter em men-te que não é super-herói, nem agente único de mudança. Nosso pa-

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pel, de educadores, é auxiliar, andar ao lado (não à frente nem atrás) dos alunos para que estes alcancem com maior facilidade os seus ob-jetivos por intermédio da educação. Não é agindo sozinhos que con-seguiremos uma transformação significativa. Somos parte atuante de uma cadeia, em que o empenho de cada uma das partes é imprescin-dível para o melhor produto possível.

No discurso pedagógico da EJA é preciso ter cautela para que não haja um excesso de afetividade, excesso esse que infantiliza os educandos, afetando sua autoestima. Apesar de considerar-se a esco-lha da alcunha educação de jovens e adultos como indicativo de seu vínculo à cidadania, devemos fazer com que a outra associação pos-sível não se valide. O outro segmento do sistema escola que recebe o título de educação é justamente a educação infantil. Nosso discurso pedagógico não deve propiciar a convergência destes dois segmen-tos, pelo contrário. Para se conquistar a confiança, a participação e o respeito dos alunos, devemos tratá-los de acordo com sua idade, com seu contexto, sem reforçar o paradigma de excluídos e inadequados já sofridos, por meio da infantilização.

Na estrutura social da turma de EJA, luta-se, continuamente contra as rotulações já existentes, dado o cunho compensatório atri-buído ao segmento. É essencial, para trazer os alunos ativamente pa-ra a sala de aula, para o processo de ensino aprendizagem, ter como atitude-chave a aproximação. Aproximação entre os alunos, para que o grupo aja como tal coauxiliando, coacrescentando, somando indi-vidualmente e em grupo; aproximação professor-aluno, quebrando o isolacionismo imposto culturalmente a ambos no contexto de sala de aula; aproximação do aluno com a sociedade, anulando os precon-ceitos e rotulações arraigados mesmo antes da entrada em sala, o que muitas vezes o impede de assumir a vontade de aprender; aproxima-ção do saber empírico com o saber teórico, valorizando a bagagem de vida dos alunos como ponto de partida para a convergência com as abstrações formais e teóricas; aproximação da educação à vida, como parte constituinte do ser-cidadão, do ser-emancipado, do ser-livre, do ser-potencial e provido de instrumentos, do ser-consciente do que é e da sociedade em que vive.

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6. EJA e currículo – Reflexos e reflexões

O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, via-gem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja a iden-tidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade. (SILVA, 2005, p. 150)

Tomaremos três períodos, em especial, da epígrafe desta se-ção como base para dar início à construção de algumas ponderações sobre a relação entre a educação de jovens e adultos e o currículo.

“O currículo é relação de poder.”

“(...) no currículo se forja nossa identidade”

“O currículo é documento de identidade”

O instigante no segundo trecho reproduzido é a ambiguidade do verbo “forjar”, que pode significar tanto tomar forma, modelar, ganhar vida, quanto inventar, criar, falsear. Considerando essas pos-síveis acepções, o currículo, realmente, pode formar a identidade, pois uma das principais preocupações da educação em nosso País é com a formação de cidadãos, por meio de capacitações, fornecendo, apresentando ou desvendando aos indivíduos as mais diversas ferra-mentas necessárias para sua emancipação. Porém, o currículo pode, também, falsear uma identidade, como é visto pelo antagonismo e-xistente entre o currículo e os educandos da educação de jovens e adultos, que dá a impressão de que o público é consideravelmente di-ferente do que é em realidade. Vale lembrar aqui também, o forjar identidades ao caráter que a EJA assumiu como válvula de escape para os problemas de retenção no ensino regular, sendo responsável, muitas vezes, apenas pela aceleração de obtenção de um diploma. O currículo da EJA legitimiza essa aceleração, deturpando um pouco sua preocupação inicial em educar para, simplesmente, “dar docu-mentos”, esquecendo-se de que o principal é o processo.

A aproximação do currículo com as relações de poder nos faz lembrar, imediatamente, da infantilização dos adultos, que, mesmo ocorrendo em uma tentativa de atitude positiva por parte dos profes-sores, ocorre também pelo currículo da EJA, que acaba por reforçar o seu perfil compensatório e fazer com que os alunos dessa modali-

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dade sintam-se inferiorizados. Obviamente, as relações de poder também remetem ao fato de que a tendência formalista do saber, do currículo, é sabidamente um instrumento de manutenção da domina-ção política e social das elites sobre as demais populações, princi-palmente sobre aquelas que não tiveram acesso ao conhecimento formal, menosprezando o saber prático das porções sociais menos favorecidas, considerando-se como verdadeiro e legítimo apenas o saber teórico e formalizado.

De maneira geral, a epígrafe remete ao conceito de “conheci-mentos em rede”, que defende que: “o conhecimento se tece em re-des tecidas a partir de todas as experiências que vivemos, de todos os modos como nos inserimos no mundo à nossa volta” (OLIVEIRA, 2004, p. 103). O conhecimento, então, deve ser construído com base no respeito ao “histórico” do educando enquanto ser social, logo, o currículo, como Tomaz Tadeu da Silva explicita, é território, espaço, lugar, percurso, viagem, texto, discurso.

O currículo, especialmente o da EJA, não deve desvincular-se do conhecimento da “vida real” dos educandos e, pelo contrário, de-ve ser construído a partir dele e fazer com que eles tenham consciên-cia do quanto já sabem e aprimorar esses saberes empíricos (como se observa no depoimento de um aluno norte-americano do ensino re-gular, em que nota a falha da professora ao não observar os inúmeros saberes que já faziam parte da vida do garoto e ao tornar a escola ex-tremamente distante da realidade de seus alunos). Mais uma vez, faz-se necessário evidenciar que o saber prático não deve ser diminuído em relação ao técnico. A educação é práxis.

É importante ressaltar que não apenas o currículo da EJA de-ve tentar se afastar da famosa visão compensatória que se tem da modalidade, como também cabe a nós educadores, além de sermos mediadores do saber formal, incitarmos a autoestima e confiança deste público tão específico, exercendo nosso verdadeiro papel, de auxiliar, guia, orientador e, principalmente, transformador social e cidadão, em plenitude.

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STEPHEN, C. Um repetente fala sobre o currículo. Traduzido e adaptado por VILHENA, M. L. S. Título original: The poor scho-lar’s soliloquy childhood education, n. 20, p. 219-220, jan. 1944.

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ANEXO

Um repetente fala sobre o currículo

Não, eu não vou bem na escola. Esse é o meu segundo ano na 7ª sé-rie e sou muito maior do que os outros alunos. Entretanto, eles gostam de mim. Não falo muito em aula, mas fora da sala sei ensinar um mundo de coisas. Eles estão sempre me rodeando e isso compensa tudo o que acon-tece em sala. Eu não sei por que os professores não gostam de mim. Na verdade, eles nunca acreditam que a gente sabe alguma coisa, a não ser que se possa dizer o nome do livro onde a gente aprendeu. Tenho vários livros lá em casa. Mas não costumo sentar e lê-los todos, como mandam a gente fazer na escola.

Uso meus livros quando quero descobrir alguma coisa. Por exemplo, quando a mãe compra algo de segunda mão e eu procuro no catálogo da Sears ou da Words para dizer se ela foi tapeada ou não. Sei usar o índice rapidamente para encontrar tudo o que quero. Mas, na escola, a gente tem que aprender tudo o que está no livro e eu não consigo guardar. Ano passado, fiquei na escola depois da aula, todo o dia, durante duas sema-nas, tentando aprender os nomes dos presidentes. Claro que conhecia al-guns, como Washington, Jefferson, Lincoln. Mas é preciso saber os 30 todos juntos e em ordem. E isso eu nunca sei. Também não ligo muito, pois os meninos que aprendem os presidentes têm que aprender os vices depois.

Estou na 7ª série pela segunda vez, mas a professora agora não é muito interessada nos presidentes, ela quer é que a gente aprenda os no-mes de todos os grandes inventores americanos. Acho que nunca conse-guirei decorar nomes em História. Esse ano comecei a aprender um pou-co sobre caminhões, porque meu tio tem três e disse que posso dirigir um quando tiver 16 anos. Já sei bastante sobre cavalo a vapor e marchas de 26 marcas diferentes de caminhão, alguns a diesel.

É gozado como os motores a diesel funcionam. Comecei a falar so-bre eles com a professora de Ciências, na 4ª feira passada, quando a bomba que a gente estava usando para obter vácuo esquentou. Mas a pro-fessora disse que não via relação entre um motor a diesel e a nossa expe-riência sobre pressão do ar. Fiquei quieto. Mas os colegas pareceram gostar. Levei quatro deles à garagem do meu tio e vimos o mecânico desmontar um enorme caminhão a diesel. Rapaz, como ele entende dis-so!

Eu também não sou forte em Geografia Econômica. Durante toda a semana estudamos o que o Chile importa e exporta, mas eu não sei bu-lhufas. Talvez porque faltei à aula, pois meu tio me levou em uma via-gem a mais ou menos 200 milhas de distância. Trouxemos duas tonela-das de mercadorias de Chicago. Mas meu tio tinha me dito para onde es-távamos indo e eu tinha de indicar as entradas e as distâncias em milhas. Ele só dirigia o caminhão e virava à direita ou à esquerda quando eu mandava. Como foi bom! Paramos sete vezes e dirigimos mais de 500

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milhas, ida e volta. Estou tentando calcular o óleo e o desgaste do cami-nhão para ver quanto ganhamos. Eu costumo fazer as contas e escrever as cartas para todos os fazendeiros sobre os porcos e bois trazidos. Hou-ve apenas três erros em dezessete cartas e, diz minha tia, só problema de vírgulas. Se eu pudesse escrever composições bem assim… Mas, outro dia o assunto da composição na escola era: ‘O que a rosa leva da prima-vera’ e não deu…

Também não dou para matemática. Parece que não consigo me con-centrar nos problemas. Um deles era assim: se um poste telefônico, com 57 pés de comprimento, cai atravessado em uma estrada de modo que 17 pés sobrem de um lado e 14 de outro, qual a largura da estrada? Nem tentei responder, pois o problema não dizia se o poste tinha caído reto ou torto.

Não sou bom em Artes Plásticas. Todos nós fizemos um prendedor de vassoura e um segurador de livros. Os meus foram péssimos. Tam-bém, não me interessei. A mamãe nem usa vassoura desde que ganhou o aspirador de pó e todos os nossos livros estão dentro de uma estante com porta de vidro. Quis fazer uma fechadura para o trailer do meu tio, mas a professora não deixou, pois eu teria de trabalhar só com madeira. Assim, fiz essa parte de madeira na escola e o resto na garagem do tio. Ele disse que economizou mais ou menos 10 dólares com o meu presente.

Moral e Cívica também é fogo! Andei ficando depois da aula, ten-tando aprender os artigos da Constituição. A professora disse que só po-deríamos ser bons cidadãos sabendo isso. E eu quero ser bom cidadão. Mas detestava ficar depois da aula porque um bando de meninos estava limpando o lote da esquina para fazer um playground para as crianças do Lar Metodista. Eu até fiz um brinquedo de barra usando canos velhos, para eles. Conseguimos jornais velhos para vender e com o dinheiro deu para fazer uma cerca de arame em volta do lote. O papai disse que eu posso sair da escola quando fizer 15 anos. Estou doidinho para isso por-que há um mundo de coisas que eu quero aprender a fazer e já estou fi-cando velho.

(STEPHEN, 1944, p. 219-220)

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TRABALHANDO COM LITERATURA DE CORDEL NO ENSINO FUNDAMENTAL: RELATO DE UMA VIVÊNCIA

Marcella Braga Cobian (UERJ) Mariana Fernandes de Lima Costa (UERJ)

Maria Isaura Rodrigues Pinto (UERJ) [email protected]

1. Proposta e metodologia

O relato a ser apresentado diz respeito às atividades realizadas pelas bolsistas Marcella Braga Cobian e Mariana Fernandes de Lima Costa, na turma 702, do 7º ano, do ensino fundamental do Colégio Estadual Dr. Adino Xavier, localizado no Município de São Gonça-lo, durante o desenvolvimento de uma das etapas dos projetos “Lei-turas da Tradição Oral e Folclórica” e “Leitura na Cordelteca da FFP”, ambos coordenados pela professora Maria Isaura Rodrigues Pinto.

O desejo de ressaltar o valor da leitura de folhetos de literatu-ra de cordel no universo da sala de aula foi o que levou à elaboração e implementação, na escola mencionada, do mini- projeto “Conhe-cendo o Cordel”, que será agora alvo de atenção.

Apresentar a literatura de cordel, nas escolas, não é uma tare-fa fácil nem tampouco recorrente. O notório preconceito que se tem em relação à literatura de cordel fica logo evidenciado no exame de materiais didáticos, visto que muitos não abordam o cordel e a mino-ria que o faz, muitas vezes, focaliza essa produção de forma equivo-cada e preconceituosa, solicitando dos alunos, como atividade, a re-escritura do texto, com a correção dos “erros gramaticais”, que, co-mo se sabe, são, na verdade, variedades de registro.

Assim, não é difícil perceber que a literatura de cordel, rica expressão da poesia popular brasileira, ainda pouco valorizada, está quase ausente do ambiente escolar. Sabe-se que os fatores responsá-veis por essa exclusão, em geral não-assumida, são inúmeros, dentre eles, está o aludido preconceito linguístico. Por isso mesmo, tendo-se

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em vista um ensino democrático, julga-se relevante o trabalho com essa produção literária e o estudo de suas especificidades.

Além disso, o cordel é uma importante fonte de representação da cultura popular nordestina, constitutiva da pluralidade literária do país, cuja escritura viabiliza a abordagem de uma ampla gama de te-máticas e conteúdos poético-expressivos, fatores que fazem dele um objeto de estudo versátil e valoroso.

Para uma melhor constatação do pouco, quase nulo, tratamen-to dado ao cordel e às suas especificidades, no contexto escolar, jul-gou-se interessante aplicar um questionário que aferia o conhecimen-to dos alunos acerca do gênero, tomando-se por base um modelo de proposta inserido no livro Acorda cordel na sala de aula (VIANA, Arievaldo Lima, 2006). O questionário continha oito questões que se dividiam entre múltipla escolha e discursiva. Através desse instru-mento de sondagem, foi conferido que o número de alunos que co-nhecia a literatura de cordel e possuía conhecimentos sobre versifi-cação era mesmo muito baixo, conforme demonstram os gráficos da página seguinte.

Após o exame dos dados, ficou reafirmada a necessidade de desenvolver o projeto aludido que consistia, em termos gerais, num trabalho de apresentação, de divulgação e de estudo do gênero cor-del. Dentre os objetivos específicos a serem alcançados, esperava-se que o aluno fosse capaz de: verbalizar a respeito de seus conheci-mentos sobre literatura de cordel; distinguir o gênero cordel de ou-tros gêneros textuais, reconhecendo suas especificidades estruturais, temáticas e estilísticas; expressar-se oralmente através de leituras co-letivas de folhetos de cordel; interpretar as poesias de cordel traba-lhadas; identificar a intertextualidade do gênero cordel com outros gêneros discursivos; escrever e produzir seus próprios folhetos de cordel.

É importante frisar que, na busca de se alcançar os objetivos, houve a preocupação acentuada em se fazer conhecer, explorar e respeitar os elementos prototípicos da estrutura composicional da poesia de cordel, tendo em conta as seguintes considerações, dispos-tas nos Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa:

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O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de reconhecimento de singularidades e propriedades que matizam um tipo particular de uso da linguagem. É possível afastar uma série de equívo-cos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literá-rios, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de questões ou-tras (valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas que contribu-em para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das constru-ções literárias (1998, p. 27).

Também se considerou fundamental enxergar a poesia de cordel como parte integrante da diversidade cultural constitutiva do Brasil, como salientam os Parâmetros curriculares nacionais: ter-ceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais, na se-guinte passagem:

[...] o conhecimento dessa característica plural do Brasil é extrema-mente relevante. Ao permitir o conhecimento mútuo entre regiões, gru-pos e indivíduos, ele forma a criança, o adolescente e o jovem para a res-ponsabilidade social de cidadão, consolidando o espírito democrático (1998, p. 123).

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A poesia de cordel deve ser, portanto, considerada e valoriza-da como objeto de ensino nas escolas. Embora frequentemente se anuncie isso, há a ocorrência de apenas uma indicação de trabalho com o gênero cordel, destinado à antiga 7ª série, atual 8º ano, na proposta de seriação do ensino fundamental, do documento de Reo-rientação curricular proposto pela Secretaria de Estado de Educação (2006). No artigo “O cordel como objeto de ensino”, Maria Isaura Rodrigues Pinto aponta essa debilidade, ao afirmar que: “A quase ausência de folhetos nos livros didáticos e o tratamento, muitas ve-zes, equivocados do assunto quando consegue ser alcançado à condi-ção de matéria de leitura e de aula provam que o cordel ainda não es-tá efetivamente na pauta da educação formal” (2006, p. 21).

Outro aspecto considerado relevante, durante a implementa-ção do projeto, foi a necessidade de que a aula tivesse uma abertura para que o aluno fosse instigado a expor suas ideias e pontos de vista – seja através da escrita ou oralmente –, como uma prática para a vi-da cotidiana e social. Assim, o aluno foi estimulado a dialogar com o outro ou com aquilo que lhe estava sendo passado como conteúdo e informação, usando (sabendo usar) as ferramentas certas para que a ação comunicativa fosse efetuada de forma clara e eficiente. Ou seja, sendo entendido e, ao mesmo tempo, fazendo-se entender.

2. Resultados obtidos

Durante o período de implementação do projeto, foram reali-zados onze encontros com a turma selecionada para aplicação das a-tividades. As estratégias desenvolvidas buscaram inserir o gênero cordel nas aulas de Língua Portuguesa. O projeto começou a ser pos-to em prática com a apresentação de músicas e curiosidades relacio-nadas à literatura de cordel. Também foram exibidas xilogravuras (i-lustrações presentes nos folhetos), além da apresentação de uma lei-tura dramatizada feita pelo grupo Cordel em Cena, do folheto intitu-lado O Romance do Pavão Misterioso, de José Camelo de Melo Re-zende. A finalidade era despertar o interesse dos alunos por esse tipo de produção literária. Essas atividades foram concluídas com suces-so, já que os alunos demonstraram grande interesse e atenção durante os comentários e a encenação do grupo. Dando continuidade às ati-vidades, foi realizada uma leitura dinâmica em conjunto com a tur-

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ma. A atividade buscou incentivar, de forma lúdica, o gosto pela lei-tura da poesia de cordel, pois como diz Geraldi: “Importa que o alu-no adquira o gosto de ler pelo prazer de ler, não em razão de cobran-ças escolares” (2006, p. 63).

No primeiro momento, a grande maioria dos alunos se mos-trou desmotivada e resistente devido ao tamanho do texto a ser lido e estudado. Porém, no decorrer do processo, os alunos começaram a ter prazer em ler o diálogo entre os personagens, chegando a disputar quem seria qual personagem, sem que fossem necessárias interven-ções e solicitações. Durante essas atividades, foram lembradas as se-guintes palavras de Rubem Alves, presentes no texto “É como ouvir música”: “É a experiência de ouvir que nos faz querer dominar a téc-nica da leitura para poder penetrar na emoção do texto”.

O projeto prosseguiu voltando-se para o exame das especifi-cidades do cordel, a fim de que os alunos fossem capazes de distin-guir esse gênero discursivo de outros. Foram trabalhados, de maneira dinâmica, elementos de versificação, tais como: estrutura, conceitos de verso, estrofe, rima e ritmo. Para tanto, entre outros recursos, uti-lizou-se o quadro negro, onde foram afixados cartazes com palavras, que serviram de ponto de partida para a produção de rimas. Também, no quadro negro, foram dispostas algumas estrofes, sobre as quais foram formuladas perguntas acerca do número de versos e da com-posição das estrofes. Para exemplificarmos o conceito de ritmo, foi utilizado, em conjunto com a turma, o recurso das palmas, o que tor-nou a aula alegre e divertida.

Para demonstrar o processo da intertextualidade, foi usada a música de Ednardo, chamada Pavão Mysteriozo. Com tal recurso, foi possível demonstrar o quanto a literatura de cordel influencia a pro-dução de outros textos e está representada em outros gêneros como a música, o filme e a peça teatral. Essa atividade despertou uma aten-ção maior dos alunos pelas características regionais nordestinas pre-sentes na música.

Uma das propostas finais do projeto consistiu em solicitar aos alunos que elaborassem, em grupo ou individualmente, uma poesia de cordel, com o tema Copa do Mundo. A princípio, nem todos qui-seram realizar a atividade, entretanto, após terem sido colocadas no quadro palavras vinculadas ao universo do futebol e da Copa do

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Mundo, como auxílio, eles começaram a escrever e produziam folhe-tos similares aos de cordel, incluindo ilustrações bem interessantes. O pleno envolvimento de todos na atividade só foi garantido, quando alguns alunos que já tinham dado início à tarefa começaram a ler em voz alta as rimas elaboradas, suscitando uma pequena disputada en-tre eles para ver quem produzia a rima mais engraçada e a poesia mais interessante e, consequentemente, o folheto mais significativo. Os alunos se sentiram orgulhosos ao verem, ao término das ativida-des, seus trabalhos expostos em varais, como igualmente ficaram os folhetos de cordel por eles estudados, durante o período de execução do projeto.

Curiosamente, mesmo sem que tivesse sido solicitada a con-fecção de folhetos em casa, um dos alunos ficou tão interessado por esse tipo de poesia que elaborou um cordel em casa e o apresentou na aula seguinte para a turma.

3. Conclusão

No livro Acorda cordel na sala de aula, um relato do poeta Manoel Monteiro feito a partir de suas experiências ao trabalhar com o cordel nas escolas, revela a importância dessa proposta e um dos objetivos almejados ao realizá-la: “o folheto sempre irá despertar in-teresse. O que a gente quer é “viciar” o aluno a gostar de ler. Se ele gosta de ler um folhetinho, depois lê um romance, dois, três... Até o dia em que vai enveredar por outras leituras. E, quem lê, sabe!” (2006, p. 29).

O ensino do cordel deve ser empolgante tal como um folheto, estimulando o gosto pela leitura. Para tanto, é válido atentar para o que é proposto por João Wanderley Geraldi, no texto “A leitura - fru-ição do texto”, quando considera que hoje “se busca recuperar uma forma de interlocução praticamente ausente nas aulas de Língua Por-tuguesa: o ler por ler, gratuitamente” (2006, p. 97). O próprio Geral-di reitera esse pensamento ao dizer que: “É obvio que essa gratuida-de tem boa paga: a informação disponível, como o saber, frequente-mente gera outras vantagens” (2006, p. 98).

Por isso, além do propósito de apresentar o gênero cordel, o projeto em questão também almejou despertar no aluno o prazer pela

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leitura, incentivando-o a se tornar um leitor recorrente e reflexivo, capaz de extrair significados dos textos lidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Rubem. “É como ouvir música.” Disponível em: <http://www.rubemalves.com.br/ecomoouvirmusica.htm>. Acesso em: 04 ago. 2010.

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ci-clos do ensino fundamental: língua portuguesa. Secretaria de Educa-ção Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ci-clos: apresentação dos temas transversais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.

GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006.

PINTO, Maria Isaura Rodrigues. “O cordel como objeto de ensino”. In: Linguagem em (re)vista. Niterói: ano 3, nº 5, 2006.

REZENDE, José Camelo de Melo. O romance do pavão misterioso. Rio de Janeiro: Gonçalo Ferreira Stúdio Gráfico e Editora, 2000.

SECRETARIA de Estado de Educação. Livro I: Linguagens e códi-gos. Reorientação curricular. Rio de Janeiro, 2006.

VIANA, Arievaldo Lima (Org.). Acorda cordel na sala de aula. For-taleza: Tupynanquim Editora / Queima Bucha, 2006.

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UM POUCO DE DIGRESSÕES ACERCA DA COMPLEMENTAÇÃO VERBAL

José Mario Botelho (UERJ e ABRAFIL) [email protected]

1. Introdução

Há muito se fala sobre a falta de eficácia da NGB (Nomencla-tura Gramatical Brasileira) quanto à nomenclatura por ela sugerida aos estudiosos e interessados no assunto.

De fato, é flagrante a falta de conveniência de algumas das suas sugestões para certos fatos gramaticais, que os docentes devem adotar em suas aulas de língua portuguesa, assim como há outros que não foram prestigiados em seu texto.

Em consequência disso, muitos são os professores que criti-cam a NGB, uma vez que se obrigam a se limitar à adequação de su-as análises àquelas normas ou a adotar uma nomenclatura própria, o que muitos têm feito para darem conta da descrição e análise de mui-tos fatos gramaticais. Contudo, a adoção de uma nomenclatura dife-rente da estabelecida pela NGB faz retornar o status quo que moti-vou a sua elaboração.

De certo, não se pode negar o mérito da NGB em ter posto fim ao caos que se efetivava na época, já que praticamente cada pro-fessor utilizava uma nomenclatura particular em suas aulas. No Co-légio Pedro II, por exemplo, onde se concentravam diversos docentes de estimável valor e que se consideravam, cada um por si, detentores de uma nomenclatura conveniente, o problema se nos apresentava sem solução. Os discentes, vítimas de tal concorrência, tinham que assimilar uma nomenclatura a cada ano letivo, em que ocorria a mu-dança do docente da disciplina.

Atualmente, não vivemos tal situação, mas a ineficácia da NGB é flagrante e aponta para a necessidade de adaptações a novas nomenclaturas e adequação ou substituição de algumas que, com-provadamente, não são convenientes.

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No que se refere à complementação verbal, por exemplo, pe-quenas alterações se fazem necessárias.

Certos papéis temáticos dos verbos portugueses não foram prestigiados e, por isso, não receberam uma análise adequada, já que as denominações disponíveis não se enquadram convenientemente a eles.

Assim, a partir da análise desses papéis temáticos, poderemos concluir que muitas são as funções semântico-sintáticas desses ele-mentos, o que nos faria procurar uma denominação diferente daque-las listadas pela NGB.

Considerando os estudos de Fillmore (1968), de Borba (1996) e de Cançado (2005), vamos digressionar acerca da descrição das nossas gramáticas e compêndios gramaticais, que, de certa forma, vêm seguindo as orientações da NGB.

O objetivo do presente estudo é, pois, o de apresentar subsí-dios para uma reflexão a respeito das denominações dadas pela tradi-ção aos complementos e complementações dos verbos portugueses, visando a sua aplicação no ensino de análise sintática da língua por-tuguesa.

Logo, não pretendemos solucionar o problema de imediato, apresentando uma fórmula que dê conta de todos os casos. Preten-demos, de fato, enfatizar a necessidade de buscarmos uma forma de adequar à atual realidade a NGB, que é um instrumento necessário ao ensino de gramática da língua portuguesa.

2. Argumentos verbais

Entende-se por argumento verbal o elemento estrutural que lhe completa o sentido de um verbo, núcleo do predicado verbal.

Assim, o predicado verbal se define pelo número de argumen-tos que o seu núcleo, o verbo, exige para a expressão esteja semanti-camente completa. Isto é, as expressões linguísticas constituem-se de um predicador central e seus argumentos – termos que completam o seu sentido. Na estrutura em que o predicador central é um verbo, os argumentos correspondem a um argumento de esquerda – o sujeito –

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e a um ou mais de um complemento de direita. Tanto o sujeito quan-tos demais argumentos são previstos pelo próprio verbo, que os sub-categorizam, e podem ou não serem selecionados pelo usuário da língua, quando na elaboração de suas expressões linguísticas.

Subcategorização deve ser entendida como o fato de cada verbo selecionar a categoria gramatical de seus complementos – ter-mos com os quais se efetiva no interior do sintagma verbal. Entende-se por sintagma a unidade estrutural de sentido, que normalmente a-presenta dois termos: o determinante (que pode não ser explícito) e o determinado (Ex.: “o carro”; “menina linda”; “meu irmão mais ve-lho”; “Ele chegou.”; “Chove muito.”; “Ele saiu cedo.”; “O meus ir-mão mais velho comprou um carro novo.”).

Os argumentos, que completam o sentido de um predicador, associam-se às funções sintáticas, que tradicionalmente se denomina “sujeito”, “complementos direto e indireto” e determinados “adjun-tos adverbiais”, assim compreendido pela tradição gramatical. Po-dem ocorrer também numa expressão linguística estruturas que, não sendo propriamente argumentos do verbo em referência, auxiliam-na, funcionando como complementação. Tais estruturas complemen-tares, que não são exigidas pelo predicador central na formação de sentido da expressão linguística, denominam-se por adjuntos adver-biais. Tradicionalmente tais termos são considerados acessórios, já que seu uso se caracteriza como acidental, esporádico e desnecessá-rio para a predicação do verbo, embora tenham grande importância na maioria das vezes para a expressão linguística propriamente dita.

A noção de argumentos e de adjunto é concebida por Cho-msky (1986) em termos de inclusão e de continência. Para ele, um argumento é um constituinte que está incluído na projeção máxima de um núcleo com o qual se relaciona; um adjunto é um constituinte que está contido na projeção máxima de um núcleo.

Quanto ao sentido, as relações semânticas entre certo verbo e seus argumentos, que se estabelecem normalmente, constituem o que se podem chamar de papéis temáticos do verbo.

Tais papéis temáticos, que são as funções semânticas dos ar-gumentos subcategorizados por cada predicador, compõem a compe-tência linguística que o falante tem sobre os verbos. Essa competên-

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cia do falante lhe fornece uma lista de funções semânticas que se as-sociam aos argumentos dos verbos. Logo, o falante faz uso desses verbos e seus argumentos de forma proficiente normalmente, mesmo que inconscientemente na maioria dos casos.

Assim, a seleção semântica constitui o que o falante sabe a respeito dos predicadores verbais de sua língua, porquanto o número de argumentos associados a uma dada função semântica dos predica-dores dessa língua se define para cada usuário pelo conhecimento que detém desses predicadores e de seus argumentos, que são verda-deiras grades temáticas.

3. Grade temática dos verbos

Compreende-se por grade temática o conjunto de informações que um determinado item lexical de uma dada língua reúne e coloca à disposição dos usuários dessa língua para as suas eventuais expres-sões comunicativas.

Portanto, para cada item lexical associam-se diferentes infor-mações semânticas, as quais podem estabelecer um ou mais de um tipo de papel temático. Ao verbo “comer”, por exemplo, é-lhe asso-ciado um agente (quem come) e um paciente (o que se come), en-quanto ao verbo “dormir” associa-se somente um agente (quem dor-me) ou o verbo “ganhar”, ao qual se associam um paciente (quem ganha), um objetivo (o que se ganha) e um agente (de quem se ga-nha). As expressões linguísticas poderiam ser as seguintes:

(01) O menino comeu o bolo.

(02) Meu pai dormiu.

(03) Minha mãe ganhou um presente do meu pai.

Essas informações a respeito dos papéis temáticos dos verbos encontram-se no léxico da língua em referência e fazem parte do co-nhecimento semântico que o usuário tem da referida língua. Nor-malmente, os usuários têm um conhecimento implícito do conjunto de informações da grade temática dos itens lexicais de sua língua. Conhecem a quantidade e os tipos sintáticos dos argumentos um ver-bo, por exemplo. Conhecem, portanto, a sua transitividade e o tipo

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de conteúdo semântico de seus complementos e podem, em conse-quência disso, elaborar as estruturas sintáticas nas suas práticas dis-cursivas.

De certo, nem sempre as estruturas que completam o sentido de certos verbos obedecem a regras de regência estabelecidas pela norma padrão da língua no uso espontânea de muitos falantes. Con-tudo, tais regras, que são passíveis de mudanças, são assimiladas pe-los usuários ao longo de sua prática discursiva, passando a fazer par-te de sua competência linguística normalmente.

4. O que são papéis temáticos?

A noção de papéis temáticos de Gruber (1965) foi desenvol-vida por Fillmore (Op. cit.), que demonstrou a sua insatisfação com as denominações tradicionais de sujeito, objeto e outros, que se mos-tram insuficientes para traduzir as relações semânticas dos argumen-tos dos verbos.

Tomemos como objeto de reflexão as seguintes estruturas sin-táticas, que praticamente têm a mesma expressão:

(04) Eu abri a porta com a chave.

(04a) A porta abriu com a chave.

(04b) A chave abriu a porta.

Nas três estruturas, a função semântica do termo “a porta” é a mesma: paciente da ação de abrir. A função sintática, contudo, é di-ferente em cada estrutura: em (04) e em (04b), é o complemento di-reto ou objeto direto; e em (04a), é o sujeito. O termo “a chave” tam-bém tem a mesma função semântica nas três estruturas: instrumento da ação de abrir. Porém, em (04) e em (04a), funciona como adjunto adverbial e em (04b), como sujeito.

Percebe-se que o evento (de abrir) é o mesmo, embora as or-ganizações das estruturas linguísticas sejam diferentes. Os partici-pantes do evento de abrir e suas respectivas funções semânticas são os mesmos: “eu”, “porta” e “chave”, apesar de as funções sintáticas serem diferentes.

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As funções sintáticas e as relações estruturais entre o verbo e seus argumentos não refletem exatamente as funções e as relações semânticas que se estabelecem entre os verbos e seus argumentos. São essas relações semânticas que se denominam relações temáticas, ou papéis temáticos.

Os tipos de eventos são diversos; existem “eventos mentais” e outros que poderíamos classificar como “relacionais”. Nesses even-tos mentais, o ser animado pode ser um experienciador de um even-to:

(05) O rapaz odeia o irmão. (experiência psicológica)

(05a) O rapaz ouvia uma bela canção. (experiência perceptiva)

(05c) O rapaz crê em Deus. (experiência cognitiva)

Embora o termo “O rapaz” seja o sujeito estrutural das três frases, não é o agente das ações expressas pelos predicadores ver-bais, já que não é o agente do processo em si.

A falta de relação entre o sujeito estrutural e o papel de agen-te, que é flagrante em (03) e nessas acima, também pode ser obser-vado nas seguintes frases:

(05) O pneu do meu carro furou!

(06) A televisão pifou!

(07) Ela é bonita.

De fato, são muitos os papéis temáticos dos termos que com-põem as grades semânticas dos diversos verbos.

5. Papéis Temáticos, segundo Fillmore

Eis alguns dos papéis temáticos, segundo Fillmore (Op. cit.):

a) Agente: o desencadeador de alguma ação, capaz de agir com con-trole.

(08) João quebrou o vaso com um martelo.

(09) Maria correu.

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b) Causa: o desencadeador de alguma ação, sem controle.

(10) As provas preocupam Maria.

(11) O sol queimou a plantação.

c) instrumento: o meio pelo qual a ação é desencadeada.

(12) João colou o vaso com cola.

(13) Matei a mosca com o jornal.

d) Paciente: a entidade que sofre o efeito de alguma ação, havendo mudança de estado.

(14) O acidente machucou Maria.

(15) João quebrou o vaso.

e) Tema: a entidade deslocada por uma ação.

(16) João jogou a bola para Maria.

(17) A bola atingiu o alvo.

f) Experienciador: ser animado que mudou ou está em determinado estado mental, perceptual ou psicológico.

(18) João pensou em Maria.

(19) João viu um pássaro.

(20) João ama Maria.

g) Beneficiário: a entidade que é beneficiada pela ação verbal.

(21) João pagou Maria.

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(22) João deu um presente para Maria.

h) Objetivo (ou objetivo estativo): a entidade à qual se faz referên-cia, sem que esta desencadeie algo ou seja afetada por algo.

(23) João leu um livro.

(24) João ama Maria.

i) Locativo: o lugar em que algo está situado ou acontece.

(25) Eu nasci em São Gonçalo.

(26) O show acontece no teatro.

j) Alvo: a entidade para onde algo se move, tanto no sentido literal, como no sentido metafórico.

(27) Sara jogou a bola para o policial.

(28) João contou piadas para seus amigos.

k) Fonte: a entidade de onde algo se move, tanto no sentido literal, como no sentido metafórico.

(29) João voltou de Paris.

(30) João tirou aquela ideia do artigo do Chomsky.

6. Complementação sob a perspectiva da NGB

A pesquisa feita nas gramáticas e compêndios gramaticais, que seguem as orientações da NGB, revela que a complementação verbal pouco ou nada tem a ver com a noção dos papéis temáticos, estudados no item anterior.

A tradição arrola os complementos do verbo num limitado es-tudo sobre a transitividade dos verbos, em que se identificam apenas dois tipos de complementos: o objeto direto e o objeto indireto. Sob tal perspectiva, o sujeito, que é concebido como um termo essencial

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e não integrante do verbo, não recebe nenhuma atenção no tópico “Transitividade Verbal”, que é concebida como “a potencialidade que um dado verbo tem de exigir ou não um complemento que com-plete o seu sentido – termos integrantes”.

Assim, segundo a tradição, os verbos podem ser de um dos seguintes tipos: intransitivo, transitivo ou de ligação.

1. Verbos intransitivos - Verbos que NÃO exigem complemento; por si só têm sentido completo. Logo, quaisquer termos que se acres-centem a eles NÃO são obrigatórios, podendo, pois, ser dispensados, por serem acessórios.

(31) Os pássaros voam.

(31a) Os pássaros voam na mata.

(32) As crianças correm.

(32a) As crianças correm de um lado para o outro.

(33) O menino já foi embora.

(33a) O menino foi à praia ontem à tarde.

2. Verbos transitivos - Verbos que exigem um ou mais de um com-plemento; por si só NÃO têm sentido completo. Logo, os termos que os completam são obrigatórios e não podem ser dispensados. A eles também podem ser acrescidos termos acessórios.

a) Transitivo direto - é o verbo que exige um complemento que NÃO é iniciado por preposição necessária; isto é, o verbo se liga ao complemento diretamente, sem o auxílio de preposição.

(34) Nós fizemos os exercícios ontem à noite.

(35) Todos nós amamos (a) Deus.

Obs.: A preposição “a”, do último exemplo, foi usada para se obter ênfase, por isso pode ser dispensada, sem alteração de sentido. Neste caso, tem-se o objeto direto preposicionado.

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b) Transitivo indireto - é o verbo que exige um complemento que é iniciado por preposição necessária (“a” ou “para”); isto é, o verbo se liga ao complemento indiretamente, por meio de uma preposição ne-cessária.

(36) A pobre mulher fala para os filhos nervosa.

(37) A notícia não agradou ao povo.

(38) Ninguém assistiu ao jogo de domingo.

c) Transitivo direto e indireto - é o verbo que exige dois comple-mentos: um que NÃO é iniciado por preposição necessária e outro que é iniciado por preposição necessária.

(39) O aluno trouxe os cadernos para o professor.

(40) Você não mostrou as fotos aos meninos.

(41) João colocou o livro na gaveta.

3. Verbos de ligação - Verbos que ligam um predicativo ao sujeito.

(37) Paulo está muito feliz hoje.

(38) Você não anda satisfeito comigo, meu amigo!

(39) O melhor jogador do time é, sem dúvida, o Romário.

Como se pode perceber, além da omissão acerca do termo su-jeito, há outras inconsistências em torno da própria identificação dos termos que acompanham os referidos verbos.

Tomemos como elemento de digressão o exemplo (32a) e (33a) do primeiro tipo de verbo, que é considerado intransitivo.

Se considerarmos válida a explicação dada para esse tipo de verbo, em que se acresce que “quaisquer termos que se acrescentem a eles NÃO são obrigatórios, podendo, pois, ser dispensados, por se-rem acessórios”, uma contradição se apresenta de imediato. Os ter-mos: “de um lado para o outro” e “à praia” completam o sentido dos

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verbos “correm” e “foi”, respectivamente, não podendo, portanto, se-rem dispensados. Logo, não são acessórios.

Aliás, até mesmo os verdadeiramente acessórios (que deveri-am se denominar “assessórios”, já que auxiliam os verbos e seus complementos na formação de sentido da expressão linguística) não são dispensáveis à expressão linguística. São, de fato, desnecessários para a formação de uma frase oracional bimembre, que se efetiva es-sencialmente com sujeito e núcleo predicador (Ex.: João morreu.).

Em relação ao complemento indireto dos verbos transitivos também se pode observar uma contradição. Certamente, os termos “ao jogo de domingo” e “na gaveta”, que completam o sentido dos respectivos verbos “assistiu” (exemplo (38)) e “colocou” (exemplo (41)), não são objetos indiretos, se considerarmos a acepção que a própria Tradição tem desses complementos, uma vez que observa que os complementos direto e indireto podem ser substituídos por “o” (e flexões) e “lhe” (e flexão), respectivamente (Ex.: “O aluno lhe deu o recado?”, “Mostre-as para todos.” e “O livro, eu já lho entre-guei!”).

Os termos “ao jogo de domingo” e “na gaveta” não podem ser substituídos por “lhe”, mas num sintagma composto da preposição relativa ao verbo em destaque e o pronome oblíquo tônico do tipo “e-le”: “assistiu a ele” e “colocou nela”.

Para dirimir tais inconsistências e tornar a nomenclatura atual menos contraditória, pequenas alterações poderiam ser feitas, como o fez Bechara (1999), corroborando os estudos de Rocha Lima (2005) no que se refere à transitividade verbal.

7. Proposta de estudo sobre a transitividade verbal

Sem a pretensão de abarcar todos os casos de complementa-ção verbal, cuja complexidade observada no início deste estudo é flagrante, apresentamos a seguinte proposta para o estudo de transiti-vidade verbal:

8. Transitividade verbal

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1. Verbos transitivos

a) Transitivo direto - é o verbo que exige um complemento que NÃO é iniciado por preposição necessária; isto é, o verbo se liga ao complemento diretamente, sem o auxílio de preposição.

Ex.: O jardineiro regou o jardim.

Meu pai comprou um lindo carro.

b) Transitivo indireto - é o verbo que exige um complemento que é iniciado por preposição necessária (“a” ou “para”); isto é, o verbo se liga ao complemento indiretamente, por meio de uma preposição ne-cessária.

Ex.: Maria serve de olhos para o marido cego.

A notícia não agradou ao povo.

c) Transitivo direto e indireto - é o verbo que exige dois comple-mentos: um que NÃO é iniciado por preposição necessária e outro que é iniciado por preposição necessária.

Ex.: Você não mostrou as fotos para mim.

Entregarei o prêmio à vencedora do concurso.

d) Transitivo relativo - é o verbo que exige um complemento, a ele relacionado especificamente, que é iniciado por preposição necessá-ria; isto é, o verbo se liga ao complemento específico indiretamente, por meio de uma preposição necessária.

Ex.: Os agricultores cuidam do campo.

Nós confiamos em suas palavras.

Ela não se refere a você.

Obs.: O complemento relativo pode ser substituído pela preposição específica, seguida de “ele” (e flexões).

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Ex.: O filme de ontem, todos assistiram a ele.

Não confie neles!

Gosto muito dela.

e) Transitivo adverbial - é o verbo que exige um complemento, i-niciado por preposição necessária, que denota uma circunstância de lugar (aonde, onde ou de onde).

Ex.: Todos chegarão a casa tarde hoje.

Estava em Madureira, esperando por você.

Estamos vindo do cinema agora.

Nota: O complemento adverbial pode aparecer em forma de prono-me demonstrativo (do tipo: “aqui”)

2. Verbos intransitivos - Verbos que NÃO exigem complemento; por si só têm sentido completo.

Ex.: Os pássaros voam.

O menino morreu ontem.

3. Verbos de ligação - Verbos que ligam um predicativo ao sujeito.

Ex.: Paulo é realmente simpático.

Você parece um animal!

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9. Complementos de verbos

a) Objeto direto (OD) - é o complemento do verbo transitivo dire-to; isto é, é o termo que completa o sentido de um verbo, sem o auxí-lio de preposição necessária.

Ex.: Os meninos já prepararam o campo.

O carteiro entregou uma carta para mim hoje.

Ao lobo feriu o caçador.

Obs.: O complemento do terceiro exemplo é um objeto direto prepo-sicionado.

b) Objeto indireto (OI) - é o complemento do verbo transitivo indi-reto; isto é, é o termo que completa o sentido de um verbo, por meio de uma preposição.

Ex.: Nós falamos para uma multidão.

O carteiro entregou uma carta para mim.

Eu sempre obedeci aos meus pais.

Nota: Os complementos podem aparecer em forma de pro-nome oblíquo. O pronome oblíquo “o” (os, a, as) é sempre OD; o pronome oblíquo “lhe” (lhes) é sempre OI; “me”, “te”, “nos” e “vos” podem ser objeto direto ou Indireto.

Ex.: Eu os vi ontem na festa. (OD)

Você já não me ama mais! (OD)

Várias pessoas disseram-lhe isto. (OI)

Meus amigos mostraram-me coisas lindas. (OI)

c) Complemento relativo (CR) - é o complemento de verbo transi-tivo relativo; isto é o termo que, relacionado especificamente a um verbo, completa o seu sentido, por meio de uma preposição necessária.

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Ex.: Você gosta de maçã?

Não creio mais em ti!

Paulo queixou-se do irmão ao pai.

d) Complemento adverbial (CAdv)- é o complemento de verbo transitivo adverbial; isto é, é o termo que, expressando uma circuns-tância adverbial, completa o sentido de verbo, por meio de uma pre-posição necessária.

Ex.: Aquele homem veio de muito longe para vê-lo.

Eu estou na sala de aula neste momento.

João, não vai para São Paulo comigo?

Fique aqui; eu já volto!

Nota: Os pronomes demonstrativos: aqui, cá, ali, lá, acolá, al-gures, nenhures, podem completar o sentido de verbos transitivos adverbiais.

10. Considerações finais

Vimos que desde a sua implantação, a NGB tem sido critica-da pela sua ineficácia quanto à padronização da nomenclatura que os docentes necessitam usar em suas aulas de língua portuguesa. De fa-to, é flagrante a falta de conveniência de algumas das suas sugestões para certos fatos gramaticais, assim como há outros que não foram prestigiados em seu texto. Certamente, isso obriga o professor a se limitar à adequação àquelas normas ou a adotar uma nomenclatura própria, o que retomaria o que motivou a elaboração da NGB naque-la época.

Neste artigo, digressionamos acerca da transitividade verbal, demonstrando a necessidade de acréscimo de algumas poucas no-menclaturas para dar conta da análise sintática de natureza tradicio-nal. Sob tal perspectiva, certos termos que completam o sentido dos verbos portugueses, que a NGB omitiu por razões compreensíveis, mas que devem ser repensadas inexoravelmente, foram prestigiados.

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Em seguida, consideramos outras abordagens, nas quais se valorizam os papéis temáticos dos termos, com os quais os núcleos verbais se relacionam. Logo, comprovamos que muitas são as fun-ções semântico-sintáticas desses elementos, o que nos faz procurar denominações diferentes das que são difundidas nas nossas gramáti-cas e em nossos compêndios gramaticais.

Para isso, considerando os estudos de Fillmore (1968), de Borba (1996) e de Cançado (2005), comparando-os com a descrição das nossas gramáticas e compêndios gramaticais, que, de modo ge-ral, seguem as orientações da NGB.

Esperamos que o presente estudo possa servir de subsídios para uma reflexão a respeito das denominações dadas pela tradição aos complementos e complementações dos verbos portugueses, e que possa ser utilizado no ensino de análise sintática da língua portugue-sa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CANÇADO, Márcia. Manual de semântica: noções básicas e exercí-cios. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

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CUNHA, Celso Ferreira da; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramá-tica do português contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira,1985.

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RAPOSO, E. P. Teoria da gramática: a faculdade da linguagem. Lisboa: Caminho, 1992.

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ROCHA LIMA, Carlos Henrique de. Gramática normativa da lín-gua portuguesa. 45. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

WENCESLAU, Fábio L. Verbos beneficiários: um estudo na interfa-ce entre semântica e sintaxe. Dissertação de Mestrado, UFMG, Belo Horizonte, 2003.

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UMA ANÁLISE FUNCIONALISTA SOBRE O USO DOS SATÉLITES FONTE

EM NOTÍCIAS “ON-LINE”

André William Alves de Assis (UEM) [email protected]

1. Introdução

Quando um falante elege traços semânticos para uma propo-sição, seleciona entidades. Essa seleção de identidades é o que se co-nhece por estado-de-coisas, ou seja, uma codificação linguística que o falante faz da situação. Na linha de raciocínio de Dik (1989) e Pez-zati (2005), pode-se dizer que a predicação (seleção) se divide em três níveis: predicação nuclear, estendida pelos operadores de predi-cado e satélites de nível 1; predicação estendida, uma predicação central estendida pelos operadores de predicação e satélites de nível 2 e a proposição, que é uma variável que simboliza um fato possível especificado pela predicação estendida, pelos operadores (que repre-sentam crença, esperança) e pelos satélites de nível 3 (que não mu-dam o estado-de-coisas, apenas restringem o valor que o falante dá ao conteúdo proposicional).

Este artigo traz como proposta de estudo a descrição destes satélites de nível 3, sob os pressupostos teóricos de Dik (1989), apre-sentados por Pezatti (2005), utilizados para especificar a origem, ou seja, a fonte de uma informação. Para investigarmos esses satélites, analisamos como corpus notícias veiculadas na internet, retiradas de portais e revistas reconhecidas nacionalmente, na pretensão geral de observar os usos mais frequentes dos satélites fonte no gênero notícia on line. Especificamente, pretendemos demonstrar como o uso des-ses satélites se processam, e como contribuem para a validade da proposição dentro do discurso, comprometendo ou não o falante com a verdade no cálculo pragmático do propósito discursivo.

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2. Os níveis/camadas e os satélites

Segundo Dik (1989), a estrutura subjacente da oração é uma estrutura abstrata complexa, hierarquicamente estruturada em cama-das, são quatro os níveis apresentados por Pezatti (2005)22, de uma perspectiva funcionalista”. O nível mais baixo é forma o predicado e seus argumentos. Essa predicação nuclear, opcionalmente expandida por satélites de predicado (nível 1), constitui a ‘predicação central’, designação de um estado de coisas potencial; a predicação central pode, por sua vez, ser também expandida por satélites de predicação (nível 2), e assim formar a predicação estendida, uma entidade de segunda ordem referente a um Estado de coisas situado no espaço e no tempo concretos ou conceituais.

Essa estrutura é o input para a formação da proposição, de um fato possível, uma entidade de terceira ordem, que pode ser avaliada em termos de seu valor de verdade e, opcionalmente, ser expandida por satélites de nível mais alto (nível 3), tais como os atitudinais e os Fontes que especificam e validam o valor de verdade. Se um falante produz uma expressão, ele tem de selecionar uma força ilocucionária básica para essa proposição, formando assim uma entidade de ‘quar-ta ordem’ (nível 4). Cada tipo de entidade tem seu próprio tipo de operadores, meios não-lexicais para especificar informação adicional sobre o tipo de entidade envolvida.

Segundo Pezatti (2005), satélites são meios lexicais opcionais que veiculam informação adicional a uma das camadas no modelo hierárquico da oração. Esses satélites seriam opcionais porque a sua utilização ou a falta dela não afetam a estrutura da sentença, uma vez que a informação principal pertence a outra camada.

Observada a questão das camadas, as quais os satélites podem estar ligados, abordamos agora os quatro tipos de satélites existentes e sua unidade correspondente: 22 Este trabalho tem como referência o trabalho de Pezatti (2005) intitulado “A voz do outro, sob uma perspectiva funcionalista”. Como são poucos os trabalhos sobre o tema e a própria autora disse que “a gramática tradicional é omissa” (p. 65), pois não fornece uma classificação que enquadre esses satélites fonte adequadamente, utilizamos este artigo como modelo para a estrutura de nosso trabalho. Pezatti baseia-se em textos de Dik “The theory of Funcitional Grammar” e ainda Dik, Hengeveld, Vester e Vet “The hierarchical structure of the clause and the typology of adverbial satellites”.

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Camada hospedeira Tipos de satélites Predicado satélites de predicado (nível 1) Predicação satélites de predicação (nível 2) Proposição Satélites de predicação (nível 3)

Ilocução Satélites de predicação (nível 4)

Figura 1. (Adaptado de Pezatti, 2005, p. 69)

Neste trabalho, interessa-nos os satélites de predicação (nível 3), por apresentarem o meio lexical pelo qual o falante especifica uma fonte, uma autoridade, para a validação da proposição.

3. Os satélites de proposição

Os satélites de proposição (nível 3) permitem ao falante ava-liar o que ele apresenta como atos de fala, seja por meio dos satélites atitudinais, especificando sua atitude em relação a proposição, ou a parte dela ou então a validade da proposição; seja por meio dos saté-lites fonte, em que o falante se vale de uma estratégia de credibilida-de de um outro, para estabelecer o nível de credibilidade ao texto.

Observamos aqui que esse tipo de satélite confere ao texto, o que Chaim Perelman23 chamou de “argumento por autoridade” (p. 347). Segundo ele, os argumentos seriam influenciados pelo prestí-gio e, uma mesma autoridade “pode ser valorizada ou desvalorizada conforme coincida ou não com a opinião dos oradores” (p. 350). Pe-relman não considerou a forma como esses argumentos eram intro-duzidos pelo falante, mas a abordagem argumentativa desses argu-mentos em muito nos interessa neste trabalho. A intenção do falante, o meio comunicativo e o gênero produzido em muito afetam a sele-ção das autoridades e, também, as escolhas dos constituintes que in-

23 Chaim Perelman é um dos representantes de uma corrente filosófica e acadêmica que obje-tivava a recuperação da dignidade da retórica no século XX. Sua teoria encontra na argumen-tação o fundamento de uma nova racionalidade, isto é, passa a considerar a sua importância no pensamento e para o conhecimento. Seu livro Tratado da Argumentação inicia abordando elementos que poderiam ser classificados como pertencentes à esfera das estratégias. Perel-man prima pelas exposições das escolhas a serem tomadas pelo orador, envolvendo os fatos e a seleção dos dados, as premissas relevantes, os valores a serem observados, os lugares, a matéria e a forma do discurso, as figuras de retórica e argumentação etc.

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serem as vozes que dão credibilidade ao texto; essa escolha é emi-nentemente argumentativa.

Num levantamento quantitativo inicial, observamos em nosso corpus 31 ocorrências de satélites fonte, que analisaremos segundo os aspectos de posição que ocupam na oração, os traços [+/-] huma-no e a intenção do falante. Vejamos os resultados completos no pró-ximo tópico.

4. Aspectos gramaticais

Observamos nos textos analisados que existe uma preferência de satélites pelos falantes entre os 31 sintagmas nominais utilizados como satélites fonte. Nos textos analisados, evidenciamos uma maior utilização do satélite fonte “segundo” que perde seu valor tradicio-nalmente conformativo e funciona como um indicador de pessoa a quem se atribui uma opinião, são 14 ocorrências. “De acordo com”, com 10 ocorrências é o segundo satélite mais utilizado. Em menor número temos o “para” com 4 ocorrências e o “conforme” com 3.

Nossos resultados são diferentes daqueles encontrados no tex-to de Pezatti.24 Observe a tabela 2:

Satélites Ocorrências % segundo 14 45,16

de acordo com 10 32,26 para 4 12,90

conforme 3 9,68 TOTAL 31 100%

Figura 2. Levantamento quantitativo dos satélites de nível 3 no corpus.

Em relação à ordem, observamos que em 78% dos casos, os satélites precedem o sujeito.

Segundo noticiou o Gulf News, Jobim declarou que espera que o acordo final seja apresentado em dois meses, antes da posse do novo go-verno brasileiro, em janeiro do ano que vem. O ministro brasileiro tam-

24Em sua análise o “segundo” aparece como o mais utilizado, com 30 ocorrências. O “para” com 16 ocorrências” e o “de acordo com X” com 07, totalizando 53 ocorrências. Em nossa aná-lise há uma inversão entre os dois últimos constituintes, e também apontamos o uso do “con-forme”.

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bém disse que o acordo era parte de uma iniciativa do Brasil de se tornar internacionalmente reconhecido na indústria militar, citou o diário. (Oes-tadao.com)

Para PGR, recurso de Roriz deve ser arquivado. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, encaminhou há pouco ao Supremo Tribu-nal Federal (STF) parecer em que pede que não tenha validade o julga-mento do recurso do ex-candidato ao governo do DF Joaquim Roriz (PSC). (Oglobo.com)

Uma explicação para essa preferência pode ser explicada pelo princípio de ordenação icônica, que aponta para o fato de que a or-denação de constituintes pode ser explicada em termos de preferên-cias, resultados de princípios funcionalmente motivados. Abordare-mos este aspecto, para nós discursivos, no tópico 5 deste trabalho.

Interessante observar novamente que não há uma estrutura fi-xa, os satélites podem aparecer no começo, no meio ou no fim de uma proposição. A finalidade do emprego, a funcionalidade comuni-cativa é a que define o melhor posicionamento.

Figura 3. Resultado percentual de posicionamento dos satélites Fonte.

O que podemos observar em nossa análise é que as constituin-tes mais complexas são posicionadas preferencialmente no final das proposições, 13% as ocorrências. A colocação desse satélite em po-sição final parece ser motivada por ele funcionar como uma informa-ção auxiliar na correta interpretação da oração:

O estado do Pará desmatou 220 quilômetros quadrados de floresta, o equivalente a 32 mil campos de futebol. As causas por trás desse título inglório de maior desmatador são velhas conhecidas da sociedade. "No Pará, há uma intensa expansão ilegal de áreas de pastagem para pecuária e de agronegócios, principalmente os ligados à produção de soja", se-

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gundo Sanae Hayashi, pesquisadora do Imazon. (Portalexa-me.abril.com.br)

Jornais – O Brasil conta com 465 jornais diários em junho de 2000, conforme a Associação Nacional de Jornais (ANJ). (Portalbrasil.net)

Devemos, porém, levar em consideração que a maioria (78%) desses constituintes mantém a posição inicial. Dada a característica de uma informação nova, o falante vê-se na necessidade de qualificar a entidade, a fim de buscar no mundo a autoridade que dela emana, para conferir credibilidade ao seu texto, funcionando inclusive como valor argumentativo na validação da proposição.

Segundo o petista, Marina iria ouvir pessoas mais próximas a ela antes do encontro. (Folha.com)

De acordo com O The National, ainda, Mustafa Alani, especialista em segurança do Centro de Pesquisas do Golfo em Dubai, que enfatizou que os Emirados Árabes Unidos poderiam usar a aeronave de transporte brasileira para expandir seu leque de missões humanitárias. (Oestadao.com)

Para a petista, o episódio da denúncia contra a ministra - que disse ter encontrado rapidamente em duas cerimônias após sair do governo – somam-se ao escândalo da quebra de sigilos fiscais de tucanos como um conjunto de acusações para tentar desestabilizar sua candidatura. "Eles (os adversários) estão procurando a bala de prata, em busca da bala de prata. Sinto informar que não terão." (Portaldopurus.com.br)

Também observamos, em menor quantidade (9%), satélites em posição intercalada. Como afirma Pezatti (2005, p. 71)

A alteração na ordenação linear desse constituinte está relacionada a determinação de ordem pragmática, como estatuto informacional (dado/ novo) e função pragmática (Tópico retomado).

Já observamos em exemplos anteriores que na posição inicial há ocorrência dos três constituintes. “De acordo com” e “segundo” ocorrem também na posição final. Este também foi o constituinte com maior ocorrência no meio das orações, porém não o único, pois observamos o “de acordo com” nesta posição.

Assim, podemos concluir que “segundo” e “de acordo com” podem ocorrer em todas as posições, porém o predomínio de ambos está na posição inicial.

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O Brasil, conforme a World Press Trends, é o país em que mais jornais lançam sites na rede, com um crescimento de 14% ao ano. (Portalbrasil.net)

Erenice diz em nota que irá à Justiça contra acusações. A ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, divulgou nota ontem (11) em que nega as denúncias publicadas na revista Veja. Israel Guerra, filho de Erenice e, segundo a reportagem, receberia dinheiro para intermediar contratos milionários entre empresários e órgãos do governo. (Portaldopurus.com.br)

Em relação à posição dos satélites fonte, concordamos com Pezatti ao apontar que, em português escrito, o constituinte “segun-do” parece ser o preferido entre os brasileiros. O índice de utilização e a sua mobilidade foram marcantes em nossa análise, dos 31 casos observados 78% são direcionadas para este uso. (Cf. Fig. 3)

As entidades humanas têm preferência neste tipo de satélite fonte, pelo menos nos textos que compreendem nosso corpus.

Figura 4. Resultado percentual de posicionamento dos satélites fonte.

Observe a figura 4. Em 88% dos casos, na sua maioria repre-sentado pelo uso do “para”, as entidades possuem traços humanos [+hum], fato explicável uma vez que se inserem na oração vozes com a finalidade de dar credibilidade à proposição.

Para Alani, o interesse árabe no Super Tucano brasileiro, um avião de combate leve, que poderia ser ideal para operações de contrainsurgência, segurança de fronteiras e combate ao tráfico de drogas. (Oestadao.com)

Para uma neófita no mundo da política como Dilma Rousseff, chegar à frente dos adversários no primeiro turno seria motivo de comemoração. Mas para quem chegou a ter chances de vitória já na

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primeira fase da eleição, o segundo turno tem gosto de derrota e de apreensão. (Portaldopurus.com.br)

Se falamos de vozes dentro da proposição, então evidencia-mos na análise o fenômeno da polifonia, da citação no uso desses constituintes. Esta heterogeneidade do discurso, segundo Ducrot, é constitutiva do sujeito (ou locutor) que está em relação constante com um outro do discurso. Tal sujeito faz referência a este outro ex-pressando sua ótica, dentro de uma enunciação, que pode ou não ser compatível com a sua (do sujeito). O outro expresso no discurso es-taria se referindo a uma perspectiva ou postura de um ou mais enun-ciadores, segundo nomenclatura adotada por ele. Sendo assim, a dis-tinção que se faz entre locutor e enunciador é de origem pragmática e semântica.

Podemos observar também a presença de entidades não hu-manas [-hum]. São poucas as ocorrências essencialmente não huma-nas, pois muitas das que classificamos (12%) remetem metonimica-mente a entidades [+hum], como no caso de Jornais, Institutos, Jor-nal, Órgãos Internacionais, Revista, e outros.

De acordo com O The National, ainda, Mustafa Alani, especialista em segurança do Centro de Pesquisas do Golfo em Dubai, que enfatizou que os Emirados Árabes Unidos poderiam usar a aeronave de transporte brasileira para expandir seu leque de missões humanitárias. (Oestadao.com)

De acordo com a Chancelaria britânica, os "ataques poderiam ser indiscriminados, incluindo locais frequentados por residentes e turistas estrangeiros". Já o comunicado americano, que não especifica nenhum país europeu, informa que atentados poderiam ter como alvo "o sistema de transporte público e outras infraestruturas turísticas". (Oestadao.com)

O “de acordo com” tem preferência em nosso corpus como satélite Fonte que introduz uma entidade não humana, mas que, co-mo já dissemos, metonimicamente remete a entidades [+hum]. A re-ferenciação desses constituintes se apresenta tanto em termos defini-dos como indefinidos. Segundo Pezatti (2005, p. 74)

Termos definidos são usados para estabelecer referência identifica-dora, e indefinidos, para estabelecer referência construtora. Assim, por meio de termos definidos, F convida D a identificar um referente que ele supõe estar disponível para D; já por meio de termos indefinidos, F con-vida D a construir um referente conforme as propriedades especificadas.

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Observa-se que a maior parte dos constituintes são definidos porque o falante acredita, pragmaticamente, que seu interlocutor po-derá identificar o referente por ele inserido Esta informação já seria do conhecimento deste interlocutor. Mesmo os indefinidos tornam-se identificáveis em alguma parte do texto.

De acordo cm Ciro Botelho, o palhaço Tiririca conta com a ajuda da mulher para decorar suas falas: “A mulher fica no camarim com ele e vai falando o texto. Ele vai decorando e conta do jeito dele” (Revistaepo-ca.globo.com)

Segundo o dirigente petista, o PT vai procurar abordar neste se-gundo turno a bandeira do desenvolvimento sustentável. Dutra disse que a questão é compatível com o partido. (Folha.com)

Em julho passado, segundo dados do Sistema de Alerta de Des-matamento (SAD), o estado paraense também foi o que mais desmatou. No período, a Amazônia perdeu 155 km² de vegetação, sendo o Pará res-ponsável por 51% (79 quilômetros quadrados). (Portalexa-me.abril.com.br)

Encontramos apenas dois casos que apresentaram indefinição nos termos apresentados: um iniciado pela preposição “segundo” e outro com a locução “de acordo com”. Uma vez que os satélites fon-te têm a função dar credibilidade a um texto, acreditamos que a utili-zação de constituintes definidos se justifica, pois a validação da pro-posição está na certeza de se assegurar que o interlocutor poderá i-dentificar esse referente, por isso a definição ser amplamente utiliza-da nos textos analisados.

No novo figurino, segundo a reportagem, Israel operou, pelo menos, a concessão de um contrato de R$ 84 milhões para um empresário do setor aéreo com negócios com os Correios. Chamada de "taxa de sucesso", a propina foi estimada em R$ 5 milhões e teria servido em parte para "saldar compromissos políticos". (Portaldopurus.com.br)

De acordo com a nota, o PV fará uma convenção nacional para decidir a questão. Na tarde desta terça-feira, Dutra havia afirmado que Marina Silva já tinha aceitado se reunir com a campanha de Dilma Rousseff para discutir o apoio. (Folha.com)

5. A discursividade

Observamos até o momento que a utilização dos satélites fon-te tem por finalidade inserir uma origem/fonte que assegure a valida-

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ção, a verdade da proposição. Essa inserção, por meio de fenômenos como a polifonia ou a citação, atesta a heterogeneidade do discurso. Para Bakhtin, a citação é o modo mais evidente de se representar o discurso do outro, embora haja inúmeras formas de manifestação do jogo polifônico. O que podemos depreender na análise, é que o pro-pósito comunicativo do falante revela um comprometimento ou en-tão descomprometimento com a verdade.

O principal motivo desse crescimento são os investimentos das em-presas em tecnologia – estima-se que entre 1995 e 2000 tenham sido gas-tos 600 milhões de dólares apenas em rotativas. Nesse período, novos parques gráficos são instalados e impressoras 4 x 4 compradas, o que aumenta a quantidade de jornais em cores e melhora a qualidade da im-pressão. Outro fator é a pronta adaptação dos jornais à internet. Segundo a World Press Trends, nosso país é que mais jornais lançam sites na rede, com um crescimento de 14% ao ano. (Portalbrasil.net)

No exemplo acima, observa-se o comprometimento do falante em relação à proposição. Justifica-se pelo fato de o texto reunir in-formações sobre o Brasil, informando que o país está crescendo e tem infraestrutura invejável no cenário mundial. O falante, então, compromete- se com o enunciado, toma esta voz como própria, obje-tivando a persuasão do leitor/interlocutor. Há uma aproximação entre o locutor e a World Press Trends, observada pela utilização do pro-nome possessivo “nosso”. O falante, então, aproxima- se da voz do outro, a fim de garantir a validade da proposição, na intenção de per-suadir seu interlocutor com a autoridade inserida na oração.

Outras vezes, entretanto, o falante tenta se distanciar do que é dito, vejamos:

Weslian foi indicada pelo marido, Joaquim Roriz (PSC), na última sexta-feira (24), após ele abrir mão da candidatura com receio de ser en-quadrado na Lei da Ficha Limpa. Para Góes, a aceitação da candidatura de Weslian teria um efeito cascata, “legitimando diversas candidaturas laranja" em todo o país. Roriz é autor do recurso encaminhado ao Su-premo Tribunal Federal (STF) que contesta a validade das novas regras eleitorais para este ano. (Oglobo.com)

No exemplo acima, o falante se distancia da voz apresentada, a responsabilidade do que é dito fica a cargo do outro na proposição inserida, há um distanciamento da verdade posta. Esse mecanismo é muito utilizado em textos midiáticos. Está presente na maior parte de nosso corpus, que tem por objetivo apresentar uma notícia sem se

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comprometer, atribuindo ao outro a responsabilidade pelo enunciado. Observe que o verbo, no futuro do pretérito, colabora para que o fa-lante se exima da responsabilidade da fala.

Ainda sobre a discursividade, notamos que o propósito comu-nicativo é que indicará a melhor utilização dos satélites; o melhor constituinte a ser empregado. Em textos argumentativos como o que defende o Brasil (Brasil, economia e comunicações), ou o que critica a candidatura do palhaço Tiririca (Tiririca, o palhaço que não lê) a-nalisados neste artigo, observa-se que a voz do outro é utilizada co-mo argumento para as proposições inseridas no texto. O falante compromete-se com o que é dito, assume a voz, alicerçado na auto-ridade que este outro possui, como própria, como argumento para a tese que apresenta.

Já nos textos da Folha.com, Oglobo.com, Exame.com e Esta-dão.com, que se apresentam como reportagens, a tendência é contrá-ria. Há um distanciamento entre o falante e os discursos inseridos pe-los satélites fonte. A imparcialidade almejada, mesmo que no ponto de vista linguístico isso seja improvável, está inserida nesse gênero, a funcionalidade discursiva dessas notícias, o propósito enunciativo determinam, portanto, a utilização desses satélites como meio de va-lidar uma proposição, neste caso, de forma objetiva sem comprome-ter o falante.

6. Conclusão

Apresentamos neste trabalho uma análise sobre os satélites fonte, baseados no texto de Pezatti (2005), que tem como pressupos-to a teoria da gramática funcional de Dik. Observamos na análise que os constituintes “segundo”, “de acordo com” e “para”, nesta ordem, foram os de maior ocorrência em nosso corpus. A posição preferida foi a inicial, embora a utilização de satélites fonte ocorram também no meio e no final da oração.

O falante também tem preferência por definir a fonte, e mes-mo as indefinições podem ser retomadas em alguma parte do texto; isso deve-se ao fato de o argumento servir como validação de uma proposição e, por isso, o interlocutor deve reconhecer a fonte como autoridade para que seja garantida esta validação.

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Com a utilização dos satélites fonte, o faltante pode ou não se comprometer com o que diz. Essa relação se dará de acordo com o propósito discursivo a que se destina o enunciado, pois os resultados obtidos mostram que ao inserir outra voz no discurso o falante ex-pressa maior ou menor comprometimento com a verdade do enunci-ado, o propósito discursivo define essa relação.

Também podemos observar que as entidades selecionadas possuem, em sua grande maioria traços humanos e, mesmo aquelas com traços não humanos relacionam-se metonimicamente com re-presentantes humanos, caso de jornais, partidos políticos, empresas, institutos internacionais e outros. Aqueles exclusivamente não hu-manos (somente dois), foram selecionados com os constituintes “se-gundo” e “de acordo com”, portanto não podemos dizer qual a prefe-rência neste trabalho, embora acreditamos ser possível observar isso em outro trabalho.

Observamos que a utilização dos satélites fonte evidencia a heterogeneidade polifônica do discurso, o que não nos permite res-tringir a análise somente no nível da oração. A informação como um todo é apresentada de forma empacotada, intencional, o que eviden-cia o proposito discursivo e norteia as estratégias do discurso. Esse jogo estratégico da linguagem é sempre um cálculo pragmático.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VISÕES DO RIO DE JANEIRO NAS CRÔNICAS DE JOAQUIM MANOEL DE MACEDO E JOÃO DO RIO

E SUAS PROJEÇÕES NO ENSINO DE LITERATURA

Maria Cristina Ribas (UERJ) [email protected]

Carolina Santiago (UERJ) Rafaela Ramos (UERJ)

1. Introdução

O século XIX não foi de grande importância apenas para a consolidação do jornalismo, como também para a formação da litera-tura brasileira. Entre as duas áreas há uma distância tênue, princi-palmente no Rio oitocentista, em que literatura e jornalismo dialoga-vam e se constituíam de maneira híbrida, especialmente por conta do suporte – jornal – que veiculava a produção literária do período. Nes-te sentido, o jornal foi o importante, para não dizer o primeiro, veícu-lo de cultura de massa no Brasil.

O fenômeno ocorreu de maneira concomitante à construção de uma nação, ainda que 85% da população brasileira, no 2º reinado, fossem analfabetos. Porém, apesar de as duas estarem em constante formação, a literatura brasileira representou grande contribuição à mais ampla circulação do jornal, não só em relação ao espaço que esse proporcionou ao crescimento e desenvolvimento literário, mas também por disseminar ideias e debates que favoreceram a formação de uma opinião pública, os leitores. Relevamos, aqui, uma contribui-ção decisiva do jornal para a literatura brasileira: a formação do lei-tor. Segundo Michelle Strzoda, “o estabelecimento da imprensa no Brasil foi determinante para pensar a nação e para auxiliar na cons-trução definitiva de uma literatura genuinamente brasileira: pensada, escrita, e desenvolvida por brasileiros, no Brasil”. (STROZDA, 2010, p.22) Embora discordemos do atributo “genuína” da autora, – porque implica em um purismo de conceito que não endossamos –, entendemos o seu esforço em marcar a importância do gênero jorna-lístico para a formação da literatura e do leitor no Brasil.

O desenvolvimento e modernização do Rio tiveram como consequência transformações também na imprensa brasileira que, as-

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sim, pode ter mais liberdade para publicar o que fosse de seu desejo, na medida do possível, sem estar mais tão ligada à propaganda polí-tica. Podemos dizer que nesse momento desenvolveu-se uma espécie de sensação de autonomia que, embora parcialmente ilusória - por conta do regime político e modo de produção -, funcionou como es-topim à produção literária. Escritores brasileiros como Joaquim Ma-noel de Macedo, José de Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, entre outros, foram de grande importância para o desenvolvimento da imprensa brasileira e, consequentemente, para a formação de uma literatura brasileira, disseminada, graças aos periódicos e jornais, neste contexto histórico favorável.

Como não havia, ainda, profissões de jornalista, nossos escri-tores assumiram este lugar. A forte ligação imprimiu, aos jornais oi-tocentistas, um tom mais literário e, ao mesmo tempo, didático, ou seja, com o desejo de aproximação do leitor e de criação de um pú-blico leitor, os jornais e periódicos assumiram uma função cultural e educativa. A questão da proximidade é fundamental no contexto da modernidade pós-revolução industrial e, cada vez mais, ganha con-sistência na sociedade contemporânea. Estar próximo do público, qualquer que seja, é considerar os efeitos do produto, no caso, o tex-to literário, na esfera da recepção.

Nossos escritores-jornalistas permitiram que aquela popula-ção tivesse contato com informações políticas, internas e externas, e com a literatura. A democratização do acesso à leitura culminou no período identificado como Romantismo, estilo literário que quebrou os padrões literários então vigentes, com a pretensão de uma literatu-ra mais livre do cânone e mais próxima do que se reconhecia como brasileiro. O Romantismo contribuiu para a chamada “explosão jor-nalístico-literária na imprensa carioca”, a partir do momento em que inseriu a população na literatura em seus costumes e falares, o que, por sua vez, contribuiu para o crescimento do público-leitor. Com esse aumento, cada vez mais foi fortalecida uma literatura e uma lin-guagem, dentro do jornal, que interessasse aos leitores da época. Isso só foi possível com o jornal carioca do séc. XIX, que teve espaço pa-ra o folhetim e, doravante, para as crônicas, “que ocuparam um espa-ço em comum nos periódicos oitocentistas: o rodapé literário das pá-ginas de variedades (...), destinados a entreter os leitores e a conferir

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mais leveza às edições.” (STRZODA, 2010, p. 53), onde nasceu, se-gundo a autora, o que chamamos, hoje, de Jornalismo Cultural.

Originados dos jornais de Paris, como o Journal des Débats e La Presse, a crônica e o romance-folhetim, através de publicações seriadas, foram a primeira literatura de massa do século XIX. Como bom exemplo, temos o romance-folhetim A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo, que teve um grande sucesso em número de ven-das e é considerado pelos críticos como o primeiro romance nacio-nal. O romance-folhetim e a crônica também têm grande importância na divulgação destes gêneros no país, os quais conseguiram até e-mancipar-se do jornal, tal a sua disseminação, apesar de a crônica es-tar presente/ligada, até hoje, aos jornais.

A crônica, que circula facilmente entre literatura e jornal, pelo seu caráter híbrido, é o gênero em que nos deteremos neste trabalho, exatamente pelas suas características de mesclar história, memória, literatura, jornal, linguagem popular, humor etc. É um texto que dis-ponibiliza ao leitor um apanhado social, político e cultural do tempo e do espaço em que se situa, e, portanto, é importante o trabalho com ela em sala de aula. Aos poucos os alunos vão chegando a várias percepções; sem deixar de trabalhar com um gênero literário, começa a entender o processo de composição literária dos escritores que, muitas vezes, utilizavam os fatos como matéria prima para exercer seus estilos e criatividade.

As crônicas exigiam de seus escritores uma observação atenta da sociedade, desde os últimos acontecimentos até o modo de vida da sociedade carioca oitocentista, e ao contrário do que parece ou do que críticos “preconceituaram”, ela não é necessariamente efêmera ou superficial, tanto que, hoje, são consideradas documentos de grande valor histórico e literário. Segundo a autora Michelle Strzoda, “a busca pelo humor, pela caricatura, pelo cenário e pelo diálogo constante com o leitor faz da crônica um gênero popular, talvez o mais popular no meio jornalístico.” (STROZDA, 2010, p. 22) Dessa forma, foi considerada, por vezes, um gênero “menor”, porém vere-mos que a miscelânea de acontecimentos, reflexões e literatura que só a crônica consegue fazer, nos dará um rico material de trabalho nas aulas de literatura.

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No Rio de Janeiro do séc. XIX temos uma fértil produção de crônicas dos nossos escritores, que têm grande valor para a história e memória do Brasil. Neste trabalho, nos deteremos a Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882) e João do Rio (1881-1921), escritores que, cada um no seu tempo e contexto social, convergem no que diz res-peito ao ato de observância da cidade do Rio de Janeiro, e, por que não dizermos, ao ato de flanar.

2. Joaquim Manoel de Macedo

Foi um dos escritores que mais escreveu crônicas nos jornais cariocas e por mais tempo. Só no Jornal do Commercio, Joaquim Manoel de Macedo escreveu por vinte e cinco anos ininterruptos. Conhecido nos bancos escolares apenas pelo romance A Moreninha, Macedo contribuiu, durante quase toda a sua vida, para vários jornais oitocentistas com crônicas, artigos políticos e romances-folhetins, sendo assim, um autor importante para a história da imprensa literá-ria do Rio de Janeiro. Suas crônicas rememoram o Rio de Janeiro oi-tocentista de uma maneira bem particular. O escritor/jornalista traz questionamentos político-sociais à tona, ao mesmo tempo em que “conta histórias”, resgatando o folclore e a cultura (preocupação do próprio escritor), com um tom literário, sendo suas crônicas um belo exemplo do gênero no nosso país. Macedo, com a preocupação de uma linguagem simples e, consequentemente, de uma aproximação com o leitor, dialoga com este ao longo de sua narrativa. Dessa for-ma, faz apontamentos sérios, como críticas políticas e sociais, por meio de uma aparente conversa informal. Em “São João de Itaboraí” (Ostensor Brasileiro – Jornal Literário Pictorial – 1846), que é con-siderada sua primeira crônica publicada, Macedo já se mostra bastan-te crítico em relação ao Brasil:

Rico, saudável, alegre e cheio de proporções para ser grande, Itabo-raí, todavia ou permanece estacionário, ou sem progresso e quase imper-ceptível: porque não progride ele?... É que no Brasil tudo quanto é apro-veitável, grande, nobre e preciso se olvida e se despreza... Há só uma consideração, que pode tudo, que nunca se esquece, que dirige todas as nossas seções... o interesse próprio. (MACEDO, 2010, p. 89)

Esse caráter crítico continuará aparecendo nas crônicas de Jo-aquim Manoel de Macedo, mas nem por isso elas perdem o estímulo da leitura. Ainda que com críticas sociais contundentes, a leitura con-

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tinua leve e, principalmente, instigante. Na seção “O Labirinto” (Jornal do Commercio – crônicas publicadas entre 23 de abril e 17 de dezembro de 1860), por exemplo, Macedo deixa claro esse caráter social na crônica de 20 de maio:

O título de ‘O Labirinto’ que tomamos exprime a verdadeira essên-cia desses artigos; porque o ‘O Labirinto’ tem por fim daguerreotipar uma época de coisas inextricáveis, em que tudo e todos se veem atrapa-lhados e com a cabeça andando à roda, sem saber por onde entraram, e menos por onde podem sair. (...) O nosso ‘O Labirinto’ portanto refletirá, à semelhança de um espelho, a vida da nossa sociedade, e portanto um labirinto social onde todos se acham às tontas com os erros, que são mui-tos, os despropósitos não poucos, e apenas encontram raros os acertos, que já parecem milagres. ( MACEDO, 2010, p. 138-9)

A ironia, assim como o diálogo com o leitor, está fortemente marcada nas crônicas de Joaquim Manoel de Macedo. Nesta mesma seção, na crônica de 2 de julho de 1860, ele ironiza o fato de desem-bolsarem cento e quarenta contos de réis por ano para o teatro lírico, que só havia cantores italianos, enquanto o Brasil tinha outras priori-dades:

Mas donde sai esse dinheiro, que não importa um ônus para o Esta-do?... Sai do bolso do povo: e de que povo?... Do povo pobre: e para que fim?... Para divertimento dos ricos. Ah!, povo pobre!... A ti melhor que a ninguém se pode aplicar o sic vos non vobis de Virgílio, pois que nin-guém melhor do que tu representa o papel de abelha, que fabrica o mel, não para si, e o do boi que puxa o arado em proveito de outros. É, com efeito, o povo pobre quem com o tributo das loterias sustenta o teatro lí-rico, o teatro aristocrático, o teatro de luxo, que pode somente ser fre-quentado pelos ricos. Mas também para que diabos servem os pobres se-não para pagar os prazeres, os divertimentos e os gozos dos ricos?... Viva La pátria!... (MACEDO, 2010, p. 157-8)

Não só de críticas sociais se detém Macedo. Ele caminha pelo Rio de janeiro e conduz o leitor a um passeio pela cidade; suas pala-vras “soavam como um chamariz para abandonar a cidade física e entrar na cidade literária.” (STRZODA, 2010, p. 86). Nas crônicas da seção “O Passeio”, publicadas no Jornal do Commercio entre 1861 e 1862, nós podemos perceber isto. Esta seção deu origem ao livro Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro, que se tornou refe-rência em estudos de memória cultural e geográfica da cidade. Nela, vemos mais fortemente o diálogo com o leitor, com pretensão a uma conversa informal e uma caminhada junto ao leitor: “Paremos agora um pouco, e conversemos por dez minutos.” (2010, p. 205). Macedo,

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com essas crônicas, também nos leva a um Rio de Janeiro anterior a ele, com histórias de tradição popular que estavam se perdendo em seu tempo. O próprio autor demonstra a preocupação de preservação destas tradições:

Achareis que vos estou contando coisas que todos sabem. Ah! Lem-brai-vos que os tempos que vão passando levam consigo, pouco a pouco, as usanças, os costumes, as ideias e também algumas cerimônias religiosas dos nossos antigos, e que, portanto, convém ir conservando a memória de todos esses traços que caracterizam e nos mostram as feições do nosso passado. (MACEDO, 2010, p. 226)

Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro é dividido em oito partes: O Palácio Imperial; O Passeio Público; O Convento de S. Teresa; Convento de S. Antônio; A igreja de S. Pedro; O Imperial Colégio de Pedro II; A capela e o recolhimento de N. S. do Parto; A Sé do Rio de Janeiro. Em todas essas partes, o leitor é de fato levado a esses lugares, conhecendo suas histórias, evoluções, situações de desleixo por parte do governo, tamanha a qualidade de descrição de Macedo, que constrói imagens, através de seus relatos, sendo uma obra maravilhosa até para quem não conhece os lugares citados, dei-xando uma curiosidade nestes leitores de conhecê-los. Dentro dessas crônicas, pelo fato de Macedo nos contar a história desses lugares, há narrativas, e é nesta parte que adentramos mais na ficção presente nestas crônicas, que nos faz viajar no tempo juntamente com o autor. Em O Convento de S. Teresa, constatamos essas imagens:

Deixemos, pois, as novas e belas ruas abertas ainda ontem e suba-mos de preferência pelo antigo caminho do Desterro, que depois se trans-formou em ladeira de S. Teresa, ladeira íngreme, demasiado fatigante e que muito mais penosa seria se, a cada passo que vai subindo, o homem não tivesse ao lado direito um encanto que lhe ocupa o ouvido no mur-múrio da corrente da Carioca, que desce pelo encanamento, e ao lado es-querdo mil encantos que lhe disputam os olhos, no quadro formoso e va-riadíssimo da baía do Rio de Janeiro. Não temos necessidade de subir muito: o convento de S. Teresa ali está. Voltai-vos à direita, levantai a cabeça, aí o tendes. Foi um piedoso retiro, e ao mesmo tempo uma prisão tristíssima. (...) Esperai um pouco: não nos aproximemos ainda do con-vento. Sentemo-nos em frente dele nestas pedras, e, antes de encetar a sua história, comecemos pela recordação de uma ermida que o precedeu. (MACEDO, 2010, p. 280)

3. João do Rio, A alma encantadora das ruas

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Escrita por um cronista jornalista, A alma encantadora das ruas apresenta, de forma artística, a investigação que João do Rio fez durante suas andanças no centro urbano do Rio de Janeiro.

Assemelhando-se a Machado, João do Rio consegue transmi-tir ao leitor uma visão panorâmica da cidade que se transforma geo-gráfica (a obra foi escrita durante o governo do prefeito Pereira Pas-sos, que fez modificações profundas na paisagem carioca) e social-mente. O espaço físico que escolhe para demonstrar, eficazmente, tais transformações é a rua – e o personagem que anda nela, o flâ-neur, observador incansável, encantado por tudo que vê.

O livro divide-se em cinco partes (A rua, O que se vê nas ru-as, Três aspectos da miséria, Onde às vezes termina a rua, A musa das ruas) e cada uma delas é essencial para compreender o estudo jornalístico e literário que o escritor fez de sua cidade. A obra inicia-se com a crônica "A rua", parte que o escritor reserva para declarar seu amor incondicional pela via pública e para demonstrar o ambien-te social em contínuo processo de transformação. Na segunda parte, são apresentadas as profissões que povoam as ruas, isto é, os subem-pregos (ambulantes, tatuadores, os artistas urbanos, entre outros) e o que pode ser encontrado, além disso.

Em Três aspectos da miséria, o espaço urbano é a fonte para a crítica à desigualdade social. O escritor também demonstra, através da união de crônicas Onde às vezes termina a rua, o enclausuramen-to de alguns cidadãos que, após atos impensados ou deliberados, perdem o direito de transitar livremente. No final do texto há a com-paração entre Musa Inspiradora (entidade divina que traz inspiração ao poeta, sobretudo romântico) e acontecimentos que, para a grande maioria das pessoas são banais, mas para o escritor, são fontes de inspiração constantes.

Após estabelecer tais distinções entre os capítulos, percebe-se que, através da narrativa, o Rio de Janeiro transforma-se em quadro e sua moldura são as ruas, pois, avaliando os acontecimentos da Repú-blica, através da paisagem urbana, nota-se que João do Rio vê uma cidade que se moderniza, mas ainda mantém uma grande classe de pessoas que vivem na miséria, ou realizando profissões desvaloriza-das, ou criando novas atividades para suavizar a pobreza. Existe também aqueles que, nas palavras do autor, vestem bem, dormem

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bem, chegam a ter opiniões, sistema moral, ideias políticas. Ninguém lhes pergunta a fonte inexplicável do seu dinheiro.

É retratado também um Rio que, apesar do anseio de trans-formar-se em uma capital com semelhanças europeias (preferencial-mente Paris), ainda mantém uma população que prefere a leitura descartável, deixando de lado os grandes clássicos, caracterizando, dessa forma, uma população que ainda não havia se instruído.

O preconceito social também está presente durante a narrativa e é muito bem exposto através de um breve diálogo entre um vende-dor e uma jovem, na crônica Mariposas do Luxo, que fica encantada com um tapete e resolve perguntar o preço do objeto. O homem in-forma para ela o preço e pergunta, ironicamente, se a menina quer comprar, gerando dessa forma um mal estar, pois o comerciante sa-bia que a adolescente não possuía dinheiro para tal extravagância.

O próprio título da crônica já remete ao leitor a sensação de imobilidade social para determinadas classes, já que o que a maripo-sa faz é apenas voar ao redor da lâmpada e observar o que há nela, mas nunca pode adentrá-la, pois é inacessível, nota-se mais uma crí-tica do autor: é permitido transitar nas ruas chiques, mas nunca ser, de fato, integrante definitivo daquele meio.

Além disso, em um dos parágrafos do texto, o narrador des-creve as adolescentes que esperam o movimento da Rua do Ouvidor (rua em que se vendia acessórios caríssimos para membros da alta sociedade) terminar para transitar entre a vitrines. Durante o seu de-talhamento, percebe-se que a maioria das jovens que compartilham de tal atitude é mestiça, revelando que a pobreza estava (e ainda está) relacionada à cor dos habitantes, ou seja, do lado do preconceito so-cial existia o preconceito racial.

O autor também denuncia a exploração infantil e a corrupção. Para ele, esses eram acontecimentos sociais inaceitáveis, e a polícia, ou seja, as autoridades responsáveis, não pretendiam mudar a reali-dade por puro descaso.

Ao elencar as visões que Paulo Barreto tinha do Rio de Janei-ro: desigualdade social, preconceitos racial e social, exploração in-fantil, corrupção, população sem cultura, desejo das autoridades em transformar o espaço urbano em uma cidade francesa, a formação de

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novas profissões para driblar a pobreza extrema e descaso das auto-ridades, nota-se que o autor tinha consciência de estar vivendo em uma cidade extremamente plural, onde o belo, requintado e novo u-nia-se ao feio, deselegante e ultrapassado, por isso, quando finaliza o livro, descreve a Musa das Ruas, ou seja, a Inspiração, que era toda essa divergência social, cultural, geográfica que residia, assim como ele, na Cidade Maravilhosa.

4. Primeiras conclusões

Depois de passearmos pelas visões do Rio de Janeiro através das crônicas de Joaquim Manoel de Macedo e João do Rio, procura-mos mostrar, num primeiro momento, de que forma são interessantes essas crônicas no ensino de literatura. Levando-se em conta tudo o que foi exposto, podem-se levantar questões que defendam a prática da leitura em sala de aula a partir do gênero em questão. Uma delas pode ser o encontro dos alunos com o(s) outro(s) lado(s) dos escrito-res, que muitas vezes são eternizados com uma, e apenas uma, visão (geralmente a dos romances). A introdução das crônicas no ensino nos permite mostrar aos alunos, de maneira mais ampla, esses escri-tores.

Atualmente, existe na escola pública uma dificuldade de ensi-nar o aluno a pensar, os professores de português ficam extremamen-te preocupados em ensinar aos jovens apenas conceitos gramaticais e se esquecem que o ensino de língua portuguesa transcende essas questões.

Não se vê, na maioria das escolas, aulas reservadas à leitura e à análise (interpretação) de textos, quando essa atividade é feita, o docente apenas trabalha com o conceito hermeticamente fechado do livro didático e não estimula debates em sala de aula. Será que está ocorrendo realmente uma aprendizagem?

Se um professor do ensino médio ou do ensino fundamental decidisse trabalhar crônicas em sala de aula, após a leitura do texto A alma encantadora das ruas, por exemplo, as visões que Paulo Barre-to expôs na sua obra sobre o Rio de Janeiro poderiam ser debatidas. Os jovens aprenderiam mais sobre a formação histórica do país, co-mo a modificação brusca do espaço físico, que contribuiu para certos

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problemas sociais presentes atualmente, questionar se todos os pro-blemas apontados no texto foram resolvidos com o passar dos anos, o preconceito (social e racial) ainda continua e o que fazer para com-batê-lo. Enfim, a partir de uma crônica o professor pode trabalhar temas diversos.

Esse gênero literário permite também que o aluno tenha um contato inicial com a literatura de forma despretensiosa, pois se trata de um estilo que prefere os assuntos cotidianos e a linguagem aces-sível, o que desconstrói aquela visão de que se é literatura, é chato, difícil e para poucos e configura uma resistência ao aprendizado an-tes mesmo de começar. O preconceito torna-se um obstáculo ao a-prendizado e tem a capacidade de bloquear o discurso. Ao trabalhar com formação, é fundamental colocar em xeque os condicionamen-tos que constituem os sujeitos envolvidos. No caso de alunos do en-sino médio, o preconceito com literatura, a dificuldade de concentra-ção, experiências anteriores de leitura como obstáculo intransponível e inútil, são ‘colaboradores’ que atuam contra o aprendizado e que, por isso mesmo, precisam ser considerados para serem desfeitos.

Justamente buscando minimizar a distância percebida entre os jovens leitores (alunos) e o texto literário, pensamos que o gênero textual crônica vem se instalar nesse espaço ocupado por preconcei-tos, memórias de experiências mal sucedidas, atribuições negativas, baixo-estima. Pela sua coloquialidade, leveza, tom de conversa, a-proxima-se mais do leitor, entra na sua intimidade sem devassá-lo, e o cronista apresenta-se como se fosse um conhecido. A proximidade é uma estratégia muito bem-vinda na contemporaneidade.

Um mergulho nas crônicas pode favorecer um trabalho de ba-se interdisciplinar com história, geografia, estudos culturais, arte po-pular e erudita, educação, sociedade, ecologia, novela, cinema, mes-mo literatura, uma série de áreas e temas que não encontram restri-ção no gênero. Pode ser trabalhada a temporalidade, a relação do fato com o olhar do cronista, a atualização de temas sob seu crivo bem humorado, irônico, sarcástico, dramático...

Através da leitura de crônicas, o professor, dentre outros pro-cedimentos, pode também solicitar a elaboração de textos parecidos com o gênero em foco, para, dessa forma, ampliar o vocabulário dos alunos, ensiná-los a organizar o pensamento e a constituir a própria

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subjetividade e o tempo de escrita, desconstruindo outro tabu: é difí-cil escrever.

Com isso, o aluno, além de se inserir no mundo literário, que-bra paradigmas e descobre que a literatura não é apenas leitura no sentido restrito, mas um estudo que dialoga com temas diversos, que inclui a si mesmo e ao mundo em seu foco particular. E, em função do trabalho desenvolvido em sala, junto ao aluno – referimo-nos à leitura compartilhada -, a crônica pode documentar costumes de épo-ca, desejos, frustrações, denúncias, conquistas ou, simplesmente, um descontentamento qualquer, uma reflexão filosófica e até mesmo a velha filosofia de botequim.

Pelo exposto entendemos que o gênero textual crônica pode se tornar um recurso para desenvolver reflexões em sala de aula, co-nhecer textos e autores, aprender sobre a história de um país, de uma cidade, de um povo, saber eventos da cidade, do campo, andar como um flâneur – na alma encantadora das ruas.

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STRZODA, Michelle. O Rio de Joaquim Manoel de Macedo: jorna-lismo e literatura no século XIX. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010.

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DOCUMENTO:

BASES ANALÍTICAS DA ORTOGRAFIA SIMPLIFICADA

DA LÍNGUA PORTUGUESA DE 1945,

RENEGOCIADAS EM 1975 E CONSOLIDADAS EM 1986

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BASE I Das letras k, w e y

O k, o w e o y mantêm-se nos vocabulos derivados eruditamente de nomes proprios estrangeiros que se escrevam com essas letras: franklini-ano, kantismo, darwinismo, wagneri-ano, byroniano, taylorista. Tais letras são licitas em siglas, simbolos, abre-viações e mesmo palavras adotadas como unidades de medida de curso internacional.

BASE II Dos derivados

de nomes estrangeiros

Em congruencia com a base ante-rior, mantêm-se nos vocabulos deri-vados eruditamente de nomes propri-os estrangeiros, não tolerando substi-tuição, quaisquer combinações grafi-cas não peculiares à nossa escrita que figurem nesses nomes: comtista, de Comte; garrettiano, de Garrett; jef-fersonia, de Jefferson; mulleriano, de muller; shakespeariano, de Shakes-peare.

Os vocabularios autorizados re-gistrarão grafias alternativas admissí-veis, em casos de divulgação de cer-tas palavras de tal tipo de origem (a exemplo de fúcsia/fuchsia e deriva-dos, buganvilia/buganvilea/bougainvi-llea).

BASE III Do h inicial

O h inicial emprega-se: 1º) por força da etimologia: haver, helice, he-ra, hoje, hora, humano; 2º) em virtude de tradição grafica mais longa, com origem no proprio latim e com parale-lo em linguas romanicas: humor; 3º) em virtude de adoção convencional:

hã? hem?, hum! Admite-se, contudo, a sua supressão, apesar das etimolo-gias, quando ela está inteiramente consagrada pelo uso: erva, em vez de herva; e, portanto, ervaçal, ervanario, ervoso (em contraste com herbaceo, herbanario, herboso, formas de ori-gem erudita).

Se um h inicial passa a interior, por via de composição, e o elemento em que figura se aglutina ao prece-dente, suprime-se: anarmonico, bieb-domadario, desarmonia, desumano, exaurir, inabil, lobisomem, reabilitar, reaver, transumar. Igualmente se su-prime nas formas do verbo haver que entram, com pronomes intercalados, em conjugação de futuro e de condi-cional: amá-lo-ei, amá-lo-ia, dir-se-á, dir-se-ia, falar-nos-emos, falar-nos-íamos, juntar-se-lhe-ão, juntar-se-lhe-iam.

BASE IV Do h em final de origem hebraica

Os digramas finais de origem he-braica ch, ph e th conservam-se inte-gros, em formas onomasticas da tra-dição biblica, quando soam (ch = c, ph = f, th = t) e o uso não aconselha a sua substituição: Baruch, Loth, Molo-ch, Ziph. Se, porém, qualquer desses digramas, em formas do mesmo tipo, é invariavelmente mudo, elimina-se: José, Nazaré, em vez de Joseph, Na-zareth; e se algum deles, por força do uso, permite adaptação, substitui-se, recebendo uma adição vocálica: Judi-te, em vez de Judith.

BASE V Da homofonia

de certas consoantes

Dada a homofonia existente entre

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certas consoantes torna-se necessa-rio diferenciar os seus empregos gra-ficos, que fundamentalmente se regu-lam pela etimologia e pela historia das palavras. É certo que a variedade das condições em que se fixam na escrita as consoantes homofonas nem sempre permite facil diferencia-ção de todos os casos em que se empregar uma consoante e daqueles em que, diversamente, se deve em-pregar outra, ou outras, do mesmo som; mas é indispensavel, apesar disso, ter presente a noção teorica dos varios tipos de consoantes homo-fonas e fixar praticamente, até onde for possivel, os seus usos graficos, que nos casos especiais ou dificulto-sos a pratica do idioma e a consulta do vocabulario ou do dicionario irão ensinando.

Nesta conformidade, importa no-tar, principalmente, os seguintes casos:

1º) Distinção entre ch e x: achar, archote, bucha, capacho, capucho, chamar, chave, Chico, chiste, chorar, colchão, colchete, endecha, estrebu-char, facho, ficha, flecha, frincha, gancho, inchar, macho, mancha, murchar, nicho, pachorra, pecha, pe-chincha, penacho, rachar, sachar, ta-cho; ameixa, anexim, baixel, baixo, bexiga, bruxa, coaxar, coxia, debuxo, deixar, eixo, elixir, enxofre, faixa, fei-xe, madeixa, mexer, oxalá, praxe, pu-xar, rouxinol, uxte (interjeição), vexar, xadrez, xarope, xenofobia, xerife, xí-cara.

2º) Distinção entre g palatal e j: adagio, alfageme, algeme, algebra, algema, algeroz, Algés, algibebe, al-gibeira, algido, almargem, Alvorge, Argel, Bagé, estrangeiro, falange, fer-rugem, frigir, gelosia, gengiva, gerge-lim, geringonça, Gibraltar, ginete, gin-ja, girafa, gíria, herege, relogio, sege, Tanger, virgem; adjetivo, ajeitar, ajeru

(nome de planta indiana e de uma especie de papagaio), canjerê, canji-ca, enjeitar, granjear, hoje, intrujice, jecoral, jejum, jeira, jeito, jelala, Jeo-vá, jenipapo, jequiri, jequitibá, Jere-mias, Jericó, jerimum, Jeronimo, Je-sus, jiboia, jiquipanga, jiquiró, jiquitai-a, jirau, jiriti, jitirana, laranjeira, lojista, Majé, majestade, majestoso, manjeri-co, manjerona, mucujé, pajé, pega-jento, rejeitar, sujeito, trejeito.

3º) Distinção entre as sibilantes surdas s, ss, c, ç e x: ansia, ascen-são, aspersão, cansar, conversão, esconso, farsa, ganso, imenso, man-são, mansarda, manso, pretensão, remanso, seara, seda, Seia, sertã, Sernacelhe, Singapura, Sintra, sisa, tarso, terso, valsa; abadessa, acos-sar, amassar, arremessar, Asseiceira, asseio, atravessar, benesse, Cassil-da, codesso (identicamente, Codessal ou Codassal, Codesseda, Codessoso etc.), crasso, devassar, dossel, e-gresso, endossar, escasso, fosso, gesso, molosso, mossa, obsessão, pessego, possesso, remessa, so-bresselente, sossegar; Acem, acervo, alicerce, cebola, cereal, Cernache, cetim, Cinfães, Escocia, Macedo, Ob-cecar, percevejo; açafate, açorda, a-çucar, almaço, atenção, berço, Buça-co, caçanje, caçula, caraça, dançar, Eça, enguiço, Gonçalves, inserção, linguiça, maçada, Mação, maçar, Mo-çambique, Moçamedes, Monção, mu-çulmano, murça, negaça, pança, pe-ça, quiçaba,quiçama, quiçamba, Sei-ça (grafia que pretere as erroneas Ceiça e Ceissa), Seiçal, Suiça, terço; auxilio, Maximiliano, Maximino, maxi-mo, proximo. A proposito deve obser-var-se:

a) Em principio de palavra nunca se emprega ç, que se substitui invari-avelmente por s: safio, sapato, suma-gre, em vez das antigas escritas çafi-

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o, çapato, çumagre.

b) Quando o prefixo se junta a um elemento que começava outrora por ç, não reaparece esta letra: mantém-se o s, que, encontrando-se entre vo-gais, se dobra: assaloiado, de saloio (antigo çaloio), e não açaloiado.

4º) Distinção entre s de fim de si-laba, inicial ou interior, e x e z identi-cos: adestrar, Calisto, escusar, es-druxulo, esgotar, esplanada, esplen-dido, espremer, esquisito, estender, Estremadura, Estremoz, inesgotavel; extensão, explicar, extraordinario, i-nextricavel, inexperto, sextante, textil; capazmente, infelizmente, velozmen-te. De acordo com esta distinção, convém notar dois casos:

a) Em final de sílaba que não seja final de palavra, o x = s muda para s sempre que está precedido de i ou u: justapor, justalinear, misto, sistino (cf. Capela Sistina), Sisto, em vez de jux-tapor, juxtalinear, mixto, sistino, Sixto.

b) Só nos adverbios em mente se admite z = s em final de sílaba segui-da de outra. De contrário, o s toma sempre o lugar do z: Biscaia, e não Bizcaia.

5º) Distinção entre s final de pala-vra e x e z indenticos: aguarrás, aliás, anis, após, atrás, através, Avis, Brás, Dinis, Garcês, gás, Gerês, Inês, Iris, Jesus, jus, lapis, Luis, pais, portu-guês, Queirós, quis, retrós, revés, Tomás, Valdês; calix, Felix, fenix, flux; assaz, arroz, avestruz, dez, diz, fez (substantivo e forma do verbo fazer), fiz, Forjaz, Galaaz, giz, jaez, matiz, petiz, Queluz, Romariz (Arcos de) Valdevez, Vaz. A proposito, deve ob-servar-se que é inadmissivel z final equivalente a s em palavra não oxito-na: Cadis e não Cadiz.

6º) Distinção entre as sibilantes

sonoras interiores s, x e z: acesso, analisar, anestesia, artesão, asa, asi-lo, Baltasar, besouro, besuntar, blusa, brasa, brasão, Brasil, brisa, (Marco de) Canaveses, coliseu, defesa, du-quesa, Elisa, Empresa, Ermesinde, Esposende, Frenesi ou frenesim, fri-sar, guisa, improviso, jusante, liso, lousa, lousã, Luso (nome de lugar, homonimo de Luso, nome mitologico), Matosinhos, Meneses, Narciso, Nisa, obsequio, ousar, pesquisa, portugue-sa, presa, raso, represa, Resende, sacerdotisa, sosimbra, Sousa, sur-presa, tisana, transe, transito, vaso; exalar, exemplo, exibir, exorbitar, e-xuberante, inexato, inexoravel; abali-zado, alfazema, Arcozelo, autorizar, azar, azedo, azo, azorrague, baliza, bazar, beleza, buzina, buzio, comezi-nho, deslizar, deslize, Exequiel, fuzi-leiro, Galiza, guizo, helenizar, lambu-zar, leziria, Mouzinho, proeza, sazão, urze, vazar, Veneza, Vizela, Vouzela.

BASE VI Das sequencias consonanticas (I)

O c gutural das sequencias interi-ores -cc- (segundo c sibilante), -cç- e -ct-, e o p das sequencias interiores -pc- (c sibilante), -pç- e -pt-, ora se e-liminam, ora se conservam.

Assim:

1º) Eliminam-se nos casos em que são invariavelmente mudos nas pronuncias cultas da lingua: aflição, aflito, dicionario, absorção, cativo, a-ção, acionar, ator, afetivo, coletivo, di-retor, adoção, adotar, batizar, ato, e-xato, Egito, otimo etc.

2º) Conservam-se nos casos em que são invariavelmente proferidos nas pronúncias cultas da lingua: compacto, convicção, convicto, fic-ção, fricção, friccionar, pacto, pictural,

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adepto, apto, diptico, erupção, inepto, eucalipto, nupcias, rapto etc.

3º) Conservam-se ou eliminam-se, facultativamente, quando só se proferem numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: facto e fato, cacto e cato, caracteres e carateres, peremp-torio e perentorio, aspecto e aspeto, ceptro e cetro, consupção e consu-ção, corrupto e corruto, sumptuoso e suntuoso, dicção e dicção, sector e setor etc.

4º) Quando, nas sequencias inte-riores -mpc-, -mpç- e -mpt-, se elimi-nar o p, de acordo com o determina-do nos parágrafos precedentes, o m passa a n, escrevendo-se, respecti-vamente, -nc-, -nç- e -nt-: assumpti-vel e assuntivel, assumpção e assun-ção, peremptorio e perentorio, sump-tuoso e suntuoso etc.

BASE VII Das sequencias consonânticas (II)

Além do c gutural das sequencias interiores -cc-, -cç- e -ct-, e do p das sequencias interiores -pc-, -pç- e -pt-, eliminam-se ou conservam-se conso-antes varias de outras sequencias, sempre que são invariavelmente mu-das ou invariavelmente proferidas em quaisquer pronuncias cultas da lingua portuguesa. As mesmas consoantes, porém, conservam-se ou eliminam-se, facultativamente, quando só se profe-rem em alguma pronuncia culta da lingua, quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a pro-lação e o emudecimento.

Assim:

1º) Eliminam-se: o c da sequencia -cd-, em anedotas e respetivos deri-

vados e compostos, assim como em sinedoque; o g da sequencia -gd-, em Emidio e Madalena; o g da sequencia -gm-, em aumentar, aumento, fleuma, fleumatico; o g da sequencia -gn-, em assinatura, Inacio, Inês, sinal etc.; o m da sequencia -mn-, em condenar, dano, ginasio, onibus, solene, sono; o p da sequencia inicial -ps-, em salmo e salmodia, assim como nos deriva-dos destas palavras; o s da sequen-cia -xs-, em exangue e nas palavras em que está seguido de outra conso-ante: expuição, extipulaceo, extipula-do; o ph da sequencia de origem gre-ga phth, sob a forma de f, em apo-tegma, ditongo, tisico, tisiologia etc.; o th da sequencia de origem grega -thm-, sob a forma de t, em asma, asmatico etc.

2º) Conservam-se: o g da se-quencia -gm-, em apotegma, dia-fragma, fragmento, segmento; o g da sequencia -gn-, em Agnelo, cognato, designar, significar etc.; o ph da se-quencia de origem grega phth, sob a forma de f, tal como th seguinte, sob a forma de t, em afta, difteria, ftartico, ftiriase, ftrico, oftalmologia etc.; o th da sequencia da origem grega thm, sob a forma de t, em logaritimo, ritmo etc.

3º) Conservam-se ou eliminam-se, facultativamente: o b da sequen-cia -bd-, em subdito (ou sudito): o b da sequencia -bt-, em subtil (ou sutil) e seus derivados; o g da sequencia -gd-, em amigdala, amigdalacea, a-migdalar, amigdalato, amigdalite, a-migsloide, amigdalopatia, amigdalo-tomia, amigdalectômia (ou amidala, amidalea, amidaloide, amidalopatia, amidalotomia, amidalectomia); o m da sequencia -mn-, em amnistia, amnis-tiar, indemne, indemnidade, indemni-zar, amninodo, omnistiar, indemne, indemnidade, indemnizar, omnimodo, omnipotente, omnisciente (ou anistia,

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anistiar, indene, indenidade, indeni-zar, onimodo, onipotente, onisciente); o th da sequencia de origem grega -thm-, sob a forma de t, em aritmetica e aritmetico (ou arimetica e arimetico).

BASE VIII De consoantes finais

As consoantes finais b, c, d, g e t mantêm-se, quer sejam mudas, quer proferidas, nas formas onomasticas em que o uso as consagrou, nomea-damente antroponimos e toponimos da tradição biblica: Jacob, Job, Moab, Isaac; David, Gad; Gog, Magog; Ben-sabat, Josafat.

Integram-se também nesta nor-ma: o antroponismo Cid, em que o d é sempre pronunciado; os toponimos Madrid e Valhadolid, emque o d ora é pronunciado, ora não; e o toponimo Calecut ou Calicut, em que o t se en-contra nas mesmas condições.

Nada impede, entretanto, que dos antroponimos em apreço sejam usa-dos sem a consoante final Jó, Davi e Jacó.

BASE IX Das vogais atonas

O emprego do e e do i, assim como do o e do u, em silaba atona, regula-se fundamentalmente pela e-timologia e por particularidades da historia das palavras. Assim se esta-belecem variadíssimas grafias:

a) com e e i: ameaça, amealhar, antecipar, arrepiar, balnear, boreal, campeão, cardeal (prelado, ave, plan-ta; diferente de cardial = "relativo à cardia"), Ceará, codea, enseada, en-teado, Floreal, Janeanes, lendea, Le-onardo, Leonel, Leonor, Leopoldo,

Leote, linear, meão melhor, nomear, peanha, quase (em vez de quasi), re-al, semear, semelhante, varzea; a-meixial, Ameixieira, amial, amieiro, ar-rieiro, artilharia, capitania, cordial (ad-jetivo e substantivo), corriola, cranio, criar, diante, diminuir, Dinis, ferregial, Filinto, Filipe (e identicamente Filinto, Filipinas etc.), freixial, giesta, Idanha, igual, imiscuir-se, inigualavel, lampi-ão, limiar, Lumiar, lumieiro, patio, pior, tigela, tijolo, Vimieiro, Vimioso;

b) com o e u: abolir, Alpendorada, assolar, borboleta, cobiça, consoada, consoar, costume, discolo, embolo, engolir, epistola, esbaforir-se, esbor-car, farandola, femoral, Freixoeira, gi-randola, goela, jocoso, magoa, nevoa, nodoa, obolo, Pascoa, Pascoal, Pas-coela, polir, Rodolfo, tavoa, tavoada, tavola, tombola, veio (substantivo e forma do verbo vir); agua, aluvião, ar-cuense, assumir, bulir, camandulas, curtir, curtume, embutir, entupir, fe-mur, fistula, glandula, ingua, jucundo, legua, Luanda, lucubração, lugar, mangual, Manuel, mingua, Nicaragua, pontual, regua, tabua, tabuada, tabu-leta, tregua, vitualha.

Sendo muito variadas as condi-ções etimologicas e foneticoistoricas em que se fixam graficamente e e i ou o e u em silaba atona, é evidente que só a consulta dos vocabularios ou dicionarios por indicar, muitas ve-zes, se deve empregar-se e ou i, se o ou u. Há, todavia, alguns casos em que o uso dessas vogais pode ser fa-cilmente sistematizado. Convem fixar os seguintes:

1º) Escrevem-se com e, e não com i, antes da silaba tonica, o subs-tantivos e adjetivos que procedem de substantivos terminados em eio e eia, ou com eles estão em relação direta. Assim se regulam: aldeão, aldeola, aldeota, por aldeia; areal, areeiro, a-

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reento, Areosa, por areia; aveal, por aveia; baleal, por baleia; cadeado, por cadeia; candeeiro, por candeia; cen-teeira e centeeiro, por centeio; col-meal e colmeeiro, por colmeia; corre-ada, correame, por correia.

2º) Escrevem-se igualmente com e, antes de vogal ou ditongo de silaba tonica, os derivados de palavras que terminam em e acentuado (o qual po-de representar um antigo hiato: ea e ee): galeão, galeota, galeote, de galé; guineense, de Guiné: poleame e po-leeiro, de polé.

3º Escrevem-se com i, e não com e, antes da silaba tonica, os adjetivos e substantivos derivados em que en-tram os sufixos mistos de formação vernácula iano e iense, os quais são o resultado da combinação dos sufi-xos ano e ense com um i de origem analogica (baseado em palavras onde ano e ense estão precedidos de i per-tencentes ao terma: horaciano, italia-no, duriense, flaviense etc.); açoriano, caboverdiano, camoniano, goisiano ("relativo a Damião de Gois"), sofocli-ano, siniense ("de Sines"), torriense ("de Torres"), acriano ("de Acre").

4º) Uniformizam-se com as termi-nações io e ia (atonas), em vez de eo e ea, os substantivos que constituem variações, obtidas por ampliação, de outros substantivos terminados em vogal: cumio (popular), de cume; has-tia, de haste; restia, do antigo reste; vestia, de veste.

5º) Os verbos em ear podem dis-tinguir-se praticamente, grande nume-ro de vezes, dos verbos em iar, quer pela formação, quer pela conjugação e formação ao mesmo tempo. Estão no primeiro caso todos os verbos que se prendem a substantivos em eio ou eia (sejam formados em português ou venham já do latim); assim se regu-

lam: aldear, por aldeia; alhear, por a-lheio; cear, por ceia; encadear, por cadeia; pear, por peia etc. Estão no segundo caso todos os verbos que têm normalmente flexões rizotonicas em eio, eias etc.; desde que não se liguem a substantivos com as termi-nações atonas ia ou io (como ansiar ou odiar): clarear, delinear, devanear, falsear, granjear, guerrear, hastear, nomear, semear etc.

6º) Não é licito o emprego do u fi-nal atono em palavras de origem lati-na. Escreve-se, por isso: moto, em vez de motu (por exemplo, na ex-pressão de moto proprio); tribo, em vez de tribu.

7º) Os verbos em oar distinguem-se praticamente dos verbos em uar pela sua conjugação nas formas rizo-tonicas, que têm sempre o, na silaba acentuada: abençoar, com o, como abençoo, abençoas etc.; destoar, com o, como destoo, destoar etc.

BASE X De querer e derivados

Consideram-se normais na escrita corrente as formas: quer e requer, dos verbos querer e requerer, em vez de quere e requere: ele quer, ele o quer, ela requer, ela o requer, ela o requer, quer dizer, e não ele quere, ele o quere dizer. São legitimas, en-tretanto, as formas com e final, quan-do se combina com o pronome encli-tico o ou qualquer das suas flexões: quere-o, quere-os, requere-a, reque-re-as.

A forma quer transmite a sua gra-fia à conjugação a que deu origem e mantem-na, alem disso, em todas as palavras compostas e locuções em que figura: quer... quer; malmequer; onde quer que, quem quer que.

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BASE XII Das nasais

Na representação das vogais na-sais devem observa-se, além de ou-tros suficientemente conhecidos, os seguintes preceitos:

1º) Quando uma vogal nasal tem outra vogal depois dela, a nasalidade é expressa pelo til: ãatá, desẽalmado, ẽarcado, lũa (antigo e dialetal), ũa (antigo e dialectal).

2º) Quando uma vogal nasal ocor-re em fim de palavra, representa-se a nasalidade pelo til, se essa vogal é de timbre a; por m se possui qualquer outro timbre e termina a palavra; e por n, se é de timbre diverso de a e está seguida de s: afã, grã, lã, orfã, clarim, tom, vacum, flautins, semitons, zunzuns.

3º) Os vocabulos terminados em ã transmitem esta representação do a nasal aos adverbios em mente que deles se formem, assim como a deri-vados em que entrem sufixos prece-didos do infixo z: cristãmente, irmã-mente, irmãmente, sãmente; lãzudo, maçãzita, maçãzinha, manhãzinha, romãzeira.

Em complemento dos preceitos de representações das vogais nasais, importa notar que nas combinações dos prefixos in (tanto o que exprime negação) e en (diferente do elemento en, resultante da preposição em: en-fim, enquanto) com elementos come-çados por m ou n, não se admitem, quanto à escrita normal, as sequenci-as mm e nn, as quais se reduzem, respectivamente, a m e a n: imergir, inovação, inato (quer no sentido de "congenito", quer no de "não nasci-do"), e não immergir, innovação, inna-to; emagrecer, emoldurar, enegrecer,

enobrecer, e não emmagrecer, em-moldurar, ennegrecer, ennobrecer. Em coerencia com o disposto, grafar-se-á conosco.

BASE XIII Dos ditongos

I – Os ditongos orais, que em par-te tanto podem ser tonicos como ato-nos, distribuem-se por dois grupos graficos principais, consoante a sub-juntiva soe i ou u: ai, ei, oi, iu, ui; au, eu, ou: braçais, caixote, deveis, eira-do, farneis, farneizinhos, goivo, goi-var, lençois, lençoizinhos, tafuis, ui-var; cacau, cacaueiro, deu, endeusar, ilheu, ilheuzito, mediu, passou, re-gougar. Admitem-se, todavia, excep-cionalmente, à parte destes dois gru-pos, os ditongos ae (=âi ou ai e ao (=âu ou au): o primeiro, representado nos antroponimos Caetano e Caeta-na, assim como nos respectivos deri-vados e compostos (caetaninha etc.); o segundo, representado nas combi-nações da preposição a com as for-mas masculinas do artigo ou pronome masculinas do artigo ou pronome demonstrativo o: ou sejam ao e aos.

Cumpre fixar, a proposito dos di-tongos orais, os seguintes preceitos particulares:

1º) É o ditongo ui, e não a se-quencia vocalica ue, que [ocorre] sempre nas formas de 2ª e 3ª pesso-as do singular do presente do indica-tivo e igualmente na de 2ª pessoa do singular do imperativo dos verbos em uir: constituis, influi, retribui. Harmo-nizam-se, portanto, essas formas com todos os casos de ditongo ui da silaba final ou fim de palavra (azuis, fui, Guarda-fui etc.); e ficam assim em pa-ralelo graficofonetico com as formas de 2ª e 3ª pessoa do singular do im-perativo dos verbos em air e em oer:

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atrais, cai, mois, remoi, soi.

2º) É ditongo ui que representa sempre, em palavras de origem lati-na, a união de um u a um i atono se-guinte. Não divergem, portanto, for-mas como fluido de formas como gra-tuito. E isso não impede que nos deri-vados de formas daquele tipo as vo-gais u e i se separem: fluidico, fluidez (u-i).

3º) Além dos ditongos orais pro-priamente ditos, os quais são todos decrescentes, admite-se, como é sa-bido, a existencia de ditongos cres-centes. Podem considerar-se no nu-mero deles os encontros vocalicos postonicos, tais o que se representam graficamente por ea, eo, ia, ie, oa, ua, ue, uo: aurea, aureo, colonia, es-pecie, eximio, magoa, mingua, tenue, triduo.

I - Os ditongos nasais, que na sua maioria tanto podem ser tonicos como atonos, pertencem graficamente a dois tipos fundamentais: ditongos constituidos por vogal com til e sub-juntiva vocalica; ditongos constituidos por vogal e consoante nasal, tendo esta o valor de ressonancia. Eis a in-dicação de uns e outros:

1º) Os ditongos constituidos por vogal com til e subjuntiva vocalica são quatro, considerando-se apenas a linguagem normal contemporanea: ãe (usado em vocabulos oxitonos e deri-vados); ãi, ão e õe (usados em voca-bulos anoxitonos e derivados). Exem-plos: cães, Guimarães, mãe, mãezi-nha; cãibas, cãibeiro, cãibra, zãibo; mão, mãozinha, não, quão (não qu-am), sotão, sotãozinho, tão, (não tam); Camões, orações, oraçõezi-nhas, põe, repõe. Ao lado de tais di-tongos ũi, que se apresenta sem o til nas formas muito e mui, por obedien-cia à tradição.

2º) Os ditongos grafados por vo-gal e consoante nasal equivalente a ressonância são dois: am e em. Di-vergem, porem, nos seus empregos:

a) am (sempre atono) só se em-prega em flexões verbais onde nunca é licito substitui-lo por ão: amam, de-viam, escreveram, puseram;

b) em (tonico ou atono) emprega-se em palavras de categorias morfo-logicas diversas, incluindo flexões verbais, e pode apresentar variantes graficas, determinadas pela posição, pela acentuação ou simultaneamente pela posição e pela acentuação: bem, Bembom (toponimo), Bemposta, cem, devem, nem, quem, sem, tem, vir-gem, Bencanta, bens, enfim, enquan-to, homenzarrão, homenzinho, nu-venzinha, tens, virgens; amem (varia-ção de amen), armazem, convem, mantem, ninguem, porem, santarem, tambem, convêm, mantêm, têm (3as. pessoas do plural); armazens, des-dens, convens, retens, Belenzadas, vintenzinho.

BASE XIV Da acentuação grafica

O sistema de acentuação grafica da lingua portuguesa obedecerá às seguintes disposições:

1°) O acento grave (`), segundo o modelo das formas à e às, resultan-tes a contração da preposição a com a flexões femininas do artigo definido ou pronome demonstrativos a e as, notará as contrações da preposição a com o a inicial das formas pronomi-nais demonstrativas aquele, aquela, aqueles, aquelas, aquilo, aqueloutro, àquelas, àqueloutro, àqueloutra, a-queloutros, àqueloutras.

2º) O acento agudo (´) notará as

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vogais a, e e o abertas seguidas ou não de s de vocabulos agudos ou oxi-tonos: pá, pás, pé, pés, pó, pós, rajá, rajás, cafés, enxó, pó, pós, rajá, rajás, cafés, enxó, enxós; notará tambem, facultativamente, as formas louvá-mos, amámos e conexas conjugação em contraste com as formas louva-mos, amamos e conexas do presente do indicativo.

3º) O acento circunflexo (^) notará:

a) as palavras agudas ou oxito-nas terminadas nas vogais e e o fe-chadas seguidas ou não de s: vê, vês, mercê, mercês, rô, rôs, robô, robôs;

b) as formas da terceira pessoa do plural do presente do indicativo dos verbos ter e vir, têm e vêm, e dos seus compostos contêm, convêm, mantêm, provêm etc.; em contraste com as do singular tem, vem, contem, mantem, provem etc.; em relação com o disposto, lembre-se que às formas do singular lê, vê, crê, relê, revê, descrê etc.; opõem-se leem, creem, releem, reveem, descreem etc.; do plural;

c) a flexão pôde do preterito per-feito do verbo poder em contraste com a flexão pode do presente do in-dicativo do mesmo verbo, bem como os substantivos forma e fôrmas, em contraste com forma e formas, fle-xões do verbo formar e tambem subs-tantivos.

4º) Em casos de ambiguidade contextual que possa ser desfeita pe-la acentuação grafica, fica facultativo o uso do acento para dirimi-la. Não há por exemplo, ambiguidade contextual em "fabricas o que quiseres com fa-bricas cibernetizadas", nem em "é preciso por tento no que se faz, por amor dos outros".

BASE XV Do hifen em compostas e locuções

1º) Os compostos formados por elementos que não apresentam con-cordancia interna grafam-se aglutina-damente: madreperola (madrepero-las), madressilva (madressilvas), pon-tapé (pontapés), sulafricano (sulafri-canos), norteamericano (norteameri-canos), portoalegrense (portoalegren-ses), sãotomense (sãotomenses), pontalimense (pontalimenses), mato-grossense (matogrossenses), espiri-tossantense (espiritossantenses), au-diovisual (audivisuais), lusobrasileiro (lusobrasileiros), lusoafricano (lusoa-fricanos), afrolusobrasileiro (afroluso-brasileiros), girassol (girassois), con-tagota (contagotas), fincapé (finca-pés), guardachuva (guardachuvas), paraquedista (paraquedistas), mal-mequer (malmequeres), bemequer (bemequeres), Tiradentes etc.

2º) Todos os outros compostos, reais ou aparentes, cujos elementos constituintes apresentem concordan-cia interna ou estejam ligados por preposição, artigo ou qualquer outra forma, assim como as locuções de qualquer especie, grafar-se-ão sem aglutinação e sem hifen: (nisso com-preendido, os toponimos do tipo Que-bra Frascos, Passa Quatro, Abre Campo etc.): medico cirurgião (medi-cos cirurgiões), arcebispo bispo (ar-cebispos bispos), rainha claudia (rai-nhas claudias), alcaide mor (alcaides mores), guarda noturno (guardas no-turnos), primeiro ministro (primeiros ministros), azul escuro (azuis escu-ros); Grã Bretanha, Grão Pará, Porto Alegre, Belo Horizonte, Castelo Bran-co etc.; agua de colonia, cor de rosa, sala de jantar, América do Sul etc.; Plinio o Antigo, Entre os Rios, Três Rios, Trás os Montes, mais que per-feito etc.; ao deus dará, à queima

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roupa, por dá cá aquela palha etc.; cada um, ele proprio, nós mesmos, quem quer que seja etc.; em cima, por certo, abaixo de, a fim de, ao passo que, logo que etc.

3º) Emprega-se o hifen nos voca-bulos terminados por sufixos de ori-gem tupi que representam formas ad-jetivas, como açu, guaçu, mirim, quando o primeiro elemento acaba em vogal acentuada graficamente ou quando a pronuncia exige a distinção grafica dos dois elementos: amoré-guaçu, anajá-mirim, andá-açu, capim-açu, Ceará-Mirim etc.

4º) É proscrito o emprego do hifen nas ligações da preposição de às formas monossilabicas do presente do indicativo do verbo haver tipo hei de, hás de etc.

5º) Emprega-se o hifen para ligar duas ou mais palavras que ocasio-nalmente se combinam, formando, não propriamente vocabulos, mas en-cadeamentos vocabulares (tipo a di-visa Liberdade-Igualdade-Fraternida-de, a ponte Rio-Niteroi, o percurso Lisboa-Coimbra-Porto, a ligação An-gola-Moçambique, e bem assim nas combinações historicas ou ocasionais de toponimos (tipo Austria-Hungria, Alsacia-Lorena, Angola-Brasil, To-quio-Rio de Janeiro etc.).

6º) Emprega-se o hifen na tmese da conjugação portuguesa (tipo amá-lo-ei, enviar-lhe-emos etc.), e na en-clise (tipo amá-lo, partir-lhe, dá-se etc.).

BASE XVI Do hifen na prefixação

Na prefixação, não se emprega o hifen, salvo quando se trate dos prefi-xos sem, ex (no sentido de cessa-mento do estado anterior), vice, vizo,

alem, recem, aquem ou prefixos que têm acento grafico proprio (como pós, pré, pró). A exemplificação a seguir é ilustrativa.

1) contrapartida, contraalmirante, contraarmonico, contrassenha, extra-forte, extraaxilar, extraumano, extra-territorial, extrarregulamentar, extras-secular, infraaxilar, infraepatico, in-frarrenal, infranormal, inframedio, in-frassom, intraatomico, intrarradial, in-traepatico, intraocular, intrarraquidia-no, intrassegmentar, suprapotente, supaaxilar, supraepatico, suprarrenal, suprassensivel, ultraveloz, ultrauma-no, ultraocular, ultraoceanico, ultrar-romantico, ultrassom, autoeducação, autorretrato, autossugestão, autorre-trato, autossugestão, neoescolastico, neoelenico, neorrepublicano, neosso-cialista, prototipo, protoarico, protois-torico, protorromantico, protossulfure-to, pseudoapostolo, pseudorrevela-ção, pseudossabio, antiigienico, antii-berico, antiimperialista, antirreligioso, antissemita, arquiiperbole, arquiir-mandade, arquirrabino, arquissecular, semiinterno, semirreta, semisselva-gem, semilatente, entreistorico, an-teistorico, entreostil, sobreumano, hi-perumano, hipersensivel, interelenico, interressistente, superomem, super-requintado, abrogar, adrenal, obrepti-cio, absoluto, adjacente, obcecado, subibliotecario, subepatico, subrogar, sobroda, sobrojar, subtenente, subde-legado, submarino, circuncisão, cir-cunavegação, circumurado, corres-pondencia, coonestação, coautoria, codialeto, coerdeiro, coproprietario, maldizente, malquisto, malquerença (a par de máquerença), malcriação (a par de macriação), malaventurado, malumorado, malado, malamada, pamastite, pamplegia, pampsiquismo, panenteismo, panafricano, panameri-canos, panelenico, paniconografia, benquisto, benfazer, benquerente,

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benquerer, benvindo, bemaventuran-ça, sotocapitão, sotomestre,

2) sem-cerimonia, sem-numero, sem-razão, ex-diretor, ex-ditador, ex-correligionario, ex-primeiro ministro, vice-almirante, vice-consul, vice-pri-meiro ministro, vizo-rei, vizo-reinado, vizo-reinar, alem-atlanticidade, alem-mar, aquem-fronteiras, pós-glaciario, pós-socratico, pré-historico, pré-sono-filia, recem-casado, recem inaugura-da.

Os vocabularios autorizados elu-cidarão os raros casos em que haja necessidade de esclarecer a silaba-ção, como em abrogar (ab/ro/gar), bemaventurado (bem/a/vem/tu/ra/do) e afins.

BASE XVII Do apostrofo

1º) Quando usadas aglutinada-mente com artigos, demonstrativos, pronomes, adverbios iniciados por vogal, as preposições de e em, redu-zidas a d e n, não são seguidas de apostrofo: do, da, das, dela, deles, destes, dalguns, dantes etc.; no, nas, nestes, nalguns, nalguem etc., pre-servando-se, não havendo aglutina-ção, o uso das formas de o, de as, de ela, de estes, de eles, de alguns de antes etc., em o, em a, em as, em e-les, em estes, em alguns, em alguem etc.

2º) Faz-se o uso do apostrofo pa-ra cindir graficamente uma contração ou aglutinação: d'Os Lusiadas, d'Os Sertões, n'Os Lusiadas, n'Os Sertões etc. (mas não em ocorrencias do tipo importancia atribuida a A Reliquia, a referencia a Os Sertões etc.).

3º) Pode cindir-se por meio de apostrofo uma contração ou aglutina-

ção para realçar com maiuscula inicial entidades – tipo d'Ele, pel'O, n'Aquele que é a Vida (mas sem apostrofo em a O, a A, a Aquela, a Aquele etc.).

4º) Usar-se-á do apostrofo nas aglutinações com de ou em e a con-tração na, reduzida a d ou n, com a vogal inicial de nomes substantivos ou adjetivos do tipo d'alho, d'agua, d'amorosos sentimentos, n'agua, n'alma etc., que alternam, se não a-glutinadas, com de alho, de agua, da agua, de amorosos sentimentos, na alma etc.

5º) Em aglutinações antigas, é fa-cultado usar o apostrofo em casos de tipo Sant'Ana, Sant'Iado, Pedr'Alvares etc., ou Santana ou Santa Ana, San-tiago ou São Tiago, Pedralvares ou Pedro Alvares etc.

BASE XVIII Das minusculas e maiusculas (I)

1º) A letra minuscula inicial é u-sada:

a) ordinariamente, em todos os vocabulos da lingua nos usos corren-tes;

b) nos nomes dos dias, meses, estações do ano, nos biblionimos (a-pós o primeiro elemento, que é com maiuscula, os demais vocabulos dos biblionimos podem ser escritos com minuscula, salvo nos nomes proprios neles contidos, tudo em grifo); A Ilus-tre Casa de Ramires ou A ilustre casa de Ramires; nos usos de fulano, si-crano, beltrano, nos pontos cardeais (mas não em suas abreviações); nos oxionimos (senhor doutor Joaquim da Silva, bacharel Mario Abrantes, santa Filomena, e cardeal Bembo); nos no-mes de disciplinas, de cadeiras, de cursos;

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c) opcionalmente, as minusculas iniciais podem ser substituidas pelas maiusculas, nos hagionimos, nos no-mes de disciplinas, cadeiras, cursos.

2º) A letra maiuscula inicial é u-sada:

a) ordinariamente, nos antropo-nimos ou toponimos, reais ou ficticios, nos nomes de seres antropomorfiza-dos, nos intitulativos institucionais (Instituto de Pensões e Aposentadori-as da Previdencia Social), nos nomes de festas e festividades, nos titulos de periodicos (O Primeiro de Janeiro, O Estado de São Paulo ou S. Paulo, que retêm o grifo), nos pontos carde-ais ou equivalentes quando emprega-dos absolutamente (Nordeste, por nordeste do Brasil, Norte, por norte do Brasil, Meio Dia, pelo sul da Fran-ça ou de outros paises, Ocidente, por ocidente europeu, Oriente, por oriente asiatico):

b) em siglas, simbolos ou abrevia-turas internacionais ou nacionalmente reguladas com maiusculas, iniciais ou mediais ou finais ou o todo em versal;

c) opcionalmente, em palavras usadas reverencialmente, aulicamen-te ou hierarquicamente, em inicio de versos, em categorizações de logra-douros publicos (rua ou Rua da Li-berdade, largo ou Largo dos Leões de templos (igreja ou Igreja do Bonfim, templo ou Templo do Apostolado Po-sitivista), de edificios (palacio ou Pa-lacio da Cultura, edificio ou Edificio Azevedo Cunha).

BASE XIX Das minusculas e maiusculas (II)

As disposições sobre os usos das minusculas e maiusculas não obstam a que obras especializadas observem

regras proprias, provindas de norma-lizações especificas (terminologias antropologica, geologica, bibliologica, botanica, zoologica etc.) promanadas de entidades cientificas ou normaliza-doras reconhecidas internacionalmente.

BASE XX Da divisão silabica

A divisão silabica, que em regra se faz pela soletração (a-ba-de, bru-ma, ca-cho, lha-no, ma-lha, ma-nha, ma-xi-mo, o-xi-do, ro-xo, tme-se), e na qual, por isso, se não tem de a-tender aos elementos contitutivos dos vocabulos segundo a etimologia (bi-sa-vô, de-sa-pa-re-cer, di-su-ri-co, e-xa-ni-me, i-na-bil, o-bo-val, su-bo-cu-lar, su-pe-ra-ci-do), obedece a varios preceitos, particulares, que rigorosa-mente cumpre seguir, quando se tem de fazer em fim de linha, mediante o emprego do hifen, a participação de uma palavra:

1º) São indivisíveis no interior de palavra, tal como inicialmente, e for-mam, portanto, silaba para a frente, as sucessões de duas consoantes que constituem grupos perfeitos, ou sejam em b ou d: ab-//legação, ad-//ligar, sub//lunar etc., em vez de a-//blegação, a//dligar, su//blunar etc.; aquelas sucessões em que a primeira consoante é uma labial, uma gutural, uma dental ou uma labiodental e a segunda um l ou um r: a-//blução, ce-le-//brar, du-//plicação, re-//primir; a-//clamar, de-//creto, de-//glutinação, re-//grado; a-//tletico, cate-//dra, peri-me-//tro; a-//fluir, a-//fricano, ne-//vrose.

2º) São divissiveis no interior de palavras as sucessões de duas con-soantes que não constituem propria-mente grupos e igualmente as suces-sões de uma ressonancia nasal e

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uma consoante: ab-//dicar, ed-//gar, op-//tar, sub-//por; ab-//soluto, ad-//jetivo, af-//ta, bet-//samita, ob-//viar; des-//cer, dis-//ciplina, flores-//cer, nas-//cer, res-//cisão, ac-//ne, ad-miravel, Daf-//ne, diafrag-//ma, drac-//ma, et-//nico, rit-//mo, sub-//meter; am-//nesico, interam-//nense; bir-//reme, cor-// roer, pror-//rogar; as-//segurar, bis-//secular, sos-//segar; bissex-//to, contex-//to, ex-//citar, a-troz-//mente, capaz-//mente, infeliz-mente; am-//bição, desen-//ganar, en-//xame, man-//chu, Man-//lio, marim-//bondo, dig-//nidade, Ag-//nelo, ag-//nostico etc.

3º) As sucessões de mais de du-as consoantes ou de uma ressonan-cia nasal e duas ou mais consoantes são divisiveis por um de dois meios: se nelas entra um dos grupos que são indivisiveis de acordo com o pre-ceito 1º), esse grupo forma silaba pa-ra diante, ficando a consoante ou consoantes que o precedem ligadas à silaba anterior; se nelas não entra nenhum desses grupos, a divisão dá-se sempre antes da ultima consoante. Exemplo: com-//braia, ec-//tlipse, em-//blema, ex-//plicar, in-//cluir, ins-//criação, subs-//crever, trans-//gredir, abs-//tenção, ar-//tropode, disp-//neia, inters-//telar, lamb-//dacismo, sols-//ticial, tungs-//tenio.

4°) As vogais consecutivas que não pertencem a ditongos decrescen-tes (as que pertencem a ditongos de-crescentes (as que pertencem a di-tongos deste tipo nunca se separam: ai-//roso, cadei-//ra, insti-//tui, ora-//ção, sacris-//tães, traves-//sões) po-dem, se a primeira delas não é u pre-cedido de g ou o, mesmo que sejam iguais, separar-se na escritura: ala-//ude, are-//as, ca-//apeba, co-//orde-nar, do-//er, flu-//idez, perdo-//as, vo-//os. O mesmo se aplica aos casos de

contiguidade de ditongos, iguais ou diferentes, ou de ditongos, iguais ou diferentes, ou de ditongos e vogais: cai-//as, cai-//eis, ensai-//os, flu-//iu.

5º) Os diagramas gu e qu em que o u se não pronuncia, nunca se sepa-ram da vogal ou ditongo imediato (ne-//gue, ne-guei; pe-//que, pe-//quei), do mesmo modo que as combinações gu e qu em que o u se pronuncia: a-//gua, ambi-//guo, averi-//gueis; lon-gin-//quos, lo-//quaz, quais-//quer.

6º) Quando se tem de partir uma palavra composta ou uma combina-ção de palavras em que há um hifen, ou mais, e a partição coincide com o final de um dos elementos ou mem-bros, pode, por clareza grafica, repe-tir-se o hifen no inicio da linha imedia-ta: ex-alferes, serená-//-los-emos ou serená-los-//-emos, vice-//-almirante.

BASE XXI Dos pontos de interrogação

e exclamação

O ponto de interrogação e o pon-to de exclamação apenas se empre-gam nas suas formas normais (? e !).

BASE XII Das assinaturas e firmas

Para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume, adote na assinatura do seu nome.

BASE XXIII Dos toponimos estrangeiros

Recomenda-se que os toponimos de linguas estrangeiras se substitu-am, tanto quanto possivel, por formas vernaculas, quando estas sejam anti-gas e ainda vivas em português ou

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FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

SOLETRAS, Ano XI, Nº 21, jan./jun.2011. São Gonçalo: UERJ, 2011 174

quando entrem, ou possam entrar, no uso corrente. Exemplo: Anvers, subs-tituido por Antuerpia; Cherbourg, por Cherburgo; Garonne, por Garona; Genève, Genebra; Jutland, por Ju-tlandia; Milano, por Milão; München, por Munique; Torino, por Turing; Züri-ch, por Zurique etc.

Rio de Janeiro, 12 de maio de 1986.

Este documento foi publicado por An-tônio Houaiss na Revista Brasileira de Lín-gua Portuguesa, da Sociedade Brasileira de Língua e Literatura, ano IX, número 15, 1º e 2º semestres de 1987, no Rio de Janei-ro, pela SUAM (Sociedade Universitária Augusto Motta), p. 75-88, e transcrito aqui como parte da comemoração do Centená-rio da Ortografia Oficial da Língua Portu-guesa.