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1 A MORTE (OU A DEFORMAÇÃO) DO LEITOR Reginaldo Pujol Filho (doutorando Escrita Criativa/PUCRS) O VÍRUS Duas causas naturais parecem dar origem à poesia. Ao homem é natural imitar desde a infância e nisso difere ele de outros seres, por ser capaz da imitação e por aprender, por meio da imitação, os primeiros conhecimentos ; e todos os homens sentem prazer em imitar (ARISTÓTELES). Esta é já uma citação clássica e consagrada a respeito das motivações que levam alguém a escrever teatro (desde a Grécia antiga) e depois poesia, narrativas e, por que não, cinema. Sem desmerecer o filósofo grego, ou invalidar esse pressuposto, acredito que, nos dias de hoje, podemos fazer uns acréscimos a essa ideia. Explico: Aristóteles elabora a Poética há mais de 2000 anos, uma época impensável para qualquer pessoa dos dias atuais. Significa imaginar um tempo e um mundo em que não existiam, para dizer o mínimo, Dante, Cervantes, Shakespeare, Dostoievski, Tchekhov, ou mesmo a Bíblia. É evidente e sabemos que, naquele tempo, já havia uma tradição (oral e escrita), conjunto de obras sobre os quais, inclusive, Aristóteles se apoia para elaborar a Poética. Contundo, na condição de leitor e escritor, quero crer que o que pesava sobre os ombros daquele que queria conhecer o fundamental, ou almejava iniciar-se na prática da escrita, era uma tradição 2000 anos menos pesada do que a que temos hoje. Quero dizer, havia muito mais por se inventar, muito menos com que se comparar. Mas não falemos só do peso dessa tradição acumulada ao longo dos milênios (infinitas leituras e a sensação de que tudo já foi feito). Pensemos também que esse conjunto inabarcável de textos são 2000 anos de inspirações ou motivações ou convites para imitar que o cânone e séculos e mais séculos de literatura representam para qualquer escritor contemporâneo. T.S. Eliot diz sobre a “tradição”: Ela não pode ser herdada, e se alguém a deseja, deve conquistá-la através de um grande esforço. Ela envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico, que podemos considerar quase indispensável a alguém que pretenda continuar poeta depois dos vinte e cinco anos; o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero e, nela incluída, toda literatura do seu próprio país têm uma existência simultânea. Esse sentido

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A MORTE (OU A DEFORMAÇÃO) DO LEITOR

Reginaldo Pujol Filho (doutorando Escrita Criativa/PUCRS)

O VÍRUS

Duas causas naturais parecem dar origem à poesia. Ao homem é natural imitar desde a infância – e nisso difere ele de outros seres, por ser capaz da imitação e por aprender, por meio da imitação, os primeiros conhecimentos –; e todos os homens sentem prazer em imitar (ARISTÓTELES).

Esta é já uma citação clássica e consagrada a respeito das motivações que

levam alguém a escrever teatro (desde a Grécia antiga) e depois poesia, narrativas e, por

que não, cinema. Sem desmerecer o filósofo grego, ou invalidar esse pressuposto,

acredito que, nos dias de hoje, podemos fazer uns acréscimos a essa ideia. Explico:

Aristóteles elabora a Poética há mais de 2000 anos, uma época impensável para qualquer

pessoa dos dias atuais. Significa imaginar um tempo e um mundo em que não existiam,

para dizer o mínimo, Dante, Cervantes, Shakespeare, Dostoievski, Tchekhov, ou mesmo

a Bíblia. É evidente e sabemos que, naquele tempo, já havia uma tradição (oral e escrita),

conjunto de obras sobre os quais, inclusive, Aristóteles se apoia para elaborar a Poética.

Contundo, na condição de leitor e escritor, quero crer que o que pesava sobre os ombros

daquele que queria conhecer o fundamental, ou almejava iniciar-se na prática da escrita,

era uma tradição 2000 anos menos pesada do que a que temos hoje. Quero dizer, havia

muito mais por se inventar, muito menos com que se comparar.

Mas não falemos só do peso dessa tradição acumulada ao longo dos milênios

(infinitas leituras e a sensação de que tudo já foi feito). Pensemos também que esse

conjunto inabarcável de textos são 2000 anos de inspirações ou motivações ou

convites para imitar que o cânone e séculos e mais séculos de literatura representam

para qualquer escritor contemporâneo. T.S. Eliot diz sobre a “tradição”:

Ela não pode ser herdada, e se alguém a deseja, deve conquistá-la através de um grande esforço. Ela envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico, que podemos considerar quase indispensável a alguém que pretenda continuar poeta depois dos vinte e cinco anos; o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero e, nela incluída, toda literatura do seu próprio país têm uma existência simultânea. Esse sentido

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histórico, que o sentido tanto do atemporal, quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos, é que torna um escritor tradicional. E é isso que, ao mesmo tempo, faz com que um escritor se torne mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua própria contemporaneidade (ELIOT, 1989: 38-39).

E quando penso sobre escrever literatura hoje, penso nas ideias de

Aristóteles a respeito da origem da poesia e penso também nessa relação daquele

que escreve com tudo o que já foi escrito. Penso ainda nos depoimentos de diversos –

quem sabe todos – escritores, que afirmam que se escreve porque se lê. Amílcar

Bettega Barbosa, investiga a formação do escritor, afirma “não há escritor que não

seja antes um leitor” (BARBOSA, 2012: 15) e, mais adiante, socorre-se de Roland

Barthes para corroborar sua afirmação, ao comentar que

[Barthes] Interrogando-se sobre as razões que levam alguém a desejar escrever, ele conclui que ‘j1écris pour contenter un désir’. E este desejo tem origem no prazer, ‘le sentiment de joie, de jubilation, de comblement que me donne la lecture de certains textes écrits par d’autres’” (BARTHES, apud BARBOSA, 2012: 25).

Eu mesmo tenho a nítida impressão de que, muito antes de escrever meus

três livros já publicados, um dos motores que me levaram a querer escrever, ainda

na adolescência, foi a leitura de contos e crônicas de Luis Fernando Verissimo. O

prazer da leitura e a admiração por sua obra, tenho certeza, conduziram-me a

tentar produzir textos como os dele. Aonde quero chegar com isso? Digamos que,

pretensiosamente tentando atualizar Aristóteles, acredito que hoje – e já há um

bom par de séculos –, há uma parcela significativa de pessoas cujo primeiro gatilho

para a escrita é não só imitar as ações de homens superiores ou inferiores, como

diria o filósofo grego, mas também – e muito – para imitar estilo, personagens,

enredos, formas, figuras, em resumo, outros autores1. “Examino com assiduidade o

estilo e a técnica daqueles que uma vez admirei e cultuei: Nietzsche, Dostoievski,

Hamsun, (...) Imitei todos os estilos na esperança de descobrir a chave do segredo

torturante da arte de escrever” (MILLER, 1986: 22), diz Henry Miller. E eu arrisco

dizer que o escritor contemporâneo é, mais que imitador, um duplo imitador: de

ações e de textos. Escreve porque lê. Porque encontrou um grande prazer na

leitura. Leitura como vírus da escrita.

1 E confesso que tenho medo de revisar estas ideias para, em breve, relatar que há também

aqueles que escrevem porque querem ser escritores (entendendo escritor como a figura pública, aquele que vai à Flip, dá entrevista, aparece nesse período de renascimento do autor que vivemos neste século 21).

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Antes de avançar, é importante estabelecer uma separação bastante simples

entre leitores. Muitos autores já cunharam classificações de leitores, mas o que me

interessa aqui é apenas lembrar que percebo (e já fui um e hoje sou outro), duas

condições de leitores. O Leitor entusiasmado e o Leitor contaminado. O que os diferencia?

O leitor entusiasmado é aquele que todos já fomos um dia, e muitos continuam a

ser. Ávido pela catarse, entrega-se à emoção – sem juízo de valor no que direi a seguir –

mais superficial do texto. É quem, se por acaso souber antecipadamente o final do livro,

terá sua leitura totalmente prejudicada ou impedida, pois esse é o prazer: descobrir o que

vem na próxima página, o que acontece na história. Seria, para Barthes, o leitor que

pratica a leitura que “vai direto às articulações da anedota, considera a extensão do texto,

ignora os jogos de linguagem” (BARTHES, 2010: 18); ou o tipo ingênuo proposto por

Augusto Meyer: “Pouco importa a impressão literária, o sabor do estilo, a voz do autor.

Quer divertir-se [...] O tipo representativo do leitor ingênuo é o devorador de romances que

salta capítulos inteiros para chegar ao fim e saber de uma vez qual foi o prêmio do herói,

se o moço casou com a moça e o dedo de Deus castigou o mau” (MEYER, 1947, on line).

Ou ainda poderíamos pensar no romancista/leitor ingênuo de Orhan Pamuk (2011), que

não difere muito do que acabei de falar.

E há este Leitor contaminado que é, desde sempre, potência dentro do

entusiasmado, que pode vir a realizar-se ou não. É possível viver-se muito bem sendo um

leitor entusiasmado durante a vida toda, não há mal nenhum nisso. Apenas percebo que,

quando o leitor passa a deter-se na construção da frase, no estilo, a dar importância igual

ao maior a fragmentos do livro do que a todo livro, quando busca mais em uma obra do

que os efeitos anedóticos, ele começa a abandonar o entusiasmo puro que todos temos

ao despertar para a leitura de ficção. Voltando a Barthes, é

outra leitura que não deixa passar nada; ela pesa, cola-se ao texto, lê, se se pode assim dizer, com aplicação e arrebatamento, apreende em cada ponto do texto o assíndeto que corta as linguagens – e não a anedota: não é a extensão (lógica) que a cativa, o desfolhamento das verdades, mas o folheado das significâncias (BARTHES, 2010: 15).

Desenvolvida de maneira empírica, em oficinas e disciplinas de leitura ou de

escrita criativa, a leitura que é realizada pelo leitor contaminado também poderia ser

entendida pelas palavras de Ítalo Moriconi, quando refere-se a

“close reading”, a leitura atenta, a leitura densa, a leitura linha a linha, cuja meta é evidenciar como grandes escritores do passado e do presente obtiveram e continuam a obter

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resultados literários apreciáveis e diversificados através desse ou daquele jeito de fazer (MORICONI; PROSE, 2008: 7).

Essa diferenciação entre leitor entusiasmado ou contaminado é aqui importante,

porque o papel dos livros e da leitura na vida de um escritor não se restringe ao de modelo

para as primeiras escritas. Na verdade, no momento em que é despertada a vontade de

escrever/imitar, creio que a maioria dos potencias escritores encontram-se na condição de

leitores entusiasmados ou muito próximos disso (comigo foi assim). Mas há um momento

seguinte, quando decido escrever ou ser escritor.

O CONTÁGIO COM O VÍRUS

Para mim, beira a impossibilidade definir o momento em que alguém se torna

escritor de fato. Após a primeira publicação de um livro? Quando passo a tratar

seriamente da questão? Quando o outro diz que sou escritor? Não há rito de passagem

que separe de um lado os não-escritores dos escritores. E não é isso o mais importante. A

questão aqui é que o leitor entusiasmado, movido pela paixão, pelas leituras e por um

súbito desejo de reproduzi-las escrevendo seus próprios textos, em algum momento põe

em prática esse desejo; e há um instante em que passa a fazê-lo com certa rotina e eis

que ele se torna e reconhece-se escritor. E creio, ao perceber-se escritor, ou no instante a

seguir desse reconhecer-se, a prática da leitura também se modifica. Antes puro

entretenimento, oportunidade para descansar dos problemas reais, ela começa a tomar

outros contornos. Adeus, ingenuidade. O escritor, seja através de oficinas de escrita ou da

experiência prática, começa a perceber que os romances, contos e poesias que decide ler

podem, além de diversão, ser instrumentos para pensar a própria escrita. A professora de

creative writing e escritora Francine Prose, conta que

No processo de me tornar uma escritora, li e reli os autores de que mais gostava. Li por prazer, primeiramente [leitura entusiasmada, primeiro momento], mas também de maneira mais analítica, consciente de estilo, da dicção, do modo como as frases eram formadas e como a informação estava sendo transmitida, como o escritor estava estruturando uma trama, criando personagens, empregando detalhes e diálogos [leitura avançada, qualificada, segundo momento] (PROSE, 2008: 15, grifos meus).

Assim como Amílcar Bettega diz que “a teoria também se adquire e se transmite

através da leitura de outras obras literárias” (BARBOSA, 2012: 15). Talvez esse seja um

momento realmente especial na vida de qualquer escritor ou aspirante a, em que um dos

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seus maiores prazeres, a leitura, se converte em um duplo prazer. Um momento que

Pamuk acredita ideal na sua classificação de ingênuo/sentimental reflexivo, de

convivência dos dois leitores dentro do autor. O leitor contaminado (assim como o próprio

escritor) ainda não todo descoberto convive, ou alterna-se, com o leitor entusiasmado. Ler

é entusiasmar-se, deixar-se levar e encantar pelas obras lidas, mas é também um

descobrir de possibilidades múltiplas para o escritor em construção. Um dia deseja-se

escrever como Cortázar, no outro como José Saramago, no dia seguinte como Machado

de Assis. E as possibilidades se apresentam infinitas. Mas, com o aprofundamento das

leituras e da escrita, o leitor contaminado e o escritor vão tomando conta do espaço antes

ocupado pelo entusiasmado, assim percebo, porque assim aconteceu comigo. Aponto

como um momento chave dessa mutação o momento em que não só o encantamento

com a obra alheia passa a ser combustível para a escrita, mas também a percepção da

falha ou da falta ou ainda de possiblidades não desenvolvidas no livro lido. Ricardo Piglia,

investigando a presença da figura do leitor na obra de Jorge Luis Borges, comenta que:

O exame microscópico das leituras também se expande: o leitor vai da citação para o texto como série de citações, do texto para o volume como série de textos, do volume para a enciclopédia, da enciclopédia para a biblioteca. Esse espaço fantástico não tem fim porque supõe a impossibilidade de encerrar a leitura, a sensação acachapante de tudo o que ainda falta ler. Não obstante, alguma coisa falha, sempre, nessa série: uma citação que se extraviou, uma página que se espera encontrar e que está em outro lugar. ‘Tlön, Uqbar, Orbis Tertius’ – o conto de Borges que define sua obra – começa com um texto perdido, um artigo de enciclopédia; alguém leu, mas não consegue mais encontra-lo. O que irrompe não é o real, mas a ausência, um texto que não se tem e cuja busca leva, como num sonho, ao encontro de outra realidade (PIGLIA, 2006: 26).

Esse comentário de Piglia faz-me pensar acerca dessa influência ao avesso que

a leitura também passa a provocar no escritor e leitor mais atento à construção e,

digamos, desatento à fábula. A “ausência”, “o texto que não se tem”, além de motes que

Piglia identifica no conto Tlön, Uqbar, Orbius Tertius, também podem ser entendidos como

as possibilidades ainda não escritas de uma história, de um poema, que o escritor

percebe no texto de outro autor. É quando o escritor em pele de leitor pergunta-se por que

ele não fez assim? Ou, será que não seria melhor ele ter feito desse modo? De fato, este

já não é um comportamento de leitor entusiasmado entregue à emoção e à catarse.

Tomando esse caminho nos momentos em que leio, quebro de vez o pacto de leitura, a

famosa suspensão da realidade, e penso sobre o texto enquanto forma, enquanto obra

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artística e estética, questiono-o, não necessariamente quanto à sua verossimilhança, mas

quanto às opções técnicas tomadas pelo autor da obra. “Nunca lhe aconteceu, ao ler um

livro, interromper com frequência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por

afluxo de ideias, excitações, associações? Numa palavra, não lhe aconteceu ler

levantando a cabeça” (BARTHES, 2004: 26), pergunta Roland Barthes. Oh, sim, meu caro

Barthes. E cada vez mais, respondem escritores e leitores contaminados. Parar a leitura

de um romance ou de um conto e deixar-se levar pelos labirintos de novas ideias que um

personagem, uma frase ou uma cena apontam, pode acontecer a leitores. Mas

certamente, com o passar do tempo, vai se tornando parte intrínseca da prática de leitura

de todo escritor. Ítalo Moriconi, diz, sobre o método de ensino (e, portanto, de escrita)

apresentado por Francine Prose: “A lei maior de Francine Prose é: aprendemos através

de exemplos. Não para imitá-los (isso também um pouco), mas para refletir intensamente

sobre eles” (MORICONI; PROSE, 2008: 7). A ideia parece-me bastante clara: 1) fui

despertado para a leitura e desfrutei desse prazer ingênua e apaixonadamente; 2)

Num momento seguinte, a leitura me despertou para a escrita; 3) quando me dou

conta – ou sou alertado por um professor – sobre essa óbvia relação de causa e efeito

entre ler e escrever, minha entrega à leitura (talvez o gesto já nem seja mais uma

entrega) não será nunca mais ingênua e romanticamente apaixonada. É interessada,

reflexiva, pensada. Há uma intenção de troca não só de emoções, mas de ideias e

instrumentos. Esquizofrenicamente, abro o livro na condição de leitor e também de

escritor. Não consigo mais vestir apenas uma das máscaras ao abrir um livro; 4)

baseado em minha experiência, creio que, com o passar do tempo, com a emergência

do escritor sobre todas as outras personas que desempenho no dia a dia, ao abrir um

livro, se alguma personalidade (leitor ou escritor) será deixada de lado, parece-me que

é a do leitor entusiasmado da aurora da minha infância.

Porque, assim como há dois leitores (entusiasmado e contaminado), talvez

também seja possível distinguir, no mínimo, dois momentos do ser escritor. O

momento primeiro (motivado pelo leitor entusiasmado), em que a escrita é hobby,

passatempo; e um momento segundo – que para alguns nem chega a acontecer –

em que a escrita passa a ser entendida como trabalho artístico, processo de

criação, instante no qual a prática da escrita pode vir até a desempenhar o papel

de trabalho ou principal atividade na vida daquele que escreve. Sim, há muitos que

dedicam as horas vagas da advocacia, da medicina, da engenharia às letras. Mas

há também a parcela de escritores que procuram trazer a escrita para o horário

comercial, ou que observam isso acontecer de forma natural nas suas vidas (ou

que, mesmo exercendo uma profissão clássica, enxergam nessas horas que

sobram para a produção literária, a sua principal atividade diária). E, ao pensar

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nesse segundo cenário, o da prática da literatura como principal atividade, e ao ler

Francine Prose comentar que um “professor ensinou-me (...) a editar o meu

trabalho. Para qualquer escritor, a capacidade de olhar uma frase e identificar o

que é supérfluo, o que pode ser alterado, revisto, expandido ou – especialmente –

cortado é essencial” (PROSE, 2008: 14), reflito se essa feliz descoberta da leitura

como ferramenta, o desenvolvimento das faculdades de um leitor contaminado, que

não apenas deixa-se levar pela leitura e suas emoções, mas, mais do que isso, lê

levantando a cabeça, fazendo comparações e reflexões, edições imaginárias,

pergunto-me se essa condição, ao mesmo tempo em que traz prazer para o meu eu-

escritor, também não acaba trazendo algum incômodo ou fastio ao leitor que convive

com o escritor dentro de mim. Quer dizer, praticando a escrita full time, ou perto disso,

em tendo percebido na leitura uma das ferramentas de aprimoramento do meu

trabalho, e reconhecendo-me um leitor ativo e analítico (por ser escritor), a pergunta

que fica é: desenvolvidas tais sensihabilidades de leitor-escritor, como desabilitá-las,

como desligá-las para fruir despreocupadamente um livro? Parece-me impossível. E,

portanto, tenho a impressão – e é o que tenho constado empiricamente – de que, com o

avançar dos anos de uma vida de escritor, quanto mais o tempo passa, mais se escreve

(ou seja, identifica-se o que é supérfluo, o que pode ser alterado, revisto, expandido ou

cortado) também ao ler romances, contos, poemas de outros autores. A leitura, antes

prazer, lazer, descanso, então passa a ser trabalho, às vezes tão árduo quanto o

processo de escrever. Ou, parafraseando Barthes: o nascimento do escritor tem de pagar-

se com a morte do leitor? Ou, sendo menos radical, é possível que o nascimento e o

desenvolvimento do escritor sejam pagos com uma doença e uma deformação do leitor.

A DOENÇA

Piglia, comentando A morte e a bússola, consegue, a partir deste conto de

Borges, perceber e estabelecer dois tipos de leitores presentes na obra. Um deles, e o

que me interessa, seria:

O leitor como criminoso, que utiliza os textos em benefício próprio e faz deles um uso indevido, funciona como um hermeneuta selvagem. Lê mal, mas apenas no sentido moral; faz uma leitura cruel, rancorosa, faz um uso pérfido da letra. Poderíamos pensar na crítica literária como um exercício desse tipo de leitura criminosa. Lê-se um livro contra outro leitor. Lê-se a leitura inimiga. O livro é um objeto transacional, uma superfície sobre a qual se deslocam as interpretações. Scharlach usa o que lê como armadilha, como maquinação sombria, como superfície em branco sobre a qual os corpos

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deslizam. Em certo sentido, é o leitor perfeito; difícil encontrar uso mais eficaz para um livro. Provisoriamente é o oposto do leitor inocente (PIGLIA; 2006: 78).

Piglia faz referência ao crítico literário como encarnação possível do “leitor

como criminoso”, oposto do “leitor inocente”, aquele que se deixa levar pelo texto, que

se deixa tomar pelo enredo. Mas creio que o escritor irmana-se com o crítico, tal como

Piglia o enxerga. Também o escritor pode receber seu veredicto de criminoso. Quando

abro um livro e, consciente ou inconscientemente, passo a, antes dos aspectos

emocionais da obra, perceber toda maquinaria à minha disposição, as estruturas, as

peças ali colocadas à minha frente, dou-me conta de que, mais do que um leitor

criminoso, leitor ladrão, vou transformando-me, dia a dia, em um leitor cleptomaníaco,

eis que já não consigo mais ler sem, feito um radar, passar o tempo todo da leitura

identificando o objeto do meu próximo furto (nem que esse objeto seja, e em geral

para mim é, as lacunas que o autor lido não preencheu, caminhos que não escolheu.

As oportunidades, na minha opinião, desperdiçadas; os textos que poderiam ali estar,

porém não estão.). Creio que para o escritor já não é mais permitida a ingenuidade, ou

a inocência. Ao abrir o livro, assim como o crítico já abre predisposto a criticar e a

ressignificar, o escritor já está escrevendo. Pode rir aqui, emocionar-se ali, mas logo

pensará no que provocou o riso ou no que provocou a emoção. E em como isso pode

ser aplicado em outra situação literária. E, quando constato a situação em que o meu

eu-leitor se encontra hoje, espécie de maníaco consciente da mania, mas impotente

para se livrar dela, o que acontece com o meu prazer da leitura? Com a alegria de ler?

Perde-se? O escritor-filho do leitor-pai comete o fratricídio e sou obrigado então a

reconhecer que, uma vez escritor, seguirei lendo, mas nunca mais com aquela sensação

que um dia O analista de Bagé me provocou e que, por isso mesmo, resolvi tornar-me

escritor? É possível que sim, é possível que seja de fato uma doença sem cura e talvez

tão dolorosa ao ponto de escritores de longa estrada como o norte-americano Philip Roth,

entre outros, declarar que não lê mais literatura. “I’ve stopped reading fiction. I don’t read it

at all. I read other things: history, biography. I don’t have the same interest in fiction that I

once did.” (ROTH, 2011, on line), declarou o autor em entrevista ao Financial Times.

Não posso afirmar que Roth tenha parado de ler ficção pelas mesmas angústias

que me atacam. Porém quero lançar uma hipótese analgésica: que o leitor entusiasmado

que se percebe convertido em leitor cleptomaníaco (escritor), como eu, ao perceber e

elaborar essa sua condição talvez esteja prestes a superá-la pelo menos no que se refere

à angústia da perda da alegria ingênua da leitura; o que por vezes pode se perceber em

uma deformação e numa nova categoria de leitor. E talvez surja aí um novo prazer.

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A DEFORMAÇÃO

Francine Prose fala que “o foco na linguagem revelou-se uma habilidade

prática, útil, da mesma maneira que a leitura de partituras à primeira vista pode vir a

calhar para uma música” (PROSE, 2008: 19). Nesta imagem, a da partitura, vejo uma

chave para entender essa deformação um tanto médico-e-monstro do leitor que vira

escritor, mas não pode, não consegue e nem quer deixar de ler, como também diz

Prose, “me pergunto se teria aceitado de maneira tão feliz ser uma escritora se isso

tivesse significado que não poderia ler durante os anos que podemos levar para

completar um romance” (PROSE, 2008: 21). Mas, retomando a imagem da partitura:

proponho que os livros, com o passar dos anos, podem assumir o papel de partituras

para escritores. Acredito que músicos e maestros, assim como se emocionam ao ouvir

obras musicais, também experimentem algum tipo de prazer estético, do campo

intelectual, ao apreciar o modo como outro músico construiu uma peça musical. E,

ainda, ao observarem partituras, vivem também uma espécie de epifania ao encontrar,

pela análise de outros trabalhos, possibilidades para novas obras. Quero apostar (e

me consolar) que o mesmo se dá comigo e com outros escritores. Leio cada vez mais

e, confesso, por vezes me pergunto por que já não me emociono com tanta frequência

ou deixo-me encantar tantas e tão poderosas vezes com novos livros como lembro de

o fazer quando descobri a leitura. No entanto, apesar dessa “falta de emoção”, como

acabei de dizer, leio cada vez mais e estou sempre ávido por novos livros. Creio que

busco esse prazer intelectual da descoberta de novos caminhos para a escrita, feito o

maestro que observa a partitura, o engenheiro que descobre novas estruturas, o

matemático que decompõe um teorema. Através do prazer de pensar, num movimento

do campo sensível para o campo intelectual. E essa deformação faz-me sugerir que o

escritor que, mesmo com o passar dos anos e o ganho de experiência, ainda busca

livros de ficção para ler, esse escritor, arrisco dizer, deixa de ser um leitor contaminado

e assume nova condição: a do leitor épico.

Longe de mim dizer que a perda do prazer passional do leitor primeiro que fui,

e a busca por novos livros é uma epopeia. Não dramatizarei a esse ponto. Quando me

refiro ao épico, é porque lembro do conceito de teatro épico proposto por Bertolt

Brecht: teatro para provocar a reflexão e não a emoção do espectador; um teatro que

desejava antes o afastamento crítico do espectador e não a sua entrega e

identificação irrestrita com a cena no palco. Ao pensar nesse prazer que aqui identifico

como o típico da leitura de literatura realizada por um escritor, essa forma de prazer,

digamos, frio, que não se deixa arrebatar e que é fruto da análise, da reflexão; um

processo que é lento e ponderado como não podem ser as paixões entusiasmada; ao

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pensar sobre esse prazer que é o majoritário na leitura do escritor, não resisto a

relacionar com as ideias de Brecht sobre o teatro. “O romance burguês do século

passado cultivou um pendor dramático bastante intenso, pendor estes que se traduziu

na intensa concentração da fábula e interdependência entre as partes isoladas”

(BRECHT, 1978: 46), diz o autor, contextualizando as suas ideias. E, sendo o teatro

épico o contraponto do dramático, conclui-se que ele não emprega essa intensa

concentração na fábula e interdependência entre as partes isoladas. Da mesma forma,

o escritor, ao ler um romance ou um conto de forma analítica, detalhada (trabalhando),

concentra-se menos na fábula e mais no detalhe. Assim como a estrutura épica, o

leitor épico também se detém no fragmento do texto que provoca sua razão; ainda

Brecht sobre o teatro épico: “Não mais era permitido ao espectador abandonar-se a

uma vivência sem qualquer atitude crítica (e sem consequências na prática), por mera

empatia com a personagem dramática” (BRECHT, 1978: 47). A atitude apregoada pelo

dramaturgo é justamente a postura do escritor frente a uma obra literária. Lê

criticamente, levantando a cabeça (afastamento) para refletir. E, mais do que isso, faz

isso visando a consequências práticas n seu fazer literário. Quer dizer, o escritor, em

certo modo, porta-se frente ao texto como Brecht pensava que o espectador deveria

reagir ao teatro épico2. Eis então que essa doença ou deformação leitora que vivo – e

muitos outros escritores também – talvez agora tenha um diagnóstico possível. A

mania de ler sempre atento às minúcias, praticando a leitura não em busca do

desfecho ou de um efeito catártico, mas, ao contrário disso, lendo nas entrelinhas,

buscando duplos significados, observando brechas, percebendo o que há por trás de

personagens e enredos e transformando a leitura em potência de escrita, quem sabe,

faz dos escritores leitores épicos por excelência.

E, quanto à alegria perdida na leitura ingênua, abandonada na pré-história do

escritor, há um alento:

E, com tudo isso, o teatro perdia a sua função de entretenimento? Acaso nos empurravam de novo para os bancos da escola e nos tratavam como analfabetos? Queriam que fizéssemos exames, que conseguíssemos um diploma? É voz corrente que existe uma diferença marcante entre aprender e divertir-se. É possível que aprender seja útil, mas só divertir-se é agradável. É preciso defender o teatro épico contra qualquer possível suspeita de se tratar de um teatro profundamente desagradável, tristonho e fatigante. O que podemos dizer é que a oposição entre aprender e diversão não é uma oposição necessária por natureza, uma oposição que

2 Claro que não estou dizendo que o escritor “desperta para sua condição social”, para seu lugar no

mundo, como desejava Brecht que os espectadores fizessem. Mas desperta sempre para sua condição de escrita.

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sempre existiu e sempre terá de existir [...] O teatro não deixa de ser teatro, mesmo quando é didático; e, desde que seja bom teatro, diverte (BRECHT, 1978: 49-50).

Eis então, se não me jogo mais alucinadamente no precipício da identificação acrítica

com personagens e enredos, por outro lado, leitor épico que sou, estou apto a

encontrar diversão no aprendizado que as minhas leituras trazem para a minha

escrita. É claro, desde que sejam boas leituras.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

BARBOSA, Amílcar Bettega. Da leitura à escrita: a construção de um texto, a

formação de um escritor. 2012. 301 f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de

Pós-Graduação em Letras, PUCRS. Porto Alegre, 2012.

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00144feabdc0.html?ftcamp=rss#axzz1QUC88NCz Entrevista concedia a Jan Dalley.