a moeda e o ingresso no reino de deus

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO - UMESP FACULDADE DE TEOLOGIA – Modalidade EAD CURSO DE GRADUAÇÃO EM BACHAREL EM TEOLOGIA Teologia (período 5) Módulo: Exegese do Novo Testamento – Metodologia e Evangelhos Professores: Hugo Fonseca e Jorge Schütz Gilvano Amorim Oliveira A moeda e o ingresso no Reino dos Céus Reflexões a partir de uma leitura social da hermenêutica de Mateus 5.1-12 CAMPINAS 2014

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Artigo acerca da moderna liturgia, a liturgia da era do espetáculo

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Page 1: A Moeda e o Ingresso No Reino de Deus

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO - UMESP

FACULDADE DE TEOLOGIA – Modalidade EAD

CURSO DE GRADUAÇÃO EM BACHAREL EM TEOLOGIA

Teologia (período 5)

Módulo: Exegese do Novo Testamento – Metodologia e Evangelhos

Professores: Hugo Fonseca e Jorge Schütz

Gilvano Amorim Oliveira

A moeda e o ingresso no Reino dos Céus

Reflexões a partir de uma leitura social da hermenêutica de Mateus 5.1-12

CAMPINAS2014

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A moeda e o ingresso no Reino dos Céus

Reflexões a partir de uma leitura social da hermenêutica de Mateus 5.1-12

Gilvano Amorim Oliveira1

O imaginário de que uma vida sofrida é garantia de eternidade feliz remonta aos

primórdios da cultura grega antiga e encontra eco no pensamento cristão evangélico

brasileiro que apregoa que o sofrimento terreno será compensado pelo quilate do

galardão celestial. A perícope de Mateus 5.1-12 traz elementos que permitem análise de

uma espécie de caráter de justiça social feita aos materialmente desfavorecidos. Vamos

nos ater ao versículo três que registra: bem-aventurados os pobres de espírito porque

deles é o Reino de Deus. Antes de nos debruçarmos nesta análise, reflitamos acerca do

papel da hermenêutica no fazer teológico. A hermenêutica tem importância capital na

compreensão e aproximação de textos bíblicos às comunidades locais. Neste afã de

aproximação e compreensão, destacam-se os elementos que se constituem em princípios

fundamentais da ciência hermenêutica. Em primeiro lugar, podemos citar o elemento

pneumatólogico, ou seja, o papel do Espírito Santo. Sem Ele não há hermenêutica. Esta

afirmação pode não ser acadêmica, nem ter importância alguma para os que não se

revestem da fé cristã, mas a ideia da ação sobrenatural do Espírito Santo está

intimamente ligada ao aspecto transcendente e sobrenatural do afazer hermenêutico. O

próprio Jesus anunciou o advento do Espírito Santo como guia na direção do

conhecimento e na busca da verdade. Boa porção do exercício hermenêutico reside

numa espécie de trabalho braçal independente de qualquer senso de espiritualidade onde

se aplicam regras, se observam aspectos gramaticais, se valoriza a sintaxe e se

comparam textos de diferentes fontes. Este trabalho mecânico seria insosso não fosse o

papel do Espírito Santo de trazer uma compreensão soteriológica, uma dimensão

salvífica que faz da letra morta fonte de vida e de esperança. Esta ação do Espírito Santo

se dá no campo da revelação, ao trazer aos homens uma forma de compreensão muito

próxima das grandes verdades de Deus. À revelação segue-se a iluminação, que é a ação

sobre os leitores na direção do encontro da revelação dada aos que escreveram. É um

1Aluno do Curso de Graduação em Teologia – EAD. Polo Campinas. RA 207332. E-mail: [email protected]

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momento de encontro, quando os olhos do escritor e do leitor se encontram em

contemplação única na direção da verdade da mensagem textual. Finalmente, à

revelação segue-se a capacitação, quando, por meio dos que pastoreiam, estas verdades

textuais chegam às comunidades eclesiásticas, seja por meio da prédica do púlpito, seja

através da ministração pessoal e particular do aconselhamento. Em segundo lugar,

destacamos o elemento teológico. O elemento teológico é a impregnação de aspectos

pessoais, contaminando, de certa forma, a pureza hermenêutica de um texto

(OSBORNE, 2009, p. 767). Traços de nossas crenças e pensamentos impregnam nossas

interpretações. Esta é uma das razões para o colorido de matizes doutrinários que

cercam o cristianismo hodierno. O próximo elemento a ser considerado é o elemento

gramatical. Aqui se releva a importância das línguas originais e suas nuances

específicas como tempos verbais, trocadilhos e expressões culturais. Finalmente, cabe

destacar o elemento comunitário na construção hermenêutica. Trata-se da influência de

elementos circunstanciais, carregados de subjetivismos históricos, geográficos e

culturais da comunidade, que caracterizaram o tempo e o espaço vivencial do escritor.

Apontados os aspectos fundamentais do exercício hermenêutico, voltemo-nos ao

texto de Mateus 5.3: bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o Reino de

Deus. A apuração hermenêutica desta perícope permite uma espécie de leitura social.

Notemos, como muito bem registra Paulo Roberto Garcia:

Deste modo, poderíamos apontar que o pobre em espírito é aquele que, na opção de fé pelo cristianismo (espírito) terá de abdicar dos bens terrenos (Mt 13.44-46), vindo a ser economicamente pobre. Por isso, aos pobres que ficaram pobres pela opção cristã, sendo perseguidos por causa da justiça (justiça da comunidade cristã), é prometido o Reino dos Céus.

Em primeiro lugar, note-se certa apologia à indisposição simbiótica entre os

bens materiais e o gozo terreal com o gozo celeste e os bens da vida eterna. Trata-se de

uma bipolaridade excludente. O indivíduo privado do gozo terreal encontrará nas

paragens celestiais fartura de bens, assim como o abastado materialmente não usufruirá

o melhor do gozo por vir. Este ideário da maldade intrínseca do homem material e da

corruptibilidade da instância terreal da vida traz em seu bojo um almejo libertador da

prisão corporal e do alcance do paraíso e tem raízes na cultura grega primitiva. Por volta

do século V antes de Cristo, Platão desenvolveu a teoria do conhecimento aclarada no

mito da caverna, que justifica a possibilidade da sobrevivência da alma sem o corpo.

Segundo esta teoria, o conhecimento intelectual independe das percepções sensoriais. A

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alma aprisionada no corpo é vítima das limitações sensoriais. Esta limitação pela

imposição sensorial cria dois tipos de almas, a superior e a inferior. Ou seja, cada

indivíduo possui uma alma superior e uma alma inferior. A alma superior, intelectiva ou

de ouro é a que pode contemplar o conhecimento em seu todo, em sua integralidade e na

completude de sua realidade. A alma inferior é a corporal, limitada à prisão do corpo e

pode ser irascível ou impulsiva. A alma irascível ou de prata se alberga no peito e seus

ímpetos se traduzem por lutas e a alma inferior ou de bronze habita o abdome e seus

ímpetos se voltam aos desejos carnais como o desejo por bens materiais, apetite e

sexualidade. A vida humana seria composta por um duelo quase bélico entre a alma

inferior que milita contra a alma superior. A inferior embota o conhecimento genuíno e

escraviza pela limitação dos sentidos. Assim, em Platão, o corpo físico tem um tom de

forte culpabilidade no sentido da degradação moral e ética do homem e a redenção final

se dará na morte com o aniquilamento total da alma inferior e a libertação da alma

superior em direção ao gozo do conhecimento pleno no paraíso.

Em oposição a este pensamento, a cultura judaica antiga sedia na instância

terrena do existir o espaço e o tempo para o exercício da plenitude da vontade de Deus,

das realizações humanas e das bênçãos divinas. Aos poucos surge a figura do paraíso,

mas a abastança aqui não impede o paraíso futuro. Pelo contrário, a cultura judaica

antiga via nas riquezas deste mundo sinal evidente das bênçãos de Jeová e antegozo do

paraíso. É neste cenário que surge Jesus com uma nova proposta, apontando as riquezas

como um malefício à vida espiritual. Mateus aponta esta tensão talvez a impregnando de

elementos vivenciais pessoais, já que sua ocupação anterior ao chamado para o

discipulado de Jesus era exatamente o de se assentar à coletoria. Bem sabemos que os

cobradores de impostos eram judeus arregimentados pelo governo romano para cobrar

seus pares e, no exercício deste papel, extorquiam seus iguais aferindo lucro injusto.

Portanto, ao ser remido desta vida, Mateus, por hipótese, bem pode ter pesado mais a

pena ao escrever os ensinos de Jesus a respeito do tema.

Assim se pode depreender uma leitura social desta perícope. O âmago desta

leitura está num senso de esperança por justiça social para os materialmente

desprovidos. Sua essência aponta para a expectativa da herança do Reino de Deus como

elemento de justiça social aos que nesta existência foram desfavorecidos e sofreram as

vicissitudes do desprovimento material. Note-se a tensão formada com os que são

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abastados, que estariam destinados ao sofrer eterno do Hades. Note-se, a propósito desta

análise, a parábola do rico e do Lázaro, segundo registrado em Lucas 16.19-31:

"Ora, havia um homem rico, e vestia-se de púrpura e de linho finíssimo, e vivia todos os dias regalada e esplendidamente. Havia também um certo mendigo, chamado Lázaro, que jazia cheio de chagas à porta daquele; E desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as chagas. E aconteceu que o mendigo morreu, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; e morreu também o rico, e foi sepultado. E no inferno, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio. E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e manda a Lázaro, que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro somente males; e agora este é consolado e tu atormentado. E, além disso, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem tampouco os de lá passar para cá. E disse ele: Rogo-te, pois, ó pai, que o mandes à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a fim de que não venham também para este lugar de tormento. Disse-lhe Abraão: Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos. E disse ele: Não, pai Abraão; mas, se algum dentre os mortos fosse ter com eles, arrepender-se-iam. Porém, Abraão lhe disse: Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite."

Para Jesus, o trato com o dinheiro e o apego a ele pode comprometer a salvação.

Os evangelhos registram mais de 90 citações de Jesus acerca das riquezas, o que revela,

em sua visão, a ligação direta da vida material (personificada nas riquezas) com a

espiritualidade (GONÇALVES, 2011, p. 63). Podemos destacar a narrativa do jovem

rico na perícope de Mateus 19.16-30. Em linha com nosso versículo, este fragmento

aponta o ensino de Jesus acerca do malefício do amor ao dinheiro. O mestre, usando da

figura do maior animal da palestina, propõe a possibilidade da passagem de um camelo

pelo fundo de uma agulha para apontar a impossibilidade do rico amante do dinheiro

salvar-se. Esta questão afronta a cultura judaica que via nas riquezas deste mundo sinal

evidente das bênçãos de Jeová e sinal de sua aprovação. Fica claro na conclusão de

Jesus que aqueles que deixarem o amor às coisas deste mundo terão por certo

recompensa no Reino dos céus. Esta é a grande leitura social que se pode fazer de nosso

versículo, a saber, os pobres materialmente falando, mas ricos espiritualmente, que

abriram mão do amor às coisas deste mundo em favor de seu amor por Deus,

encontrarão nas paragens celestes compensação à altura de tudo o que deixaram de

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usufruir aqui, quando se fará na plenitude da acepção da palavra, justiça social. É uma

palavra de esperança e alento para os menos favorecidos que esperam na redenção e de

advertência aos ricos que, prescindindo de favor do próprio Deus, confiam na força e

poder de seu dinheiro e oprimem aos Lázaros que catam migalhas à roda de suas mesas.

Estes ricos descobrirão às portas das mansões celestiais que suas miseráveis moedas de

ouro de nada valerão para a aquisição do ingresso ao paraíso. Finalmente, a pobreza de

espírito, como aponta estudo do texto grego (CASTRO, 2008, p.42) deveria ser grafada

como “pobres em Espírito”. A letra Maiúscula faz referência ao Espírito Santo e o

sentido desta expressão poderia ser “pobres espiritualmente falando”, no sentido de

destituídos da presença do Espírito Santo. Esta ausência leva à presunção e ao orgulho.

É a visão da vida centrada no homem pelo homem, estribada na capacidade humana de

estabelecer e manter sua própria existência, sem prescindir de auxílio e cuidado

sobrenatural de Deus. O trocadilho desta ideia está em que o dinheiro empobrece

espiritualmente ao embotar a visão de Deus na vida do homem, levando-o a confiar

cegamente na força de seu bíceps.

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BIBLIOGRAFIA:

BIBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 3. Ed.

Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2003, Edição Revista e Corrigida do Brasil.

bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009.

BIGNON, Deivinson Gomes. Apostila introdutória de exegese do Novo Testamento.

Disponível em http://moodle.metodista.br/moodle.ead. Último acesso em 06/11/2014.

CASTRO, Roberto C. G. Pobres pelo Espírito: a essência do Sermão da Montanha.

Revista Notandum Libro, n. 11, 2008.

GONÇALVES, Cláudio César. O rico, Jesus e a vida eterna. Uma interpretação

histórico-literária de Mateus 19.16-30. Cadernos de pós-graduação em letras, n.1, v.11,

2011.

OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação.