a literatura em trânsito_marilia_librandi
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A literatura em trnsito ou
o Brasil dentro da gente
(Contrao, Expanso e Disperso)
Texto para o livroA Primeira Aula. Pedro Meira Monteiro (Ed.). Verso digital em
Portugus, Espanhos e Ingls. Site Itau Cultural, (lanamento Novembro 2014)
Marlia Librandi-Rocha
Stanford University
De um colega mexicano: O Brasil, pra mim, um enigma.
Pra mim tambm.
A princpio falar sobre a experincia da primeira aula parece simples: descrever
experincias de cursos sobre literatura brasileira oferecidos no exterior. No entanto,
o convite a esse exercicio se revela, desde a sua proposta, muito mais dificil: expor a
experincia do vazio que o estar fora de seu prprio pais produz no enunciador, o qual,
a partir da posio da ausncia, deve representar sua cultura, falar por ela, diz-la, e
sobretudo, ensin-la a estrangeiros. possivel ensinar cultura brasileira atravs de sua
literatura para alunos e alunas que falam outra lngua e que pertencem a outras culturas?
E o que ocorre com nossa prpria auto-compreenso do que a literatura e a cultura
brasileiras quando falamos dela a partir do ponto de vista da ausncia e da distncia?
Comeo, ento, por expor um paradoxo: quando vivemos no Brasil, no precisamos
necessariamente pensar o Brasil, pois o Brasil est perto, perto demais, talvez at em
demasia; preciso, de certo modo, livrar-se do Brasil para sentir outros ares e maiores
liberdades; ao sair do Brasil, porm, e deix-lo para trs, carregamo-lo conosco medida
mesma que o perdemos. Perto, longe; Longe, perto. Como a vertigem do desejo, que se
alimenta da carncia e da miragem.
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nesse trnsito, e a partir da dor decorrente de uma saudade ativa, que se pode
vislumbrar o n do problema: doravante no h mais volta ao pleno. A partir da ruptura
violenta da partida, passamos a habitar esse hiato, vazio, semelhante ao entre-lugar
teorizado por Silviano Santiago, ele prprio tendo vivido e lecionado dez anos nos
Estados Unidos. Se o entre-lugar indica uma posio comum aos latino-americanos, o
vazio sugere pensar o que ocorre com a noo de literatura brasileira em trnsito.
No meio do caminho/ tinha o Brasil.
Sabemos que a viagem tpica vigente na literatura produzida no Brasil desde a carta
de Achamento de Pero Vaz de Caminha, e que tambm, de certo modo, uma primeira
aula, como essa que nosso colega Pedro (ele tambm um Pero) nos solicita s que ao
revs, pois que se assemelha mais a uma carta de Perdio: ns que estamos no meio docaminho, seres e pensamentos bi-partidos, somos convidados a pensar no a terra firme,
mas o lugar em suspenso entre dois ou mais mundos, vazio.
Sabemos tambm, desde que Wolfgang Iser assim teorizou, que os vazios no texto
convidam os leitores a uma participao ativa no simultneo desvendamento, inveno
e construo do sentido. A indagao de Pedro Meira Monteiro sugere, assim, que o
ensinar literatura brasileira a partir de uma vivncia fora do Brasil acentuaria ou levaria
a um esvaziamento as categorias plenas, e obrigaria-nos a um confronto mais acentuado
com o enigma: o que nos faz brasileiros importantes e desimportantes no intercurso
mundial? Haveria afinal um recado brasileiro ao mundo, e, uma vez expresso, manteria
esse recado alguma singularidade braslica ou, ao contrrio essa se diluiria ao se
espalhar?
Contrao e expanso
A literatura brasileira no um objeto fixo que podemos colocar na mala. Carregamos
livros que sempre pesam muito, mas um conceito no se pesa em volumes. E se no
tem fixidez como coisa slida, sua leveza tambm no se desmancha no ar, apenas se
transforma conforme nos deslocamos de posio e de lngua, pois a viagem acentua
o desconforto, os dilemas e a necessidade de re-viso contnua daquilo que o termo
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literatura brasileira revela e esconde, pois somos chamados a responder por ele.
Imaginemos, ento, que por causa da viagem todo o arquivo material da literatura
brasileira devesse caber em uma pequena bagagem, e para isso tivesse de ser contraido
por um desses mecanismos de suco que retiram todo o ar em volta do objeto, de modo
a que esse se contraia ao mximo e caiba na mala sem pesar muito; e que, uma vez
chegados ao nosso destino, os volumes que compem a literatura brasileira se enchessem
de ar, e se abrissem novamente como uma caixa mgica expandindo-se uma vez ao ar
livre. Ao sair do Brasil, condensao mxima para que o muito caiba em pouco. Ao
chegar em algum ponto no exterior, expanso mxima para que o de fora se incorpore
dentro. esse movimento continuo de conteno ou de minorao (em busca do mnimo
denomindor-in-comum) e de concomitante expanso e disperso (em busca do mximodenominador-em-comum) que a experincia de lecionar fora do Brasil aciona.
Por isso, menos do que ideias fora do lugar, penso que a experincia do exterior
acentua o lugar fora das ideias, ou seja, os impensados do Brasil, e tudo aquilo que
no lugar escapa das idias e surpreende. De outro lado, o processo de exteriorizao d
margem a um intenso movimento de interiorizao. Nesse caso tambm, as idias no
estariam fora do lugar, mas dentro do corpo.
Se aceitarmos o desafio de Gayatri Chakravorty Spivak de que a cultura no se ensina
nem se aprende, apenas a lngua (dai a urgncia de considerar professores de lngua no
mesmo patamar que os de literatura, filosofia e cultura); de que a cultura no se aprende
nem se traduz do mesmo modo que no possivel traduzir a fontica, e se considerarmos
que essa observao no pessimista, pois no significa acabar com a nossa profisso,
mas desafi-la a encontrar o quid, o ponto X da transmisso de um saber, diria, ento, que
ensinar literatura e cultura brasileiras implica no a obrigatoriedade de incluir elementos
de Brasil nos cursos, apenas e sobretudo, mas um modo de abrir espao para que, seja
qual for o tema, um modo brasileiro de percepo e compreenso possa fazer a diferena
na discusso e apresentao de conteudos. Digamos que no importa o conteudo do
curso, mas a forma. E a forma de uma cultura, da pertena a uma cultura sua marca, sua
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incrio no corpo, nas letras e na voz. Aquele certo sentimento ntimo a que se referia
Machado de Assis remeteria, pois, no a um conteudo, mas a uma dico, a uma marca
fsica da cultura em nosso corpo e mente, e que dirige, antecede, e precede nosso olhar,
nossa audio e nossa viso de mundo, como a memria da cano de ninar da infncia
primeira. assim que ao lado da expanso, ocorre tambm a minorao: o Brasil aparece
em elementos diferenciais mnimos, quase imperceptveis, certamente incontrolveis e
inconscientes.
Como transmitir esse quase nada em sala de aula? Talvez seja essa uma das principais
questes a serem lanadas aos alunos estrangeiros que nos lem. Justamente por no
terem a marca do Brasil na sua pele, no seu corpo, eles e elas podem dizer, ver de longe,
e serem capazes de abstrair o que para um nativo fica obscuro, contribuindo sobremaneiracom nossa compreenso. J um brasileiro nativo no expressa o Brasil como algo fora
de si, mas, mesmo sem querer, apresenta-o, no modo de respirar ou expirar encontros
voclicos como o o ou em certo modo de gingar as palavras e seus ritmos.
assim tambm que ao lado de textos cannicos de nossa cultura, ganha importncia
a apresentao de uma literatura fora dos textos. Expor para brasileiros uma cena
de carnaval, que eles conhecem to bem, pode parecer redundncia ou soar como
populismo. Mas ouvir do exterior o silncio, vazio, produzido pela Mangueira no
carnaval de 2012, quando a bateria para de tocar para que se oua a voz do canto
coletivo, um canto que remete s raizes mais fundas da unio indgena e africana nos
blocos de carnaval Bafo da Ona e Cacique de Ramos, com seus estandartes e porta
bandeiras, ganha uma dimenso incomum. Que local no mundo oferece um silncio to
povoado de gente e vozes como esse? Assim tambm, no curso, Voices of Brazilian
Fiction, leremos textos de escritores contemporneos em portugus, incluindo a contra-
carta do Achamento recm-assinada pelos ndios Guaran-Kaiow. Problematiza-se,
assim, a tradio de longa durao que nos mantm afastados, como cultura brasileira,
seja da origem lusitana seja do destino indgena.
Muito baralhado esse negcio braslico!
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A literatura brasileira que eu ensinava quando era professora no interior da Bahia
era uma literatura e uma teoria ensinadas para um pblico de jovens alunos vidos
por informao, e que vinham de Anag, Brumado, Barra do Choa, Caetit, Cacul,
Guanambi, Ituau, Jequi, Poes, Tanhau, ou Rio de Contas. De repente, ao sair
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em Vitria da Conquista, e chegar
Universidade de Stanford, na Califrnia, Estados Unidos, a literatura brasileira passa a ter
como audincia alunas e alunos vindos do Arizona, Georgia, Pensilvania ou faces vindas
do Senegal, Mxico, Cuba, Guatemala, Portugal, Catalunha, Espanha, Inglaterra, Frana,
China, Coria, India e, afinal, alguns, poucos rostos do Brasil.
O que ocorre quando se sai da provincia da lngua materna e se chega no miolo da
mundializao? Ocorre em primeiro lugar o problema maior da traduo: ensinarliteratura e cultura brasileira em ingls ou em espanhol limita, por um lado, a escolha de
autores disponveis, ao mesmo tempo que aumenta seu campo de atuao. Mas, antes de
enfrentar esse problema, o primeiro choque da chegada, deveu-se percepo da quase
inexistncia da literatura brasileira na Califrnia, onde o espanhol a segunda lngua. O
choque de perceber que o Brasil, to grande era imensamente pequeno fora de si prprio.
O Brasil aparecia pois como um parnteses dentro do mbito maior da Amrica Latina.
A boa notcia era a de que a acolhida era grande, o interesse crescente e a curiosidade
acentuada.
A lngua aprendida e falada pelos alunos que recebem o bacharelado em nosso
departamento o espanhol, mas pode-se incluir o portugus como especializao. J
os alunos de doutorado aprendem um ano de portugus e podem escolher os estudos
de literatura brasileira como foco principal de sua pesquisa. Quando cheguei em 2009,
o Departamento de Espanhol e Portugus tinha acabado de passar por um processo de
renomeao e se transformar em ILAC (Iberian and Latin American Cultures), para
responder a um projeto de expanso e de incluso da diversidade de lnguas e culturas
na Pennsula Ibrica e nas Amricas em geral, pois o departamento inclui tambm um
importante ncleo voltado aos estudos Latinos/Chicanos sobre a literatura produzida
pelos filhos de imigrantes, sobretudo nos espaos liminares como Texas e Califrnia.
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No entanto, em relao ao Brasil, o termo latino-amrica no ajuda muito, pois a
tendncia mais imediata a de relacion-lo Hispano-Amrica. Para remediar a questo,
inicialmente, o departamento usava um parentses: Latin America (including Brazil).
Parte de minhas preocupaes era exatamente essa: como tirar o Brasil de dentro do
parentses e dar-lhe mais visibilidade?
Para ensinar literatura brasileira nesse contexto, preciso ento um movimento de
expanso com a oferta de cursos que estabeleam pontes e dilogos. Nessa categoria,
incluem-se cursos ensinados em espanhol como: Haroldo de Campos e Octvio Paz,
eles prprios atuantes pensadores de uma potica tradutria e trans-nacional; Guimares
Rosa e Alejo Carpentier. Outro categoria de cursos dedica-se a autores individuais
lidos em ingls: Machado de Assis, contando com as excelentes tradues no apenas deseus livros, mas tambm de boa parte de sua fortuna crtica; e Clarice Lispector, e que
goza de um especial carinho e admirao. Outro nucleo de cursos relacionam literatura e
cultura. Assim, Brazilian Resonances com poesia e msica brasileira; Black Brazil,
discutindo o racismo brasileira, lendo de Gilberto Freyre a autoras contemporneas
como Conceio Evaristo; e o curso Literature, Life and Landscape que prope uma
viagem de descoberta e explorao do Brasil e de parte de suas regies: da Amaznia
com Euclides da Cunha e Milton Hatoum, aos Tristes Trpicosde Claude Lvi-Strauss,
ao serto com os contos de Guimares Rosa e as viagens de Macunama. Dentre as
reaes mais visveis dos alunos constam: a progressiva surpresa da descoberta das
complexidades irresoluveis da obra machadiana; o acento no carter performtico dos
textos de Lispector, os paradoxos em Guimares Rosa e o estranhamento desse lugar
chamado serto.
H ainda duas outras instncias de atuao importantes: os alunos de doutorado tm de
criar um repertrio de leituras brasileiras, o que inclui de trinta a cinquenta obras sobre
as quais fazem um exame. Nessas listas, a amplitude das escolhas maior visto que lem
em portugus, e inclui o que h de mais difcil em propor em curso: a leitura de poesia. A
outra frente de atuao dada pelos convidados que apresentam palestras e aumentam o
campo de textos debatidos.
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isso que o dilogo com os outros, que falam outras lnguas e vivem outras culturas, nos
solicita em desafio: de um lado, romper com as ideias fixas ou os clichs esperados sobre
o lugar, e expor o que no se esperaria encontrar ali, por exemplo, teoria, pensamento
critico e conceitual diferenciado em relao aos centros tradicionais e como contribuio
nova; e, de outro lado, reforar o que se espera do Brasil, expondo seu exotismo no
como signo pleno, mas como traos e rastros de outra coisa que se espera advenha como
mensagem e potencialidade.
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