a literatura em quadrinhos

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LITERATURA QU AD RI NH OS A EM FORMANDO LEITORES HOJE Patrícia Kátia da Costa Pina Patrícia Kátia da Costa Pina FORMANDO LEITORES HOJE LITERATURA QU AD RI NH OS A EM

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Livro publicado digitalmente pela UERJ (Dialogarts)Autora: Patrícia Kátia da Costa Pina

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  • LITERATURA QUADRINHOS

    A

    EM

    FORMANDO LEITORES HOJE

    Patrcia Ktia da Costa PinaPatrcia Ktia da Costa Pina

    FORMANDO LEITORES HOJE

    LITERATURA QUADRINHOS

    A

    EM

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    LITERATURA QUADRINHOS

    A

    EM

    FORMANDO LEITORES HOJEFORMANDO LEITORES HOJE

    LITERATURA QUADRINHOS

    A

    EM

  • Dialogarts PublicaesRua So Francisco Xavier, 524, sala 11.017 - A (anexo) Maracan - Rio de Janeiro CEP 20 569-900 www.dialogarts.uerj.br

    Conselho Editorial

    Estudos Lingusticos Estudos LiterriosDarcilia Simes (UERJ) Flavio Garca (UERJ)Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP) Karin Volobuef (UNESP)Maria do Socorro Arago (UFPB/ UFCE) Marisa Martins Gama-Khalil (UFU)Conselho Consultivo

    Estudos Lingusticos Estudos LiterriosAlexandre do Amaral Ribeiro (UERJ) Dale Knickerbocker(ECU, Estados Unidos da Amrica)Carmem Lucia Pereira Praxedes (UERJ) David Roas (UAB, Espanha)Helena Valentim (UNL, Portugal) Jane Fraga Tutikian (UFRGS)Lucia Santaella (PUC-SP) Jlio Frana (UERJ)Maria Aparecida Barbosa (USP) Magali Moura (UERJ)Maria Suzett Biembengut Santade(FIMI/FMPFM) Mrcio Ricardo Coelho Muniz (UFBA)Massimo Leone (UNITO, Itlia) Maria Cristina Batalha (UERJ)Paulo Osrio (UBI, Portugal) Maria Joo Simes (UC, Portugal)Roberval Teixeira e Silva (UMAC, China) Patrcia Ktia da Costa Pina (UNEB)Rui Ramos (Uminho, Portugal) Regina da Costa da Silveira(UniRitter)Slvio Ribeiro da Silva (UFG) Rita Diogo (UERJ)Tania Shepherd (UERJ) Susana Reisz (PUC, Per)

  • ReitorRicardo Vieiralves de CastroVice-ReitorPaulo Roberto Volpato DiasSub-Reitora de GraduaoLen Medeiros de MenezesSub-Reitora de Ps-Graduao e PesquisaMonica da Costa Pereira Lavalle HeilbronSub-Reitora de Extenso e CulturaRegina Lcia Monteiro HenriquesDiretor do Centro de Educao e HumanidadesGlauber Almeida de LemosDiretora do Instituto de LetrasMaria Alice Gonalves AntunesVice-Diretora do Instituto de LetrasTania Mara Gasto SalisCoordenadora do Dialogarts PublicaesDarclia Marindir Pinto SimesCo-Coordenador do Dialogarts PublicaesFlavio Garca

  • Copyright @ 2014 - Patrcia Ktia da Costa PinaTtulo:Literatura em Quadrinhos Formando Leitores HojePreparao de originais:Equipe LABSEM - Laboratrio Multidiciplinar e Multiusurio de SemiticaReviso:Flavia Fernandes Reis PestanaPriscilla Morandi do NascimentoTatiane Ludegards dos Santos MagalhesCapa e diagramao:Raphael Fernandes

    FICHA CATALOGRFICAA Literatura em Quadrinhos Formando Leitores Hoje; Patrcia Ktia da Costa PinaRio de Janeiro: Dialogarts, 2014.90p.ISBN 978-85-8199-026-21. Literatura em quadrinhos. 2. Adaptaes literrias. 3. Formao de leites. 4. Ensino. I. Pina, Patrcia Ktia da Costa. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. III. Departamento de Extenso. IV. Ttulo.

    P028.5l

  • A minha me, Eny Luiz da Costa, com muito amor!

    Aos meus avs, Abel Luiz da Costa e Maria da Penha Nunes da Costa, a minha

    bisav, Maria de Souza Lima, aos meus tios, Zilda Costa Raposo e Manoel

    Mathias Raposo, a minha madrinha, Leny Raposo Pacheco, in memoriam,

    com saudade e gratido!

  • ApresenTao

    1. LiTeraTura na escola

    1.1 . LiTeraTura se ensina?

    1.2. Os clssicos fora De seu Tempo

    2. ADapTaes liTerrias e ensino De LiTeraTura

    3. Como ler a LiTeraTura em QuaDrinhos

    3.1 . As cores: senTiDos e provocaes

    3.2. De Traos e Tramas se consTroem leiTores

    4. LiTeraTura em QuaDrinhos na sala De aula: moDos De usar

    O papo esT Bom, mas.. .

    SugesTes De leiTura e navegao

    BiBliograFia

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  • ApresenTao

    Sou uma apaixonada por quadrinhos. Tenho uma foto, de quando

    tinha vinte meses de idade, lendo um gibi do Z Carioca.

    Fui muito sortuda: embora meus avs tenham tido pouca

    escolaridade, acreditavam no estudo, na leitura. Minha me, meus

    avs, meus tios, minha bisav, minha madrinha, estavam sempre lendo.

    Minha me e minha madrinha liam best-seller, estavam sempre

    por dentro dos livros mais vendidos, trocavam livros entre si. E eu, j

    grandinha, beliscava um pouco do que elas liam.

    Minha bisav e minha tia Zilda tinham a hora da leitura, logo aps

    o almoo. Quando eu ficava na casa delas, sempre tinha um colchonete

    ao lado da cama, para que cada uma lesse o seu livro, o seu gibi, a sua

    revista. Depois, contvamos uma para outra o que havamos lido.

    Meu av e minha av liam textos religiosos, revistas. Mais tarde,

    quando eu j estava lecionando, minha av lia comigo os paradidticos

    que eu ganhava das editoras e me ajudava a escolher os mais

    interessantes para minhas turmas.

    Nunca fui censurada em minhas leituras. Quando criana, minha

    mesada ficava nas bancas de jornais: comprava gibis, livrinhos,

    revistas. Tive um amigo de infncia Mazzoli que era rato de leitura

    como eu. Sempre dvamos um jeito de tirar da biblioteca da escola

  • meu querido Colgio Metropolitano os livros destinados aos alunos

    mais velhos. Lamos e conversvamos muito sobre as obras.

    Na adolescncia, meu grupinho de amigas sempre dava livro de

    presente. Depois trocvamos. Quando jovem, fazendo graduao,

    todo dinheiro que caa em minhas mos tinha destino certo: livrarias

    e bancas de jornais.

    Hoje, quase na hora de me aposentar, continuo lendo muito.

    E continuo apaixonada por gibis. Acabei de ganhar do amigo Paulo

    Cezar um gibi de oitocentas pginas.

    E, como sempre gostei de partilhar minhas ideias, meus prazeres,

    desenvolvo uma srie de aes de pesquisa e extenso no Departamento

    de Cincias Humanas, Campus VI (Caetit, Bahia), da Universidade

    do Estado da Bahia, todas voltadas para a formao de leitores e de

    mediadores de leitura a maioria ligada aos quadrinhos.

    Compreendo que hoje a literatura mais uma obrigao escolar

    que uma escolha de lazer. Mas os gibis so uma opo de leitura por

    prazer. Quando descobri a Literatura em Quadrinhos, percebi que seria

    possvel reinventar a leitura, casando diverso e conhecimento literrio.

    J escrevi muitos artigos, captulos de livros e um livro inteiro

    dedicado a essa pesquisa. Ministro muitas oficinas em Caetit e em

    municpios prximos, mostrando a professores do Ensino Bsico e a

    estudantes de diferentes nveis como podemos ler e criar tradues de

    textos literrios para quadrinhos.

    Neste livro, quero me dirigir a vocs, professores, que militam nas

    salas de aula de todo o Brasil, e a vocs, estudantes, que ainda no

    descobriram que ler uma das melhores coisas da vida. Quero que

    vocs aprendam a gostar de ler, atravs da Literatura em Quadrinhos.

    Escolhi estudar seis adaptaes quadrinsticas de obras cannicas,

    que esto muito afastadas do mundo em que as crianas e os jovens de

    hoje vivem, mas que, no processo de quadrinizao, so reinventadas

  • com muita criatividade e talento por desenhistas, roteiristas, coloristas

    brasileiros artistas fantsticos, que produzem suas obras com muita

    paixo e competncia. Nesse estudo, observo como as cores e os traos

    escolhidos pelos adaptadores podem funcionar como instrumentos de

    formao do gosto pela leitura instrumentos de formao de leitores.

    Espero que vocs gostem.

    Meu e-mail [email protected]. Podem me escrever,

    para conversarmos sobre leitura, quadrinhos, literatura, para darem

    sugestes, depoimentos e para mandarem suas quadrinizaes tenho

    certeza de que faro algumas.

    Patrcia Ktia da costa Pina

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

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    1 . LiTeraTura na escola

    Talvez no haja na nossa infncia dias que tenhamos vivido to plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem viv-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. (PROUST, 2011, p. 9)

    Em 1905, Marcel Proust, grande escritor francs, publicou um

    texto acerca da importncia da leitura em sua vida desse texto tirei a

    epgrafe. Quero conversar com vocs sobre um aspecto que se destaca

    no trecho acima: Proust mostra a leitura como algo, simultaneamente,

    alheio vida e construtor de experincias inesquecveis.

    Quando lemos um bom livro, parece que no estamos fazendo

    nada, que no estamos vivendo. Muitos professores afirmam, nas

    vrias oficinas que venho ministrando, que no tm tempo para ler

    textos diferentes daqueles que trabalharo em sala de aula. Vrios

    estudantes, tambm nessas oficinas, declaram que no tm dinheiro

    para comprar livros e que no tm tempo para ler obras inteiras, nem

    as que os professores solicitam.

    Tempo e dinheiro so fatores que realmente interferem na

    construo do prazer de ler. Mas a leitura hoje no depende tanto assim

    de muitas horas livres, nem de verba extra para a compra de livros. A

    web ajuda muito: pelo computador da escola ou em uma lan house,

    podemos baixar gratuitamente obras completas que so de domnio

    pblico, ou apenas poemas, contos, crnicas, textos dramticos.

    Blogs, pginas do Facebook, sites poticos, sempre disponibilizam,

    gratuitamente, aquilo que chamo de plulas poticas: pequenos

    textos, de leitura rpida, para deleite e reflexo.

    O que falta , na verdade, que professores e estudantes percebam

    que, quando lemos, estamos criando vivncias afetivas muito fortes,

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

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    que podem nos transformar e mudar nossa forma de ver o mundo a

    nossa volta. Eliana Yunes, uma das maiores pesquisadoras brasileiras

    sobre leitura, e uma apaixonada pela literatura, afirma:

    [...]

    a leitura como a memria, uma prtica que

    dribla o esquecimento e provoca o discreto,

    e ainda contribui para imprimirmos uma marca

    pessoal e poltica a nossos atos e qualidade

    nossa assinatura. (YUNES, 2009, p. 26)

    A leitura da literatura, quando feita prazerosamente, em exerccio

    de liberdade imaginativa, produz um vnculo emocional forte entre o

    leitor e o texto. De certa forma, a leitura de um bom poema, conto

    ou romance pode fazer com que o leitor traga para si caractersticas e

    experincias que jamais poderia ter, no fosse a leitura. Isso enriquece

    a identidade do leitor e lhe confere uma nova assinatura, isto , mais

    autonomia, mais confiana, mais criticidade.

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    15

    COMO FAZER ISSO NA ESCOLA?

    O trabalho escolar com a literatura apoia-se,

    normalmente, no livro didtico.

    Neste, certamente, a prioridade est na

    sistematizao dos contedos.

    Isso faz com que o texto literrio seja fragmentado

    e, em geral, usado para discusses superficiais ou,

    ainda, para estudo gramatical.

    muito importante que se construa uma cumplicidade entre

    professores e alunos, para que a literatura se torne, outra vez, um

    instrumento de formao de leitores, de formao do gosto pela

    leitura. Nesse processo, o professor, por ser mais experiente, precisa

    desenvolver estratgias que aproximem o estudante do texto.

    O livro didtico, o Tablet, a lousa virtual, enfim, os muitos suportes e

    as diferentes e novas tecnologias no so autossuficientes. Ao professor

    cabe, primeiramente, apropriar-se das estratgias desses instrumentos

    de ensino, para, em seguida, construir tticas que faam com que esses

    suportes interajam com os estudantes.

    Isso significa que no se forma leitor entregando um livro ao aluno,

    abrindo simplesmente as portas da biblioteca ou dando o endereo

    de algum espao virtual de livros gratuitos. A formao do leitor e o

    ensino da literatura dependem da seduo.

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    16

    Como seduzir uma criana ou um jovem para a leitura literria

    hoje? Os estudantes pertencem a um universo muitas vezes negado

    por ns em que as sociabilidades so rpidas e fragmentadas: ler

    um livro de duzentas pginas implica abrir mo de jogos, esportes,

    namoro, filmes - tudo o que o jovem considera diverso.

    A escola em geral no d o exemplo: para a escola a leitura no

    prazer e entretenimento, dever, obrigao, s vezes, punio. Urge

    mudarmos essa conjuntura.

    1 . 1 . LiTeraTura se ensina?[...] aprendemos a ler literatura do mesmo modo como aprendemos tudo mais, isto , ningum nasce sabendo ler literatura. [...]. O segredo maior da literatura justamente o envolvimento nico que ela nos proporciona em um mundo feito de palavras. O conhecimento de como esse mundo articulado, como ele age sobre ns, no eliminar seu poder, antes o fortalecer porque estar apoiado no conhecimento que ilumina [...]. (COSSON,, 2009, p. 29)

    No livro Letramento literrio, Cosson aponta que no basta

    ser alfabetizado para ser um leitor literrio. No trecho destacado

    na epgrafe, ele ressalta que a leitura literria exige um processo

    de ensino-aprendizagem. Conhecer as artimanhas da linguagem

    literria requisito bsico para que um indivduo se torne um

    leitor de literatura.

    A partir do sculo XVIII, com o fortalecimento da famlia burguesa,

    a escolarizao das crianas e dos jovens tornou-se prioridade.

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    17

    A infncia, construda como conceito nessa poca, demandava um

    olhar diferenciado: fazia-se necessrio educar os pequenos, para

    que se apropriassem das tradies, preservando-as e para que se

    transformassem em cidados produtivos.

    Mas a educao de meninos e meninas era diferenciada. Os

    primeiros, direcionados naturalmente para o trabalho fora de

    casa, gerando renda, eram educados nas cincias, na matemtica, na

    filosofia, na histria. As meninas, responsveis lgicas pelos futuros

    maridos e filhos, eram preparadas para as prendas domsticas e de

    salo: aprendiam lnguas, msica, bordado etc.

    Certamente, estou me referindo s crianas das famlias abastadas.

    Entre as famlias com menor gerao de renda, as distines de gnero

    se agravavam: meninos aprendiam a ler e a fazer contas e meninas no

    podiam ser alfabetizadas, quer por restries financeiras familiares,

    quer por preconceitos morais e religiosos, quer por serem obrigadas a

    trabalhar com a me desde tenra idade.

    As primeiras escolas particulares no mundo ocidental cristalizaram

    essas diferenas. A literatura foi um dos elos dessa corrente. Os meninos

    estudavam os clssicos em grego e latim, memorizavam poemas picos,

    odes, sonetos. Conheciam a cultura dos pases que geravam as melhores

    obras literrias da humanidade: dominavam o cnone.

    As meninas aprendiam alguns poemas, especialmente sonetos,

    conheciam os textos mais fceis, de temtica leve. Eram instrudas

    em um pouco de histria, geografia, raspas de filosofia, apenas para

    enfeitarem os sales.

    De uma forma ou de outra, a escola, no sculo XVIII e no

    XIX, formava uma elite de leitores (PINA, 2002; 2012). Os homens

    levavam as melhores citaes das obras mais difceis para seus

    discursos polticos, seus sermes, suas conferncias e alguns

    eventuais artigos para os peridicos da poca. As mulheres

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    18

    prendadas demonstravam inteligncia e delicadeza recitando

    poemas em saraus e festas particulares.

    Esses foram os primeiros leitores do ocidente. No Brasil,

    com algumas peculiaridades, a situao a mesma. O problema

    educacional brasileiro que a elitizao da escola permaneceu

    por muito tempo.

    Na poca colonial, a metrpole proibia a implantao de tipografias

    no Brasil e a educao era, prioritariamente, de cunho religioso e

    destinada s elites. Aps a Independncia, pouca coisa mudou: havia

    pouqussimas escolas, sempre particulares e acessveis a uma minoria

    privilegiada; havia, por outro lado, um imenso contingente de

    analfabetos, indivduos excludos do mundo letrado (PINA, 2002).

    Os intelectuais brasileiros, que viram nascer o pas independente,

    clamavam por uma independncia cultural era preciso alfabetizar o

    povo, torn-lo consumidor de bens culturais impressos, inseri-lo no

    mercado capitalista que ensaiava seus primeiros passos nestas terras e,

    certamente, inseri-lo nos meandros polticos do Imprio.

    O sculo XIX brasileiro testemunhou o surgimento da imprensa,

    com muitas tipografias, algumas de fundo de quintal; peridicos de

    vida efmera, outros que duraram dcadas, e diferentes segmentos

    leitores. Comearam a surgir escolas gratuitas. No nordeste, no final do

    sculo, havia escolas profissionais noturnas, visando incluir no mundo

    letrado e capitalista os operrios de origem pobre (PINA, 2002).

    Essas iniciativas desdobraram-se Brasil afora. Embora louvveis,

    esbarravam, no entanto, em um problema bsico: a educao era

    pensada em parmetros humanistas, preservacionistas das relaes

    sociais burguesas e capitalistas.

    A escola trazia padres curriculares que impunham os valores dos

    dominadores aos dominados. Entre os sculos XIX e XX, a educao em

    geral buscava tirar o indivduo do que se considerava ser uma ignorncia

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    19

    completa, uma egueira, levando-o para o mundo do saber elevado,

    letrado e erudito, cujas prticas nada tinham a ver com aquelas das

    populaes silenciadas pela antiga escravido, pela misria, pela fome.

    A democratizao do ensino foi, paradoxalmente, um instrumento

    constante de excluso, de discriminao. Nesse contexto, a literatura

    era ensinada como estratgia de dominao.

    Os estudantes precisavam memorizar os diferentes estilos de poca,

    seus principais autores e as principais obras de cada um. Dominavam

    as tcnicas retricas de composio literria. Aprendiam a separar o

    joio do trigo na literatura: autor/obra bons; autor/obras fracos.

    No aprendiam a ler criticamente. No eram instrumentalizados

    para perceber os valores escondidos nesse processo de

    hierarquizao e excluso.

    No correr do sculo XX, talvez graas irreverncia de Emlia, a

    bonequinha de macela costurada com trapos velhos por Tia Nastcia,

    ambas personagens de Monteiro Lobato, a literatura foi ganhando, na

    escola e na famlia, o perigoso lugar de prazer e entretenimento, que

    tinha antes da revoluo burguesa.

    Talvez no seja possvel ensinarmos literatura, mas uma boa

    mediao de leitura fundamental para formar leitores em todas as

    idades: na sala de aula ou em casa, ou entre amigos, a leitura literria,

    principalmente, se constri por um processo de descoberta interior

    e contextual que se apropria do leitor a partir do ato de ler. Isso

    assustador para as crianas e para os jovens: eles se reconhecem, positiva

    ou negativamente, em situaes e personagens. Caso no tenham uma

    efetiva orientao nesse relacionamento com a obra lida, podem se

    perder como leitores e como sujeitos de seu estar no mundo.

    Os professores mediadores de leitura, tambm eles leitores, podem

    relativizar o medo desse desconhecido que o texto, o livro, pelo

    estmulo ao conhecimento de si e do outro que ele pode proporcionar.

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    20

    Nas sociedades antigas, as crianas eram treinadas

    para manter as tradies familiares e comunitrias.

    Hoje, as fraturas do mundo contemporneo jogam as

    crianas e os jovens no domnio do desconhecido

    nesse ambiente, a intimidade necessria para a leitura,

    especialmente a literria, fica deslocada, torna-se

    inadequada. Embora o senso comum veja a literatura

    na perspectiva do conhecimento escolar, seu carter

    esttico pode torn-la desafiadora.

    A escolarizao da literatura esbarra na heterogeneidade que

    constitui o universo contido na sala de aula. O professor precisa

    lidar com pequenos indivduos, cujas subjetividades trazem marcas

    desconhecidas e, muitas vezes, contrrias. E sua tarefa levar para esses

    grupos algo que lhes completamente estranho e indiferente.

    Os estudantes vm de famlias distintas, com hbitos e valores

    diversos. Muitas vezes, moram em bairros distantes, frequentam

    igrejas, clubes, associaes variadas. preciso sempre levar em

    considerao que as obras literrias indicadas pela escola no foram

    escritas pensando nessas diferenas, necessariamente.

    Em geral, principalmente no nvel mdio, as obras so escolhidas

    tendo em vista os vestibulares. Por isso os estudantes encontram tantas

    dificuldades para ler os poemas, contos, textos dramticos e romances

    que os professores propem.

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    21

    Tais grupos so classificados coletivamente e as peculiaridades

    individuais desaparecem. As habilidades e competncias dos indivduos

    s so valorizadas quando ratificam o sistema vigente.

    Nas muitas oficinas que venho ministrando no interior da Bahia,

    para professores e alunos do Ensino Bsico, me deparo com algumas

    reclamaes que se repetem: os livros didticos representam situaes

    e obras pouco ou nada prximas do cotidiano local, as imposies

    curriculares desconsideram as regionalidades etc.

    Como ensinar literatura uma linguagem artstica sem uma relao

    mais ntima entre o contedo a ser trabalhado e o repertrio mesmo

    que fraco, na perspectiva dominante dos saberes dos estudantes?

    Tendo suas marcas pessoais desconsideradas, esses possveis leitores so

    guiados para alcanar os sentidos previstos na obra, no aqueles que

    eles podem produzir, agenciando suas pertenas histricas e culturais.

    Quando no alcanam esses resultados divinatrios, so excludos

    pelas notas e comentrios e no se sentem competentes para ler.

    No se consideram bons leitores, no se compreendem capazes

    de interagir com o texto, porque acreditam que em cada texto,

    principalmente nos textos literrios, h uma voz maior, que subjuga

    todas as outras. Essa voz dominante silencia suas vozes dominadas. E

    ns concordamos com eles e explicitamos isso cada vez que pedimos

    que nos informem o que o autor quis dizer no conto, no romance,

    no poema, na reportagem, na carta, ou quando exigimos uma resposta

    predeterminada por expectativas concretizadas em gabaritos ou em

    comportamentos padronizados.

    Frequentemente, nessa mal-arranjada mediao, esquecemo-nos

    de perguntar o que eles querem dizer ao objeto lido. E quase nunca

    informamos a nossos sujeitos de trabalho (embora os tenhamos como

    objetos) que eles podem conversar com o texto (qualquer que ele seja),

    podem doar suas vozes e suas experincias de vida quilo que leem.

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    22

    claro que essa experincia de escuta desestabiliza o lugar de autoridade

    do professor. Pode surgir o inesperado, o desconhecido, e como o docente

    vai lidar com isso, sem demonstrar desconhecimento ou fraqueza?

    Mas exatamente essa fragilizao coletiva que pode revelar e

    relacionar as ricas individualidades que interagem em cada sala de

    aula do pas. Para isso a literatura serve: para nos tirar o cho, nos

    roubar as certezas, nos expor como meninas e meninos que no

    sabem tudo, como eternos aprendentes.

    Ento, literatura se ensina, sim, mas no na perspectiva

    tradicional, cristalizada nos livros didticos. Literatura se ensina

    como se ensina a viver: experimentando.

    No importa tanto assim o perodo literrio, suas caractersticas,

    melhores autores, melhores obras. Importa relacionar esses

    conhecimentos histria de cada poca, cultura de cada lugar,

    levando o estudante a refletir sobre questes transversais, sempre

    discutidas nas melhores obras literrias da humanidade. Para ensinar

    literatura, preciso ler literatura.

    Os professores precisam se formar leitores literrios para que possam

    discutir os textos propostos em toda a sua potencialidade significativa.

    Ensinar literatura ensinar a ler o mundo e a vida. Para aprendermos a

    viver, precisamos viver! Para gostarmos de ler, precisamos ler!

    1 .2. Os clssicos fora De seu TempoLer significar e, ao mesmo tempo, tornar-se significante. (YUNES, 2009, p. 35)

    A leitura precisa ser significativa para o estudante. Em uma de

    minhas oficinas, abordei esse tema: trabalhei um conto de Guimares

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    23

    Rosa Fita Verde no Cabelo. Fiz a leitura conjunta e orientada do

    texto, discuti alguns elementos criados por Rosa, como a cor da fita,

    o encontro da menina com trabalhadores, o n da fita que se desata.

    Solicitei ao grupo que apontasse semelhanas e diferenas com

    a narrativa tradicional Chapeuzinho Vermelho. A discusso foi

    muito interessante. Pedi, ento, que me dissessem em que srie/

    ano do Ensino Bsico trabalhariam o texto. As respostas foram

    muito variadas: alguns disseram que levariam para crianas de sete

    a oito anos; outros, para pr-adolescentes.

    Perguntei por que no levariam o conto para estudantes do

    nvel mdio. O silncio foi total. Devem ter pensado que eu estava

    afastada desse nvel de ensino h muito tempo, por isso fazia uma

    pergunta to ociosa.

    Lancei, ento, outras perguntas: que livros literrios indicavam

    para as sries finais do Ensino Fundamental? E ainda: quais eram

    trabalhados no primeiro e no segundo ano do Ensino Mdio?

    Fiquei estarrecida: uma estudante de stima srie, cujo

    professor estava presente um jovem, muito bem conceituado na

    cidade quanto ao exerccio da profisso , disse que fora obrigada

    a ler O cortio, de Alusio Azevedo. Antes que eu discutisse o caso,

    o professor tentou se defender, afirmando que as escolas exigiam

    esse tipo de leitura e que ele queria formar o gosto pela leitura

    literria entre seus alunos.

    A discusso foi farta e frtil. A obra clssica brasileira citada pela

    estudante faz parte do programa escolar, com certeza. Mas adequada

    para a faixa etria dos treze ou catorze anos?

    No discuto questes morais. Refiro-me complexidade do

    texto em foco. Trata-se de uma obra de forte cunho ideolgico, cujo

    teor crtico incide sobre a sociedade brasileira que fechava o sculo

    XIX, num processo cruel de capitalizao e excluso de minorias,

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    24

    supostamente menos capacitadas para uma contribuio visvel com

    o progresso urbano e nacional.

    O que jovens na stima srie conhecem do processo poltico e

    econmico do Brasil na Primeira Repblica? Como podem produzir

    sentido para o uso do corpo como instrumento de sobrevivncia caso

    de Rita Baiana e Pombinha? Como podem dar significao s lutas entre

    os malandros cariocas e o portugus? Como podem atribuir sentido

    para a morte de Bertoleza?

    bastante louvvel que as escolas e os professores queiram iniciar

    os estudantes, desde idades tenras, no prazer da leitura, mas isso exige

    adequao entre texto oferecido e leitor disponvel. Embora bem

    intencionada, a ao docente do jovem professor que se multiplica

    em muitas escolas do pas , em lugar de dar ao jovem o prazer de

    ler, rouba-lhe a oportunidade de encontrar na leitura literria um

    instrumento para a (re)inveno de si, para o conhecimento do mundo

    em que vive, para a experimentao criativa dessa arte.

    Para mediarmos a contento o ato de ler fundamental

    que saibamos que a literatura mais que papel, tinta,

    palavra ela Vida, experincia. No basta mostrarmos

    como o tema construdo na obra, necessrio que o

    discutamos, buscando as vivncias e o repertrio dos

    alunos, atualizando-o por comparaes com fatos

    cotidianos e contemporneos: a reside o prazer esttico,

    chave para um bem- sucedido ato de leitura.

    Para despertar o prazer da leitura, o mediador precisa construir no

    outro uma incompletude permanente, que o faa buscar na palavra

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    25

    ou na imagem impressa uma variao de si capaz de satisfaz-lo

    apenas temporariamente. Esse jogo de esvaziar-se de si e preencher-

    se de alteridades diferenciadas deve se refazer sistematicamente. E

    isso depende sempre da mediao.

    Ao mediador de leitura cabe construir as pontes da provocao, no

    buscando respostas prontas e emblemticas para questes superficiais,

    mas refletindo e fazendo seu outro refletir sobre a tessitura verbal e

    imagtica que engendra cada obra impressa e suas relaes intra e

    extratextuais, sempre tendo como referncia que no h o sentido

    certo para o texto a significao textual histrica, no mnimo.

    No sculo XXI, momento de mudanas e inovaes rpidas e radicais,

    no qual a tecnologia prepondera, simplesmente impor a leitura de

    clssicos nas escolas brasileiras uma situao de risco. Aqueles volumes

    que os estudantes da dcada de 1960 liam, como eu lia, exigindo na

    leitura isolamento, silncio respeito , volumes que emprestavam

    distino e dignidade aos leitores, no trazem naturalmente esses

    significados para o sculo atual.

    As antigas estantes de livros, que tanto seduziram Liesel,

    personagem principal de A menina que roubava livros, de M. Zusak,

    e que encantaram a Emlia, de Monteiro Lobato, e tantas outras

    personagens ficcionais e da vida cotidiana, como esta que vos escreve,

    cederam lugar aos espaos de armazenamento de e-books, aos pen

    drives, aos arquivos de notebook etc. As longas tardes, aps o almoo,

    em que crianas e jovens liam romances de aventura, de amor, romances

    histricos, esto muito distantes no tempo e na cultura.

    Os clssicos s ganham o corao, a mente e a ateno dos pequenos

    e mdios leitores, hoje, quando so (re)lidos pelo cinema, pela TV e,

    claro, pelos quadrinhos. Se a leitura de O cortio, em sua forma-fonte,

    difcil para um estudante de stima srie, sua traduo quadrinstica

    pode virar o jogo.

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    27

    2. ADapTaes liTerrias e ensino De liTeraTuraObras traduzidas ou adaptadas exercem importante funo tanto na formao quanto no entretenimento do leitor jovem. (CADEMARTORI, 2009, p. 68)

    A perspectiva tradicional e livresca dos estudos acerca da leitura

    literria e da formao de leitores define a originalidade artstica como

    o maior valor para o objeto a ser lido e o domnio das especificidades

    da linguagem potica, narrativa ou dramtica, como a habilidade

    leitora por excelncia. Tradues vistas como traies e adaptaes

    relegadas marginalidade do no artstico so lugar-comum no

    discurso acadmico-cientfico sobre o tema. Na Escola Bsica, no

    entanto, essas releituras dos clssicos nem sempre so malvistas, mas,

    muitas vezes, so abordadas numa perspectiva de substituio: os

    professores permitem que os estudantes assistam aos filmes em

    lugar de lerem os livros, por exemplo.

    A discusso pode ir mais longe: a questo da originalidade literria

    parece-me dizer respeito a uma forma de concepo da literatura

    como linguagem admica, no representativa, desvinculada de

    uma relao imediata com o mundo, qual apenas iniciados teriam

    acesso, a fim de no corromp-la com intervenes pessoalizadoras.

    Nesse sentido, uma adaptao ou uma traduo implicariam a

    cristalizao de uma diferena, que estaria ligada imposio de

    uma subjetividade outra subjetividade primeira o tradutor precisa

    levar a obra para pertencimentos culturais diferentes, tornando-a

    legvel; o adaptador reinventa a obra, aproximando-a de outras

    pocas, culturas, de variados grupos leitores.

    No pretendo, aqui, discutir concepes de literatura. Quero apenas

    situ-lo, leitor, no espao intervalar que abriga este livro: ocupo-me de

    adaptaes literrias para quadrinhos em seu potencial de formao

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    28

    de leitores, de criao do prazer de ler, de estmulo vontade de lidar

    com o impresso, a partir, exatamente, do hibridismo de sua linguagem.

    Isso significa afirmar que no vou me dedicar formao especfica do

    leitor nem pela literatura, nem pelos quadrinhos.

    A Literatura em Quadrinhos uma forma de produo artstica

    que se expe como intervalar, pois em sua prpria denominao

    conjuga duas linguagens originalmente polarizadas. A literatura

    pertenceu, desde a Antiguidade Clssica, quando ainda era poesia

    e primava pela oralidade, aos segmentos sociais privilegiados,

    sendo partilhada mais amplamente em momentos pontuais e, mais

    recentemente, com a constituio da famlia burguesa e com a

    preocupao acerca da educao para todos. Os quadrinhos so

    fruto da sociedade capitalista, industrial, representando a perda da

    aura a que Benjamin (1985, p.168-169) se refere:

    [...] o que se atrofia na era da reprodutibilidade tcnica da

    obra de arte sua aura. Esse processo sintomtico, e sua

    significao vai muito alm da esfera da arte. Generalizando,

    podemos dizer que a tcnica da reproduo destaca do

    domnio da tradio o objeto reproduzido. Na medida em que

    ela multiplica a reproduo, substitui a existncia nica da

    obra por uma existncia serial. [grifo do autor]

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    29

    As obras poticas, narrativas e dramticas, mesmo sendo

    publicadas inmeras vezes e em variadas edies, direcionadas a

    pblicos diferenciados, mantm-se as mesmas. A reproduo grfica,

    dependendo dos protocolos de edio, pode, certamente, afetar

    de alguma maneira o texto, mas, em geral, ele preservado em sua

    integridade original (CHARTIER, 1996, p. 96). As edies podem agregar

    valores e sentidos, mas no alteram a palavra impressa, a menos que se

    assumam como adaptaes, resumos, tradues.

    Quando ocorre um processo de traduo, os sujeitos nele

    envolvidos recriam o texto literrio, de acordo com suas perspectivas.

    No caso das tradues quadrinsticas, foco deste livro, geralmente

    a adaptao mltipla: h roteiristas, desenhistas, coloristas etc.

    Alguns volumes apresentam somente um adaptador, outros trazem

    um grupo, sem nomeao especfica. Isso importa muito, pois

    mostra ao mediador de leitura ou ao leitor quantas possveis vozes e

    individualidades dialogam no texto adaptado.

    O problema que cerca, na contemporaneidade, a literatura,

    especialmente a cannica, que por sua linguagem, por seus

    pertencimentos histricos e culturais, as obras esto distantes do universo

    tecnolgico, visual e informatizado que cerca as crianas e os jovens.

    Seus repertrios no so criados a partir das peas de Shakespeare, ou

    dos poemas de Cames, ou dos romances e contos de Jos de Alencar,

    Machado de Assis, Lima Barreto: so, sim, criados a partir de novelas de

    TV, filmes, gibis, games, chat, blogs, sites da internet etc. Assim, a leitura

    da palavra literria fica cada vez mais rara e ociosa!

    As Histrias em Quadrinhos partilham com a literatura algumas

    peculiaridades de linguagem: so ficcionais, logo, trabalham

    com personagens, ambiente/espao, tempo, narrador, foco

    narrativo etc. Mas esses elementos partilhados so traduzidos

    para o hibridismo da linguagem quadrinstica: so construdos

    visualmente, com algum apoio do verbal.

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    30

    [...] a interligao do texto com a imagem

    existente nas histrias em quadrinhos, amplia

    a compreenso de conceitos de uma forma

    que qualquer um dos cdigos, isoladamente,

    teria dificuldades para atingir. Na medida em

    que essa interligao texto/imagem ocorre

    nos quadrinhos com uma dinmica prpria e

    complementar, representa muito mais do que

    o simples acrscimo de uma linguagem a outra

    como acontece, por exemplo, nos livros

    ilustrados , mas a criao de um novo nvel de

    comunicao [...]. ( VERGUEIRO,2009,p. 22)

    O trecho citado foi retirado de um texto que reflete acerca da

    importncia dos quadrinhos na educao. Destaquei-o por ressaltar

    a natureza hbrida da linguagem quadrinstica e por apontar, com

    valorao diferenciada, para a grande liquidao cultural (BENJAMIN,

    1985, p. 169) que caracteriza os ltimos cem anos no mundo ocidental.

    Se antes dessa industrializao dos bens culturais a literatura, como as

    demais formas de arte, tinha um pblico restrito e definido socialmente,

    aps as inovaes tecnolgicas, com novos recursos sendo amalgamados

    s tcnicas tradicionais, diferentes pblicos, com nveis variados de

    repertrio, se viram inseridos no mercado simblico da cultura.

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    31

    Essa linha de raciocnio me leva de volta s oficinas que venho

    ministrando. Nos cursos de Letras, somos treinados para dominar

    contedo, transmiti-lo, sem atentarmos para diferenas culturais e

    histricas. No nos ensinam que cada turma nica, que cada aluno

    uma pessoa. Somos cobrados para que atinjamos os mesmos objetivos

    em todas as turmas da mesma srie, da mesma forma. O livro didtico

    corrobora esse constrangimento.

    No entanto, no cotidiano escolar, ns, professores, nos deparamos

    com realidades dspares, quando nos movemos de uma sala de aula

    para outra. Em nossas reunies do Programa Institucional de Bolsa

    de Iniciao Docncia (PIBID) Letras Vernculas, do Departamento

    de Cincias Humanas VI, da UNEB, discutimos intensamente essas

    questes. Em cada turma, h um grupo heterogneo entre si. Como

    podemos trabalhar os mesmos contedos, com as mesmas estratgias?

    No entanto, isso exigido do professor, sob pena de ele sonegar

    conhecimento ao estudante.

    Mas o caminho no esse. O professor deve poder adaptar seu

    trabalho para as diferentes realidades que vivencia.

    No que tange literatura, precisamos traz-la para o mundo

    contemporneo. As mudanas econmico-sociais a que me referi

    acima deram visibilidade ao leitor, antes considerado um fruidor

    artstico, agora percebido como um consumidor. Consumidores tanto

    apresentam perfis individuais, como coletivos. A Educao entra nesse

    mercado. A formao de leitores tambm.

    Os bens culturais demandam quem os faa circular: o sujeito desse

    mercado no exatamente o criador, mas quem se apropria do objeto

    criado. Esse indivduo v o mundo que o cerca com a tica que constri

    em si e que interage com a viso de mundo de sua poca e de seu lugar.

    Certamente, quem cria o livro, o filme, a msica, entre outros

    bens simblicos, tem histria pessoal, pertence a um espao e a um

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    32

    tempo especficos e sua criao respira esses pertencimentos. Mas,

    as novas prticas culturais, viabilizadas pelo capitalismo, demandam

    que se considerem prioritariamente as expectativas de consumo, em

    detrimento das de criao.

    E se o consumidor a criana, o jovem, a linguagem quadrinstica

    adequa-se muito mais intensamente a suas expectativas e competncias.

    McCloud (2006, p. 19) afirma que os quadrinhos, aps a crise dos anos

    noventa, incorporaram estilos e assuntos diversificados, viabilizando

    para o leitor experincias estticas deleitosas. Dessa forma, a Literatura

    em Quadrinhos pode ser um instrumento potentssimo para a formao

    de leitores interessados na leitura, inclusive na leitura literria.

    O original de uma obra, como tudo, suscetvel

    passagem dos anos, s mudanas ideolgicas e

    de contexto. Quando o original se torna algo

    muito distinto para o pblico, a traduo e a

    adaptao podem preservar o que existe nele

    de essencial, no que pesem as dificuldades e

    armadilhas todas dessas intermediaes.

    (CADEMARTORI, 2009, p. 69)

    As adaptaes quadrinsticas de obras literrias tornam-nas

    divertidas, acessveis, aproximando-as das possibilidades de compreenso

    e produo de sentidos das crianas e dos jovens estudantes de hoje.

    Elas no deixam as obras-fonte serem esquecidas e se apresentam

    como formas artsticas inovadoras. Mas essas adaptaes, exatamente

    por seu carter inovador, provocam reaes nostlgicas:

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    33

    Houve um tempo em que tudo parecia simples. As

    crianas, das minorias ilustradas, cresciam com

    os livros. Mes, preceptoras, famlias, visitas,

    o crculo social inteiro em que viviam, no se

    compreenderia sem referncias aos livros.

    (COLOMER, 2007, p. 103)

    No campo da leitura, o lugar do leitor at aproximadamente a

    segunda metade do sculo XIX e os diversos lugares que para ele se

    desenham, principalmente, a partir do sculo XX, so absolutamente

    distantes. O sculo passado trouxe a produo impressa para o mbito do

    cotidiano. E encheu o cotidiano de outras exigncias e de novos prazeres.

    Colomer, no fragmento acima, refere-se a uma poca em que o cio

    burgus favorecia a cultura livresca. Mas, como j apontado, o mundo

    capitalista, industrializado, o mundo ps-guerras, instituiu novas e

    inusitadas formas de sociabilidade, marcadas por prticas culturais at

    surpreendentes. O livro foi dividindo seu espao com jornais, revistas,

    gibis, filmes, programas de rdio, de TV e, nos ltimos trinta anos,

    computadores, celulares, tablet, Ipod etc. As conversas familiares e entre

    amigos, atualmente, giram em torno dos captulos das novelas, dos

    escndalos do Facebook e, na melhor das hipteses, do noticirio da TV.

    Os leitores ou o equivalente: os consumidores de hoje elaboram

    seu sistema de referncias a partir da vida das celebridades. Como

    poderiam se interessar gratuitamente, voluntariamente, pelas

    desventuras de Policarpo Quaresma, pelas lutas de Baldo, pela violncia

    simblica e fsica que se abate sobre Clara dos Anjos? Essas personagens

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    34

    ou protagonizam ou participam de narrativas clssicas da literatura

    brasileira, obrigatrias nos currculos escolares, distantes, s vezes,

    mais de cem anos de nossa poca, pertencentes a outro tempo, outra

    cultura, outros horizontes, e que precisam ser lidas pelos estudantes.

    Penso que a linguagem dos quadrinhos pode provocar esse

    interesse perdido no tempo e nas malhas da cultura. A Literatura

    em Quadrinhos pode aproximar as obras cannicas dos leitores

    internautas deste sculo XXI.

    No estou afirmando que as adaptaes substituem as obras-

    fonte, ou que servem de iniciao sua leitura, sendo consideradas

    menores, na comparao com elas. Os quadrinhos trazem

    estratgias visuais de narrativa que encenam estratgias literrias e/

    ou cinematogrficas, recursos fotogrficos, de computao grfica,

    mas que de tudo isso se distinguem, mesmo lidando com o realismo,

    a observao, o naturalismo dos detalhes.

    Essas ferramentas narrativas quadrinsticas correspondem a outras

    tantas ferramentas prprias de outras linguagens, mas no nascem

    delas, nem delas dependem. As imagens quadrinsticas, por serem

    estticas, por colocarem em interao elementos diferenciados, captam

    e fixam mais intensamente a ateno do leitor. Para McCloud (2008, p.

    3), [...] o olhar do leitor guiado de quadrinho em quadrinho e como

    sua mente persuadida a dar importncia ao que v. As marcas da

    linguagem quadrinstica tm funo persuasiva, exatamente por estarem

    combinadas para criao dos efeitos desejados pelos quadrinistas.

    Cada linguagem uma linguagem, cada obra tem sua natureza

    artstica. Mesmo no oferecendo uma reproduo completa do texto

    original o que indicia a criatividade do adaptador , as tradues

    quadrinsticas de obras literrias atraem as crianas e os jovens para

    o mundo do impresso, fazem-nos manusear belas edies, levam-nos

    a usar seu tempo percorrendo o papel com os olhos encantados pelas

    cores, pelos traos, pelos bales.

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    35

    A pesquisa que gera este livro e que gerou outro livro, alguns

    captulos e artigos, busca investigar como a linguagem quadrinstica,

    especificamente pela seleo da paleta de cores e do tipo de trao

    usado na definio de personagens e ambientes, pode atrair o

    interesse das crianas e dos jovens, viabilizando a construo do gosto

    pela leitura. Como aproximar o jovem do impresso? Como lev-lo

    para o universo do papel e da tinta?

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    37

    3. Como ler a LiTeraTura em QuaDrinhos?A adaptao uma leitura que se transpe em releitura e, com essa releitura, alguns elementos estruturadores do texto de origem ganham destaque e, por consequncia, reapresentam a estrutura do texto original e sua relao com o contedo e com a forma, trazendo uma nova, porm no definitiva, leitura para a obra original. (ZENI, 2009, p. 141)

    Ler, reler, transler... A Literatura em Quadrinhos deve ser levada

    para a sala de aula com honestidade: preciso mostrar ao estudante

    que aquela no a obra original, outra obra, que nasceu do prazer

    de ler de um indivduo talentoso ou de vrios indivduos talentosos.

    O mediador de leitura no pode simplesmente levar a adaptao,

    sem contextualizar a obra fonte, e, certamente, sem discutir as tramas

    da apropriao. Entre os mediadores de leitura encontram-se os pais,

    os professores, os editores, os tradutores, os ilustradores, os roteiristas,

    que no apenas constroem a palavra adaptada, como tambm deixam

    implcito nela, a partir de suas combinaes e provocaes, guias de

    apropriao da nova obra, direcionados ao pblico que desejam atingir.

    Referi-me acima s relaes entre os elementos da narrativa literria

    que compem sua linguagem e os elementos da narrativa quadrinstica.

    Basicamente, so os mesmos. A diferena bvia que a literatura prope

    verbalmente ambiente, aes, tempo, personagens etc.; a Literatura em

    Quadrinhos, por sua vez, casa o verbal e o no verbal.

    O ambiente, por exemplo, no descrito por palavras apenas,

    proposto ao leitor por uma fuso de cores e traos, com forte influncia

    do foco narrativo. O tempo, nos quadrinhos, representado tanto

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    38

    por linhas cinticas, como por cores e, principalmente, pela dimenso

    e organizao das vinhetas (quadros).

    O trao com que as personagens so construdas determina o tom

    da quadrinizao. Muitas vezes, uma mesma obra adaptada duas ou

    trs vezes, por equipes diferentes. A comparao entre escolha de cores,

    traos, formas de vinhetas, mostra a perspectiva das edies, o pblico

    que desejam atingir, as finalidades artstica, educativa ou ambas.

    Este livro o primeiro de uma srie. Proponho aqui o estudo das

    adaptaes de seis obras clssicas da literatura brasileira, a partir da

    anlise do uso das cores e dos traos. No fao um mero trabalho

    acadmico-cientfico acerca dessas obras, quero mostrar como elas

    podem ser lidas em sala de aula, para desmistificar a relao entre bens

    culturais de relevo e nossos estudantes.

    Escolhi adaptaes que atualizam obras importantes, porm de

    leitura bastante rejeitada pelos estudantes em nossas escolas: Memrias

    de um sargento de milcias, de Manuel Antnio de Almeida; Memrias

    pstumas de Brs Cubas, de Machado de Assis; Triste fim de Policarpo

    Quaresma e Clara dos Anjos, de Lima Barreto; Os sertes, de Euclides da

    Cunha; Jubiab, de Jorge Amado.

    Penso que vocs j perceberam que no estou preocupada com

    perodos literrios, caractersticas de poca etc. Estou interessada em

    explorar a linguagem quadrinstica em seu potencial formativo do

    gosto pela leitura.

    Quero instrumentalizar professores e alunos para que possam ler

    com prazer essas apropriaes de alguns de nossos clssicos. Para isso,

    vou desenvolver o estudo de alguns elementos da linguagem hbrida

    dos quadrinhos, propondo estratgias de leitura.

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    39

    3.1 . As cores: senTiDos e provocaes

    Este subcaptulo no tem uma epgrafe tradicional, optei por

    apresentar-lhes uma imagem a da capa da adaptao quadrinstica de

    uma das partes do livro Os sertes, de Euclides da Cunha. Carlos Ferreira

    (FER

    REIR

    A; R

    OSA

    , 201

    0, c

    apa)

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    40

    e Rodrigo Rosa, respectivamente roteirista e ilustrador, oferecem aos

    leitores de todas as idades e tamanhos a sua leitura da obra euclidiana.

    Escolheram a parte mais envolvente, porque concentra a ao do texto-

    fonte. Mas no pararam a. Mesclaram ao texto de Os sertes anotaes

    do Dirio de expedio, do mesmo autor.

    Essa informao muito importante para situar o leitor no dilogo

    com a obra quadrinizada: alm de ser um recorte da obra-fonte, ela

    interage com outros escritos do autor original. Ou seja: nessa adaptao,

    o leitor entrar em contato com elementos fundamentadores e

    explicativos da obra-fonte, os quais subsidiam a apropriao feita pelo

    roteirista e pelo ilustrador.

    A imagem-epgrafe deste subcaptulo dedicado ao estudo das

    cores bastante significativa quanto a este aspecto. A paleta de cores

    escolhida para a apresentao do volume rene amarelo, vermelho,

    roxo, marrom e preto. So cores fortes, que fecham a imagem.

    H uma remisso imediata ao universo sertanejo: o marrom

    e o vermelho terroso lembram o cho gretado pela seca; o roxo

    e o preto na roupa do Conselheiro remetem a rituais religiosos

    catlicos de luto; o amarelo ao fundo aponta para o entardecer

    quente do serto, ao sol que se pe.

    Mas as cores trazem significaes culturais que nos induzem

    a formas especficas de interao com as imagens. O amarelo, por

    exemplo, tem uma simbologia tradicional de alerta esse seu uso

    nos semforos. Em muitas culturas, no entanto, o amarelo representa a

    loucura, a traio (GUIMARES, 2000, p. 89).

    O preto, associado escurido da noite, suscita o medo e remete ao

    desconhecido culturalmente, pode ser associado a situaes de protesto,

    transgresso. A cor um instrumento de comunicao, sua escolha se

    prope a um contato entre o repertrio de conhecimentos e saberes do

    sujeito que a usa e do sujeito a quem seu uso se destina. Assim, o uso

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    41

    parcial do preto nessa imagem da capa, em situao de sombra, conduz

    a leitura da cena para o mistrio, para um mundo inspito.

    Ao lado do preto, na representao do Conselheiro, aparece

    o roxo. Trata-se de uma cor obtida pela mistura das cores primrias

    azul e vermelho. Sua simbologia est associada ao misticismo, ao luto

    catlico da Quaresma, espiritualidade. Representa a transformao

    espiritualizada trazida pela morte.

    O vermelho, tradicionalmente associado paixo e ao poder, no

    tom terroso com que aparece na imagem da capa, traz a ideia de

    interdio, fora, guerra. Politicamente, a cor das revolues.

    A combinao dessa paleta de cores insere o leitor no universo

    mstico, poltico e violento da guerra de Canudos. Os adaptadores

    no param a. Quase toda a adaptao construda sobre o contraste

    preto-branco: desde as primeiras pginas, que representam a traio

    da esposa de Antnio Conselheiro, fato que o levou vida mstica e

    transgressora, juntando seguidores por todo o serto, at a pgina

    67, quando representado o incio do massacre de Canudos, todas as

    vinhetas aparecem em preto e branco.

    Essa seleo cromtica polarizada o preto como a reunio

    de todas as cores; o branco como a ausncia de cores traz uma

    simbologia especfica: o bem e o mal entrelaados em todas as

    situaes. Da pgina 68 at a pgina final, as cores usadas na capa

    so desdobradas. Na pgina 68, o marrom convive com o preto e o

    branco, lembrando o cho sertanejo.

    Na pgina 69, os adaptadores introduzem o vermelho terroso,

    lembrando o sangue que se mistura com a terra. As pginas 70 e

    71 explodem em vermelho, preto e amarelo, representando a

    queima da aldeia do beato. Da em diante, predomina o vermelho,

    acompanhado de perto pelo amarelo, marrom e preto. O fundo das

    pginas aparece em marrom claro, ainda remetendo o leitor terra

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    42

    seca do serto. A ltima pgina da adaptao insere uma nova cor:

    o azul, das tropas governamentais.

    Pelas cores, o leitor inserido no mundo de coero e violncia

    em que viveram Antnio Conselheiro e seus fiis seguidores. Como

    prendem de imediato a ateno de crianas e jovens, as cores constroem

    ambientes e situaes de forma bastante significativa. No processo da

    adaptao, esse instrumento da linguagem quadrinstica traz implcita

    a leitura prvia dos adaptadores e viabiliza o processo de interpretao

    por parte de professores e estudantes.

    Em geral, as tradues literrias para os quadrinhos fazem uso

    desde a capa de paletas de cores bsicas significativas para a recriao

    da obra-fonte por elas propostas. Normalmente, na capa, esto as cores

    que sero prioritrias para a leitura da obra.

    A traduo quadrinstica de Jubiab, de Jorge Amado, feita por

    Spacca(2009), joga com seis cores fundamentais para o desenvolvimento

    da trama adaptada: marrom, verde, azul, rosa, vermelho e preto.

    Infelizmente, no podemos exibir a imagem, por no termos sido

    autorizados pelo adaptador. Mas nada nos impede de descrev-la e

    estuda-la. A capa do volume apresenta um casal caminhando por uma

    rua, cujo cho est parcialmente iluminado. Acima, a placa de um bar.

    Abaixo, no canto inferior, o ttulo da traduo.

    A obra amadiana conta a histria de Balduno, um menino pobre,

    negro, que nasceu em Salvador no incio do sculo XX, enfrentando as

    dificuldades da misria e de sua origem tnica.

    Amparado por Pai Jubiab, o pai de santo que cuidava dos

    fiis do Morro do Capa Negro, Baldo, aps perder a tia que o

    criava, levado a viver com uma famlia branca e abastada, fora

    do morro. Na adolescncia, comete o crime de se apaixonar

    pela jovem filha de seus benfeitores, posto na rua, entra na

    marginalidade para sobreviver.

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    43

    Mas Baldo cresce, transforma-se em um vitorioso lutador de

    boxe, estivador do Cais do Porto, grevista consciente dos direitos dos

    trabalhadores. Nesse meio tempo, faz muitos amigos e inimigos, ama,

    trai e trado, aprende bastante com Hans, seu amigo marinheiro.

    O marrom da pele de Baldo faz parte da placa de seu bar

    predileto o Lanterna dos Afogados. Alm de representar a cor

    da raa, a marca tnica das populaes afro-brasileiras baianas, o

    marrom fruto da combinao de ciano, magenta e amarelo. a cor

    da terra tambm. Representa na trama adaptada a relao umbilical

    entre Baldo e o cho da Bahia.

    O azul, cor do mar de onde vinham os navios, que traziam e levavam

    pessoas, histrias, mercadorias, representa, de um lado, a proteo da

    Me Iemanj, de outro, o lugar de sustento e a possibilidade da fuga. O

    rosa no vestido feminino traz os amores de Baldo. O verde em torno da

    placa do bar ope-se ao vermelho e expressa o destino, a sorte, o jogo,

    a esperana (GUIMARES, 2000, p. 116), marcas da vida da personagem

    Baldo, experincias de paixo e esperana. Nessa capa, o verde e o

    vermelho saltam aos olhos do leitor.

    Em tom verde-limo ilumina-se a rua por onde caminha Baldo,

    abraado a seu amor. Verde-limo sua cala, seu chapu, parte

    de seu violo, parte de sua camisa. A luz da lua cria o tom da cor. A

    predominncia do verde-limo, cortado pelo ttulo em vermelho,

    simboliza a prioridade da esperana, do destino que se constri com os

    ps no cho, na vida da personagem.

    O vermelho das letras que desenham o ttulo e que trazem a

    assinatura do adaptador atravessa o caminho de esperana de Baldo

    e simboliza os atropelos e as paixes pelas quais passou. significativo

    que o vermelho fique para trs na caminhada da personagem.

    O preto que o cerca representa os mistrios insondveis da

    vida, suas ameaas, mas tambm lembra os prazeres da noite no

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    44

    Lanterna dos Afogados. Essas seis cores se desdobram em nuances

    variadas em toda a adaptao.

    Nesse processo, o leitor inserido no mundo tumultuado de

    Balduno, acompanhando suas peripcias. A ltima cena do volume

    adaptado retoma as cores da capa, agregando o amarelo, e desenha um

    Baldo forte, sorridente, maior que todas as dificuldades que enfrentou.

    Essa adaptao, como todas as demais, no substitui nem esvazia

    de sentido o texto literrio. Ao contrrio, enriquece-o, somando s

    imagens verbais o poder das imagens no verbais, que explodem em

    cor diante dos olhos dos leitores.

    Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, entrou em

    minha pesquisa atravs de duas adaptaes diferentes: uma, de Lailson

    de Holanda Cavalcanti; outra, de Oscar Lobo e Luiz Antonio Aguiar.

    Reproduzo apenas uma das capas, a da Editora tica, que nos autorizou

    o uso das imagens:(L

    OBO

    ; AG

    UIA

    R, 2

    010,

    cap

    a)

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    45

    Proponho a princpio uma leitura de cada capa e, a seguir, uma

    breve comparao entre as duas adaptaes. A capa da edio

    adaptada por Cavalcanti tem como fundo um tom alaranjado terroso,

    letras pretas e uma paleta bastante variada, que inclui branco, azul,

    verde, amarelo, marrom, preto, cinza, nas vinhetas que se encaixam,

    representando personagens e situaes importantes na trama.

    A cor laranja originada da mistura entre o amarelo e o vermelho

    alerta e paixo. uma cor estimulante, que remete fecundidade

    da terra e a seus frutos. Simboliza expanso, prosperidade, progresso.

    Como base da capa, essa cor insere o leitor em parte do mundo

    de Policarpo Quaresma. Essa personagem tem como principal

    elemento identificador um nacionalismo utpico inabalvel, voltado

    para as marcas culturais primitivas do Brasil lngua indgena, prticas

    culturais afro-brasileiras, msica popular, estratgias agrcolas pr-

    tecnolgicas e pr-industriais.

    Quaresma defende um Brasil livre das coeres coloniais de

    quaisquer naturezas. Um dos pontos altos do romance barretiano

    a ida dessa personagem para o interior e sua luta contra as savas,

    que devoravam as plantaes. A cor laranja remete o leitor a essa

    necessidade que a personagem tem de se integrar natureza

    primitiva, vivendo de seus frutos.

    Cavalcanti representa, nas vinhetas que compem a capa, as cores

    da bandeira brasileira: verde, amarelo, azul e branco. Isso enfatiza o

    nacionalismo de Quaresma.

    O preto aparece na cor do cabelo do violeiro, Ricardo Corao

    dos Outros, como sombra, na vinheta maior, e no terno do poltico

    envolvido na revoluo, que acaba vitimando a personagem-ttulo. Na

    vinheta superior esquerda, o preto traz a seduo da marginalidade.

    Na vinheta central, a ameaa ordem desejada por Quaresma.

    Na vinheta inferior direita, a ameaa ordem poltica e social a

    tambm simbolizando o poder da opresso sobre as minorias.

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    46

    O marrom na pele da ex-escrava, associado ao branco, carrega a

    noo de que as razes culturais do Brasil so harmnicas e ligam o

    homem ao cho em que pisa. Com essa paleta de cores, Cavalcanti

    direciona o leitor para os episdios por ele selecionados no processo de

    adaptao e que constituem seu caminho de apropriao da obra: as

    marcas da cultura brasileira so enfatizadas.

    Ele opta, na apresentao da adaptao, por duas pginas iniciais,

    introdutrias, em traos impressionistas, tons escuros terrosos, que

    representam o ambiente em que vive o protagonista: de um lado o

    passado, trazido pela carruagem; de outro, a modernidade, trazida

    pelo bonde e pela mulher, que caminha sozinha pela rua. Essas duas

    pginas iniciais inserem o leitor de hoje no mundo de Quaresma,

    um mundo de opresso, controle, medo, um universo em que a cor

    da terra simboliza aquilo que no se quer por perto: na primeira,

    os tons terrosos predominam, acompanhados do cinza, e aparece

    uma rua estreita, com uma carruagem antiga, puxada a animais; na

    segunda, os tons terrosos dividem espao com o branco e o cinza e

    aparece um bonde eltrico.

    Essa contextualizao visual do n da adaptao a tenso

    coercitiva entre a vida tradicional e os benefcios da modernidade,

    do capitalismo, da industrializao, da colonizao cultural prepara

    o terreno para a leitura, para a interao do texto barretiano com o

    leitor contemporneo. Nas duas imagens, o branco e o cinza aparecem

    de forma minoritria. O branco d o mesmo contraponto da vinheta da

    capa; o cinza desenha limites entre o mundo desejado por Quaresma e

    aquele que o oprime e controla.

    A sequncia da adaptao intensifica a paleta de cores anunciada na capa e, em seu processo de combinao, cria humor, tornando

    a narrativa mais leve e mais prxima das habilidades leitoras dos

    jovens. A leitura das tradues quadrinsticas pode colocar o sujeito

    leitor na condio de criador, produtor de sentidos, num processo

    simultneo e recproco de reconstruo.

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    47

    A capa da adaptao empreendida pelo roteirista e desenhista Cesar

    Lobo e pelo ilustrador e adaptador Luiz Antonio Aguiar, reproduzida

    acima, explosiva, no que tange paleta de cores escolhida. Verde,

    azul, amarelo, branco, vermelho, mesclados a traos de cinza e roxo,

    compem a imagem central de um Policarpo Quaresma hbrido: cocar

    indgena, farda do Exrcito, brincos indgenas, um papagaio verde no

    ombro, culos dourados sobre o nariz, olhos arroxeados e arregalados,

    como que em susto. Ao fundo, soldados e prdios sombrios.

    No interior do volume, logo na pgina que inicia a primeira parte

    da adaptao, a bandeira brasileira resume a escolha dos adaptadores:

    (LO

    BO; A

    GU

    IAR,

    201

    0, p

    .5)

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    48

    As duas vinhetas da pgina desdobram o colorido de nossa

    bandeira, estabelecendo, para o leitor, o tom nacionalista da

    personagem Policarpo Quaresma e suas aventuras e desventuras.

    Essas cores preponderam em todo o volume, ganhando significao

    no contraste com o vermelho e com os tons terrosos, representantes

    das bases indgenas da cultura brasileira. No mbito da escolha de

    cores, h dois pontos altos na adaptao, que amarram as pontas da

    obra recriada. O primeiro, na pgina 9, uma reinveno do quadro

    de Gustave Dor, conforme o exposto pelos adaptadores na seo

    Segredos da Adaptao:

    (LO

    BO; A

    GU

    IAR,

    201

    0, p

    . 9)

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    49

    Trata-se de uma ampliao da imagem da capa. A parte inferior

    da vinheta, em tons esmaecidos de verde, azul, vermelho, representa

    um momento de sonho para Quaresma e indicia que sua realidade

    tinha cores pouco vivas, cores apagadas, ou seja, uma realidade

    triste, opressiva. A parte central e a superior, que desenham o sonho

    da personagem, trazem um colorido esfuziante, representando a

    natureza opulenta brasileira.

    o mesmo contraponto observado na capa e que parece associar

    o nacionalismo utpico de Quaresma loucura da leitura de Quixote.

    Para ambos, a realidade tinha pouca vitalidade. O sonho sempre em

    arco-ris funcionava como refgio e reinveno da vida. Na adaptao

    da obra barretiana, a cor poltica, instrumento de crtica social. Isso

    se confirma na pgina dupla final, segundo ponto alto do volume, no

    que diz respeito a cores que constroem trama e significao:

    (LO

    BO; A

    GU

    IAR,

    201

    0, p

    . 70)

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    50

    As duas pginas so complementares, compostas por uma

    vinheta nica, cujas cores dividem as aes e as temporalidades,

    mas, simultaneamente, constroem uma interseo entre a histria

    passada e a histria contempornea do Brasil. Na parte inferior das

    duas pginas, em cores mais uma vez esmaecidas, o fuzilamento de

    Policarpo Quaresma, acusado injustamente pelas foras do poder

    dominante. Essas pginas finais abrem um excelente espao para

    um trabalho interdisciplinar em sala de aula: professores de Lngua

    Portuguesa e Histria podem, a partir dessas imagens, discutir com os

    estudantes questes relativas s variadas formas de opresso vividas

    pelo povo brasileiro, bem como as diferentes tticas de resistncia

    que desenvolvemos nos ltimos cento e vinte anos.

    (LO

    BO; A

    GU

    IAR,

    p. 7

    1)

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    51

    Na parte superior, em cores fortes, mas mantendo a paleta bsica

    proposta na capa, imagens representativas da luta dos anos 1980, pelas

    eleies diretas, pelo fim da ditadura militar. Quaresma foi vtima de

    uma verso antiga do poder militar; muitos de ns, eu, os adaptadores,

    vocs professores, os pais e avs de seus alunos, muitos de ns, repito,

    vivemos os anos de ferro do Exrcito e choramos de alegria quando

    tudo acabou. Muitos Policarpos Quaresmas morreram silenciosamente

    nessas dcadas recentes de opresso.

    Lobo e Aguiar agregam significado obra barretiana,

    aproximando-a do jovem e do adulto de hoje. Entrelaam mais

    intensamente as agruras por que passa Quaresma vida conhecida por

    qualquer brasileiro com cerca de cinquenta anos e isso contedo

    escolar, isso conhecimento histrico e cultural.

    As duas tradues quadrinsticas de Triste fim de Policarpo

    Quaresma so interessantes e podem funcionar como instrumentos para

    a formao do gosto pela leitura, podem romper a barreira do tempo,

    da histria e da cultura, aproximando a trama e suas personagens do

    leitor do sculo XXI. Nesse processo, a escolha das cores fundamental.

    Lelis e Wander Antunes adaptaram Clara dos Anjos (2011),

    tambm de Lima Barreto, para a linguagem dos quadrinhos. Na

    capa, fazem uso de uma paleta de cores visualmente pesada: preto,

    cinza, amarelo, dourado, pouco branco.

    Bastante sombria essa capa. A predominncia do preto instaura

    um clima de ameaa e mistrio. A nfase vai para duas personagens:

    Clara dos Anjos e Cassi Jones.

    Cassi Jones aparece montado em uma vinheta, como se ela fosse

    um muro e ele estivesse prestes a salt-la. E ele cai dentro da trama,

    colorido em tons de amarelo predominante branco e azul. A tcnica

    usada para colorir a adaptao, desde a capa, a da aquarela, o que faz

    com que nenhuma cor seja absoluta e uniforme.

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    52

    O amarelo que pinta Cassi Jones, o grande vilo da histria, traz

    aquela ideia de alerta, cuidado, ameaa. O branco e o azul remetem a

    sua origem branca e burguesa. O interessante que, como a pintura

    similar aquarela, o branco e o azul esto contaminados por tons

    terrosos. Simbolicamente, a personagem apresentada ao leitor de

    forma a expor seu carter corrupto, sujo.

    Clara dos Anjos, to importante que sequer cabe nos limites de

    uma vinheta, tem a pele marrom, marcando suas origens tnicas e

    sociais, pois isso aponta para o lugar do negro no Brasil da poca.

    Sua roupa verde. O verde a cor das possibilidades, da esperana,

    est no caminho de Balduno, na capa da adaptao de Jubiab, est

    nas duas capas das adaptaes de Triste fim de Policarpo Quaresma.

    O verde representa uma personagem que espera e constri o futuro.

    O verde e o amarelo, na capa em estudo, compem as cores

    mais fortes de nossa bandeira, nossas maiores riquezas: o ouro e

    a natureza pujante. Representam, aqui, o poder do opressor e a

    inocncia do oprimido.

    As demais cores presentes na capa da adaptao, dentro das

    vinhetas que representam o subrbio e a vida burguesa no Rio de

    Janeiro da poca, estabelecem um ambiente de descuido, sujeira,

    opresso: bege, cinza, preto. bege o trem que corta a cidade, entre

    casas, bege a fumaa que polui e corrompe a ordem natural da vida.

    A fumaa que simboliza a excluso dos suburbanos.

    O desenvolvimento da adaptao construdo, no que tange s cores,

    num processo sombrio de representao. As cores da capa se repetem, a

    cor mais viva do volume sempre o verde, principalmente quando pinta

    a vegetao. possvel que os adaptadores tenham construdo esse

    contraste representando a oposio entre a natureza humana, opaca e

    plida, e a natureza vegetal, pujante, de forte esperana.

    O uso das cores nessa adaptao atinge o ponto alto exatamente

    no clmax da narrativa o momento em que Clara dos Anjos deflorada

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    53

    por Cassi Jones. Uma sequncia de quinze vinhetas, que comea na

    pgina 82 e termina na 83, representando uma tempestade, com

    troves, cujos rabichos dos bales lembram raios.

    A intensificao do ambiente soturno e opressivo nasce das cores cinza, preto, marrom escuro. O branco das letras da onomatopeia que

    corta as vinhetas e dos bales aumenta o contraste e, em lugar de

    relativizar o peso das cores densas, torna-as mais pesadas e aterrorizantes.

    Os adaptadores no mostram a cena da violao consentida

    pela inocncia da personagem Clara dos Anjos, apenas a sugerem,

    criando para o leitor um espao para sua reinveno imaginria

    pessoal da situao, em toda a sua plenitude de violncia simblica. A

    complexidade do jogo claro/escuro, que social, poltica, econmica,

    cultural no Brasil barretiano, atualizada para o sculo XXI, provocando

    a reflexo: morreram os Cassi Jones, opressores, preconceituosos, morreram os Cassi Jones no Brasil contemporneo? O claro/escuro

    um jogo que no elimina partes, mas coloca-as em tenso permanente.

    Ainda hoje. Trata-se de um momento privilegiado para uma discusso

    entre professores de Lngua Portuguesa, Literatura, Geografia, Histria e estudantes: questes tnico-raciais podem ser levantadas, bem como

    questes relativas ao progresso e suas consequncias.

    Sebastio Seabra e Maria Sonia Barbosa fazem o roteiro e as

    ilustraes da adaptao do clebre romance machadiano Memrias

    pstumas de Brs Cubas(2008). Presena constante no currculo escolar,

    as obras machadianas trazem dificuldades extras para nossos estudantes.

    Em geral, as narrativas de Machado de Assis so construdas numa

    forte interseo entre fico e histria, o que demanda do leitor repertrio suficiente para fazer as contextualizaes necessrias. Alm disso, so narrativas que desdobram a linguagem pela ironia, exigindo

    esprito crtico e capacidade reflexiva, por parte do leitor.

    Nossos jovens ainda no puderam construir essas capacidades

    e habilidades. A mediao, no caso especfico da obra machadiana,

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    54

    precisa ser slida, estratgica, competente, para que o jovem tenha o

    direito de usufruir da escrita desse ficcionista.

    Poucas so as obras de Machado de Assis que podem ser lidas por

    crianas. O ambiente por ele criado, suas personagens, suas aes,

    demandam, como apontei acima, conhecimentos interdisciplinares,

    pedem treinamento para uma leitura interpretativa consistente.

    Seabra e Barbosa, desde a capa da adaptao de Memrias

    pstumas, escolhem situaes da obra-fonte que aguam a curiosidade

    do jovem leitor e aproximam a obra de suas competncias de leitura:

    (SEA

    BRA

    ; BA

    RBO

    SA, 2

    008,

    cap

    a)

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    55

    O verde e o preto como cores de fundo estabelecem um ambiente

    de mistrio, luto e, paradoxalmente, esperana. Cinco vinhetas dividem

    o espao da capa. As trs primeiras focalizam as principais personagens:

    Quincas Borba, amigo antigo de Brs Cubas; Virglia, a mulher sedutora e

    traidora; o defunto autor, Brs Cubas. Quincas Borba e Virglia aparecem

    em cores fortes, entre o vermelho, o rosa, o verde e o azul. Brs Cubas,

    como fantasma de sua prpria vida, surge em branco e azul muito claro.

    As duas vinhetas inferiores do relevo a Brs Cubas quando vivo

    em seu reencontro com Quincas Borba, personagem que dar ttulo a

    outro romance machadiano. As cores nessas duas vinhetas so fortes,

    repetindo o azul, o verde, o branco, o vermelho e agregando o bege.

    Nas vinhetas de cima, as cores mais fortes das personagens Quincas

    Borba e Virglia podem apontar para a vitalidade essencial que os

    movia, principalmente se as compararmos s cores geladas que pintam

    Brs Cubas, cuja fora vital sempre foi superficial e de ocasio. As trs

    personagens simbolizam as elites dominantes na sociedade brasileira

    que se capitalizava na poca.

    Nas vinhetas inferiores, o contraste maior fica com as cores das roupas

    de Brs Cubas e Quincas Borba. H entre essas personagens imensa

    distncia social. O azul da roupa de Brs Cubas traz a superioridade

    daqueles que poderiam viver de renda, sem que necessitassem do

    trabalho cotidiano. O bege e o vermelho esmaecido da roupa de Quincas

    Borba denunciam sua pobreza, principalmente pelas sombras pretas que

    simbolizam sujeira e falta de asseio, marcas da misria. Nesse reencontro,

    ele ainda no enriquecera, fato posterior na trama.

    No desenrolar da adaptao, as cores propostas na capa se repetem

    e se desdobram em tons que se adequam s situaes da vida de

    Brs Cubas. Na pgina inicial, aps seu enterro, o narrador-defunto

    se destaca dos participantes, que aparecem em tons de roxo e preto,

    marcando luto, tristeza, transformao, espiritualidade. Brs Cubas

    deixa o corpo no caixo e seu esprito vem nas tonalidades bem claras

    de azul tambm remetendo ao mundo espiritual e branco.

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    56

    Pginas adiante, quando narra seus primeiros encontros com Virglia,

    ambos ainda solteiros e jovens, as cores so fortes, alegres, indo do rosa

    ao azul, passando pelo verde e lils. Mistura de vermelho (paixo) e

    branco (inocncia), o rosa remete a uma sensualidade feminina juvenil:

    O verde agrega s imagens desse amor em seu comeo a promessa

    de futuro. O lils soma espiritualidade ao encontro das personagens.

    Na pgina 43, a escolha das cores torna-se especial.

    um momento da trama em que, j amantes, Virglia, casada com

    Lobo Neves, engravida de Brs Cubas e perde a criana. Separam-se e,

    tempos depois, morre Lobo Neves. A tristeza da viva representada

    em quatro vinhetas coloridas em tons de cinza e preto:

    (SEA

    BRA

    ; BA

    RBO

    SA, 2

    008,

    p.2

    0)

    (SEA

    BRA

    ; BA

    RBO

    SA, 2

    008,

    p. 4

    3)

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    57

    A perda sofrida por Virglia, sua solido, seu afastamento de

    Brs Cubas, so resumidos visualmente pelas cores escolhidas. Sequer

    o branco dos recordatrios as caixas de texto quebra a opresso

    representada nas vinhetas.

    Desde a capa, o adaptador denuncia sua opo por enfatizar

    o adultrio. Situao polmica, extremamente humana, e

    atemporal, a histria de amor adltero pode aproximar o jovem

    dessa narrativa oitocentista. E as cores selecionadas, por seu

    apelo imediato visual, colaboram para quebrar o mito de que ler

    Machado de Assis muito difcil.

    A releitura proposta nessa adaptao traz a obra do passado

    para o presente. O jovem no estar lendo a obra machadiana, mas

    uma interpretao dessa obra, atualizada e aproximada de suas

    competncias leitoras.

    Rosa e Jaf ocupam-se de reler e quadrinizar o divertido romance

    Memrias de um sargento de milcias, de Manuel Antnio de

    Almeida. A narrativa oitocentista conta a vida de Leonardo, nascido

    dos amores clandestinos de Leonardo Pataca e Maria da Hortalia,

    durante sua viagem de Portugal para o Brasil, na poca da vinda da

    Famlia Real, incio de sculo XIX.

    Muito sapeca desde beb, Leonardo se v abandonado pela

    me, que foge com outro homem, e pelo pai, que no suporta suas

    travessuras. , ento, criado pelo padrinho barbeiro. E cresce na

    malandragem, criando problemas para vizinhos, padres, colegas.

    Na capa, Rosa representa a leveza da narrativa e a divertida

    malandragem de Leonardo:

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    58

    A predominncia do azul remete o leitor para os tempos do Rei.

    Seu contraste com o marrom e o bege claro aponta para uma diviso

    social: de um lado a aristocracia europeia, de outro, os sditos brasileiros.

    As figuras humanas mostram o Major Vidigal e o Leonardo, desde

    beb. O primeiro, com roupas em tons de azul escuro, bege e dourado,

    mesclando significaes de lealdade, equilbrio (azul), conforto (bege),

    energia (bege e dourado) e poder (dourado).

    Leonardo, quando beb, tem roupas bege e, na infncia e na

    adolescncia, aparece ironicamente com calas violeta. A ironia est

    no significado dessa cor: respeito, dignidade, mistrio. Mas a escolha

    (RO

    SA; J

    AF,

    201

    0, c

    apa)

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    59

    (Ros

    a; J

    af, 2

    010,

    p. 7

    2)

    se explica. A cor violeta tambm sugere transformao, e Leonardo se

    transforma quando conhece o amor e a Lei.

    Na idade adulta, j sargento de milcias, veste azul, branco,

    vermelho e preto; agregando aos sentidos atribudos s cores da farda

    do Major Vidigal a significao do vermelho e do preto: o que refora

    a noo de vitalidade, paixo, mistrio, destino.

    A leveza conferida narrativa oitocentista pelos adaptadores

    se concretiza na penltima pgina do volume, quando Leonardo e

    Luisinha, viva, se casam:

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    60

    A predominncia do dourado aponta tanto para a felicidade do

    casal, como para uma possvel crtica ao poder da igreja, que domina os

    costumes e as sociabilidades. Vale lembrar que foi numa festa religiosa

    que os amores de Leonardo e Luisinha comearam.

    A distino vem para D. Maria, madrinha da noiva, com um

    vestido vermelho que a destaca de todos os demais participantes da

    festa. O que representa bem a personagem: D. Maria uma mulher

    rara, ela rica e poderosa, determina muitas das agruras de Leonardo

    e Luisinha. Esta fora obrigada a casar-se da primeira vez, contra a

    prpria vontade, por tramas da madrinha.

    Esse romance, como os demais, tambm frequenta as listas das escolas

    brasileiras. Embora a temtica seja interessante, a linguagem da obra-

    fonte inviabiliza a percepo do humor por parte dos jovens estudantes

    contemporneos. Rosa e Jaf colocam o humor nas imagens, tanto pelas

    cores, como pelos traos, objeto de estudo do prximo subcaptulo.

    3.2. De Traos e Tramas se consTroem leiTores(R

    OSA

    ; JA

    F, 2

    010,

    p. 6

    )

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    61

    Mais uma vez, opto por uma epgrafe visual. As quatro

    vinhetas pertencem adaptao quadrinstica de Memrias de

    um sargento de milcias, de Manuel Antnio de Almeida, feita

    por Rodrigo Rosa e Ivan Jaf. No subcaptulo anterior, explorei

    a importncia das cores na Literatura em Quadrinhos. Neste

    subcaptulo, quero discutir como os traos usados na construo

    das personagens e do ambiente podem contribuir para a formao

    do gosto pela leitura.

    O romance de Almeida tem um inegvel tom humorstico, mas,

    como afirmei anteriormente, a linguagem oitocentista. Como o

    humor depende da cultura e da histria se ouvirmos um comediante

    ingls, dificilmente riremos de suas piadas, pois no partilhamos de

    seus pertencimentos culturais e o humor depende dessa partilha ,

    um jovem estudante do sculo XXI ter dificuldades para ver a graa

    nas descries de cena.

    Os adaptadores optaram por enfatizar visualmente o humor

    e usaram uma dobradinha de estratgias para isso: as cores e os

    traos. O tipo de trao escolhido foi o caricatural, que exagera

    os traos fsicos marcantes das personagens, colocando-os como

    emblemas de caractersticas psicossociais. As personagens so

    desenhadas num processo de combinao entre sua vida exterior

    e sua vida interior, os traos encenam isso.

    Cada personagem tem traos definidores. No h modelos

    fixos para isso, cada desenhista cria de acordo com o que busca

    expressar na histria. O mais importante exatamente essa

    coerncia entre os traos e o que contado. Scott McCloud

    ressalta isso, quando teoriza sobre o desenho de quadrinhos, em

    um livro muito interessante.

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    62

    (MCC

    LOU

    D, 2

    008,

    p. 7

    8)

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    63

    Convido vocs a observarem como o quadrinista tem em mente o

    leitor que deseja ter como consumidor de sua produo. Essa pgina

    de McCloud resume bem essa preocupao. Tudo nos quadrinhos

    construdo pensando no leitor e os traos so parte desse jogo.

    Na imagem-epgrafe, os adaptadores reinventam a cena em que

    Leonardo Pataca e Maria da Hortalia se encontram, a bordo do navio

    que os trazia de Portugal para o Brasil. Na obra-fonte, a descrio de

    Manuel Antnio de Almeida bastante jocosa Leonardo descrito

    como filho de um belisco e uma pisadela.

    Rosa e Jaf enfatizam o humor da cena, desenhando as personagens

    envolvidas com traos arredondados, que as esvaziam de toda e

    qualquer sensualidade. O belisco e a pisadela coroam a cena.

    Quem no leu a obra-fonte e tem acesso adaptao quadrinstica

    encontrar graa na imagem das personagens, especialmente na cena

    do belisco. Na narrativa oitocentista, Maria belisca a mo de Leonardo

    Pataca. Na adaptao, a situao atualizada e o humor ganha tons

    contemporneos, quando Maria belisca o bumbum de Leonardo Pataca.

    Para Waldomiro Vergueiro, o humor no desenho dos quadrinhos

    pode quebrar resistncias:

    ... pode-se imaginar que o desenho caricatural e a utilizao

    de elementos cmicos tm a grande vantagem de diminuir as

    eventuais resistncias de alguns leitores, colocando-os em

    uma boa disposio para assimilar o que se pretende transmitir.

    (VERGUEIRO, 2009, p.93)

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    64

    Esse trao caricatural foi escolhido por Lobo e Aguiar e por Lailson

    de Holanda Cavalcanti, nas duas adaptaes de Triste fim de Policarpo

    Quaresma, e por Spacca, na adaptao de Jubiab.

    A adaptao da obra barretiana feita por Lobo e Aguiar apresenta

    uma variedade de traos. As cenas que envolvem Policarpo Quaresma

    so construdas em trao caricatural. A magreza da personagem

    exagerada pelo uso de traos finos e angulosos. Esses traos se

    repetem em cenas com outras personagens, como a representao

    de Lima Barreto, na pgina 22. No entanto, nas cenas em que Ismnia

    enlouquece, o trao suavizado, ganha nuances realistas, num processo

    de respeito pela dor da personagem:

    A delicadeza da cena e da personagem, para manuteno da

    coerncia necessria, como indica McCloud, no pode ser desenhada

    com um trao caricatural, anguloso, precisa ser representada com

    a doura e a maleabilidade das curvas, com um quase realismo, que

    humaniza e universaliza a dor da traio sentida pela moa.

    A opo pelo humor constante, atravs do trao caricatural,

    predomina na adaptao da mesma obra, feita por Lailson de

    Holanda Cavalcanti:

    (LO

    BO; A

    GU

    IAR,

    201

    0, p

    . 25)

  • A Literatura Em Quadrinhos Formando Leitores Hoje

    65

    (CA

    VA

    LCA

    NTI

    , 200

    8, p

    . 28)

  • Patrcia Ktia da Costa Pina

    66

    O trao caricatural foi mantido. No h uma cena que explore

    a dor de Ismnia, ao se saber abandonada pelo noivo. Mas,

    nesse momento, a caricatura no tem a finalidade humorstica.

    Os traos que compem o rosto de Ismnia apontam para uma

    dor profunda, contagiante. O leitor se v ligado personagem,

    pela compaixo por seu sofrimento, no compelido a rir dela. A

    coerncia interna se mantm.

    Em Jubiab, Spacca mistura trao caricatural e trao realista.

    O tom exagerado da caricatura nem sempre tem exatamente um

    objetivo humorstico. Muitas vezes, os traos enfatizados nas

    personagens funcionam para revelar seus estados interiores.

    Quando a personagem Baldo desenhada, suas marcas fisionmicas

    tnicas so aumentadas. O mesmo ocorre quando, j adulto, Baldo

    representado com msculos excessivamente desenvolvidos.

    Em duas vinhetas da pgina 16, j vivendo na casa de

    Lindinalva, percebe-se a diferena no uso do trao caricatural

    para desenhar as duas personagens. No caso de Baldo, h uma

    espcie de exagero respeitoso: o arredondamento das linhas

    infantiliza a personagem, dando-lhe ares de inocncia. No caso

    de Lindinalva, o quadrinista direciona o olhar do leitor ao angular

    os traos que desenham o rosto da menina. Ela ridicularizada

    em sua imagem. Ocorre uma inverso de valores na adaptao. A

    narrativa amadiana descreve as personagens acima, destacando o

    desajuste de Baldo e a beleza de Lindinalva. Na adaptao, ocorre

    o inverso: Lindinalva se torna risvel pela feiura, Baldo cativa o

    leitor pelas formas arredondadas e infantis.

    Adulto, Baldo impe respeito pela fora fs