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Machado de Assis: bruxarias literárias Ano XVIII boletim 06 - Maio de 2008

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Machado de Assis:bruxarias literárias

Ano XVIII boletim 06 - Maio de 2008

SUMÁRIO

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS

PROPOSTA PEDAGÓGICA .................................................................................................. 03Luiz Antonio Aguiar

PGM 1: MACHADO DE ASSIS: VIDA, OBRA, CURIOSIDADES ........................................ 06Luiz Antonio Aguiar

PGM 2: MACHADO DE ASSIS: UM MESTRE DA LITERATURA ........................................ 11Regina de Faria

PGM 3: O LEGADO DE MACHADO DE ASSIS .................................................................. 19Victor Hugo Adler Pereira

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 2 .

PROPOSTA PEDAGÓGICAPROPOSTA PEDAGÓGICAMACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS

Luiz Antonio Aguiar1

Apresentação

Machado de Assis é um autor muito mais enaltecido e estudado do que propriamente lido.

Ainda mais pelo grande público, pelo público leigo, não-erudito, pelos leitores iniciantes, por

professores e estudantes de Ensino Médio. Machado ainda tem uma aura de autor difícil; que

escreve sobre coisas que parecem distantes no tempo. E, principalmente, que escreve de uma

maneira nem sempre compreensível para o leitor atual. Nada mais equivocado.

O que quase não se fala é de Machado de Assis como um crítico maroto dos costumes

duvidosos, da política interesseira e gananciosa, que debocha das formalidades pouco ou nada

inteligentes, das pessoas vazias e sem visão de mundo. O que se fala pouco (apesar de o

apelido ser muito usado) é do Machado-Bruxo, esse que “envenena” o Português (a língua em

que sonhamos, em que aprendemos a guardar segredos no mais profundo da nossa mente)

como ninguém, que cria estruturas de narrativa (enredos) capazes de iludir até mesmo a crítica

especializada por décadas (como foi o caso de Dom Casmurro), que constrói personagens que

parecem reflexos da alma humana – e isso, às vezes, em poucas linhas, sem alardes.

Machado, como qualquer clássico, precisa de pontes de leitura, de mediadores. O professor,

esse que, por profissionalismo, tanto se esforça para levar a Literatura para dentro da sala de

aula, pode e deve ser um desses elementos de ligação. E esta série se propõe a ajudá-lo nisso,

a mostrar como explorar esse lado cativante de Machado de Assis.

Estamos no Ano Nacional Machado de Assis, em função do Centenário de sua morte. O

Bruxo vai virar série de tevê; está nos comerciais de televisão – sua caricatura anunciando

uma coleção de clássicos da Literatura Brasileira, vendida nas bancas, em todas as esquinas, e

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 3 .

cujo primeiro volume é Dom Casmurro. Vão acontecer eventos em série sobre Machado. Ele

vai virar notícia de primeira página, capa de revista, manchete, chamada de telejornal.

Temos de aproveitar essa exposição – um marketing excepcional em relação ao maior escritor

brasileiro, ecoando para toda a nossa Literatura. Não teremos, tão cedo, uma oportunidade

como essa para conquistar leitores, para interessar professores, para estimular ainda mais as

iniciativas voltadas para a formação de leitores.

Está na hora de Machado ser mais lido, muito lido, um verdadeiro best-seller, em nosso país.

E a Literatura do Bruxo tem esse potencial, se for bem divulgada para o público. É uma

excelente oportunidade de colocarmos livros de Machado de Assis nas mãos do grande

público, em suas mesinhas de cabeceira, nas estantes dos personagens de telenovelas, em filas

de banco, no metrô, na praia e, principalmente, na sala de aula.

Vamos ler Machado de Assis!

Temas que serão abordados na série Machado de Assis: bruxarias literárias, que será apresentada no Salto para o Futuro/TV Escola (SEED/MEC) nos dias 5, 6 e 7 de maio de 2008:

PGM 1 - Machado: vida, obra, curiosidades

O primeiro programa tem como objetivo seduzir o público para o lado humano de Machado,

para sua luta para vencer na vida, por meio da Literatura, por meio da beleza que se pode

construir com as palavras do nosso idioma. A obra de Machado é motivo de orgulho para

todos nós, brasileiros! Também se pretende mostrar o lado pitoresco desse homem tímido,

gago, com poucos e queridos amigos, que viveu uma história de amor terna e excepcional

com sua esposa, Carolina, que conquistou a glória de ser considerado o maior escritor

brasileiro ainda em vida, que alcançou a imortalidade, como artista, e que hoje recebe o

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 4 .

reconhecimento internacional como um dos maiores gênios da Literatura (“Um Milagre”,

como escreveu Harold Bloom).

PGM 2: Machado de Assis: um mestre da literatura

O segundo programa propõe um passeio pelos textos do escritor: crônicas, contos e romances.

Também vai apresentar alguns aspectos da crítica literária produzida por e sobre Machado de

Assis. Machado, aquele que combinou em sua Literatura o Romantismo, o Realismo, e até

prenunciou tendências que ainda estavam por vir, como o Surrealismo e o Modernismo.

Machado, que é muito mais do que a história que serve de pano de fundo de sua prosa; que é

alma, que é sutileza, que é “o mínimo e o escondido”. Machado, dos belíssimos perfis de

mulher; dos personagens solitários, que buscam obsessivamente refazer suas vidas por meio

da maneira como a recontam. O Machado prestidigitador, capaz de enganar a crítica por

décadas. Machado, o da galhofa, em “conúbio” com a melancolia.

PGM 3: O legado de Machado de Assis

O terceiro programa tem como proposta apresentar o legado do escritor. Machado, o cético

em relação ao progresso, à solenidade dos políticos brasileiros, que poucos resultados

produziam em termos de mudança de vida. Machado, que não aceitava o império da verdade,

nem do racionalismo, nem do cientificismo, vigentes em seu tempo; que desdenhava do

Positivismo, do Realismo, do Naturalismo; que ousou propor a vida como uma multiplicidade

de pontos de vista, que privilegiou os paradoxos – em vez dos axiomas – como parâmetros de

pensamento. Machado, ainda hoje, uma referência para se pensar o país, nossos tempos, a

nossa cabeça de brasileiro. Machado de Assis, que foi tantas vezes adaptado para a tevê, para

o teatro, para o cinema, para os quadrinhos e na própria Literatura.

Nota:

Escritor. Mestre em Literatura Brasileira, membro da Diretoria da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEI-LIJ. Autor de Almanaque Machado de Assis (Editora Record). Consultor desta série.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 5 .

PROGRAMA 1PROGRAMA 1

MACHADO DE ASSIS: VIDA, OBRA, CURIOSIDADES

Luiz Antonio Aguiar1

Nosso Machado de Assis

Quase nada se sabe sobre Machado de Assis, até ele completar seus 16 -17 anos. Não é à toa.

Quem se preocuparia em registrar os passos de um “moleque de morro”, que tinha todas as

chances do mundo de sucumbir a alguma das muitas doenças que empestavam a cidade? Tais

doenças levaram sua única irmã, ainda com 4 anos, a mãe, quando ele tinha dez anos, e

também a madrinha, D. Maria José de Mendonça Barroso, que era a dona da chácara em que

ele morava com o pai, quando tinha 6 anos, e onde, inclusive, o avô fora escravo. Corre a

lenda de que Machado teria adquirido seu amor pela leitura e a intimidade com os clássicos

graças a essa madrinha, que franqueava a sua biblioteca para o afilhado, enquanto a mãe dele

cuidava das tarefas da casa. Mas como poderia um garoto desenvolver esse contato com a

Literatura até a idade de 6 anos?

O Rio de Janeiro ainda mal chegara a 200 mil habitantes – cerca da metade composta de

escravos. O sistema de saneamento era o mais precário que se pode imaginar. Escravos

apelidados de tigres conduziam os dejetos em grandes vasilhas de madeira sobre a cabeça, ou

em carros abertos, para descarregá-los nos poucos canais de esgoto ou nas águas do Cais do

Pharoux, atual Praça XV. Malcheiroso, capital das epidemias, o Rio de Janeiro era

considerado uma cidade perigosa – a expectativa de vida média na cidade era de 34 anos. Ou

menos, mal chegando a 25, no caso dos mal-alimentados escravos.

Todo o transporte era feito com animais de tração e carga, ou pelos escravos, e o chique, para

as senhoras, era ser carregada numa liteira, uma armação fechada presa a uma viga, cujas

extremidades eram sustentadas pelos ombros dos escravos. A maior parte do abastecimento

das casas era feito por ambulantes, que passavam o dia percorrendo as ruas, apregoando seus

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 6 .

produtos. A iluminação era com lampiões de óleo de baleia – apenas na metade do século a

cidade ganhou lampiões a gás. Já a Rua do Ouvidor – um beco, como a chamou Machado,

muito criticamente – numa determinada época, foi o sonho, ou o delírio dos habitantes da

Corte, que ali pareciam esquecer que estavam num Brasil tropical, e desfilavam com os

fraques e cartolas, veludos, luvas e vestidos de cauda chegados da Europa, falando francês, e

em francês sendo recebidos pelos atendentes das lojas.

Esse era o mundo de Machado, autor que escreveu muito sobre seu tempo, sobre o que viu,

sobre o que pensou a respeito – mas quase nada sobre si mesmo. E o caso é que a falta de

informações sobre a infância e primeira adolescência de Machado se transforma em

angustiante lacuna para os biógrafos. Ainda mais quando se deparam com a genialidade do

escritor Machado – aí a lacuna vira mistério, para o qual se inventam as soluções mais

fantasiosas. Tudo porque não se quer aceitar que genialidade é uma singularidade do talento

humano.

Mas não há dúvida de que o mistério é parte da biografia deste que seria chamado um dia de

O Bruxo do Cosme Velho (até sobre esse apelido há lendas). Principalmente quando o

encontramos – seu primeiro registro biográfico válido – como leitor compulsivo, freqüentador

do Real Gabinete Português de Leitura, isso aos 16-17 anos, lendo em Francês e em Inglês, e

logo habilitado a revisar os textos dos maiores escritores brasileiros – como José de Alencar –

que escreviam no jornal Correio Mercantil, onde Machado conquistou, graças aos seus

méritos e conhecimentos, um emprego. Mas onde ele teria aprendido? Como conseguiu

aprender? Isso não se sabe.

Aos 16 anos, quase foi demitido do seu primeiro emprego. Era aprendiz de gráfico na

Tipografia Nacional, presidida por Manuel Antonio de Almeida (autor de Memórias de um

sargento de milícias). Maneco Almeida, como era conhecido, recebeu a denúncia de seu

capataz da gráfica, que queria a demissão do novo aprendiz, já que o rapaz escapava do

trabalho para ler, escondido, os livros que imprimia. Segundo se conta, Maneco mandou

chamá-lo, impressionou-se com Machado, e em vez de demiti-lo, não só lhe deu um aumento,

como também o introduziu nas rodas de escritores e literatos da moda.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 7 .

Daí em diante, Machado só fez progredir. Teve sua vida boêmia, na noite da Corte, tornou-se

funcionário público (fez carreira até o último nível), casou-se com Carolina, com quem viveu

uma história de amor em tudo excepcional para a época. Foi amigo dos mais importantes

intelectuais e literatos do seu tempo, reconhecido por eles como o maior autor brasileiro de

prosa de ficção, ainda em vida, amado pelo público, lido, muito lido em seu tempo, e

admirado, um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras – cargo

que exerceu até sua morte.

Ainda hoje, a ABL guarda relíquias em seu acervo que merecem ser vistas. Por exemplo, na

Biblioteca de Machado de Assis (na verdade, parte dela), vemos as obras completas de

Shakespeare, um de seus autores prediletos, e também obras de Schopenhauer (1788 -1860),

filósofo alemão que poucos liam, no Brasil de cabeça positivista, mas que encantava Machado

com sua visão da realidade como uma representação da imaginação humana. Outro exemplo é

o quadro A dama do livro – Machado se apaixonou pela pintura, mas achou que era cara

demais para suas posses. Então, alguns amigos se cotizaram para lhe dar o quadro de presente.

Como agradecimento, Machado escreveu para eles O soneto circular. Há ainda o Caldeirão

de Bronze, que ficava instalado do lado de fora do sobrado do Cosme Velho, 18 (que foi

demolido, e do qual só resta uma placa). Há quem conte que, nesse caldeirão, Machado

queimava papéis velhos – cartas, manuscritos. Os vizinhos, estranhando o hábito, teriam lhe

dado o apelido de O Bruxo do Cosme Velho. Assim, se o apelido não foi cunhado pelo poema

de Carlos Drummond de Andrade (Para um bruxo com amor, no final da década de 50),

surgiu justamente por causa desse caldeirão. Há também o leito conjugal de Machado e

Carolina, que ele, depois do falecimento da esposa, exigia que ficasse, no lado dela, sempre

arrumado, como se ela ali viesse deitar-se à noite. Há a estátua de Machado de Assis, na

entrada do Petit Trianon, em bronze e tamanho natural; a pintura de Machado com o ramo de

Tarso (e o próprio Ramo de Tarso, presente de Joaquim Nabuco); o Mural de Glauco

Rodrigues, a Biblioteca de Machado (parte dela), a escrivaninha onde ele escrevia, o seu

amado tabuleiro de xadrez e as peças, um dos únicos jogos desse tipo do mundo; manuscritos

do próprio punho de Machado, etc.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 8 .

Há, enfim, suficientes atrativos nessa pessoa reservada para que o público venha a vê-lo com

simpatia, como um ser humano, em seu tempo, em seu contexto, como esse Machado que

morreu cercado de amigos, abalado pelas saudades de sua Carolina (que partira 4 anos antes),

e cujas últimas palavras foram: “A vida é boa”.

Uma palavra sobre quem quer se iniciar na obra de Machado: comece pelas crônicas.

Machado as escreveu desde cedo, produziu mais de 600 delas, e há algumas primorosas. São

textos mais curtos, mais fáceis, temperados com muito deboche, muita ironia, e neles há tudo

o que faz de Machado um escritor genial: a sintaxe elegante, “envenenada” (e nada como

estas crônicas para apurarmos nosso ouvido para isso), personagens e tramas realmente...

bruxuleantes. Os primeiros, desses de devassar os segredos da alma humana; os outros, bem

machadianos, capazes de desafiar e mesmo iludir o leitor, seja ele crítico ou leigo.

Enfim, é importante dizer que qualquer povo do mundo teria orgulho de ter Machado de Assis

como um de seus compatriotas. Um menino descendente de escravos, mulato, atormentado

desde criança por uma enfermidade que, provavelmente, era a epilepsia (que lhe causava

extremos embaraços, quando tinha um ataque no meio da rua ou na presença de pessoas

desconhecidas), e ainda tímido, gago, que conseguiu, primeiramente, sobreviver, e depois, a

glória e a imortalidade, graças ao seu trabalho com nosso idioma – esse mesmo idioma que

compartilhamos com ele! –, criando uma obra que é toda a glória da arte de transformar a

alma humana, seus meandros, sua dimensão universal, em Literatura. Este Machado não

poderia ser mais nosso.

Bibliografia

AGUIAR, Luiz Antonio. Almanaque Machado de Assis – vida, obra, curiosidades e

bruxarias literárias. Rio de Janeiro: Record, 2008.

CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis, em Vários escritos. São Paulo:

Livraria Duas Cidades, 1977.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 9 .

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis, o romance

machadiano e o público de Literatura no século 19. São Paulo: Nankin

Editorial/Edusp, 2004.

MATOS, Mário. Machado de Assis. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre;

Companhia Editora Nacional, 1939.

MEYER, Augusto. Ensaios escolhidos. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2007.

MIGUEL PEREIRA, Lúcia. Machado de Assis. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São

Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1935 (6a edição, 2002).

PIZA, Daniel. Machado de Assis um gênio brasileiro. 2a ed. São Paulo: Imprensa

Oficial, 2006.

PUJOL, Alfredo. Machado de Assis, Curso literário em sete conferências na Sociedade

de Cultura Artística de São Paulo. Rio de Janeiro: ABL; São Paulo: Imprensa

Oficial, 2007.

Sites:

Espaço Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras:

http://machadodeassis.org.br/abl_minisites/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?

sid=42&UserActiveTemplate=machadodeassis

Fundação Casa de Rui Barbosa: www.machadodeassis.net

Nota:

Escritor. Mestre em Literatura Brasileira, membro da Diretoria da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEI-LIJ. Autor de Almanaque Machado de Assis (Editora Record). Consultor desta série.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 10 .

PROGRAMA 2

MACHADO DE ASSIS: UM MESTRE DA LITERATURA

Por que Machado de Assis foi sempre considerado um dosPor que Machado de Assis foi sempre considerado um dos maiores escritores brasileiros?maiores escritores brasileiros?

Regina de Faria1

Com exceção de Sílvio Romero2, que publicou em 1897 um livro para “provar” que a glória

literária concedida a Machado de Assis por seus contemporâneos era excessivamente

exagerada e, portanto, equivocada, desde o século XIX o autor de Memórias póstumas de

Brás Cubas tem sido considerado um dos maiores escritores brasileiros, melhor dizendo, tem

sido considerado um dos maiores escritores em língua portuguesa, equiparado, na época, a

Eça de Queirós. Porém, a favor do nosso Machado, pode-se dizer que, enquanto o estilo do

romancista português se ajustava bem ao espírito naturalista, dominante então, o de Machado,

resistente às modas literárias, mostrava-se “enigmático” 3, provocando sucessivas e diferentes

interpretações ao longo do tempo4. Como observa Antonio Candido, a obra de um grande

escritor, por ser extremamente rica de significado, permite leituras múltiplas. Cada geração de

críticos que dela se ocupa estima a obra por motivos diversos, enfatizando nela aspectos

distintos que satisfazem às “suas obsessões e às suas necessidades de expressão”5. Revelada

através de uma produção variada – crítica literária, crônica, conto, romance, poesia, teatro –, a

pertinência das considerações acerca da literatura, a agudeza na investigação dos mistérios da

alma humana e a originalidade na linguagem e na narrativa conferem a ela a singularidade

decantada há um século e meio, justificativa suficiente para tornar seu autor um dos expoentes

do panteão (nacional e internacional) dos escritores oitocentistas.

Neste texto, procurar-se-á explicar por que Machado de Assis foi e é considerado ainda um

dos maiores escritores de língua portuguesa pela crítica em geral6. Como os argumentos que

fundamentam a resposta variam com o decorrer dos anos, será apresentada a recepção crítica

da obra ficcional machadiana de dois momentos: a do século XIX e a atual, buscando-se

articular a crítica com os textos.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 11 .

Julgado melhor romancista e contista que poeta, o que de imediato chamou a atenção da

crítica do século XIX em relação a Machado de Assis foi o seu estilo, concebido como “boa

linguagem”, a sua ironia, associada ao humour anglo-saxão, o seu pessimismo, certa

tendência filosofante, a construção de suas personagens e, finalmente, a resistência de sua

obra ao critério de nacionalidade – critério esse caro a seus contemporâneos.

Focalizando o estilo, há certa unanimidade, no século XIX, de se apontar o cuidado formal,

constatado tanto no uso correto e elegante da língua, como no “gosto puramente literário”

bem de acordo com o temperamento castiço do autor, cujas composições agradariam “as

moças” 7, segundo Araripe Júnior. Numa época em que dominava a descrição minuciosa ao

gosto naturalista, a prosa ficcional machadiana recusava-se “à reprodução fiel e servil das

coisas mínimas e ignóbeis” 8, como diria o próprio Machado em sua crítica a Eça de Queirós,

e mantinha-se dentro dos limites da idealidade da arte, da verdade estética9. Araripe Júnior,

por exemplo, em sua análise ao romance Quincas Borba, observou que Machado jamais

colocaria sua heroína numa cena de “canibalismo amoroso” ou no “desespero de uma

burguesa que não soube conter os arrancos da luxúria”, como faria Zola, mesmo que essa

heroína fosse Sofia, personagem caracterizada pelo crítico como “desonesta, senão uma

descarada” 10. Daí, Machado de Assis ser visto como um clássico.

Avesso a qualquer modismo literário, conforme declara José Veríssimo, no ensaio “O Sr.

Machado de Assis, poeta” 11, ele escaparia a qualquer tipificação que estivesse de acordo com

as escolas artísticas em voga – não teria sido propriamente um romântico, ou parnasiano ou

naturalista – o que lhe conferiria grande originalidade. Segundo José Veríssimo, o

humorismo, a ironia seriam, talvez, os traços singulares da obra ficcional machadiana, mas

tais traços não constituiriam uma escola ou uma tendência literária, no máximo, poderiam ser

identificados “como um modo de ser do talento” 12. Por outro lado, essa resistência da obra a

uma leitura guiada por marcas das escolas literárias tornaria Machado de Assis um escritor

sempre contemporâneo, moderno, como se pode ler em ensaio escrito poucos anos mais tarde,

incluído depois em Estudos de literatura brasileira: 1ª série13. Nesse mesmo ensaio,

Veríssimo declara que, além de moderno, o autor de Quincas Borba seria o “único escritor

verdadeiramente geral” de nossa literatura – e aí estaria “a mais alta distinção” de seu gênio,

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 12 .

“sem deixar por isso de ser brasileiro” 14. Daí, conforme teria afirmado em diversos outros

momentos15, o critério nacionalista se mostrar insuficiente para a apreciação da obra, pois

personagens e situações narradas, antes de serem “brasileiras”, seriam “universais” 16.

Num período em que a nacionalização da literatura era uma das questões fundamentais à

intelectualidade, Machado é um dos primeiros a pôr em xeque o critério de nacionalidade

plasmado pela crítica romântica, para produção, julgamento e recepção da literatura brasileira.

Isso se dá tanto nos seus ensaios críticos, em que desarticula o dogmatismo estreito que

orientaria a argumentação da intelectualidade brasileira oitocentista em prol da especificidade

da produção brasileira, liberando a produção romanesca brasileira, inclusive a dele, da esfera

localista, como em sua prosa, em que o elemento pitoresco e a cor local, quando presentes,

surgem intencionalmente diminuídos, desfocados. No famoso ensaio crítico de 1873, “Notícia

sobre a atual literatura brasileira: instituto de nacionalidade”, publicado um ano depois de

Ressurreição, romance de estréia, Machado questiona a opinião que apenas reconheceria

como nacionais as obras que tratassem de assuntos locais e, ao mesmo tempo, ressalta o

quanto de empobrecedor tal juízo poderia ser para a literatura brasileira. Para ilustrar sua

argumentação, usa dois autores: um nacional, Gonçalves Dias, outro inglês, Shakespeare. Em

relação a Gonçalves Dias, observa que, se de um lado sua obra seria composta por Os

Timbiras e outros poemas americanos, de outro, seria formada por poemas cujos temas eram

universais. Por acaso seriam esses últimos excluídos da literatura brasileira? Para tornar a

questão mais complexa, pergunta se Hamlet, Otelo, Júlio César ou ainda Romeu e Julieta

teriam a ver com a cena ou a história inglesa, “e se, entretanto, Shakespeare não [seria], além

de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês”? Respondendo, declara:

(...) O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo (grifo meu),

que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no

tempo e no espaço. Um crítico notável da França, analisando há tempos um escritor

escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem

falar sempre do tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e

explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do

que se fora apenas superficial17.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 13 .

Machado de Assis propõe a interiorização do país e do tempo para a busca de uma feição

nacional “que não significasse confinamento temático e superficialidade artística”, como diria

Roberto Schwarz18, e garante à literatura brasileira e à sua produção ficcional o direito à

universalidade das matérias, por oposição ao ponto de vista que “só reconhec[ia] espírito

nacional nas obras que trata[ssem] de assunto local” 19. De modo oblíquo, a fórmula do

nacionalismo interno tanto notifica ao poeta brasileiro que compor um poema nacional não é

inserir em “seus versos muitos nomes de flores ou aves do país”, como, simultaneamente,

questiona a estética realista, já que inventariar a realidade externa “poderia dar [à obra] uma

nacionalidade de vocabulário e nada mais” 20. Ao problematizar a crítica romântica, liberou a

produção romanesca brasileira, inclusive a dele, da esfera localista; ao se descolar do

Realismo, estética dominante na segunda metade do século XIX, defendeu (e praticou em

romances e contos) o “exercício consciente e duplo da imaginação e dos meios de expressão

de que dispõe todo e qualquer romancista”, conforme chamou a atenção Silviano Santiago,

em ensaio escrito em 196921. Em sua obra ficcional, essa atitude pode ser comprovada no

narrador nada confiável e no seu vaivém narrativo, na fragmentação da composição, na tensão

entre o dito e o não-dito, traduzida por gestos, olhares, cochichos e entrelinhas, que abrem

para a ambigüidade, para a pluralidade de sentidos do texto machadiano. Paralelamente ao

que acontece, há sempre o que parece que está acontecendo. Esse estilo de “esquivas”, “de

ginga”, “de capoeira verbal” 22 seria orientado por um princípio que Luiz Costa Lima chama

de “constelacional” 23, que, não se limitando à “versatilidade do narrador” – achado analítico

de Roberto Schwarz de grande rentabilidade –, se multiplicaria em sua obra. Segundo Costa

Lima, essa escrita regulada pelo princípio constelacional se configuraria a partir de alguns

traços: por um lado, verificar-se-ia a adoção de uma linguagem de base auditiva24, isto é, uma

linguagem leve, que dá ao texto machadiano um tom de conversa ao pé de ouvido; por outro,

tal adoção seria proposital, isto é, a auditividade em Machado é consciente e deliberadamente

praticada. E continuando, Costa Lima afirma:

O encadeamento proposicional, embora sintaticamente bem estabelecido, é propositalmente

solto. Mas, por isso mesmo, seu texto não tem nada de frouxo. Ao contrário, a leitura atenta

mostra-o conduzido por um princípio que chamaríamos constelacional, radicalmente

distinto de uma argumentação de cunho linear – cujo modelo seria “se a, b, c, então d”. Por

princípio constelacional entendemos a conexão de blocos proposicionais diversos, que,

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 14 .

entretanto, se interligam por um motivo comum; este motivo os “ilumina” por uma luz

diversa da que seria apropriada a cada bloco25 [grifo do autor].

Essa linguagem moldada a partir do jogo de esquivas, modo pelo qual Machado constrói a

verossimilhança, impõe uma tensão em sua narrativa, responsável pela plurivalência de

sentidos. Dessa maneira, a narrativa machadiana, ao escapar de um entendimento monolítico

ou de uma explicação rotineira, como no conto “Singular ocorrência”, em que a “nostalgia da

lama” é insuficiente para dar conta do comportamento da personagem feminina – Marocas26 –,

exige de seu leitor o uso de “um par de lunetas” para que lhe seja possível perceber “o que for

menos claro ou totalmente escuro” na obra27. O leitor é, portanto, lançado num terreno

movediço, na medida em que o sentido, se nunca está garantido, se dobra e se desdobra

indefinidamente. Há sempre outras significações em jogo. De acordo com o clima, com a

atmosfera, com as forças da ocasião, as coisas, as personagens, os sentidos mudam. Tal

multiplicidade de significação, ornada “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”,

atualiza-se no lapso entre o que é explicitado e o que é sugerido. Nada é permanente; nada é

garantido. Exemplos? Em “Missa do Galo”, de acordo com o narrador em primeira pessoa28,

bem à maneira de Bentinho, de Dom Casmurro, Conceição de simpática passa a lindíssima;

se, repetidas vezes, a chama de “boa”, “santa”, ao final, registra, sem qualquer precisão

temporal, que ouviu “mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido”,

levantando no leitor uma suspeita quanto à santidade da heroína.

Em “Identidade” 29, o narrador em 3ª pessoa nos informa que o faraó Pha-Nohr sente percorrer

“um frio na espinha”, ao perceber que construíra uma armadilha para si próprio. Vamos à

história: depois de um longo período de melancolia, Pha-Nohr, faraó de Mênfis, decidiu trazer

à cidade, a fim de conhecer, um escriba, Bachtan, que seria seu sósia. Ao encontrá-lo, não

apenas ele, mas todos ficaram surpresos, já que “juntos só se podiam reconhecer pelos

vestidos, porque o escriba, se não tinha majestade e grandeza, trazia certo ar tranqüilo e nobre,

que as supria. Eram mais do que dois homens parecidos; eram dois exemplares de uma só

pessoa” 30. Decidiu – e ordenou sem testemunhas – que, temporariamente, sem definir por

quanto tempo, trocariam de papéis: o escriba governaria e o faraó ganharia o mundo; viveria

como qualquer dos mortais de seu reino. Depois de mil peripécias e decepções com os

homens, Pha-Nohr resolveu voltar para sua cidade. Ao chegar, foi logo reconhecido como o

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 15 .

“menecma” do faraó que estivera por lá há algum tempo. Entretanto, agora, a confusão não

seria mais possível de acontecer, pois, se os rostos continuavam semelhantes, o corpo do falso

faraó engrossara. Pha-Nohr estremeceu, mas resolveu ir assim mesmo ao palácio para

denunciar o impostor. Leiamos o texto:

– Sai daí, escriba, conclui; o teu papel está acabado.

Bachtan riu-se para os outros, os outros riram-se e o paço estremeceu com a gargalhada

universal. Pha-Nohr fechou as mãos e ameaçou a todos; mas a corte continuou a rir.

Bachtan, porém, fez-se sério e declarou que esse homem sedicioso era um perigo para o

Estado. Pha-Nohr foi ali mesmo preso, julgado e condenado à morte. Na manhã seguinte,

cumpriu-se a sentença diante do faraó e grande multidão. Pha-Nohr morreu tranqüilo,

rindo do escriba e de toda gente, menos de Chamarion: “Bela Chamarion, palmeira única,

posta ao sol do Egito...” A multidão, logo que ele expirou, soltou uma formidável

aclamação:

– Viva, Pha-Nohr!

E Bachtan, sorrindo, agradeceu31.

Esse ano, em que se homenageia o autor pelo centenário de sua morte, é um momento de

extrema vitalidade para a obra de Machado de Assis, na medida em que, ao suscitar novas

leituras críticas, novos significados a ela atribuídos entrarão em circulação. Como já nos

ensinou Wolfang Iser, o significado do texto literário apenas se concretiza a partir do leitor,

isto é, a partir da interação entre o leitor e o texto32. Nesse sentido, é fundamental o papel do

professor, sobretudo o de Português e de Literatura, nas escolas, como agente de mediação

entre esse novo leitor em formação e a produção textual do maior escritor brasileiro do século

XIX. Para que a tarefa seja bem sucedida, é fundamental nos debruçarmos sobre a rica e

variada produção de Machado, munidos de “um par de lunetas”, conforme nos aconselha o

narrador de Esaú e Jacó.

Notas:

Professora do Instituto de Humanidades da Universidade Cândido Mendes.

2 ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Campinas, SP: UNICAMP, 1992. p.32-33.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 16 .

3 CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: _________. Vários escritos. 2 ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1987. p. 17.

4 Machado de Assis estréia como escritor na Marmota Fluminense, jornal dirigido por Paula Brito, em 06/11/1855, com o texto poético “A palmeira”. Cf. Stegagno-Picchio, Luciana. História da literatura brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. p. 277.

5 CANDIDO, Antonio. Op.cit. p. 18.

6 Cf. “Para nós, Machado de Assis é um literato puro, e, neste sentido, diríamos com Mário de Andrade, não o maior romancista, não o maior poeta, não o maior contista, mas, sem dúvida, o maior escritor do Brasil: e de todos os tempos.” Stegagno-Picchio, Luciana op. cit. p. 292-293. Outros exemplos: John Gledson, Por um novo Machado de Assis (2006), Machado de Assis: Reflections on a Brazilian Master Writer, editado por Richard Graham (1999).

7 ARARIPE JÚNIOR. Quincas Borba [Publicação na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 e 16 de janeiro de 1892]. In: ________.Obra crítica de Araripe Júnior (1888 – 1894). v. II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Casa de Rui Barbosa, 1960. p. 292 -293.

8 MACHADO DE ASSIS. Eça de Queirós: O Primo Basílio. In: ________. Obra completa. v. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. p. 904.

9 MACHADO DE ASSIS. Op. cit. p. 913.

10 ARARIPE JÚNIOR. Op.cit. p. 295-296.

11 VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura brasileira: 4ª série. p. 55.

12 VERÍSSIMO, José. O Sr. Machado de Assis. In: _______. Estudos brasileiros, segunda série (1889 – 1893). p. 199.

13 VERÍSSIMO, José. Alguns livros de 1895 a 1898. In: _______. Estudos de literatura brasileira: 1ª série. Introdução de João Alexandre Barbosa. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. p. 156.

14 VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura brasileira: 1ª série. p.160.

15 VERÍSSIMO, José. Estudos brasileiros, segunda série (1889 – 1893). p. 198.

16Sílvio Romero refutaria a tese de José Veríssimo de que ler Machado sob a clave do critério de nacionalidade seria conferir à obra uma posição inferior quando comparada a outras produções nacionais. Cf. “Machado de Assis não sai fora da lei comum, não pode sair, e ai dele, se saísse. Não teria valor. Ele é um dos nossos, um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho”. ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Campinas; São Paulo: Editora da UNICAMP, 1992. p.66.

17 ASSIS, Machado de. Obra completa. v. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. p. 804.

18 SCHWARZ, Roberto. Seqüências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 151.

19 ASSIS, Machado de. Obra completa. v.III. p. 803.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 17 .

20 ASSIS, Machado de. Obra completa. v.III, p. 807.

21 SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos (ensaios sobre dependência cultural). São Paulo: Perspectiva, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978. p. 30.

22 LIMA, Luiz Costa. Machado: mestre de capoeira. In: Intervenções. p. 327-339.

23 LIMA, Luiz Costa. Machado: mestre de capoeira. In: Intervenções. p. 327-339.

24 Segundo Costa Lima, o discurso de base auditiva é aquele que, embora fundado “em moldes escriturais”, arrebataria o receptor não por demonstrar claramente o desenvolvimento das premissas em que se sustenta, mas por “conter uma palavra empolgada, entusiasta e logo sentimental, que entrasse mais pelos ouvidos do que exigisse inteligência”. Através desse traço auditivo, característico de nossa cultura e, conseqüentemente, de nossa prática discursiva, podem ser entendidos tanto a debilidade teórica e o dogmatismo estreito de nossa produção crítica, o autoritarismo e o gosto pelas polêmicas de nossos intelectuais oitocentistas (gosto esse que ainda fascina alguns grupos contemporâneos), como certa resistência à reflexão em nosso meio acadêmico em geral. Porém, o fato de ser proposital, a auditividade em Machado faz com que a sua linguagem, não transparente, se opusesse “à linearidade descritiva a seguir, como fiel sombra verbal, os contornos das paisagens e das instituições”. Cf. LIMA, Luiz Costa. Machado: mestre de capoeira. In: ______. Intervenções. p. 327-339. ______. Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil. In: _______. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. p.3-29. ________ Letras à mingua. Mais! Folha de São Paulo, 27 de agosto de 2006, p.6.

25 LIMA, Luiz Costa. Machado: mestre de capoeira. In: ________. Intervenções. p. 334 -335.

26 ASSIS, Machado de. Singular ocorrência. In: _______. Histórias sem data. [1884] In: ______. Obra completa. v. II, p. 390-393.

27 ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. [1904] In: ________. Obra Completa. v. I, p.966.

28 ASSIS, Machado de. Missa do Galo. In: ________ Páginas recolhidas [1899]. In: _______. Obra completa. v. II. p. 605-611.

29 ASSIS, Machado de. Identidade [GN. 14 mar. 1887.]. In: ________. Outros Contos. In: Obra completa. v.II. p.1064-1071.

30 ASSIS, Machado de. Op. cit. p.1.065.

31 ASSIS, Machado de. Op. cit. p.1.071-1.072.

32 ISER, Wolfang. A interação do texto com o leitor. In: JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. (Coordenação e tradução de Luiz Costa Lima). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Cf. BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. Literatura e teoria do efeito estético. In: _______. Tópicos de teoria para a investigação do discurso literário. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. p.162-163.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 18 .

PROGRAMA 3

O LEGADO DE MACHADO DE ASSIS

Machado de Assis em diálogo com nossa épocaMachado de Assis em diálogo com nossa época

Victor Hugo Adler Pereira1

Como todo autor transformado em referência central de uma cultura, as leituras e

apropriações de Machado de Assis passaram (e passarão) por diferentes tendências ou

modismos. O exemplo mais eloqüente desse fenômeno são as diferentes leituras reveladas em

adaptações da obra de William Shakespeare: transformado no século XIX em modelo ou

precursor do ideário romântico, sendo ressuscitado em poemas de Castro Alves ou nas

encenações adaptadas de suas tragédias de João Caetano, e tornado o “centro do cânone”

literário ocidental por um crítico estadunidense influente como Harold Bloom2. Na versão dos

românticos, a intensidade emocional que rompia os preceitos clássicos, o lirismo e o vigor da

obra serviam de referência que autorizava os caminhos trilhados pela cultura do século XIX;

no caso atual do crítico norte-americano, considerando-o precursor de todas as contribuições

vistas como decisivas para o pensamento moderno: “Ele nos torna anacrônicos por que nos

contém; não podemos classificá-lo. Não podemos iluminá-lo com uma nova doutrina, seja ela

o marxismo, o freudismo ou o ceticismo lingüístico demaniano” 3.

Transformado na mais consagrada referência literária do país, Machado de Assis, é,

coincidentemente, cotado por Harold Bloom como um gênio brasileiro:

Leio em português com alguma fluência. Machado de Assis figura entre meus autores

favoritos de língua portuguesa. Considero Machado o maior gênio da literatura brasileira do

século XIX. Machado reúne os pré-requisitos da genialidade. Possui exuberância, concisão

e uma visão irônica ímpar do mundo4.

A obra de Machado de Assis, no Brasil, por sua posição análoga à obra de Shakespeare, no

mundo, também tem sido submetida aos efeitos do grande investimento imaginário de

diferentes épocas e leitores individuais. Respondendo ao desafio de discutir o legado de

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 19 .

Machado de Assis, tentei realizar nesse texto um panorama das “leituras” de sua obra,

considerando como tal as abordagens críticas, como as adaptações da linguagem escrita para a

teatral ou cinematográfica.

Na recepção de Machado e na construção de sua imagem pública entre seus contemporâneos

teve influência a sua atividade de cronista jornalístico, como observou Beatriz Resende:

Machado de Assis foi quem, mais do que qualquer outro, contribuiu, porém, para que a

crônica, ainda que guardando um tom de coloquialidade, próximo ao leitor – ou prezada

leitora – passasse a se ocupar dos principais fatos de vida do país e da cidade, inclusive o

mundo da política. O prestígio da crônica irá garantir-lhe, nos anos de consolidação da

República, mais espaço na imprensa, e o surgimento ou transformação de revistas diversas

farão com que a contribuição de cronistas determine o perfil político das múltiplas

publicações que circulavam5.

Vale lembrar que Machado exerceu, continuamente, a atividade de cronista na imprensa

carioca entre 1855 e 1897 e vem daí essa identificação do escritor como cronista da cidade do

Rio de Janeiro, crítico de seus problemas, seus modismos, e daquilo que dela se refletia no

restante do país, em sua condição de sede da monarquia brasileira ou Capital da recém-

proclamada República. Esse tipo de associação do escritor à cidade repercute na recepção

crítica e no senso comum, construindo a expectativa de encontrar, em sua obra, o registro de

costumes e de locais característicos da cidade, nesse momento de transição em que se

instaurava um projeto modernizador que iria reconfigurá-la totalmente na passagem para o

século XX, graças à atuação de Pereira Passos.

Nessa abordagem dos fatos cotidianos, Machado de Assis encarava e assumia os limites do

gênero, qualificando-o como “um confeito literário sem horizontes vastos” ou “uma frutinha

de nosso tempo” 6. Tal percepção da natureza do gênero reflete-se na sua atividade de cronista,

pelo tom adotado na crítica diante de temas ainda atuais, como a inoperância dos políticos, ou

o comportamento grosseiro da população carioca. A crítica se transforma numa meditação

desencantada sobre os costumes e reações do ser humano, o que atenua sua mordacidade, já

que não atinge incisivamente um alvo preciso. Essa atitude contrasta, por exemplo, com a de

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 20 .

Lima Barreto, atento, em suas crônicas, aos acontecimentos relacionados a questões que

afetavam sua condição de negro e morador do subúrbio de Todos os Santos e, portanto, crítico

mais agudo dos efeitos nefastos da mentalidade modernizadora, porém racista e excludente,

das elites cariocas. Machado, ao contrário, ao abrir a possibilidade de ver, nas mazelas de seus

contemporâneos, fraquezas universais e eternas da humanidade, erigia um lugar acima de

qualquer reação passional dos que se sentissem afetados por suas considerações filosofantes

ou seu ameno desencanto com a vida cotidiana.

Ao mesmo tempo em que denota altivez em relação ao meio social, essa atitude de desencanto

terá uma função importante na prosa ficcional de Machado, em sua maturidade como escritor,

naquela que se considera como segunda fase de sua produção, a partir da publicação do

romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880). O desencanto diante do declarado

progresso alcançado pela modernização torna-se combustível poderoso para sua análise crítica

de uma parcela da sociedade carioca, encantada com as transformações que, gradativamente,

iam-se implantando no país.

O mestiço Machado de Assis conseguiu, com argúcia e precaução, realizar a difícil peripécia

da ascensão social na sociedade brasileira da segunda metade do século XIX. Fundou a

Academia Brasileira de Letras, em 1897; anteriormente, entre 1862 e 1864, atuou no

Conservatório Dramático do Império, instituição destinada a preservar o nível da produção

teatral, mas também com um caráter censório, admitido sem grandes reservas por Machado de

Assis: “A literatura dramática tem, como todo o povo constituído, um corpo policial, que lhe

serve de censura e pena: é o conservatório. Dois são, ou devem ser, os fins dessa instituição: o

moral e o intelectual” 7.

Machado de Assis transformou-se em referência quanto à preservação de valores canônicos

na vida cultural e muito da recepção crítica e do senso comum quanto à sua obra derivam de

um elogio à sua pretensa neutralidade ou de sua atitude, que parece revelar um equilíbrio

filosófico muito ao gosto do espírito cordial brasileiro: um neto de escravos que tinha escrito

apenas um conto mais contundente sobre a escravidão (Pai contra Mãe); um homem de

origem humilde que dominava e utilizava, todo o tempo, as formas mais cultivadas da língua.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 21 .

Essa atitude cautelosa e conciliatória certamente dificultou seu desenvolvimento como

dramaturgo. O teatro de Machado é anêmico, com situações convencionais e um moralismo

arcaizante, que remete a experiências neoclássicas francesas. Enfim, um teatro de sala de

visitas, que contrasta com a capacidade analítica revelada em seus romances e contos. Nestes,

o desafio de enfocar as contradições na formação cultural brasileira e os paradoxos de uma

sociedade que tentava conciliar o escravismo com o ideário liberal europeu provocava frestas

na fatura das obras. Um desequilíbrio, de grande rendimento estético e ideológico, que se

instaura na prosa de ficção a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando o autor

abandona o modelo romântico de narrativa com enredos coroados pela conciliação entre a

cobiça, a vaidade e a ambição e o ideal, os conflitos aplacados pela moral patriarcal. Alfredo

Bosi detecta uma mudança profunda na forma do conto machadiano, a partir de uma

radicalização de sua perspectiva filosófica:

À medida que cresce em Machado a suspeita de que o engano é necessidade, de que a

aparência funciona universalmente como essência, não só na vida pública, mas no segredo

da alma, a sua narração se vê impelida a assumir a perspectiva mais distanciada e, ao

mesmo tempo, mais problemática, mais amante do contraste. Rompe-se por dentro o ponto

de vista ainda oscilante dos primeiros contos. A ambigüidade do eu-em-situação impõe-se

como uma estrutura objetiva e insuperável8.

E acrescenta mais adiante:

Vejo nos contos maduros de Machado, escritos depois de franqueada a casa dos quarenta

anos, o risco em arabesco de “teorias”, bizarras e paradoxais teorias, que, afinal, revelam o

sentido das relações sociais mais comuns e atingem alguma coisa como a estrutura

profunda das instituições9.

Roberto Schwarz credita essa “virada” na obra de Machado a uma “desilusão da desilusão”

com a modernidade. Machado se desilude da possibilidade de estabelecer uma trincheira

contra a falsidade do ideário moderno pela volta ao passado, tendência que se manifestara em

sua ficção anterior pela defesa do conservantismo paternalista. Afirma Schwarz:

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 22 .

E, de fato, um dos sinais da segunda e grande fase no romance de Machado será a

reintegração abundante do temário liberal e moderno, das doutrinas sociais, científicas, da

vida política, da nova civilização material – naturalmente à sua maneira10.

Essa atitude desiludida com as utopias e as promessas de emancipação modernas pode ser

aproximada às desilusões do chamado pós-modernismo, o que garante o sucesso de Machado

de Assis e sua estabilidade como centro do cânone literário brasileiro e referência cultural

infensa a qualquer irreverência ou julgamento negativo. Agrada à contemporaneidade a

eficiência com que o autor seduz o leitor, a competência com que sustenta o riso distanciado

que se julga acima de qualquer paixão e coloca num mesmo plano todas as perspectivas sobre

a realidade, enquadrando-as como “teorias” inconseqüentes.

Nos palcos do século XIX e início do século XX, no Brasil era, no entanto, uma experiência

especialmente arriscada apresentar as mazelas e contradições da sociedade brasileira. Lembre-

se, por exemplo, de que se tornou um caso de polícia a apresentação da peça de José de

Alencar As Asas de um Anjo, em 1858, mesmo após a aprovação pelo Conservatório

Dramático, pelo fato de levar à cena situações em que ficava clara a hipocrisia das famílias

abastadas da sociedade carioca diante da prostituição. A proibição de apresentar a peça levou

o autor a decidir discutir o mesmo tema e pintá-lo com cores muito mais fortes e sob

perspectiva crítica muito mais contundente no romance Lucíola, conforme o próprio Alencar

explica a uma suposta leitora no Prefácio desta obra publicada em 1862. Ainda durante a

ditadura militar foi possível constatar vários casos em que o tratamento era muito mais

rigoroso diante da apresentação teatral de uma situação considerada “subversiva” ou

“atentatória aos bons costumes” que o concedido às obras escritas11.

O interesse de Machado de Assis pelo teatro é patente, segundo observaram muitos críticos

em traços estruturais em suas obras. Algumas observações de Sônia Brayner propiciam

detectar afinidades na produção de Machado de Assis com dois tipos de concepção de teatro:

a romântica e aquela introduzida por dramaturgos nórdicos, como Ibsen e Strindberg, e que se

tornaram diretrizes para a modernização teatral. Um desses aspectos destacados pela

estudiosa nos contos de Machado publicados até 1880: “Fortemente elaborados em torno do

diálogo de personagens, é através dessa dramatização que eles se resolvem como tipos sociais

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 23 .

e contorno caracteriológico” 12. No entanto, a partir de 1880, podem-se reconhecer elementos

que se relacionam mais de perto com o modelo de teatro moderno, que avança cada vez mais

para a superação do modelo de drama tradicional, constituído pela resolução de uma tensão ou

conflito levado ao clímax. A partir de então, nas peças dessa dramaturgia que se foi tornando

influente nos últimos decênios do século XIX, assim como nos contos machadianos, da

segunda fase de sua produção, ocorrem “deslocamentos da ação para fixação de uma

atmosfera intersubjetiva, na qual a máxima ambigüidade da palavra é elemento primordial de

construção ficcional” 13.

Cabe indagar se até mesmo em seus contos com mais afinidade com o gênero fantástico não

existe uma realização do que poderia ser considerado uma ágil e criativa concepção de texto

dramatúrgico, que não foi assumido como tal devido ao reconhecimento de Machado das

limitações culturais e ideológicas a que estava submetido o teatro brasileiro. Nesse sentido,

observem-se as considerações abaixo de Sonia Brayner:

O caráter demonstrativo do conto machadiano é amplamente explorado quanto o autor

assume definitivamente a tradição da sátira menipéia14, entrando para o reino aberto da

fantasia. A representação da realidade perde seus compromissos com um esquema realista,

pois os personagens são idéias corporificadas, oferecendo a oportunidade de transmitir

projetos-ideológicos em discussão. É o Machado-pensador que aí vemos, captando a

interação de problemas de sua época e transformando em imagens matrizes o

relacionamento de vozes de seu século15.

Diferentemente do que ocorreu com obras de alguns de nossos mais renomados escritores,

como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, que tiveram obras cujas

versões se tornaram grandes referências para o cinema brasileiro (respectivamente Vidas

Secas, São Bernardo; A Hora e a Vez de Augusto Matraga; e A Hora da Estrela), a maior

parte das adaptações cinematográficas da obra de Machado de Assis não obteve grande

reconhecimento da crítica ou do público.

Separados por longo intervalo de tempo, os filmes Capitu, lançado em 1967, de Paulo César

Saraceni, e Dom, de Moacyr Góes, de 2003, não conseguiram trazer grandes contribuições

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 24 .

para enriquecer o caminho que o cinema brasileiro vem trilhando de diálogos e aproximações

com a literatura.

O filme de Nelson Pereira dos Santos e Hugo Sukman, Asylo Muito Louco, lançado em 1970,

adaptação de O Alienista, se constituiu num ousado experimento com a linguagem

cinematográfica, ao gosto das vanguardas da época. Afinava-se também com a retomada da

cultura carnavalesca e das tradições da menipéia, que ganhava terreno no plano internacional

desde os movimentos de contracultura e no Brasil, além de ecoar as ousadias do

Tropicalismo, e participava também da onda de “desbunde” diante da repressão política

imposta pela ditadura militar. Essa obra, entre outras de Machado, abria caminhos para a

discussão sobre a institucionalização do controle sobre a sanidade mental, que vinha sendo

liderada pelo movimento da antipsiquiatria, surgido na Inglaterra nos anos 60, e que viria a se

expandir nos anos 70 e 80 através dos estudos de Michel Foucault. Desde então, no Brasil,

muitas leituras críticas da obra de Machado de Assis tomaram esse viés libertário, destacando

o modo com que o autor – vítima da epilepsia e que tantos preconceitos teve que vencer

diante desse fato – conseguiu analisar as sutilezas com que são construídos, mantidos e

utilizados os mecanismos de controle, exploração ou manipulação dos chamados “desvios” da

norma psicológica – o que se revela de modo marcante no romance Quincas Borba.

A montagem teatral de O Alienista pelo grupo Tapa, em 1986, sob a direção de Renato

Icarahy, respondia à permanência de interesse por esse tema, baseando-se num trabalho

dramatúrgico sério, para apresentar um espetáculo de bom nível em termos de cenografia e de

atuação dos atores, mas sem se caracterizar pela ousadia de linguagem.

Dez anos depois, outra montagem teatral, baseada em obras de Machado de Assis, viria a

chamar a atenção na cena cultural carioca, porque representava uma leitura surgida num

trabalho comunitário em favela – o Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro – da obra do

consagrado mestre, uma experiência levada a cabo no grupo teatral Nós do Morro. O

espetáculo Machadiando – Três histórias de Machado de Assis dividia-se em três partes:

Lições de Botânica; Hoje Avental, Amanhã Luva; e Antes da Missa. A experiência foi

considerada bem sucedida por uma parte da crítica teatral e da imprensa. Há que se

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 25 .

considerar, no entanto, que fazia parte de uma estratégia dos responsáveis pela direção

artística do grupo, Guti Fraga e Luiz Paulo Corrêa e Castro, de alternar a encenação de textos

de autores consagrados, tratando de temas universais, com a criação de peças que enfocassem

a vida comunitária, como se deu com o premiado Abalou - um musical funk, produzido em

1998. Observe-se que, seguindo essa estratégia, o grupo, em sua trajetória, algumas vezes

encenou peças de Shakespeare, como Hamlet, Sonhos de Uma Noite de Verão e Os

Cavaleiros de Verona, contando para isso, em algumas ocasiões com a participação de

profissionais de teatro ingleses. Quanto a essa atitude dos responsáveis pelo grupo, coloca-se

uma questão mais geral, em relação à obra de Machado de Assis, como à de todos os autores

considerados “clássicos”, em especial Shakespeare, sobre as motivações e implicações de

realizar adaptações e montagens de suas obras. Será que essa retomada é uma busca de

consagração daqueles que dela se aproximam? Ou a retomada de uma obra responde a um

diálogo entre preocupações, percepções da vida e da pessoa humana, descobertas de recursos

da linguagem artística de uma época que podem enriquecer debates e pesquisas atuais?

Nesse sentido, merece destaque uma experiência mais recente, a do filme dirigido por Sérgio

Bianchi, Quanto Vale ou É Por Quilo? (A História Oculta das Ongs no Brasil), lançado em

2005. Partindo do texto em que Machado de Assis aborda mais abertamente a escravidão, o

conto Pai Contra Mãe, o filme desenvolve uma história comparativa dos modos de

exploração do negro na sociedade brasileira, durante a escravidão e na sociedade atual, em

que vicejam os programas de “inclusão social”. Os meandros dos sentimentos de

solidariedade, compaixão e amizade, analisados e colocados em conflitos e contradições com

a estrutura legal da sociedade, são trazidos do conto machadiano para a atualidade, criando,

além de tudo, o impacto pela sensação de que, apesar das mudanças operadas no país,

preservaram-se importantes engrenagens responsáveis pela manutenção da injustiça e da

exploração do pobre, em especial do negro.

Outro tipo de diálogo que a obra de Machado de Assis vem suscitando se dá no próprio

campo do fazer literário: vez por outra, algum literato brasileiro tem a idéia de prolongar,

refazer ou decifrar num texto literário os enigmas e ambigüidades da prosa machadiana. O

crítico Wilson Martins, em 2005, reage à publicação de Capitu: memórias póstumas de

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 26 .

Domício Proença Filho, considerando que: “deram-se mal, como seria de esperar, todos os

que se propuseram a rivalizar com Machado de Assis, pensando ‘melhorá-lo’, corrigi-lo,

atualizá-lo ou simplesmente prolongá-lo, como Cyro dos Anjos com O amanuense Belmiro

em 1937”16. Submete ao mesmo crivo crítico tanto a obra de Domício Proença, que, segundo

ele, procura explorar uma possibilidade de interpretá-la sob uma ótica feminista, como a

coletânea de contos, de diversos autores renomados, organizada por Osman Lins e publicada

em 1977, e intitulada Missa do Galo: variações sobre o mesmo tema. Avalia Wilson Martins

que os trabalhos dessa coletânea “nada acrescentam a Machado de Assis, podendo-se

perguntar se alguma coisa acrescentam aos diversos autores”. O chamado “enigma de Capitu”

desafiou outros autores a contribuir para decifrá-lo, como Lygia Fagundes Telles, em Capitu,

1993, e Fernando Sabino, em Amor de Capitu, em 1999; segundo a avaliação de Martins, com

o mesmo resultado literariamente limitado. Considero digno de indagação o renovado

interesse entre nossos escritores em esclarecer a psicologia dessa personagem e suas relações

com a moral conjugal! Será um sintoma da estreiteza dos valores morais no país? No entanto,

é necessário repensar a severa crítica de Wilson Martins quanto à experiência de reescritura

da obra de Machado em vista mesmo de uma preocupação atual, em todos os campos da

cultura, de rever os cânones, de dialogar e intervir nas obras consagradas como parte de um

panteão intocável por outras gerações. Mesmo que a fatura artística de grande parte dessas

tentativas não seja tão bem sucedida como gostaríamos, diante do talento revelado no original,

a iniciativa parece saudável e enriquecedora, ao procurar as possibilidades de a obra de

Machado participar de um diálogo no contexto da cultura contemporânea. E não ser

entronizada estaticamente no museu da cultura.

Em meu entender, além da homenagem merecida pelo caráter excepcional alcançado na obra

de figuras excepcionais, como Shakespeare ou Machado de Assis, cabe-nos avaliar o quanto

da contribuição que trouxeram para diferentes épocas sobrevive e que angulações de leitura

possibilita no espaço que nos é reservado como leitores contemporâneos. Desse modo, como

educadores ou indivíduos formadores de opinião, podemos estimular a continuidade e a

riqueza do diálogo em que se constitui a mais ampla experiência do humano.

MACHADO DE ASSIS: BRUXARIAS LITERÁRIAS 27 .

Notas:

Professor de Teoria da Literatura do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro –UERJ. Coordenador do Programa de Extensão Ler- UERJ.

2 Bloom, Harold. O cânone ocidental; os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995.

3 Bloom, Harold. Opúsc. citado. p. 32.

4 Idem. “Eles não são idiotas”, Entrevista a Luís Antônio Giron. Jornal de Poesia. Edição 246 – 03/02/2003. In: www.secrel.com.br/JPOESIA/lagiron.html - 20k -

5 Resende, Beatriz. Rio de Janeiro, cidade da crônica. In: Idem (org.). Cronistas do Rio. Rio de Janeiro: José Olympio Editora/Centro Cultural Banco do Brasil, 1995. p. 41.

6 Citado em Resende, Beatriz. Ibidem. p. 20.

7 Citado em: Facioli, Valentim. “Várias histórias para um homem célebre (biografia intelectual)”. In: Bosi, Alfredo et alii. Machado de Assis. Coleção Escritores Brasileiros: antologia e estudos. São Paulo: Ática, 1982. p. 21.

8 Bosi, Alfredo. “A máscara e a fenda”. In: _________. Machado de Assis. p. 441.

9 Bosi, Alfredo. Idem. p. 441.

10 Schwarz, Roberto. “Generalidades”. In: Bosi, Alfredo et alii. Opúsc. Cit. p. 412.

11Cf. Faria, João Roberto. Idéias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2001, p.105-107.

12 Brayner, Sonia. ”Metamorfoses machadianas”. In: Bosi, Alfredo et alii. Opúsc. Cit. p. 433.

13 Bosi, Alfredo. Idem. p. 433.

14 A autora desse estudo explicita que formas nos contos de Machado associam-se a essa tradição: “adoção de formas literárias tradicionais, com intenção filosófico-moralizante (diálogos de mortos, fantasias, apólogos) na linhagem da sátira menipéia, cômico-fantástica, para ilustrar uma idéia”. In: Brayner, Sonia (org.). O conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. p. 12.

15 Brayner, Sonia (org.). Opúsc. Cit. p. 13.

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16 Martins, Wilson. Controvérsias Machadianas. Jornal de Poesia. Globo on line. 21/05/2005. http://www.secrel.com.br/jpoesia/ wilsonmartins158.html.

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