a linguagem
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS
CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
A LINGUAGEM COMO CARTER CONSTITUTIVO DO SER-A EM
SER E TEMPO DE MARTIN HEIDEGGER
TATIANE PEREIRA BOECHAT
ORIENTADOR: PROF. DR. BENTO PRADO DE ALMEIDA FERRAZ NETO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia da Universidade Federal de So Carlos, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, rea de concentrao: Histria da Filosofia.
So Carlos - SP 2008
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Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria da UFSCar
B669lc
Boechat, Tatiane Pereira. A linguagem como carter constitutivo do ser-a em Ser e Tempo de Martin Heidegger / Tatiane Pereira Boechat. -- So Carlos : UFSCar, 2008. 134 f. Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2008. 1. Linguagem. 2. Compreenso. 3. Interpretao. 4. Discurso. I. Ttulo. CDD: 100 (20a)
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TATIANE PEREIRA BOECHAT
A LINGUAGEM COMO CARTER CONSTITUTIVO DO 'SER-A 'EM 'SER E TEMPO'DE MARTIN HEIDEGGER
DissertaoapresentadaUniversidadeFederaldeSoCarIos,comopartedosrequisitosparaobtenodottulodeMestreemFilosofia.
Aprovadoem28defevereirode2008
BANCA EXAMINADORA
1---10Presidente~ u_-- .(Dr.BentoPradodeAlmeidaFerrasNeto)
10Examinador(Dr. MarcoAntnioValentim- UFPR)
20Examinador(Dr. MarcoAur. .
~~~~u~t--.
. ,
UniversidadeI~ederaldeSoCal"iosRodoviaWashingtonLus,Km235- Cx.Postal676Tel./Fax:(16)3351.8368FWW.ppglil.ufscar.br/ Dl'[email protected]: 13.565-905- SoCarlos- SP- Brasil
ProgramadePs-GraduaoemFilosofia
CentrodeEducaoeCinciasHumanas
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A minha me Hilda,
pela confiana e apoio incondicional.
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AGRADECIMENTOS
Aos professores: Bento Prado de Almeida Ferraz Jnior (in memoriam),
Bento Prado de Almeida Ferraz Neto, Marco Antnio Valentin, Libnio Cardoso,
Dbora Morato Pinto e Silene Marques por estarem sempre presente e
contriburem nos momentos difceis, cada um a sua maneira, para a realizao
desse trabalho. Agradeo ainda Fundao de Amparo Pesquisa do Estado
de So Paulo FAPESP pela bolsa de pesquisa.
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RESUMO
Em Ser e Tempo, Heidegger nos fala da co-originariedade
(Gleichursprnglich) entre os existenciais fundamentais que constituem a
abertura do ser-no-mundo: disposio afetiva (Befindlichkeit), compreenso
(Verstehen) e discurso (Rede). Procuramos entender de que modo esses
existenciais so articulados entre si, de maneira a perceber como Heidegger
estrutura um conceito de linguagem. Segundo interpretamos, h uma noo
implcita de linguagem nesta obra, estabelecida a partir da lida cotidiana do
ser-a. Desse modo, investigaremos a relao entre discurso (Rede) e
linguagem (Sprache), buscando entender o estado de expresso do discurso
atravs da linguagem. Assim, podemos compreender como Heidegger procura
legitimar a problemtica ontolgica. Perceberemos a inviabilidade desta
questo se, como admitimos, ela estiver ancorada na relao que vincula
discurso e linguagem. Essa impossibilidade se torna ainda mais clara ao
analisarmos a proposta do termo Gleichurprnglich relacionada aos
existenciais fundamentais.
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SUMRIO
INTRODUO .............................................................................................. 7
CAPTULO I FENOMENOLOGIA COMO ONTOLOGIA
1.1.Heidegger e Husserl: a busca da questo do ser a partir da intuio
categorial....................................................................................................... 12
1.2.O programa ontolgico de Ser e Tempo ............................................ ... 25
1.3.O primado ntico e ontolgico da questo do ser: a ontologia
fundamental.....................................................................................................31
1.4.O conceito heideggeriano de Fenomenologia ......................................... 37
CAPTULO II
A CONCEPO DE SER-NO-MUNDO 2.1.A condio de ser-no-mundo (In-der-Welt-sein) .................................... 56
2.2.A mundanidade do mundo e o mundo circundante ................................ 61
2.3.Os entes disponveis (Zuhandenheit) e os entes simplesmente dados
(Vorhandenheit) ........................................................................................... 66
2.4.O fenmeno da referncia (Verweisung) e o sinal (Zeichen) ................ 76
CAPTULO III
DISCURSO E LINGUAGEM
3.1.A estrutura da compreenso (Verstehen)............................................... 88
3.2.Interpretao (Auslegung) e sua estrutura reguladora: o como
hermenutico .............................................................................................. 93
3.3.O enunciado (Aussage)........................................................................ 101
3.4.A distino entre discurso (Rede) e linguagem (Sprache) ................... 112
CONCLUSO .......................................................................................... 127 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................... 133
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INTRODUO
Em Logik. Die Frage nach der Wahrheit, Heidegger diz que o modo de
ser do fenmeno que chamamos linguagem segue sendo at o momento algo
obscuro.1 Sabemos que Heidegger se dedica questo sobre a estrutura da
linguagem desde o incio de seu pensamento, principalmente ao tratar das
noes de fundamento, verdade e lgica entre outras. Em 1927, na obra Ser e
Tempo, ele afirma que para se procurar definir a linguagem decisivo elaborar
previamente a totalidade ontolgico-existencial da estrutura do discurso com
base numa analtica do ser-a (HEIDEGGER, 1927, 34 / 1999, p. 222). Para
alcanar tal definio Heidegger teria deixado transparecer nessa obra, ainda
que no de maneira explcita, certo conjunto de articulao de sentido
inerente ao modo de ser-no-mundo. Desse modo, ele teria em seu poder os
elementos necessrios para uma possvel determinao da linguagem e de sua
estrutura. Encontramos este conjunto de articulao atravs da estrutura
fundamental prpria ao ser do ser-a, os existenciais: compreenso
(Verstehen), disposio (Befindlichkeit) e discurso (Rede). Nossa pesquisa
procura esclarecer o conceito de linguagem intrnseco a Ser e Tempo ao
investigar a estrutura que possibilita a linguagem enquanto enunciado. O que
deve ficar claro, inicialmente, o modo como Heidegger procura apreender
esse conceito, a partir de uma inteno mais prpria e originria de
1 Cf. HEIDEGGER, 2004, p. 126 12.
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questionamento. Este ser o objetivo do captulo inicial desta pesquisa que
trata do conceito fenomenolgico.
No pensamento de Ser e tempo, a gnese do significado entendida
desde os existenciais de abertura do ser-a, entre os quais encontramos o
discurso (Rede), isto , a possibilidade de articular a compreenso aberta pelo
ser-no-mundo. O discurso aparece como uma instncia instauradora de
sentido. Enquanto um modo de ser do ser-a, seria preciso perguntar-nos:
como o discurso pode expressar-se por meio de palavras, por meio da
linguagem. Esse questionamento se encontrar em desenvolvimento ao longo
dos dois ltimos captulos.
Em Ser e Tempo, a relao entre ser e linguagem formulada em meio
a uma analtica da existncia, mediante um modo originrio de abertura que
pertence estrutura mesma do ser-a vista atravs da originariedade
aguardada entre o discurso (Rede) e os outros existenciais fundamentais.
Abarcados em sua totalidade e entrelaados uns aos outros, estes existenciais
articulam-se enquanto sentido ou significncia advindo da lida cotidiana do ser-
a. Na perspectiva heideggeriana, a instrumentalidade do instrumento que
emerge ou vem ao encontro possibilita a rede de sentido que antecede as
enunciaes lingsticas. A disponibilidade de algo, orientada em funo do
ser-a e de sua familiaridade com o mundo, aponta para o sentido. O sentido,
por sua vez, emerge da totalidade referencial aberta pelo modo de ser do ente
intramundano atravs do qual se perfaz a estrutura ser-no-mundo (In-der-
Welt-sein). A finalidade qual o instrumento remetido o que unifica isto que
concede sentido a totalidade. Isto significa que em funo do ser do ser-a
que as coisas so articuladas de modo a mostrarem-se com sentido. Contudo,
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segundo Heidegger, este processo no precisa, necessariamente, exercer-se
atravs de nenhuma tematizao explcita, isto , ele no precisa vir palavra,
transformar-se em conceito. A interpretao (Auslegung) se encontra nessa
articulao de sentido. Ela fornece a possibilidade primeira de tomarmos algo
como algo. Ou seja, tomarmos algo a partir da disponibilidade que o orienta. Na
ocupao que algo tem sentido. Para Heidegger, o nvel proposicional no
a nica dimenso do sentido. O conjunto dos existenciais que chamamos aqui
de lgos, nos mostra que a sua estrutura se caracteriza no pelo enunciado,
por se dizer algo de algo, mas em um puro admitir o ente ou deixar que
comparea atravs da sua instrumentalidade.
A interpretao heideggeriana do discurso sugere que a linguagem no
deve ser vista como uma diversidade de estruturas logicamente articuladas. O
discurso supe um imediato contato com o ente que ocorre como realizao do
sentido; ele designa a prvia relao que se d entre mundo e linguagem. Isto
quer dizer que a linguagem tambm no deve ser vista como uma rplica do
mundo. O discurso no surge posteriormente ao mundo, pois ele um carter
constitutivo do ser-a; a discursividade-compreensiva compete-lhe
constitutivamente. Ela encontra-se estruturada pelo esquema interpretativo
implcito em toda forma de relao do ser-a com o ente. Diramos, ainda, que
o modo de ser mundano do ser-no-mundo que constitui o discurso e procura
viabilizar sua expresso como linguagem. A estruturao prvia do sentido
viabiliza as proposies lgico-semnticas. A linguagem deixar, ento, de
cumprir o papel de mediadora funcional entre homem e mundo. No entanto, ela
deixar de ser uma ordem subordinada a alguma instncia superior? A entra a
nossa abordagem sobre o discurso. Ele o sentido originrio que funda a
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linguagem. Assim, nossa investigao se detm na anlise da relao entre
discurso (Rede) e linguagem (Sprache) para verificarmos at onde esta relao
se estende e como isto se d. O entendimento das estruturas ontolgicas
mostrar que a linguagem pode surgir como carter ontolgico de
desvelamento dos entes se orientada, como pretende Heidegger, por uma
estrutura possibilitadora de acesso ao ente enquanto tal, a estrutura co-
originria (Gleichursprnglich) dos existenciais fundamentais. Ao expor esta
estrutura ser possvel investigao entender como possvel remeter a
linguagem dimenso ontolgica. E como foi possvel a Heidegger subordinar
o mbito da linguagem, leia-se enunciado e comunicao, ao discurso e,
conseqentemente, aos outros existenciais. Assim, procuramos apreender o
problema da gnese da linguagem em Ser e Tempo, investigando as instncias
atravs das quais ela pode ser explicada e s quais, de alguma maneira, ela
encontra-se subordinada. Abordaremos o carter de ser-no-mundo, ou seja, a
relao que o ser-a guarda com mundo, nos limitando a discutir alguns
conceitos que procuram apontar para a constituio originria da linguagem.
Num segundo momento, entraremos diretamente na interpretao da estrutura
do ser-a, os existenciais fundamentais (die fundamentalen Existenzialien) que
constituem a abertura (Erschlossenheit) do ser-no-mundo. Principalmente a
compreenso e o discurso, visto que, o modo de ser da compreensibilidade do
ser-no-mundo articulado, traz tona o sentido. Ao tematizar os existenciais,
veremos como se d esta constituio ontolgica e como isso se pronuncia. Os
existenciais so indissociveis uns dos outros, encontram-se entrelaados,
esta a sua principal caracterstica, a co-originariedade
(Gleichursprnglichkeit) que os mantm enquanto tais. Tal caracterstica nos
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concede o apoio necessrio para entendermos qual o caminho traado por
Heidegger no que diz respeito linguagem ainda na sua primeira grande obra.
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Captulo I
FENOMENOLOGIA COMO ONTOLOGIA
1.1. HEIDEGGER E HUSSERL: A QUESTO DO SER A PARTIR DA INTUIO CATEGORIAL
O pensamento filosfico de Heidegger e seu contato com a idia de
fenomenologia se intensificaram no perodo em que foi assistente de Husserl
em Freiburg. Perodo extremamente frutfero que possibilitou a edificao da
sua principal obra, Ser e tempo (Sein und Zeit, 1927). Heidegger diz que esta
obra somente foi possvel sobre a base lanada por Edmund Husserl. Nela, o
autor assume a sua prpria leitura da fenomenologia como a maneira de tornar
o seu objeto tema de uma abordagem, o que chamaremos aqui de um
procedimento metdico. Seu primeiro contato com a fenomenologia foi
atravs das Investigaes Lgicas (Logische Untersuchungen, 1900) de
Husserl como afirma em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in
die Phnomenologie - 1963) e numa srie de textos e seminrios surgidos no
decorrer dos anos 60 a respeito da sua relao com a fenomenologia. A
literatura comentada, na grande maioria dos trabalhos que confrontam Husserl
e Heidegger, procura investigar a influncia, ou no, que Heidegger tenha
sofrido de seu mestre; qual a extenso do pensamento husserliano, em
especial sua idia de fenomenologia, no pensamento hermenutico de
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Heidegger. J o proposto por ns, neste captulo, consideravelmente menos
ambicioso no que diz respeito a esta relao, pois possui um valor apenas
indicativo e de insero no tema central da nossa pesquisa, a saber, a noo
de linguagem construda por Heidegger em Sein und Zeit. Para tanto,
seguiremos a indicao deixada por Heidegger no protocolo do Seminrio de
Zringen (Seminar in Zringen) professado em 1973. Nele, Heidegger afirma
que sua abordagem questo do ser estaria enraizada na noo husserliana
de intuio categorial. Segundo Heidegger, Husserl toca a questo do ser no 6
captulo da Sexta Investigao Lgica atravs do conceito de intuio
categorial. Procuraremos, ento, num primeiro momento, ainda que
timidamente, uma aproximao a este ponto referencial da fenomenologia
atravs das Investigaes Lgicas de Husserl.2 Poderamos eleger outras
fontes para investigar o surgimento e delineamento da questo do ser em
Heidegger, tais como Aristteles, Duns Scotus, Dilthey, Kieerkgaard, no
entanto, nos limitaremos a abord-la em Husserl, ainda que no possamos
atingir aqui todas as influncias que o jovem Heidegger sofreu quando do
surgimento da sua questo filosfica. Seguindo este caminho preliminar,
tentaremos entender qual a importncia do conceito de intuio categorial no
que se refere elaborao da questo do ser (Seinsfrage).
A fenomenologia est centrada no objeto visado ele mesmo e no modo
como dado. O que significa que, para Husserl, o nvel perceptivo em que o
objeto visado imediatamente dado o ponto de partida para que o objeto seja
descrito e explicitado em seu aspecto intencional. O que no significa que o
2 Privilegiamos esta obra no apenas por ser aquela em que Husserl primeiro apresenta sua concepo
de fenomenologia, mas por ser a obra a que Heidegger mais freqentemente se refere para elucidar sua
relao com a fenomenologia de Husserl.
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nvel da representao seja reduzido a um momento anterior de realidade em
que o objeto possa ser explicado. O nvel perceptivo ou da objetividade d o
objeto de modo imediato sem a mediao de esquemas pr-estabelecidos. Se
tomarmos o objeto no seu dar-se imediato poderemos dizer que a coisa
mesma funda o sentido dando origem ao conhecimento. A partir da presena
intuitiva da coisa visada, o conhecimento se efetiva. Entendemos, assim, a
ausncia de pressupostos como uma forma de mostrar que o mtodo da
fenomenologia deve se desenvolver, enquanto modo reflexivo ou descritivo, em
nvel intuitivo. A reflexo no se desenvolve a partir dos objetos dados, mas de
objetos no surgidos da percepo sensvel. Este nvel que torna possvel a
reflexo e no qual o carter intencional da conscincia pode ser dado. Assim, a
intuio, empreendida atravs da concepo prvia de sentido ou de
significao, e no desde uma regio de objetos da experincia emprica, s
possvel em meio vivncia na qual o ato de visar vivido e no
necessariamente tematizado. Isto , no se faz necessrio considerar qualquer
ordem de realidade anterior coisa em si mesma.3 O nvel de investigao da
fenomenologia deve considerar a coisa no prprio ato intencional em que
visada. Desse modo, a fenomenologia husserliana abre um novo mbito de
questionamento: o mbito transcendental da experincia da conscincia, a
partir da descrio dos contedos intencionais em seu modo de ser ou de
aparecer, sem projees indevidas. Consideradas as coisas mesmas, tal como
so visadas numa total ausncia de pressupostos, se afirma o primado da
3 A fenomenologia s poder se realizar em nvel reflexivo. A fenomenologia se desenvolve, levando em
conta a orientao objetiva das vivncias, no entanto, esta vivncia no auto-transparente, somente a
reflexo torna possvel descrever, hierarquizar e sistematizar a multiplicidade dos atos intencionais.
(Paisana, 1992, p. 63). A conscincia vive na realizao da prpria constituio sem se saber, de modo
temtico, como constitutiva. (Husserl, 1999, p. 356, II).
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percepo, tida, na fenomenologia reflexiva de Edmund Husserl, como a mais
simples intuio.4
O objeto prprio cincia fenomenolgica, como se refere Husserl, seria
o fenmeno enquanto tal. Como mtodo reflexivo, a fenomenologia seria uma
cincia descritiva dos fenmenos. No artigo publicado em 1911, Filosofia como
Cincia de Rigor (Philosophie als strenge Wissenschaft), o filsofo afirma que o
ser deve ser considerado correlato da conscincia (Bewusstsein), enquanto
algo visado por um modo da conscincia.5 A fenomenologia seria, portanto, a
cincia descritiva da vivncia intencional. Para visualizarmos isto e projetarmos
a noo de intuio categorial, preciso ampliar a noo de objeto intencional
da fenomenologia reflexiva.
Distinguiremos entre as concepes husserlianas de intuio sensvel e
intuio categorial. O critrio para tal distino ocorre entre seus respectivos
objetos: o objeto sensvel e o objeto categorial. No pensamento de Husserl, a
intuio sensvel no se ope a uma faculdade de apreenso intelectual. A
intuio sensvel, bem como a categorial, surge do modo do objeto.Na
perspectiva de Heidegger, na intuio sensvel, Husserl apreende o objeto
como um objeto que ocupa uma funo. Um tinteiro (exemplo fornecido por
Husserl nas Investigaes Lgicas) j traz em si a relao que guarda com o
seu funcionamento. Mas, no contexto da reflexo husserliana acerca da
intuio sensvel, o tinteiro tomado enquanto exemplo de objeto sensvel e
4 Tal posio afirma ainda o mtodo fenomenolgico no apenas como reflexivo e explicitativo, mas como
a priori. O a priori husserliano no se ope experincia. Em Husserl pode-se falar de um a priori dado,
isto , material. Para o autor, a validade do conhecimento fundada de modo imediato na intuio. 5 A fenomenologia deve ter como objeto de estudo a conscincia. preciso conhecer a conscincia em sua essncia, isto , em todas as suas formas e nos distintos modos em que visa o objetivo. A relao da
conscincia com o mundo ser esclarecida pela elucidao do sentido dos vrios atos intencionais. J
que o objeto real pressupe o objeto intencional.
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no de um objeto sensvel determinado. Afirma Heidegger: O tinteiro
significa: objeto da percepo sensvel. (HEIDEGGER, 1990, p.463) Isto quer
dizer que os dados sensoriais6, como a cor, a forma espacial, etc., apenas
quando animados por uma inteno qual reenviam, podem ser percebidos j
como momentos da coisa.7 O que percebido so os dados sensoriais
mesmos. Atravs dos dados sensoriais o objeto aparece na percepo.8 A
coisa, seja ela qual for, torna-se perceptvel. O que dado na percepo
sensvel so os dados sensoriais, no o objeto. Entende Heidegger que a
objetualidade (Gegenstndlichkeit) do objeto sensvel no consiste num
simples dado sensorial, isto , no surge da intuio sensvel9. Logo, a questo
que se pe ao autor a de compreender qual o fundamento da objetualidade
do objeto sensvel. Grosso modo, perguntar pela estrutura que pergunta pelo
ser. Isto se formaliza em Ser e Tempo em uma fenomenologia do ser-a. O que
se conclui, e que deixa entrever o caminho heideggeriano, que a
objetualidade do objeto no pode ser percebida sensivelmente, mas de alguma
forma, ela dada. Pois, o percebido sempre tomado como um objeto, uma
coisa. O que sugere que: o que fundamenta o ser-objeto o modo de ser do
ente enquanto coisa. Para Heidegger, o fundamental da intuio categorial 6 Dados chamados: hylticos, originado de Hyl, que significa: o que afeta sensivelmente, os dados
sensoriais. 7 Cf. Paisana, 1992, p. 116. 8 Na terceira Investigao Lgica, Husserl afirma que o ato da percepo sempre j uma unidade
homognea que presentifica o objeto de um modo simples e imediato. (HUSSERL, III Investigao, 1999) 9 Podemos aludir aqui crtica de Heidegger tradio filosfica atravs da abordagem da concepo
kantiana de experincia, segundo a qual traria em sua interpretao uma noo de realidade que no foi
radicalmente questionada, pois, segundo a leitura de Heidegger, Kant eleva o nvel da objetividade a um
tipo de realidade anterior, ou melhor, a uma realidade que serviria como base ou fundo do qual permitiria
explicar os objetos. Kant reduz todo o dado na experincia experincia emprica e, conseqentemente,
caracteriza o dado como contedo material determinado. Supondo, portanto, para o que no existe, que
nenhuma funo sensorial poderia ser dada. Desse modo, o objeto surge num a priori que depende do
juzo e da linguagem, isto , que se encontra referido a uma subjetividade.
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considerar a categoria como dada. Segundo Heidegger, intuio categorial
quer dizer: uma intuio que d a ver uma categoria; ou uma intuio que
imediatamente dirigida para uma categoria.(HEIDEGGER, 1990, p. 463) A
categoria substncia no pode ser acessada pela sensibilidade, no entanto, o
tinteiro aparece por ser uma substncia. O que significa que, de algum modo, a
substncia se d a ver. Heidegger (1990, p. 465) afirma:
Quando vejo o livro, vejo uma coisa substancial, sem por tanto ver a
substancialidade tal como vejo o livro. Ora, , portanto, a
substancialidade que, em sua inaparncia, permite ao que aparece
aparecer.
Ao ver o livro, vejo uma substncia sem ver, portanto, a prpria
substancialidade no livro. No entanto, para que veja o livro preciso que a
substancialidade aparea de algum modo, j que sem ela o livro no se daria a
ver. Heidegger encontra aqui a idia husserliana de excedente (berschuss)
correspondente intuio categorial. Na frase, O tinteiro pesado o torna
possvel a constatao do tinteiro como objeto ou substncia. O teria um
estatuto que transcende a predicao. Entre as impresses sensveis, como a
do peso e a da cor, o pode ser visto como o que as excede. Por no estar
junto das impresses sensoriais, ele no pode ser percebido sensivelmente, no
entanto, visto atravs da presena da coisa. Ver aqui no tem referncia
com o visvel, o ver sensvel, mas com o ver fenomenolgico que emerge do
carter reflexivo da fenomenologia de Husserl. Surge assim o dado
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fundamental que nos guia para o caminho da leitura heideggeriana da
fenomenologia: o categorial. As formas, por serem dadas, tornam-se
abordveis, acessveis.(HUSSERL, 1999, p. 136, III)
Entendemos, ento, que o objeto da intuio categorial no se constitui
a partir de uma sntese advinda de elementos sensveis e conceituais. Husserl
diz que a intuio categorial no visa um objeto sensvel simplesmente dado,
mas um estado de coisas articulado (Sachverhalt) considerando que as
categorias so mostradas na experincia. Por exemplo, a intuio pode
fornecer um preenchimento intuitivo: o ouro amarelo. No caso dos smbolos
literais, a intuio fornece um preenchimento direto pela sensibilidade, no caso
da frmula do tipo S P, ou outras, corresponde o preenchimento intuitivo do
tipo categorial.10 o ser dado, intudo, que forma o juzo. No esqueamos
que, nessa perspectiva, o objeto dado a uma conscincia, como conscincia
reflexiva, de um puro sujeito de conhecimento. De modo que o ser daquilo
que se d j se encontra determinado em funo desse sujeito. Logo, o
fundamento da objetualidade do objeto a prpria conscincia intencional.
Para que o objeto categorial encontre seu fundamento a nvel intuitivo, o
prprio copulativo deve ele mesmo ser dado. No entanto, o excedente de
significao somente pode ser mostrado se situarmos ao nvel de um estado
de coisas j articulado. Segundo Husserl (1999, p. 131, III):
10 (Id. Ibid., p. 136) Contudo, tanto o preenchimento pela sensibilidade quanto o preenchimento pela
intuio devem ser considerados como procedimentos intuitivos apesar de terem objetos intencionalmente
visados diferentes.
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A inteno da palavra branco coincide apenas parcialmente com o
momento cor do objeto que aparece, permanece um excedente de
significao uma forma que no encontra no prprio fenmeno nada
que a confirme. Branco quer dizer papel que branco.
A cor remete necessariamente para uma superfcie, de igual modo, o
do juzo reenvia para uma substancialidade. O que quer dizer que uma
significao como a da palavra ser apenas encontra um correlato objetivo
possvel na esfera da intuio categorial, inversamente esfera sensvel. O ser
dado numa presena que excede a intuio sensvel. Esta alterao do
estatuto do ser que permitir a Heidegger formular a questo do sentido do
ser do ente, isto , da condio de possibilidade do ente enquanto tal.
Husserl faz, na primeira seo da Sexta Investigao Lgica, uma
distino entre o ser como cpula e o ser como posio. O ser surge, para
Husserl, como uma posio (Setzung), como correlato de um ato posicional; ou
seja, como correlato de um ato que pe ou afirma o ser do objeto. (HUSSERL,
1999, p. 121) Assim, ainda que o horizonte de doao no seja determinado
pelo ato judicativo, ele o pelo ato intencional de uma conscincia, para qual o
que necessariamente como objeto. Aqui o conceito de ser encontra sua
edificao na coisa mesma. A percepo afirma o ser objeto11. A percepo
nos d a coisa ela mesma, isto , em seu ser, fundando assim o conhecimento.
O ser no aparece fundado no da cpula do juzo, mas a evidncia da
coisa em si mesma, o ser dado, intudo, que funda o juzo. Contrariamente
11 Ser-objeto aqui tem o sentido de considerar a objetividade como necessidade e universalidade do
conhecimento.
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concepo de ser entendida atravs da cpula do juzo encontrado num
estado de coisas j articulado, o ser como posio seria encontrado, em
presena, no objeto de uma percepo simples. Tomando este estado de
coisas como um dado, em que o da cpula, ou qualquer outra frmula
sinttica (um, e, ou, etc.), dado, o objeto categorial encontra seu fundamento
a nvel intuitivo.12 O ser encontra-se como presena imediata do visado ele
mesmo. Logo, o ser pode ser intudo.
A concepo de ser que o concebe como o ser presente no juzo pelo
da cpula, possui um estatuto justo e exato, mas no-verdadeiro (unwahr =
uma inverdade), como afirma Heidegger (1990, p. 465). Perguntamos, ento,
quais os traos da fenomenologia de Husserl que Heidegger assimila? Para
ele, esse modo justificado desde que se pergunte pelo fundamento da
objetualidade do objeto sensvel pressuposto na construo do juzo. Com
efeito, se o juzo no cria originalmente o aparecer do ente, ento, preciso
que o ente j se tenha manifesto previamente como objeto possvel de uma
determinao predicativa para que a conformidade do juzo com o ente seja
estabelecida. Esta relao abre, para Heidegger, um mbito de manifestao
do ente que no tem originalmente a estrutura da proposio nem o carter da
representao. Considerando isto, o ser teria como estatuto um momento pr-
predicativo. Segundo as anlises da intuio categorial, se o ser dado na
percepo, ento, supomos que nem todo ato intuitivo pressupe
12 Percebemos aqui que, para que o ser possa ser pensado enquanto ato posicional preciso que nos
situemos novamente ao nvel predicativo. Somente pela predicao se constitui o objeto que estaria
presente de modo imediato na intuio.Surge, ento, a critica de Heidegger a Husserl que possibilitar ao
primeiro edificar sua estrutura hermenutica. Segundo Heidegger, o local onde se deve procurar o ser
estaria na estrutura do como hermenutico, isto , em nvel pr-predicativo, porque para que a predicao
se realize necessrio que a estrutura do como hermenutico estrutura da compreenso em geral j
tenha sido pressuposta.
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necessariamente o nvel predicativo. Portanto, o ser teria como estatuto um
momento anterior ao juzo. A proposta de uma significao pr-predicativa da
intuio a contribuio fundamental da fenomenologia husserliana na
formao do pensamento hermenutico de Heidegger. Entendemos, ento, que
a fenomenologia de Husserl abre caminho para a proposta heideggeriana de
uma ontologia fundamental medida que possibilita a investigao do ser do
ente a partir de um novo mbito no qual o interesse terico e experimental pelo
mundo, tal como a tradio filosfica interpretou como um agregado de entes
independentes uns dos outros , fica de lado. Na terminologia husserliana,
seria a passagem da subjetividade mundana subjetividade transcendental.
O que significa que a fenomenologia no pretende investigar os objetos do
mundo, contrria ao conhecimento de regies nticas. Assim, Husserl reduz
tudo subjetividade e rompe com a distino entre natureza (o mundo das
coisas corpreas) e esprito (o mundo anmico, o pensamento), tornando
possvel alterar a prpria significao do conceito de mundo. O que, para
Heidegger, tem extrema importncia no que diz respeito edificao da
ontologia fundamental, entender que Husserl no opera uma descrio
adequada do modo de ser da conscincia intencional, no sentido de que
restringe a intencionalidade visada objetiva da conscincia. A
intencionalidade teria uma amplitude que no considerada por Husserl: o
visado pela intencionalidade seria o ser em geral, do qual o ser-objeto um
modo. A fenomenologia reflexiva (entenda-se, a intencionalidade), no permite
a formulao da questo ontolgica. Segundo Heidegger, somente a partir da
possibilidade de se perguntar por algo assim como ser que a ontologia pode
vir a ser possvel. Como veremos, a subjetividade transcendental de Husserl
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22 22
nada tem a ver com o ser-a heideggeriano. Na medida em que Husserl passa
da vivncia concreta ideao da conscincia ele desconhece, segundo
Heidegger, o que h de mais caracterstico na estrutura do ser-a, a finitude de
suas possibilidades de ser. (PAISANA, 1992, p. 301) O projeto heideggeriano
se edifica sobre a pergunta pelo sentido do ser do ser-a, isto , sobre o
entendimento do seu modo de ser ntico desde suas possibilidades de ser.
Para Heidegger, a reduo fenomenolgica deve conduzir compreenso do
ser. O modo de ser do ser-a se revela atravs da compreensibilidade, da
estrutura da compreenso enquanto uma possibilidade de ser do prprio ser-a.
A compreensibilidade seu poder-ser (Seinknnen) caracterizado pelas suas
possibilidades enquanto tais que podem vir a ser eleitas ou no. Enquanto o
ser-a compreenso ele guarda precisamente em si a possibilidade de
mundo, isto , de abertura ou desvelamento dos entes. A compreenso abre
um crculo de possibilidades que d origem ao questionar pelo sentido do ser.
J a investigao reflexiva de Husserl compreende a conscincia a partir de um
substrato ltimo sobre o qual ela deveria se constituir e, desse modo, no
questionvel desde si mesma. A pergunta pelo sentido do ser do ente no
possvel pela perspectiva da conscincia reflexiva. Como diz Paisana (1992, p.
302): [...] o sentido do ser da conscincia nunca pode ser libertado como
questo, isto , a partir da abertura das suas possibilidades Contudo,
atravs do contributo husserliano da libertao do ser da cpula do juzo que
Heidegger constitui a noo central para se entender o existencial discurso
(Rede) em Ser e tempo, a saber, a mundanidade do mundo. A questo agora
entender como Heidegger coloca em consonncia o seu interesse pela
questo do ser com a significao pr-predicativa encontrada na noo
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husserliana de intuio categorial. J que admitimos que o conceito
heideggeriano de fenomenologia distancia-se da noo de seu mestre.
Mediado pela anlise da intuio categorial na qual o ser foi liberado da
cpula do juzo e considerado como dado, isto , dado no ao modo do dado
sensvel, Heidegger foi conduzido a perguntar: o que significa [ento] ser?,
qual o sentido do ser do ente? Segundo Heidegger, Husserl no fez esta
pergunta visto que, para Husserl no havia a sombra de uma questo
possvel, porque para ele era de si compreensvel que ser quer dizer: ser-
objeto. (HEIDEGGER, 1990, p. 466) Contrariamente a ele, Heidegger entende
que, se o ser enquanto presencialidade constante (Gegenwart) for
questionado, possvel, sim, indagar pelo seu sentido. Para Heidegger, ser
no significa necessariamente ser-objeto, a objetividade que um modo
possvel de ser em presena.13 A objetividade um modo possvel de
apresentar ser, modo este que deve pressupor j certa significabilidade. Na
terminologia heideggeriana, o modo da objetividade deve contar com uma
prvia abertura (Ouvertre) ao mundo.14
Entendemos, ento, que a formulao heideggeriana da pergunta pelo
ser (Seinsfrage) e seu sentido somente efetivou-se porque a noo de ser
estabelecida por Husserl foi a de um ser dado (anwesend), intudo e que 13 Desde 1907 Heidegger se debrua sobre a obra de F. Brentano, Sobre a mltipla significao do ser
segundo Aristteles (1862). Foi a partir dela que o autor trouxe consigo a intuio da problemtica
ontolgica e se uniu ao estudo da fenomenologia visto que Husserl tambm tinha um trnsito direto com a
obra de Brentano. A questo fundamental do pensamento heideggeriano surge desde os argumentos
brentanianos acerca dos diversos sentidos do ser. Haveria quatro modos possveis de se pensar e dizer o
ser: o ser por si, o ser como possibilidade e realidade, o ser como verdade e o ser por acidente. Mas para
Heidegger a questo definitiva de tal interpretao saber qual a determinao fundamental de ser cujo
domnio atravessa todas as mltiplas significaes. Advm assim a pergunta pelo sentido do ser. Ver:
Carta a Richardson, 1962. 14 Para que o ser dado de Husserl surja, preciso contar com uma significabilidade inicial ou originria do
conceito de ser.
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possibilitou o questionamento do ser em um modo possvel de aparecer,
enquanto objeto intencional. Husserl inaugura um mbito promissor de
questionamento atravs da indagao pelo ser, mas trabalha nele com o ente
considerado em seus atributos sensoriais. Na perspectiva de Husserl, o sentido
fundamental em que surge a palavra ser ocorre antes mesmo de toda
possvel predicao atravs do objeto da percepo simples. J na perspectiva
de Heidegger, seja esta substancialidade pensada como presena ou em
vrios outros modos de aparecimento ou de significado, para que ser possa
alcanar algum modo possvel de aparecimento, preciso contar com um
mbito de mostrao da coisa em si mesma, o mbito hermenutico. Estaria
nesta dimenso a tentativa de Heidegger de pensar a unidade dos significados
mltiplos de ser, enquanto a pergunta pelo seu sentido? Caso seja, a anlise
ontolgica no poderia mostrar que estes mltiplos significados da palavra ser
no se reduzem uns aos outros impossibilitando pensar ser a partir de uma
significao fundamental? A dimenso hermenutica de questionamento no
possibilita que aceitemos um significado fundamental para a palavra ser e,
ainda assim, possamos ordenar as outras significaes em funo desta?15
15 Em Gnter Figal (2005, p. 13/14) esta elaborao leva a consideraes muito frutferas. Caso seja
aceita uma postura ctica em relao pergunta pelo ser, seria possvel contestar a posio
proeminente deste verbo tanto na linguagem cotidiana quanto no uso filosfico da prpria palavra. Se
admitirmos os vrios momentos de uso deste verbo em toda a obra heideggeriana, admitiremos, no uma
unicidade no seu uso, mas a possibilidade de acolher diversas questes e anlises heideggerianas no
contexto de outras questes filosficas e de outras concepes, frutificando-as a partir da. Contudo, se
supomos a questo do ser como plena de significado, ento, alm de admitirmos que sua inteno era
distanciar-se da tradio filosfica para deixar para trs um discurso objetivo e comprometido com
argumentos, admitimos ainda um dilogo extremamente rico entre o que conduz e mantm em curso a
questo filosfica desta tradio. Diz Figal (2005, p. 13-14)., essa questo uma vez mais a questo do
ser, e, assim, parece que s podemos nos inserir na autocompreenso de Heidegger na medida em que
supomos essa questo como plenamente significativa.
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25 25
O domnio principal de investigao do filsofo o da interrogao
acerca do ser; a esfera da existncia. Ao contrrio de outros problemas que se
esgotam na interrogao e na resposta, o problema do ser est implicado na
questo do prprio interrogar. Interrogar o sentido do ser significa perguntar
pela estrutura da pergunta pelo ser, visto que a nossa estrutura pr-reflexiva
a possibilitadora da reflexo, e no o contrrio. A questo do sentido do ser
deve ser encontrada no questionamento da existncia; a pergunta est imersa
no acontecer mesmo. Para Heidegger, desde a anlise da existncia que se
poder encontrar o fio condutor de todo o indagar filosfico. A interrogao
filosfica surge do existir e para ela se volta, inicia e termina no mbito da
existncia. D-se, assim, o salto heideggeriano para a pergunta pelo ser. Abre-
se o caminho para a fenomenologia hermenutica, para o estudo da
significabilidade pr-predicativa. Alcanado o ponto que nos interessa, a saber,
a possibilidade de pensar o ser fora do horizonte da presena, cabe-nos agora
tematizar a proposta heideggeriana de questionamento do ser em Sein und
Zeit.
1.2. O PROGRAMA ONTOLGICO DE SER E TEMPO
Revela-se fundamental para o filsofo, neste momento, saber qual o
sentido fundamental que domina as mltiplas significaes assumidas pela
palavra ser. A multiplicidade de modos em que o conceito de ser se desdobra
levanta o problema da determinao unitria do seu sentido. Para Heidegger,
preciso haver um sentido dominante nesta diversidade que auxilie na
investigao da questo central da filosofia: o que o ente? O autor d a este
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problema a forma de uma pergunta pelo sentido do ser. Edifica-se, assim, a
mais expressiva obra do filsofo: Ser e tempo (Sein und Zeit, 1927). Esta obra
um tratado filosfico que tem como objetivo principal apresentar o sentido do
ser em geral, apresentar a estrutura possibilitadora de toda significao
possvel de ser. Ela organizada atravs da delimitao das condies de
possibilidade do desenvolvimento da questo do ser tendo em vista a
construo de uma ontologia fundamental.
Segundo Heidegger, o horizonte de sentido do conceito de ser tarefa
da elaborao de uma ontologia fundamental. Se a pergunta pelo sentido do
ser caracterizada como uma pergunta fundamental, como pretende o filsofo,
a investigao a que esta d origem tambm deve ser tomada como
fundamental. Como entender isto? Perguntar pela unidade de significao do
conceito ser e, mais especificamente, por sua condio de possibilidade,
significa reconhecer a necessidade de uma fundao para a ontologia. Assim,
atravs da elaborao da ontologia fundamental (Fundamentalontologie) torna-
se possvel reconhecer mais facilmente esta carncia. Como veremos mais
frente, esta designao de ontologia fundamental deve ser entendida em
funo das ontologias regionais.
Logo, na tentativa de legitimar a problemtica ontolgica, Heidegger
apresenta, na parte introdutria de Ser e Tempo, a necessidade de colocar
novamente a questo do ser. Heidegger diz que a questo sobre o sentido do
ser foi simplesmente deixada de lado em sua abordagem.16 A exegese
dominante interpretou o conceito ser desde o esquema da presena
(Gegenwart). O que significa que o representar metafsico, ao longo da histria
16 Cf. HEIDEGGER, 1999, 1.
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da filosofia, impediu a colocao adequada da pergunta pelo sentido do ser.
Mltiplas so as significaes concedidas ao ser no decorrer da histria da
ontologia, como investigou o autor.17 No entanto, na perspectiva heideggeriana,
o modo de acesso pergunta pelo ser do ente encontra-se limitado por uma
idia especfica de ser surgida de determinada regio deste mesmo ente: a
idia de ser como constncia do ser simplesmente dado. (HEIDEGGER,
1999, p. 144, 21) O ser apreendido da mesma forma que se apreende o
ente, enquanto substncia. Nesta forma de operar, o ser permanece
inacessvel porque apreendido com base no entendimento lgico e em suas
regras fundamentais. Ao se colocar a questo do ser a partir de certa
rigorosidade representativa extrai-se o investigado do mbito que lhe prprio,
o mbito ontolgico. Como afirma Heidegger, enquanto questionado, o ser
exige, portanto, um modo prprio de demonstrao que se distingue
essencialmente da descoberta de um ente (id. Ibid. p. 32, 2).
Ao afirmar ser necessrio que a atitude filosfica execute a retomada do
problema do sentido do ser, Heidegger discute no 1 de Ser e Tempo alguns
preconceitos que favorecem e mantm a falta de um questionamento do ser
ou, como dissemos, a carncia de fundao da ontologia. Esses preconceitos
so os seguintes: Ser o conceito mais universal, [...] uma compreenso do
ser j est sempre includa em tudo que se apreende do ente.
Constantemente empregamos o conceito ser e compreendemos o que ele, a
cada vez, pretende designar. Falar acerca da universalidade deste conceito,
para Heidegger, no de modo algum resolver o problema de sua significao,
17 Ver os cursos pronunciados por Heidegger na Universidade de Marburg durante o semestre de vero
de 1926 e o semestre de inverno de1927, respectivamente, A filosofia antiga e A histria da filosofia de
So Tomas a Kant.
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pelo contrrio, somente perceber sua extrema obscuridade. 2) O que se pode
concluir da sua mxima universalidade, que o conceito ser , tambm,
indefinvel, pois a palavra a ser definida, ser, j empregada na prpria
definio: O ser ... Neste caso, a indefinio do conceito assinala para o fato
de que o ser no poderia ser conhecido ao modo do ente; e, 3) Ser um
conceito evidente por si mesmo. Em todo conhecimento, proposio ou
comportamento com o ente e em todo relacionamento consigo mesmo, faz-se
uso do ser e, nesse uso, compreende-se a palavra sem mais (Id. Ibid.. p.
28/29, 1). De acordo com Heidegger, justamente o carter de indefinio e
de auto-evidncia do conceito de ser que dispensaria um questionamento
acerca de seu sentido. Um problema que ele verifica estar enraizado na histria
da Filosofia. No entanto, pergunta Heidegger: A questo do sentido do ser e a
tarefa de um esclarecimento deste conceito no formam pseudoquestes, se
acreditamos dogmaticamente - como a regra que o ser o conceito mais
universal e o mais simples?.(HEIDEGGER, 1985, p. 33, 4) Considerando
isto, como compor essa interrogao pelo ser? Por onde avanar at a questo
do seu sentido? A partir de que o determinar? Como o analisar? Sobre qual
caminho se deve avanar at a questo do sentido do ser em geral? Na
perspectiva de Heidegger retomando um dos procedimentos da
fenomenologia reflexiva de Husserl para transpor o campo de interrogao
em direo a um desligamento da representao e do pensamento do ser
como presena, inicialmente, esse caminho deve encontrar-se desvinculado do
pensamento filosfico que tem como base pressupostos aceitos sem um
profundo questionamento. Segundo Heidegger, faz-se necessrio romper com
os sistemas filosficos que inverteram a questo do ser ao perguntarem pelo
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ser desde o ente e retroceder origem do pensamento acerca do seu sentido.
O que significa: a retomada do problema da fundao da ontologia e a
explorao das suas possibilidades encobertas.
A anlise dos preconceitos que impediram o questionamento originrio
da questo do ser garante a proposta de retomada da questo, pois atesta que
ela nunca foi colocada de forma clara, ou pelo menos, de maneira suficiente.
Ela nos mostra, fundamentalmente, que o conceito ser comumente utilizado
por ns. Uma interpretao do ser oferecida sempre que nos relacionamos
com o ente. fato para o autor que j dispomos de certa compreenso do ser
(Seinsverstndnis) do ente ao nos relacionarmos com ele; experimentamos a
sua realidade, a sua estabilidade, decidimos a sua verdade, etc.
Compreendemos este conceito porque ele subjacente a toda atitude em
relao ao ente. Considerando isto movemos sempre numa compreenso do
ser, numa anterioridade que possibilita compreendermos os entes que saem
ao encontro dentro do mundo. Alguma coisa como o ser se oferece a ns na
compreenso do ser do ente. O que significa que o sentido do ser deve
encontrar-se, de alguma maneira, j disponvel ao ser-a. Na interpretao
heideggeriana, a pergunta fundamental pela possibilidade do conceito ser
conduz pergunta, mais originria, sobre a concepo pr-ontolgica de ser.
Apesar de fazermos uso do conceito ser no podemos determin-lo
teoricamente, ele se apresenta a ns numa total incompreenso. Ao fazer uso
desta palavra deparamo-nos com uma variedade de significados alcanada
pelo conceito. Esta idia confusa de ser Heidegger chama de concepo pr-
ontolgica do ser ou, podemos dizer tambm, uma concepo pr-conceitual.
Contudo, segundo o autor, a partir da tematizao dessa compreenso
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indeterminada do conceito de ser, a qual se move no limiar de um mero
conhecimento verbal, que ela pode ser superada. (HEIDEGGER, 1999, p. 31,
2) Esta compreenso em que desde sempre nos movemos a indicao que
Heidegger segue como mbito fundamental da procura pelo sentido do ser.
Apesar de ser uma indicao um pouco vaga e indeterminada, ela auxilia na
busca da questo heideggeriana. A compreenso que sempre mantemos de
ser em todas as nossas relaes fornece o acesso questo do seu sentido.
Vemos, ento, que a questo do sentido do ser somente surge porque, desde
sempre nos movemos numa compreenso do ser, ainda que obscura,
favorecida pelo prprio existir. Segundo o filsofo, ns no sabemos o que diz
'ser'. Mas quando perguntamos o que 'ser' ns nos mantemos numa
compreenso do '', sem que possamos fixar conceitualmente o que significa
esse ''" (Id. ibid., p. 31, 2). Como dissemos, na compreenso pr-ontolgica
o sentido do ser encontra-se de algum modo disponvel ao ser-a. Esta
afirmao diz ainda que, tal ente, desde sempre, encontra-se envolvido em
uma compreenso de ser da qual brota a pergunta pelo seu sentido e a
tendncia para a conceituao.
Como, ento, se d o acesso ao ente enquanto tal, nossa relao com
ele? preciso que haja algo que nos encaminhe a este acesso. Ser esta a
funo ocupada pela compreenso ontolgica? Visto que o ente enquanto tal
no se d a conhecer conceitualmente, ele deve se mostrar numa significao
inicial. Isto quer dizer que preciso compreender algo como o ser para se ter
experincia do ente enquanto tal. Desse modo, a ontologia fundamental
concretiza-se como Analtica do Ser-a. A fundao da ontologia se torna uma
explicao da possibilidade intrnseca da compreenso do ser. Desse modo,
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somente atravs da anlise da constituio ontolgica do homem enquanto
existncia que a pergunta sobre a compreenso pr-ontolgica do ser pode ser
entendida. Nessa proposta de investigao da estrutura da existncia, de uma
Analtica do ser-a, Heidegger intenta trazer luz novamente a compreenso
originria que temos do ser e que ficou esquecida ao longo da histria da
Filosofia.
1.3. O PRIMADO NTICO E ONTOLGICO DA QUESTO DO SER: A ONTOLOGIA
FUNDAMENTAL
Nos pargrafos 3 e 4 de Ser e Tempo, Heidegger fala do alcance do
conceito de cincia e a posio que ela ocupa em relao colocao do
problema do ser. As cincias positivas se ocupam do estudo de uma regio
determinada dos entes (Sachgebiet), previamente aberta por um esforo
desenvolvido como ontologia regional. Para que haja certo avano para as
cincias, necessrio que o domnio correspondente a elas esteja de antemo
descoberto, de modo a que os conceitos-base, isto , os conceitos sobre os
quais suas teorias se apiam, e mesmo os objetos investigados, fiquem
disponveis a uma primeira aproximao possibilitadora da investigao. o
que Heidegger chama de experincia pr-cientfica. A experincia pr-cientfica
prope uma interpretao inicial das diferentes regies dos entes. A partir
desse domnio que surgem os pressupostos que guiam todas as cincias
positivas. No entanto, h um rompimento da cincia com esse domnio pr-
cientfico. A investigao cientfica acaba por desconsiderar a natureza de
seu campo de pesquisa, ou seja, do campo que d origem aos pressupostos
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do qual parte. Desse modo, os conceitos condutores que abrem o campo de
estudo de determinada cincia no so investigados e muito menos
esclarecidos; seus conceitos condutores so operados cegamente.
Podemos retomar aqui a discusso de Heidegger com Husserl no que
diz respeito diferena entre a analtica existencial e a fenomenologia
transcendental. O escopo husserliano era o de uma concepo de filosofia
como cincia, isto , de uma filosofia fenomenolgica; sendo assim, o mbito
pr-predicativo que aberto pela vivncia intencional mostra que o estudo
fenomenolgico deve ser considerado como anterior a toda relao da
conscincia com o mundo. O que significa que o carter prvio da investigao
fenomenolgica serviria de base a todos os ramos do conhecimento, ou
melhor, se colocaria antes de toda a cincia explicativa do real, antes da
cincia fsica da natureza, da psicologia e antes mesmo de toda
metafsica.(HUSSERL, 1999, p. 21, II) Assim, o conhecimento seria explicitado
numa total unidade desde a fundao concedida pela intencionalidade.
Somente esta investigao permitiria elucidar verdadeiramente, segundo
Husserl, a experincia mundana. No caso de Heidegger, a analtica existencial
se apresenta como ponto de partida da anlise de fundamentao das
ontologias regionais. A analtica do ser-a no pretende ser um corpo
doutrinrio totalmente incontestvel, mas, ao contrrio, prope ser uma
interpretao que deixa em aberto a possibilidade de ramificar-se e continuar
crescendo.
Seguimos com a anlise crtica de Heidegger s cincias regionais.
Segundo o filsofo, necessrio um questionamento acerca do domnio em
que a cincia se move, para, a partir da, chegar a um questionamento radical
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capaz de antecipar a interpretao do ente em sua constituio fundamental. A
pergunta da cincia deve ser pela prpria estrutura que a possibilita obter seus
conceitos-base. No obstante, o mtodo utilizado pelas cincias incapaz
dessa elaborao. Ela apenas consegue se firmar metodologicamente porque
no se volta para os problemas de fundao; ela no pode atravs de seus
mtodos e princpios compreender a estrutura que a torna possvel. Somente
atravs da ontologia que o setor cientfico tem como pensar os conceitos do
qual parte. Atravs da anlise do ser dos entes com o qual as cincias se
ocupam que elas podero saber mais sobre si mesmas. Assim, a carncia de
fundao somente pode ser contornada atravs de uma ontologia regional, isto
, o que deve ser questionado so as estruturas possibilitadoras que permitem
ao ente investigado aparecer como tal. Para Heidegger, antecipar um
determinado setor do ser liber-lo em sua constituio ontolgica e
disponibilizar para as cincias as estruturas obtidas enquanto perspectivas
lcidas de questionamento". (HEIDEGGER, 1999, p. 37, 3)
A cincia deve, portanto, ser pensada como um modo de ser possvel ao
ser-a. Um modo de ser no qual o ser-a se comporta com entes que ele
mesmo no precisa ser. (Id. Ibid. p. 39, 4) Este ente carrega em si uma
compreenso de sua constituio ontolgica, de sua existencialidade, que est
implicada na idia de ser em geral. Isso faz dele um ente que existe
compreendendo ser. Como dissemos anteriormente, o ser-a, por ser em si
mesmo ontolgico, determinado pela existncia, e para tanto, carrega uma
compreenso pr-ontolgica do ser. Assim, na estrutura do ser-a que as
ontologias se fundam. Isto justifica porque a ontologia fundamental deve ser
procurada na Analtica existencial. Pois na Analtica que sero apresentadas
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a condio de possibilidade da projeo de ser pela compreenso de ser.
Portanto, a tarefa originria de uma ontologia regional exige a elaborao de
uma ontologia fundamental. As ontologias regionais dos diversos domnios dos
entes que fundam as cincias precisam estar fundadas numa ontologia
fundamental. Considerando, portanto, que o questionamento ontolgico mais
originrio do que as pesquisas nticas das cincias positivas, as investigaes
sobre o ser dos entes devem considerar ainda o questionamento acerca do
sentido do ser em geral. (Id. Ibid. p. 37, 3). Deste modo, a ontologia
fundamental deve ser vista como uma investigao sobre o sentido do ser em
geral, isto , uma investigao sobre o horizonte no qual o ser se mostra. Uma
ontologia fundamental deve ser realizada a fim de que se possa apreender o
ser. A questo do ser visaria no apenas s condies a priori de possibilidade
das cincias, mas ainda, s condies de possibilidade das prprias
ontologias que antecedem e fundam as cincias nticas. (Id. ibid. p. 37, 3).
Alm do primado ontolgico, a questo do ser possui ainda um primado
ntico frente aos demais questionamentos que o ser-a pode se colocar. Para
entendermos este primado preciso considerar, primeiramente, que no
discurso terico das cincias, no que diz respeito aos determinados domnios
do ente, as teorias cientficas encontram-se enraizadas em atitudes e
comportamentos. Como foi dito, a cincia ou o fazer cientfico um modo de
ser possvel ao ser-a. Ela enraza-se no ente que escolhe se comportar de tal
ou tal maneira. (GREISCH, 1994, p. 85). Desse modo, para esclarecer o
primado ntico da questo do ser preciso, antes, abordar o primado ntico do
ser-a na colocao do problema ontolgico.
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H um ente entre todos os outros que possa guardar em si a
possibilidade de uma elaborao acerca do sentido do ser? Se h, o que o
distingue de todos os outros entes? Na perspectiva ontolgica, todos os
objetos, sejam eles naturais, culturais, ideais, reais e etc., possuem sua
dignidade ontolgica porque dizem respeito ao ser ou a maneiras de ser. No
entanto, elaborar a questo do sentido do ser significa trazer luz o questionar
mesmo. Nos Prolegmenos Histria do Conceito de Tempo, Heidegger
(2006, p. 182, 16) afirma que o nexo entre a questo do ser e o ente
interrogante, o ser-a, ocorre porque ns somos esta questo. Este perguntar
pelo ser j , por sua vez, um ente. (Id. ibid., p. 185, 17). Afirma o autor
(2006, p. 185): perguntar pelo ser ele mesmo um ente que se d junto com a
questo acerca do ser ao empreender o perguntar, caso se o perceba
explicitamente ou no. No contedo da questo encontramos o mesmo que
pergunta. Heidegger procura legitimar esta questo quando afirma ser preciso
entender corretamente o que se pergunta ao perguntar pelo ser. (Id. ibid., p.
185, 16). O que est em jogo quando nos colocamos esta questo? preciso
entender que o interrogar est intrinsecamente relacionado ao ente que
pergunta: o ser-a. Privilegiar o ser-a como o ente capaz de acessar o conceito
de ser significa que ele o ente habitado pela questo do sentido do ser. O
que se busca, portanto, tornar acessvel esse ente que pergunta e que
projeta questes. Pois faz parte do seu modo de ser o questionar. O que
significa que o ser-a existe estabelecendo uma relao com o seu prprio ser.
Ele no nunca uma ocorrncia ou algo que tem lugar, ele sempre mais e
outra coisa que uma simples ocorrncia. Existindo se relaciona com e por sua
existncia. O ser-a possui o privilgio frente aos demais entes de
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compreender-se como possibilidade de ser deste ou daquele modo. Existindo o
ser-a est decidindo-se a todo o momento, pois se compreende na lida
consigo mesmo. A compreenso que esse ente tem de seu ser ou de sua
existncia se d onticamente, ou seja, esta compreenso se d no prprio
existir, no fato concreto da existncia. A partir de sua existncia que o
homem se compreende; no existir mesmo ele compreende seu ser. Portanto, a
questo da existncia sempre s poder ser esclarecida pelo prprio existir
(Id. ibid., p. 185, 16).
A tese de Heidegger de que da compreenso ntica resultam
estruturas ontolgicas. Na compreenso de seu ser, o ser-a compreende
tambm o mundo e os entes que esto dentro dele. Desta forma, uma Analtica
existencial j se encontra em tal compreenso ntica. A possibilidade de uma
construo ontolgica encontra-se ou funda-se na compreenso ntica da
existncia, onde se d uma compreenso pr-ontolgica do ser. Pois na
compreenso do ser o ser-a caracterizado em seu ser mesmo previamente
elaborao de toda ontologia explcita.(GREISCH, 1994, p. 86) Uma
investigao ontolgica sempre uma possibilidade a ser projetada por um
ente que existe. De modo que o fundamento da prpria compreenso de ser,
ou da ontologia, o ser-a. O ser-a possui a capacidade terica de
desenvolver uma ontologia por ser em si mesmo um ente ntico e ontolgico.
Como ente ontolgico, isto , que acolhe em si uma compreenso pr-
ontolgica de ser, possvel perguntar-se ontologicamente com anterioridade
aos outros entes. Perguntar-se pelo sentido do possvel. Desse modo, o ser-a
a condio ntico-ontolgica de possibilidade de todas as ontologias
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37 37
regionais e o primeiro ente a ser interrogado no questionamento pelo sentido
do ser.
Como afirma Heidegger, a analtica existencial possui razes nticas
existencirias. (HEIDEGGER, 1999, p. 40, 4). Na cotidianidade mediana se
determina o que constitui o aspecto ntico do ser-a. Interpretar este ente
ontologicamente implica abordar a possibilidade mesma do existir, a
existencialidade da existncia. Isto significa que na cotidianidade o ser-a deve
ser visto no pela diferena de um modo de existir, isto , a partir de uma
determinada idia de existncia, mas como um modo indeterminado que
prprio da cotidianidade do ser-a, na qual ele se encontra de incio e na maior
parte das vezes. (Id. ibid., p. 79, 9). Este modo indeterminado do ser-a deve
ser considerado ontologicamente, pois na indiferena cotidiana que
encontramos as estruturas ontolgicas que compem a existncia. Segundo
Heidegger (1999, p. 80, 9), estas estruturas so encontradas a priori na
cotidianidade.
1.4. O CONCEITO HEIDEGGERIANO DE FENOMENOLOGIA
No perodo de 1926 a 1927, Heidegger profere um curso em Marburg
publicado sob o ttulo: Os problemas fundamentais da fenomenologia (Die
Grundprobleme der Phnomenologie). Esta a primeira elaborao formal,
desde a assimilao do pensamento de Husserl como seu assistente,
diretamente ligada fenomenologia enquanto procedimento metdico. Este
trabalho surge contguo preparao de Ser e tempo, marcando a autonomia
filosfica do filsofo alemo. Assume Heidegger, assim, sua prpria verso da
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38 38
fenomenologia. No referido curso, o filsofo admite a fenomenologia como
mtodo para se investigar a compreenso de ser do ser-a e determinar seus
elementos fundamentais. Ao contrrio das demais cincias, a fenomenologia se
ocupa dessa compreenso que pertence ao ser-a. O que significa que ela a
interpretao terico-conceitual do [sentido do] ser, de sua estrutura e de suas
propriedades (HEIDEGGER, 1985, p. 28, 3) O ser e o que o constitui o
fenmeno privilegiado na investigao fenomenolgica porque o ser funda e
confere sentido ao que se mostra diretamente. Ento, seria uma busca pelo
indeterminado, o ser, e como ele experimentado frente ao determinado, ou
seja, frente ao que se mostra diretamente. Segundo o filsofo, a pergunta pelo
sentido do ser uma pergunta eminentemente fenomenolgica. Heidegger
entende que ser sempre ser de um ente.(HEIDEGGER, 1999, p. 35 - 3)
Essa a intencionalidade do ser. A fenomenologia , portanto, em seu
contedo, a cincia do ser dos entes, ela ontologia. Consideremos, ento,
que a fenomenologia de Heidegger tem como meta investigar o sentido do ser
a partir de um nico modo de ser entendido em sua possibilidade e unidade
inversamente ao que pensava a ontologia antiga que entendia o ser numa
diversidade de significaes.18
O propsito deste captulo, portanto, apresentar a definio de
fenomenologia exposta em Ser e Tempo, bem como, sua articulao com a
analtica existencial do ser-a. Na anlise do que seja este procedimento
fenomenolgico, preciso que nos debrucemos sobre a interpretao do 7
que trata da fenomenologia. Como nos informa o autor, esta uma exposio
provisria e de ndole terminolgica do conceito de fenomenologia. Este carter
18 Conferir nota 19.
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provisrio ou preliminar do mtodo fenomenolgico nos avisa que ele no pode
ser elaborado explicitamente fora do movimento da prpria anlise do seu
objeto. Por conseqncia, este procedimento no poder partir da
demonstrao e da deduo, mas de uma mostrao (Aufweisung). De
acordo com a constituio fundamental do ser-a, o conceito de mtodo
apenas poder ser distinguido e devidamente delineado, se considerado desde
a anlise do ser e do sentido. O mbito em que transita o mtodo
fenomenolgico no pode ser determinado por um ente previamente dado. Ao
contrrio, na no delimitao do objeto que se forma propriamente o mtodo.
Com a expresso fenomenologia Heidegger refere-se a um conceito de
mtodo. Este termo no pretende exprimir o contedo essencial dos objetos,
mas o modo como os objetos so, isto , tal como se mostram em si mesmos.
A fenomenologia para Heidegger no um mero mtodo formal que pode ser
justificado antes mesmo da prpria investigao. A originariedade do conceito
de mtodo est em prender-se estrutura possibilitadora das coisas em si
mesmas, contrariamente qualidade essencial de determinada coisa. A
fenomenologia se caracteriza por manter aberta a tendncia para as coisas
mesmas e liber-las dos atrelamentos inautnticos e constantemente
emergentes e sorrateiramente atuantes (Figal, 2005, p. 34). Portanto, o
procedimento fenomenolgico se determina por um questionar prprio que
surge do comportamento existencial do ser-a, o questionar hermenutico.
Justifica-se, assim, a necessidade de reiterar expressamente a questo que
interroga pelo ser apresentada no primeiro pargrafo de Ser e Tempo. Desse
modo, o questionar filosfico que caracteriza o conceito de mtodo
fenomenolgico, interroga-se pelo sentido do ser e, no mais, pelo ser do ente.
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Contrariamente s cincias positivas que se perguntam pelo ser de um ente
previamente dado. Com efeito, apenas a partir do que procede da
investigao existencial juntamente com a aplicao dos seus principais
momentos (reduktion, konstruktion e destruktion. (HEIDEGGER, 1985, p. 41 -
5)). que se torna possvel determinar propriamente a noo de fenomenologia
heideggeriana. O que significa, que o conceito de fenomenologia apenas
poder ser apresentado se estiver em movimento na analtica do ser-a. Deste
modo, o mtodo fenomenolgico encontra-se em estrita relao com a analtica
existencial porque, como explicitamos um pouco atrs, atravs da anlise das
estruturas do ser-a que o ser e seu sentido se revelam. Na dinmica prpria da
analtica existencial que este conceito pode adquirir forma. Ele se determina
desde o mbito de interrogao prprio ao ser-a pelo ser e seu sentido, e
no antes dele. Heidegger planejava uma teorizao mais completa e definitiva
sobre o conceito de fenomenologia a ser elaborada na terceira seo do
tratado Sein und Zeit quando da anlise do ente interrogante. Mas seu intento
no chegou a se efetivar. Uma tentativa neste sentido encontrada na
elaborao do curso de 1927, Die Grundprobleme der Phnomenologie obra
utilizada parcialmente em nossa pesquisa. Em conseqncia dessa mudana
de planos, decisiva para a tematizao do mtodo de Heidegger, um
procedimento que, como vimos, fugia de toda possvel determinao explcita,
passa, no pensamento posterior do filsofo, a uma abordagem do ser como
evento da verdade. 19
Retomamos a abordagem do pargrafo sobre a fenomenologia.
Primeiramente, recuperaremos a anlise dos termos fenmeno e logos
19 Conferir: BLANC, M. F. 2001, p. 215.
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ambas as partes componentes do termo fenomenologia. Em seguida,
exporemos os trs momentos constitutivos do mtodo fenomenolgico:
reduo, construo e destruio na tentativa de alcanar uma primeira idia
de sua significao. Visamos recuperar a preparao inicial deste
procedimento na edificao da anlise da questo do ser fora do mbito que
subjuga o ser presena.20
Vemos que a retomada da questo sentido do ser est claramente
associada mxima fenomenolgica: s coisas em si mesmas. Pois, o
procedimento fenomenolgico pretende descrever tudo o que aparece tal como
se apresenta em si mesmo numa tentativa de tomar os fenmenos a partir
deles mesmos. Entendido, ento, que a abordagem fenomenolgica tem como
meta a busca do ser, o que nesta investigao ser questionado o ser
mesmo. Este "[ir] s coisas mesmas!" deve ser compreendido como
possibilidade existencial do ser-a; como um procedimento que tem carter
transcendental. Em Ser e Tempo esta mxima vista de duas maneiras.
Primeiro, "ir s coisas mesmas" possui o significado de ir contra "construes
soltas no ar" e "pseudoquestes que se apresentam". (HEIDEGGER, 1999, p. 57,
7) Este conceito est vinculado s discusses crticas que Heidegger mantm
com as elaboraes tericas da tradio filosfica. Segundo o autor, para um
esclarecimento do mtodo fenomenolgico no se deve recorrer s ontologias
historicamente dadas. A investigao fenomenolgica no deve partir de teses
j enunciadas sobre o ser. Este procedimento tambm no deve prescrever
"um ponto de vista" ou uma "corrente" filosfica na qual tratar o objeto ou
mesmo ancorar-se em artifcios tcnicos. (Id. Ibid., p. 57, 7). Ainda que o
20Ser empregada nesta abordagem a obra de Heidegger intitulada: Die Grundprobleme der
Phnomenologie.
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conceito ser seja um termo comum para a tradio e possa ser simplesmente
empregado, sem mais, ele no pode, no entanto, ser considerado desde uma
perspectiva exterior, isto , com base em princpios ou pressupostos. Num
segundo momento, no qual esta mxima explicitada atravs da anlise dos
termos lgos e fenmeno, veremos que a fenomenologia ser esboada a
partir de um horizonte terico que toma os objetos como fenmenos, visando
certa maneira de abord-los.
Como vimos, para que os objetos alcancem a forma de fenmeno
preciso transpor os encobrimentos proporcionados pelas construes tericas
inadequadas da tradio filosfica. preciso considerar, segundo Heidegger,
que um fenmeno pode encobrir-se de variados modos. Primeiramente, ele
pode nunca ter sido descoberto e, por isto, encontrar-se velado. Ou ainda, o
fenmeno pode encontrar-se entulhado, isto significa que ele foi descoberto e
voltou a encobrir-se. Neste caso, o encobrimento pode ser total ou parcial. Por
estar na forma de fenmeno, o objeto encontra-se, j que parcialmente
encoberto, na forma de total aparncia (Schein) aproximando-se a uma
desfigurao. De acordo com o filsofo, para se entender de modo originrio o
termo fenmeno preciso recuperar, num primeiro momento, a significao
que esta palavra alcana entre os gregos. Para estes, fenmeno quer dizer "o
que se mostra, o que se revela". Neste mostrar-se o ente revela-se em si
mesmo, tal como . Da no se exclui, no entanto, a possibilidade do ente
revelar-se como aquilo que ele no , ou seja, de mostrar-se como parecer
ser. Neste caso, o fenmeno seria visto tal como ele no , caracterizando-se
como parecer ou aparncia. A coisa no mostrada tal como em si mesma.
O fenmeno mostra a coisa como ela parece ser. Neste sentido, fenmeno
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designa um bem, que se deixa e faz ver como se fosse um bem, mas que na
realidade no assim como se d e apresenta.(Id. Ibid., p. 58, 7) Contudo,
o fenmeno como aparncia, somente ocorre quando algo pretende mostrar-se
assim como . Este significado originrio de fenmeno fundamenta e sustenta
o aspecto de... do ente. O que significa que a primeira significao de
fenmeno como mostrao, revelao, como algo que tende a mostrar-se,
funda o seu segundo sentido, mais ou menos negativo, de parecer, aparncia,
semelhana e iluso, etc., e no o contrrio.
A palavra fenmeno pode ainda ser entendida num segundo sentido
ainda mais derivado: como manifestao (Erscheinung). Porm, esta distino
no exprime o mesmo que aparncia. Manifestao indica algo que em si
mesmo no se mostra, contrariamente aparncia que mostra algo que em si
mesmo no . Ou seja, a manifestao indica o que e a aparncia mostra o
que no . Por exemplo, as manifestaes de uma doena no mostram a
doena, mas apenas deixam dela uma indicao. A doena no se mostra
como tal. A manifestao aponta a doena que em si mesma no se mostra.
Deste modo, a manifestao tem o sentido de um anunciar-se de algo que no
se mostra. O no-mostrar da manifestao no o mesmo que o da aparncia
j que a manifestao nunca poder ter aparncia de algo, pois apenas indica
algo que no se mostra. O manifestar-se no se mostra enquanto tal, apenas
anuncia-se. Por isto, a manifestao nunca ser um mostrar-se no sentido do
fenmeno. O fenmeno da manifestao se sustenta no fenmeno em sentido
originrio, isto , no mostrar-se de algo. Para que a manifestao seja possvel
ela deve ter como suposto o mostrar-se de alguma coisa, visto que ela indica
algo que se manifesta, e justamente por isso, manifestao. Deste modo, na
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medida em que algo pode anunciar-se a partir do que se mostra, o fenmeno
pode transformar-se em aparncia, isto significa que a manifestao pode
tornar-se tambm simples aparncia. Por exemplo, o rosto vermelho pode ser
interpretado como anncio de febre. No entanto, a ocorrncia do rosto
avermelhado pode ser devido iluminao. O rosto parece vermelho, ele no
est vermelho. Neste caso, o rosto vermelho no anncio de febre. Logo, a
manifestao uma simples aparncia.
Prender-se ao fenmeno enquanto o que aparece, desde suas
caractersticas empricas e acidentais significa um modo no originrio, e
mesmo deturpador, do autntico modo de dar-se das coisas. Na maioria das
vezes o fenmeno encontra-se desfigurado comprometendo a anlise que dele
fazemos. Precisamos considerar como fenmeno a estrutura mesma que
possibilita que o ente seja aquilo que , ou seja, pensar o inaparente, o que
subjaz ou encontra-se encoberto no ente. O fenmeno ocorre num duradouro
jogo entre ocultamento/desocultamento do ente. No processo de surgimento do
ente uma parte da sua estrutura se vela para que o ente surja em totalidade,
ainda que esta totalidade seja parcial, vista da perspectiva fenomenolgica. A
parte que volta a encobrir-se possibilita o prprio aparecer do ente. Por isso,
um momento estrutural do ente continua necessariamente encoberto. Contudo,
preciso perguntar: se a fenomenologia de Ser e Tempo visa justamente
tematizar essa estrutura ontolgica, como ela pode faz-lo? H segundo
Heidegger, uma situao existencial prpria do ser-a que prepara toda questo
sobre o ser. Essa situao existencial ou modo de ser prprio expresso pelo
fenmeno da compreenso ontolgica, constitutivo e subsistente a ele. Isto
quer dizer que a indicao formal da idia de existncia e de ser sempre esteve
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orientada por esta compreenso ontolgica. Falemos dela, pois, atravs de
sua elaborao que poderemos perceber que tais idias guardam em si certo
contedo ontolgico. (Id. ibid., p. 107, 63). Qualquer modo de ocupao
pressupe que o ser-a j tenha se compreendido de algum modo. Apesar da
falta de determinao ontolgica suficiente (Id. ibid., p. 106)., preciso admitir
que desde sempre o ser-a se mostra e se percebe enquanto ser-no-mundo, e
no como algo simplesmente dado. Essa antecipao prpria do ser-a que
torna possvel a ele compreender-se em qualquer situao. Assim, atravs da
elaborao ontolgica constitutiva do ser-a que se poder obter um
esclarecimento ontolgico da idia de ser. E, diz Heidegger, essa elaborao
s possvel com base numa interpretao originria do ser-a feita pela idia
de existncia. Desse modo, a fenomenologia de Ser e Tempo tematiza aquilo
que s pode ser conceituado na medida em que j compreendido. A
conceituao fenomenolgica pressupe necessariamente o que pretende
conceituar, de modo que mantm com o indicador formal uma relao de
circularidade. O conceito fenomenolgico deixa e faz ver o ente em si mesmo
tal como se mostra a partir de si mesmo. O que est pressuposto e deve ser
compreendido o prprio interpretar constitutivo do ser-a. O interpretar
entendido como um modo de ser em relao ao ser.
Assim, retomando a anlise, preciso reconhecer que o conceito de
fenmeno, tal como utilizado at aqui, um conceito puramente formal. Pois,
no sabemos ainda a qual gnero de realidade ele pode ser aplicado.
(GREISCH, 1994, p. 103). Justifica-se, desse modo, a necessidade de separar
o conceito fenomenolgico e fundamental de fenmeno, o fenmeno como o
mostrar-se em si mesmo, do conceito no fenomenolgico e derivado, isto ,
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em que a coisa no tomada propriamente, mas sua caracterstica mais
essencial provm de vrios preconceitos admitidos acerca do sentido de ser do
ente no decorrer da histria da Filosofia. Segundo Heidegger, uma apreenso
do conceito fenomenolgico de fenmeno requer que o ente interpelado esteja
determinado como o que se mostra enquanto tal. Caso este critrio no seja
admitido, teremos apenas uma noo formal de fenmeno, o que significa que
no teremos um contedo ao qual aplic-lo. Ou seja, se entende por fenmeno
o que j sempre se mostra nas manifestaes [...] e que pode mostrar-se
tematicamente, [ou, como aparncia]. Continuando a explicao terminolgica
do termo fenomenologia com vistas a alcanar uma idia mais verdadeira deste
conceito, passamos interpretao da noo grega de lgos.
Para alcanar o sentido prprio do conceito de lgos, Heidegger
recupera a polissemia que este conceito teve com os filsofos gregos Plato e
Aristteles, mostrando que seus vrios significados fizeram com que seu
significado fundamental tendesse disperso, aparentando no haver um
significado bsico. Para Heidegger, h um significado primordial para este
conceito: discurso. A plurivocidade do conceito de lgos guarda em sua base
a significao de discurso. No entanto, como entender essas variadas
significaes (tais como: razo, julgamento, conceito, definio e fundamento)
imbricadas na noo de lgos como discurso? Inicialmente, entendemos que
Heidegger toma esta questo como um problema fenomenolgico e no
semntico. Entre os gregos, o significado da noo de lgos como discurso,
quer dizer: tornar manifesto, colocar vista, fazer visvel, revelar, fazer
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conhecer. Sua significao bsica , portanto, revelar aquilo de que trata o
discurso declarativo. (HEIDEGGER, 1999, p. 62 - 7) 21.
Este deixar e fazer ver as coisas que acontece como modo de ser do
ser-a se efetiva na linguagem. Segundo Heidegger, em seu exerccio
concreto, o discurso (deixar ver) tem o carter de fala, de articulao em
palavras. (Id. ibid., p. 63 - 7). Justamente por ter a funo de tornar
manifesto que o lgos pode ser verdadeiro ou falso. Na perspectiva
fenomenolgica, portanto, a verdade do lgos entendido aqui como deixar
ver, deixar conhecer significa desvelar o ente sobre o qual se discorre no
dizer. A verdade , ento, desveladora do ente, ela deixa e faz ver o ente como
algo desvelado. Em referncia verdade enquanto desvelamento que a
proposio definida. Contrariamente ao ser-verdadeiro, tem-se a falsidade do
lgos no sentido de encobrimento. A falsidade deixa e faz ver algo como o que
ele no . Ela encobre o ser-verdadeiro do ente. Ela encobre o em si mesmo
do ente. A falsidade interpreta algo a partir de outro algo, ou seja, recorre
sempre a alguma outra coisa e, assim, o prope como o que ele no . Nesta
estrutura encontra-se, portanto, tanto a possibilidade de descobrimento quanto
de encobrimento.
Na interpretao de Heidegger, torna-se importante afirmar a
impossibilidade da concepo de verdade numa teoria lgica da proposio ou
do julgamento. O lgos no sentido proposicional no o lugar primrio da
21 Para justificar a escolha da noo de discurso como o significado bsico e primordial do lgos
Heidegger remete-se a Plato e Aristteles, pois eles utilizavam o verbo tornar manifesto (Offenbar
machen) para caracterizar a funo fundamental de discurso. Desse modo, eles seriam os primeiros a
acenar para a essncia fenomenolgica da linguagem mesmo aceitando a plurivocidade do conceito. Cf.
(Greisch, 1994, p.104).
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verdade.22 O discurso declarativo apenas uma modalidade particular do
deixar e fazer ver. O que Heidegger pretende, ento, alargar o conceito de
verdade, e para isto tem como via a perspectiva grega de lgos, segundo a
qual inclue na anlise do lgos um poder relevante prprio da sensao
(aisthsis). Segundo o autor, a verdade anterior ao lgos a simples
percepo sensvel de algo. Na percepo originria s h descobrimento, algo
nunca se encontra encoberto. Perceber alguma coisa significa j poder captar
as determinaes do ser dos entes enquanto tais. Esta percepo nunca ser,
portanto, falsa. O que pode acontecer no haver percepo. Pois, nela, o
ente s pode estar descoberto; na percepo o ente s se mostra como o que
ele , nunca como o que ele no . Atravs do fenmeno ontolgico
caracterstico da noo de lgos enquanto deixar e fazer ver que a questo
do ser e de seu sentido pode ser pensada enquanto uma possvel elaborao.
A partir desta elucidao a fenomenologia pode ser expressa do
seguinte maneira: um "deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra,
tal como se mostra a partir de si mesmo". (HEIDEGGER, 1999, p. 65, 7)
Como indicamos anteriormente, este seria o conceito formal de fenomenologia.
Ele no apresenta contedo, no apresenta um tema a ser investigado, como
ocorre, por exemplo, com os termos teologia, biologia, etc., que se referem a
um objeto de estudo especfico - o ente divino, os viventes. Este conceito
formal de fenomenologia apresenta-se como um modo de abordar e de mostrar
o fenmeno em questo, afastando toda determinao que no leve para as
coisas elas mesmas.
22 Segundo Greisch (1994, p.104), Heidegger reconhece que a funo sinttica que caracteriza o discurso
declarativo tem uma significao puramente aponfntica.
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O conceito de fenomenologia deve apresentar como contedo: a
questo do ser. Com a desformalizao, pretende-se deixar e fazer ver o ser e
suas estruturas. Assim, a fenomenologia conduz os objetos forma de
fenmeno, do que se mostra em si. Com efeito, o fenmeno privilegiado na
investigao fenomenolgica o ser, visto ser a estrutura que concede sentido
e fundamento ao que se mostra diretamente. Fica, portanto, justificada a
afirmao de Heidegger de que a fenomenologia apenas se realiza enquanto
ontologia.23 Na perspectiva fenomenolgica, os fenmenos, de incio e na
maioria das vezes, no se do. (HEIDEGGER, 1999, p. 66, 7). Isto significa
que justamente o que deve ser considerado como fenmeno o que no se
mostra diretamente e na maioria das vezes. De incio, o ser no acessvel
seno a partir do ente. Como j aludimos, a tese de Heidegger a de que
fenmeno somente o que constitui o ser, e [que] ser sempre ser de um
ente. (Id. ibid., p. 68, 7). O ver fenomenolgico recai, ento, sobre o ente de
tal modo que possibilita a tematizao do ser deste ente. Visar
fenomenologicamente o ente reflete numa reconduo ao ser.
Realizada a aproximao inicial na tentativa de explicitar o procedimento
fenomenolgico a partir da anlise do fenmeno e do lgos, veremos ainda que
ele constitudo de momentos ou etapas que devem ser pressupostas para o
reto andamento da elaborao fenomenolgica.24
Este procedimento composto de trs momentos constitutivos que so
os seguintes: reduo, construo e destruio. A reduo fenomenolgica
23 A partir desta idia de fenomenologia Heidegger delimita, em seus trabalhos posteriores, de modo
mais concreto, o conceito de filosofia. Aqui j se encontra a tese de que a fenomenologia o mtodo
prprio da investigao filosfica. 24 Como indicamos anteriormente, a fim de apresentarmos as etapas constitutivas do mtodo
fenomenolgico, utilizamos a obra de Heidegger intitulada: Die Grundprobleme der Phnomenologie.
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descrita como a "reconduo do olhar fenomenolgico de apreenso do ente
qualquer que seja sua determinao para a compreenso do ser desse ente".
(HEIDEGGER, 1985, p. 40, 4). Este momento refere-se a um direcionar-se
para o ser em si mesmo desviando o olhar da simples efetividade do ente.
Percebemos que a reduo aponta para a diferena entre a filosofia e as
cincias positivas, ou melhor, para seus respectivos objetos. A filosofia dirige
sua investigao para o ser, enquanto as cincias positivas dirigem aos entes.
Na literatura comentada h intrpretes que vem a etapa da reduo
como um procedimento negativo do mtodo fenomenolgico, pois esta etapa
captaria a diferena entre filosofia e cincias positivas sem apresentar o
pressuposto sobre as estruturas e o sentido do ser com o qual a filosofia conta.
Ou seja, faz-se uma relao entre elas sem ter presente os dados concretos
quanto ao mbito e o objeto do questionar filosfico proposto pelo filsofo.
Heidegger afirma em Os Problemas Funda