a linguagem

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA A LINGUAGEM COMO CARÁTER CONSTITUTIVO DO SER-AÍ EM SER E TEMPO DE MARTIN HEIDEGGER TATIANE PEREIRA BOECHAT ORIENTADOR: PROF. DR. BENTO PRADO DE ALMEIDA FERRAZ NETO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia, área de concentração: História da Filosofia. São Carlos - SP 2008

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS

    CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    A LINGUAGEM COMO CARTER CONSTITUTIVO DO SER-A EM

    SER E TEMPO DE MARTIN HEIDEGGER

    TATIANE PEREIRA BOECHAT

    ORIENTADOR: PROF. DR. BENTO PRADO DE ALMEIDA FERRAZ NETO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia da Universidade Federal de So Carlos, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, rea de concentrao: Histria da Filosofia.

    So Carlos - SP 2008

  • Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria da UFSCar

    B669lc

    Boechat, Tatiane Pereira. A linguagem como carter constitutivo do ser-a em Ser e Tempo de Martin Heidegger / Tatiane Pereira Boechat. -- So Carlos : UFSCar, 2008. 134 f. Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2008. 1. Linguagem. 2. Compreenso. 3. Interpretao. 4. Discurso. I. Ttulo. CDD: 100 (20a)

  • TATIANE PEREIRA BOECHAT

    A LINGUAGEM COMO CARTER CONSTITUTIVO DO 'SER-A 'EM 'SER E TEMPO'DE MARTIN HEIDEGGER

    DissertaoapresentadaUniversidadeFederaldeSoCarIos,comopartedosrequisitosparaobtenodottulodeMestreemFilosofia.

    Aprovadoem28defevereirode2008

    BANCA EXAMINADORA

    1---10Presidente~ u_-- .(Dr.BentoPradodeAlmeidaFerrasNeto)

    10Examinador(Dr. MarcoAntnioValentim- UFPR)

    20Examinador(Dr. MarcoAur. .

    ~~~~u~t--.

    . ,

    UniversidadeI~ederaldeSoCal"iosRodoviaWashingtonLus,Km235- Cx.Postal676Tel./Fax:(16)3351.8368FWW.ppglil.ufscar.br/ Dl'[email protected]: 13.565-905- SoCarlos- SP- Brasil

    ProgramadePs-GraduaoemFilosofia

    CentrodeEducaoeCinciasHumanas

  • 3

    A minha me Hilda,

    pela confiana e apoio incondicional.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Aos professores: Bento Prado de Almeida Ferraz Jnior (in memoriam),

    Bento Prado de Almeida Ferraz Neto, Marco Antnio Valentin, Libnio Cardoso,

    Dbora Morato Pinto e Silene Marques por estarem sempre presente e

    contriburem nos momentos difceis, cada um a sua maneira, para a realizao

    desse trabalho. Agradeo ainda Fundao de Amparo Pesquisa do Estado

    de So Paulo FAPESP pela bolsa de pesquisa.

  • 5

    RESUMO

    Em Ser e Tempo, Heidegger nos fala da co-originariedade

    (Gleichursprnglich) entre os existenciais fundamentais que constituem a

    abertura do ser-no-mundo: disposio afetiva (Befindlichkeit), compreenso

    (Verstehen) e discurso (Rede). Procuramos entender de que modo esses

    existenciais so articulados entre si, de maneira a perceber como Heidegger

    estrutura um conceito de linguagem. Segundo interpretamos, h uma noo

    implcita de linguagem nesta obra, estabelecida a partir da lida cotidiana do

    ser-a. Desse modo, investigaremos a relao entre discurso (Rede) e

    linguagem (Sprache), buscando entender o estado de expresso do discurso

    atravs da linguagem. Assim, podemos compreender como Heidegger procura

    legitimar a problemtica ontolgica. Perceberemos a inviabilidade desta

    questo se, como admitimos, ela estiver ancorada na relao que vincula

    discurso e linguagem. Essa impossibilidade se torna ainda mais clara ao

    analisarmos a proposta do termo Gleichurprnglich relacionada aos

    existenciais fundamentais.

  • 6

    SUMRIO

    INTRODUO .............................................................................................. 7

    CAPTULO I FENOMENOLOGIA COMO ONTOLOGIA

    1.1.Heidegger e Husserl: a busca da questo do ser a partir da intuio

    categorial....................................................................................................... 12

    1.2.O programa ontolgico de Ser e Tempo ............................................ ... 25

    1.3.O primado ntico e ontolgico da questo do ser: a ontologia

    fundamental.....................................................................................................31

    1.4.O conceito heideggeriano de Fenomenologia ......................................... 37

    CAPTULO II

    A CONCEPO DE SER-NO-MUNDO 2.1.A condio de ser-no-mundo (In-der-Welt-sein) .................................... 56

    2.2.A mundanidade do mundo e o mundo circundante ................................ 61

    2.3.Os entes disponveis (Zuhandenheit) e os entes simplesmente dados

    (Vorhandenheit) ........................................................................................... 66

    2.4.O fenmeno da referncia (Verweisung) e o sinal (Zeichen) ................ 76

    CAPTULO III

    DISCURSO E LINGUAGEM

    3.1.A estrutura da compreenso (Verstehen)............................................... 88

    3.2.Interpretao (Auslegung) e sua estrutura reguladora: o como

    hermenutico .............................................................................................. 93

    3.3.O enunciado (Aussage)........................................................................ 101

    3.4.A distino entre discurso (Rede) e linguagem (Sprache) ................... 112

    CONCLUSO .......................................................................................... 127 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................... 133

  • 7 7

    INTRODUO

    Em Logik. Die Frage nach der Wahrheit, Heidegger diz que o modo de

    ser do fenmeno que chamamos linguagem segue sendo at o momento algo

    obscuro.1 Sabemos que Heidegger se dedica questo sobre a estrutura da

    linguagem desde o incio de seu pensamento, principalmente ao tratar das

    noes de fundamento, verdade e lgica entre outras. Em 1927, na obra Ser e

    Tempo, ele afirma que para se procurar definir a linguagem decisivo elaborar

    previamente a totalidade ontolgico-existencial da estrutura do discurso com

    base numa analtica do ser-a (HEIDEGGER, 1927, 34 / 1999, p. 222). Para

    alcanar tal definio Heidegger teria deixado transparecer nessa obra, ainda

    que no de maneira explcita, certo conjunto de articulao de sentido

    inerente ao modo de ser-no-mundo. Desse modo, ele teria em seu poder os

    elementos necessrios para uma possvel determinao da linguagem e de sua

    estrutura. Encontramos este conjunto de articulao atravs da estrutura

    fundamental prpria ao ser do ser-a, os existenciais: compreenso

    (Verstehen), disposio (Befindlichkeit) e discurso (Rede). Nossa pesquisa

    procura esclarecer o conceito de linguagem intrnseco a Ser e Tempo ao

    investigar a estrutura que possibilita a linguagem enquanto enunciado. O que

    deve ficar claro, inicialmente, o modo como Heidegger procura apreender

    esse conceito, a partir de uma inteno mais prpria e originria de

    1 Cf. HEIDEGGER, 2004, p. 126 12.

  • 8 8

    questionamento. Este ser o objetivo do captulo inicial desta pesquisa que

    trata do conceito fenomenolgico.

    No pensamento de Ser e tempo, a gnese do significado entendida

    desde os existenciais de abertura do ser-a, entre os quais encontramos o

    discurso (Rede), isto , a possibilidade de articular a compreenso aberta pelo

    ser-no-mundo. O discurso aparece como uma instncia instauradora de

    sentido. Enquanto um modo de ser do ser-a, seria preciso perguntar-nos:

    como o discurso pode expressar-se por meio de palavras, por meio da

    linguagem. Esse questionamento se encontrar em desenvolvimento ao longo

    dos dois ltimos captulos.

    Em Ser e Tempo, a relao entre ser e linguagem formulada em meio

    a uma analtica da existncia, mediante um modo originrio de abertura que

    pertence estrutura mesma do ser-a vista atravs da originariedade

    aguardada entre o discurso (Rede) e os outros existenciais fundamentais.

    Abarcados em sua totalidade e entrelaados uns aos outros, estes existenciais

    articulam-se enquanto sentido ou significncia advindo da lida cotidiana do ser-

    a. Na perspectiva heideggeriana, a instrumentalidade do instrumento que

    emerge ou vem ao encontro possibilita a rede de sentido que antecede as

    enunciaes lingsticas. A disponibilidade de algo, orientada em funo do

    ser-a e de sua familiaridade com o mundo, aponta para o sentido. O sentido,

    por sua vez, emerge da totalidade referencial aberta pelo modo de ser do ente

    intramundano atravs do qual se perfaz a estrutura ser-no-mundo (In-der-

    Welt-sein). A finalidade qual o instrumento remetido o que unifica isto que

    concede sentido a totalidade. Isto significa que em funo do ser do ser-a

    que as coisas so articuladas de modo a mostrarem-se com sentido. Contudo,

  • 9 9

    segundo Heidegger, este processo no precisa, necessariamente, exercer-se

    atravs de nenhuma tematizao explcita, isto , ele no precisa vir palavra,

    transformar-se em conceito. A interpretao (Auslegung) se encontra nessa

    articulao de sentido. Ela fornece a possibilidade primeira de tomarmos algo

    como algo. Ou seja, tomarmos algo a partir da disponibilidade que o orienta. Na

    ocupao que algo tem sentido. Para Heidegger, o nvel proposicional no

    a nica dimenso do sentido. O conjunto dos existenciais que chamamos aqui

    de lgos, nos mostra que a sua estrutura se caracteriza no pelo enunciado,

    por se dizer algo de algo, mas em um puro admitir o ente ou deixar que

    comparea atravs da sua instrumentalidade.

    A interpretao heideggeriana do discurso sugere que a linguagem no

    deve ser vista como uma diversidade de estruturas logicamente articuladas. O

    discurso supe um imediato contato com o ente que ocorre como realizao do

    sentido; ele designa a prvia relao que se d entre mundo e linguagem. Isto

    quer dizer que a linguagem tambm no deve ser vista como uma rplica do

    mundo. O discurso no surge posteriormente ao mundo, pois ele um carter

    constitutivo do ser-a; a discursividade-compreensiva compete-lhe

    constitutivamente. Ela encontra-se estruturada pelo esquema interpretativo

    implcito em toda forma de relao do ser-a com o ente. Diramos, ainda, que

    o modo de ser mundano do ser-no-mundo que constitui o discurso e procura

    viabilizar sua expresso como linguagem. A estruturao prvia do sentido

    viabiliza as proposies lgico-semnticas. A linguagem deixar, ento, de

    cumprir o papel de mediadora funcional entre homem e mundo. No entanto, ela

    deixar de ser uma ordem subordinada a alguma instncia superior? A entra a

    nossa abordagem sobre o discurso. Ele o sentido originrio que funda a

  • 10 10

    linguagem. Assim, nossa investigao se detm na anlise da relao entre

    discurso (Rede) e linguagem (Sprache) para verificarmos at onde esta relao

    se estende e como isto se d. O entendimento das estruturas ontolgicas

    mostrar que a linguagem pode surgir como carter ontolgico de

    desvelamento dos entes se orientada, como pretende Heidegger, por uma

    estrutura possibilitadora de acesso ao ente enquanto tal, a estrutura co-

    originria (Gleichursprnglich) dos existenciais fundamentais. Ao expor esta

    estrutura ser possvel investigao entender como possvel remeter a

    linguagem dimenso ontolgica. E como foi possvel a Heidegger subordinar

    o mbito da linguagem, leia-se enunciado e comunicao, ao discurso e,

    conseqentemente, aos outros existenciais. Assim, procuramos apreender o

    problema da gnese da linguagem em Ser e Tempo, investigando as instncias

    atravs das quais ela pode ser explicada e s quais, de alguma maneira, ela

    encontra-se subordinada. Abordaremos o carter de ser-no-mundo, ou seja, a

    relao que o ser-a guarda com mundo, nos limitando a discutir alguns

    conceitos que procuram apontar para a constituio originria da linguagem.

    Num segundo momento, entraremos diretamente na interpretao da estrutura

    do ser-a, os existenciais fundamentais (die fundamentalen Existenzialien) que

    constituem a abertura (Erschlossenheit) do ser-no-mundo. Principalmente a

    compreenso e o discurso, visto que, o modo de ser da compreensibilidade do

    ser-no-mundo articulado, traz tona o sentido. Ao tematizar os existenciais,

    veremos como se d esta constituio ontolgica e como isso se pronuncia. Os

    existenciais so indissociveis uns dos outros, encontram-se entrelaados,

    esta a sua principal caracterstica, a co-originariedade

    (Gleichursprnglichkeit) que os mantm enquanto tais. Tal caracterstica nos

  • 11 11

    concede o apoio necessrio para entendermos qual o caminho traado por

    Heidegger no que diz respeito linguagem ainda na sua primeira grande obra.

  • 12 12

    Captulo I

    FENOMENOLOGIA COMO ONTOLOGIA

    1.1. HEIDEGGER E HUSSERL: A QUESTO DO SER A PARTIR DA INTUIO CATEGORIAL

    O pensamento filosfico de Heidegger e seu contato com a idia de

    fenomenologia se intensificaram no perodo em que foi assistente de Husserl

    em Freiburg. Perodo extremamente frutfero que possibilitou a edificao da

    sua principal obra, Ser e tempo (Sein und Zeit, 1927). Heidegger diz que esta

    obra somente foi possvel sobre a base lanada por Edmund Husserl. Nela, o

    autor assume a sua prpria leitura da fenomenologia como a maneira de tornar

    o seu objeto tema de uma abordagem, o que chamaremos aqui de um

    procedimento metdico. Seu primeiro contato com a fenomenologia foi

    atravs das Investigaes Lgicas (Logische Untersuchungen, 1900) de

    Husserl como afirma em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in

    die Phnomenologie - 1963) e numa srie de textos e seminrios surgidos no

    decorrer dos anos 60 a respeito da sua relao com a fenomenologia. A

    literatura comentada, na grande maioria dos trabalhos que confrontam Husserl

    e Heidegger, procura investigar a influncia, ou no, que Heidegger tenha

    sofrido de seu mestre; qual a extenso do pensamento husserliano, em

    especial sua idia de fenomenologia, no pensamento hermenutico de

  • 13 13

    Heidegger. J o proposto por ns, neste captulo, consideravelmente menos

    ambicioso no que diz respeito a esta relao, pois possui um valor apenas

    indicativo e de insero no tema central da nossa pesquisa, a saber, a noo

    de linguagem construda por Heidegger em Sein und Zeit. Para tanto,

    seguiremos a indicao deixada por Heidegger no protocolo do Seminrio de

    Zringen (Seminar in Zringen) professado em 1973. Nele, Heidegger afirma

    que sua abordagem questo do ser estaria enraizada na noo husserliana

    de intuio categorial. Segundo Heidegger, Husserl toca a questo do ser no 6

    captulo da Sexta Investigao Lgica atravs do conceito de intuio

    categorial. Procuraremos, ento, num primeiro momento, ainda que

    timidamente, uma aproximao a este ponto referencial da fenomenologia

    atravs das Investigaes Lgicas de Husserl.2 Poderamos eleger outras

    fontes para investigar o surgimento e delineamento da questo do ser em

    Heidegger, tais como Aristteles, Duns Scotus, Dilthey, Kieerkgaard, no

    entanto, nos limitaremos a abord-la em Husserl, ainda que no possamos

    atingir aqui todas as influncias que o jovem Heidegger sofreu quando do

    surgimento da sua questo filosfica. Seguindo este caminho preliminar,

    tentaremos entender qual a importncia do conceito de intuio categorial no

    que se refere elaborao da questo do ser (Seinsfrage).

    A fenomenologia est centrada no objeto visado ele mesmo e no modo

    como dado. O que significa que, para Husserl, o nvel perceptivo em que o

    objeto visado imediatamente dado o ponto de partida para que o objeto seja

    descrito e explicitado em seu aspecto intencional. O que no significa que o

    2 Privilegiamos esta obra no apenas por ser aquela em que Husserl primeiro apresenta sua concepo

    de fenomenologia, mas por ser a obra a que Heidegger mais freqentemente se refere para elucidar sua

    relao com a fenomenologia de Husserl.

  • 14 14

    nvel da representao seja reduzido a um momento anterior de realidade em

    que o objeto possa ser explicado. O nvel perceptivo ou da objetividade d o

    objeto de modo imediato sem a mediao de esquemas pr-estabelecidos. Se

    tomarmos o objeto no seu dar-se imediato poderemos dizer que a coisa

    mesma funda o sentido dando origem ao conhecimento. A partir da presena

    intuitiva da coisa visada, o conhecimento se efetiva. Entendemos, assim, a

    ausncia de pressupostos como uma forma de mostrar que o mtodo da

    fenomenologia deve se desenvolver, enquanto modo reflexivo ou descritivo, em

    nvel intuitivo. A reflexo no se desenvolve a partir dos objetos dados, mas de

    objetos no surgidos da percepo sensvel. Este nvel que torna possvel a

    reflexo e no qual o carter intencional da conscincia pode ser dado. Assim, a

    intuio, empreendida atravs da concepo prvia de sentido ou de

    significao, e no desde uma regio de objetos da experincia emprica, s

    possvel em meio vivncia na qual o ato de visar vivido e no

    necessariamente tematizado. Isto , no se faz necessrio considerar qualquer

    ordem de realidade anterior coisa em si mesma.3 O nvel de investigao da

    fenomenologia deve considerar a coisa no prprio ato intencional em que

    visada. Desse modo, a fenomenologia husserliana abre um novo mbito de

    questionamento: o mbito transcendental da experincia da conscincia, a

    partir da descrio dos contedos intencionais em seu modo de ser ou de

    aparecer, sem projees indevidas. Consideradas as coisas mesmas, tal como

    so visadas numa total ausncia de pressupostos, se afirma o primado da

    3 A fenomenologia s poder se realizar em nvel reflexivo. A fenomenologia se desenvolve, levando em

    conta a orientao objetiva das vivncias, no entanto, esta vivncia no auto-transparente, somente a

    reflexo torna possvel descrever, hierarquizar e sistematizar a multiplicidade dos atos intencionais.

    (Paisana, 1992, p. 63). A conscincia vive na realizao da prpria constituio sem se saber, de modo

    temtico, como constitutiva. (Husserl, 1999, p. 356, II).

  • 15 15

    percepo, tida, na fenomenologia reflexiva de Edmund Husserl, como a mais

    simples intuio.4

    O objeto prprio cincia fenomenolgica, como se refere Husserl, seria

    o fenmeno enquanto tal. Como mtodo reflexivo, a fenomenologia seria uma

    cincia descritiva dos fenmenos. No artigo publicado em 1911, Filosofia como

    Cincia de Rigor (Philosophie als strenge Wissenschaft), o filsofo afirma que o

    ser deve ser considerado correlato da conscincia (Bewusstsein), enquanto

    algo visado por um modo da conscincia.5 A fenomenologia seria, portanto, a

    cincia descritiva da vivncia intencional. Para visualizarmos isto e projetarmos

    a noo de intuio categorial, preciso ampliar a noo de objeto intencional

    da fenomenologia reflexiva.

    Distinguiremos entre as concepes husserlianas de intuio sensvel e

    intuio categorial. O critrio para tal distino ocorre entre seus respectivos

    objetos: o objeto sensvel e o objeto categorial. No pensamento de Husserl, a

    intuio sensvel no se ope a uma faculdade de apreenso intelectual. A

    intuio sensvel, bem como a categorial, surge do modo do objeto.Na

    perspectiva de Heidegger, na intuio sensvel, Husserl apreende o objeto

    como um objeto que ocupa uma funo. Um tinteiro (exemplo fornecido por

    Husserl nas Investigaes Lgicas) j traz em si a relao que guarda com o

    seu funcionamento. Mas, no contexto da reflexo husserliana acerca da

    intuio sensvel, o tinteiro tomado enquanto exemplo de objeto sensvel e

    4 Tal posio afirma ainda o mtodo fenomenolgico no apenas como reflexivo e explicitativo, mas como

    a priori. O a priori husserliano no se ope experincia. Em Husserl pode-se falar de um a priori dado,

    isto , material. Para o autor, a validade do conhecimento fundada de modo imediato na intuio. 5 A fenomenologia deve ter como objeto de estudo a conscincia. preciso conhecer a conscincia em sua essncia, isto , em todas as suas formas e nos distintos modos em que visa o objetivo. A relao da

    conscincia com o mundo ser esclarecida pela elucidao do sentido dos vrios atos intencionais. J

    que o objeto real pressupe o objeto intencional.

  • 16 16

    no de um objeto sensvel determinado. Afirma Heidegger: O tinteiro

    significa: objeto da percepo sensvel. (HEIDEGGER, 1990, p.463) Isto quer

    dizer que os dados sensoriais6, como a cor, a forma espacial, etc., apenas

    quando animados por uma inteno qual reenviam, podem ser percebidos j

    como momentos da coisa.7 O que percebido so os dados sensoriais

    mesmos. Atravs dos dados sensoriais o objeto aparece na percepo.8 A

    coisa, seja ela qual for, torna-se perceptvel. O que dado na percepo

    sensvel so os dados sensoriais, no o objeto. Entende Heidegger que a

    objetualidade (Gegenstndlichkeit) do objeto sensvel no consiste num

    simples dado sensorial, isto , no surge da intuio sensvel9. Logo, a questo

    que se pe ao autor a de compreender qual o fundamento da objetualidade

    do objeto sensvel. Grosso modo, perguntar pela estrutura que pergunta pelo

    ser. Isto se formaliza em Ser e Tempo em uma fenomenologia do ser-a. O que

    se conclui, e que deixa entrever o caminho heideggeriano, que a

    objetualidade do objeto no pode ser percebida sensivelmente, mas de alguma

    forma, ela dada. Pois, o percebido sempre tomado como um objeto, uma

    coisa. O que sugere que: o que fundamenta o ser-objeto o modo de ser do

    ente enquanto coisa. Para Heidegger, o fundamental da intuio categorial 6 Dados chamados: hylticos, originado de Hyl, que significa: o que afeta sensivelmente, os dados

    sensoriais. 7 Cf. Paisana, 1992, p. 116. 8 Na terceira Investigao Lgica, Husserl afirma que o ato da percepo sempre j uma unidade

    homognea que presentifica o objeto de um modo simples e imediato. (HUSSERL, III Investigao, 1999) 9 Podemos aludir aqui crtica de Heidegger tradio filosfica atravs da abordagem da concepo

    kantiana de experincia, segundo a qual traria em sua interpretao uma noo de realidade que no foi

    radicalmente questionada, pois, segundo a leitura de Heidegger, Kant eleva o nvel da objetividade a um

    tipo de realidade anterior, ou melhor, a uma realidade que serviria como base ou fundo do qual permitiria

    explicar os objetos. Kant reduz todo o dado na experincia experincia emprica e, conseqentemente,

    caracteriza o dado como contedo material determinado. Supondo, portanto, para o que no existe, que

    nenhuma funo sensorial poderia ser dada. Desse modo, o objeto surge num a priori que depende do

    juzo e da linguagem, isto , que se encontra referido a uma subjetividade.

  • 17 17

    considerar a categoria como dada. Segundo Heidegger, intuio categorial

    quer dizer: uma intuio que d a ver uma categoria; ou uma intuio que

    imediatamente dirigida para uma categoria.(HEIDEGGER, 1990, p. 463) A

    categoria substncia no pode ser acessada pela sensibilidade, no entanto, o

    tinteiro aparece por ser uma substncia. O que significa que, de algum modo, a

    substncia se d a ver. Heidegger (1990, p. 465) afirma:

    Quando vejo o livro, vejo uma coisa substancial, sem por tanto ver a

    substancialidade tal como vejo o livro. Ora, , portanto, a

    substancialidade que, em sua inaparncia, permite ao que aparece

    aparecer.

    Ao ver o livro, vejo uma substncia sem ver, portanto, a prpria

    substancialidade no livro. No entanto, para que veja o livro preciso que a

    substancialidade aparea de algum modo, j que sem ela o livro no se daria a

    ver. Heidegger encontra aqui a idia husserliana de excedente (berschuss)

    correspondente intuio categorial. Na frase, O tinteiro pesado o torna

    possvel a constatao do tinteiro como objeto ou substncia. O teria um

    estatuto que transcende a predicao. Entre as impresses sensveis, como a

    do peso e a da cor, o pode ser visto como o que as excede. Por no estar

    junto das impresses sensoriais, ele no pode ser percebido sensivelmente, no

    entanto, visto atravs da presena da coisa. Ver aqui no tem referncia

    com o visvel, o ver sensvel, mas com o ver fenomenolgico que emerge do

    carter reflexivo da fenomenologia de Husserl. Surge assim o dado

  • 18 18

    fundamental que nos guia para o caminho da leitura heideggeriana da

    fenomenologia: o categorial. As formas, por serem dadas, tornam-se

    abordveis, acessveis.(HUSSERL, 1999, p. 136, III)

    Entendemos, ento, que o objeto da intuio categorial no se constitui

    a partir de uma sntese advinda de elementos sensveis e conceituais. Husserl

    diz que a intuio categorial no visa um objeto sensvel simplesmente dado,

    mas um estado de coisas articulado (Sachverhalt) considerando que as

    categorias so mostradas na experincia. Por exemplo, a intuio pode

    fornecer um preenchimento intuitivo: o ouro amarelo. No caso dos smbolos

    literais, a intuio fornece um preenchimento direto pela sensibilidade, no caso

    da frmula do tipo S P, ou outras, corresponde o preenchimento intuitivo do

    tipo categorial.10 o ser dado, intudo, que forma o juzo. No esqueamos

    que, nessa perspectiva, o objeto dado a uma conscincia, como conscincia

    reflexiva, de um puro sujeito de conhecimento. De modo que o ser daquilo

    que se d j se encontra determinado em funo desse sujeito. Logo, o

    fundamento da objetualidade do objeto a prpria conscincia intencional.

    Para que o objeto categorial encontre seu fundamento a nvel intuitivo, o

    prprio copulativo deve ele mesmo ser dado. No entanto, o excedente de

    significao somente pode ser mostrado se situarmos ao nvel de um estado

    de coisas j articulado. Segundo Husserl (1999, p. 131, III):

    10 (Id. Ibid., p. 136) Contudo, tanto o preenchimento pela sensibilidade quanto o preenchimento pela

    intuio devem ser considerados como procedimentos intuitivos apesar de terem objetos intencionalmente

    visados diferentes.

  • 19 19

    A inteno da palavra branco coincide apenas parcialmente com o

    momento cor do objeto que aparece, permanece um excedente de

    significao uma forma que no encontra no prprio fenmeno nada

    que a confirme. Branco quer dizer papel que branco.

    A cor remete necessariamente para uma superfcie, de igual modo, o

    do juzo reenvia para uma substancialidade. O que quer dizer que uma

    significao como a da palavra ser apenas encontra um correlato objetivo

    possvel na esfera da intuio categorial, inversamente esfera sensvel. O ser

    dado numa presena que excede a intuio sensvel. Esta alterao do

    estatuto do ser que permitir a Heidegger formular a questo do sentido do

    ser do ente, isto , da condio de possibilidade do ente enquanto tal.

    Husserl faz, na primeira seo da Sexta Investigao Lgica, uma

    distino entre o ser como cpula e o ser como posio. O ser surge, para

    Husserl, como uma posio (Setzung), como correlato de um ato posicional; ou

    seja, como correlato de um ato que pe ou afirma o ser do objeto. (HUSSERL,

    1999, p. 121) Assim, ainda que o horizonte de doao no seja determinado

    pelo ato judicativo, ele o pelo ato intencional de uma conscincia, para qual o

    que necessariamente como objeto. Aqui o conceito de ser encontra sua

    edificao na coisa mesma. A percepo afirma o ser objeto11. A percepo

    nos d a coisa ela mesma, isto , em seu ser, fundando assim o conhecimento.

    O ser no aparece fundado no da cpula do juzo, mas a evidncia da

    coisa em si mesma, o ser dado, intudo, que funda o juzo. Contrariamente

    11 Ser-objeto aqui tem o sentido de considerar a objetividade como necessidade e universalidade do

    conhecimento.

  • 20 20

    concepo de ser entendida atravs da cpula do juzo encontrado num

    estado de coisas j articulado, o ser como posio seria encontrado, em

    presena, no objeto de uma percepo simples. Tomando este estado de

    coisas como um dado, em que o da cpula, ou qualquer outra frmula

    sinttica (um, e, ou, etc.), dado, o objeto categorial encontra seu fundamento

    a nvel intuitivo.12 O ser encontra-se como presena imediata do visado ele

    mesmo. Logo, o ser pode ser intudo.

    A concepo de ser que o concebe como o ser presente no juzo pelo

    da cpula, possui um estatuto justo e exato, mas no-verdadeiro (unwahr =

    uma inverdade), como afirma Heidegger (1990, p. 465). Perguntamos, ento,

    quais os traos da fenomenologia de Husserl que Heidegger assimila? Para

    ele, esse modo justificado desde que se pergunte pelo fundamento da

    objetualidade do objeto sensvel pressuposto na construo do juzo. Com

    efeito, se o juzo no cria originalmente o aparecer do ente, ento, preciso

    que o ente j se tenha manifesto previamente como objeto possvel de uma

    determinao predicativa para que a conformidade do juzo com o ente seja

    estabelecida. Esta relao abre, para Heidegger, um mbito de manifestao

    do ente que no tem originalmente a estrutura da proposio nem o carter da

    representao. Considerando isto, o ser teria como estatuto um momento pr-

    predicativo. Segundo as anlises da intuio categorial, se o ser dado na

    percepo, ento, supomos que nem todo ato intuitivo pressupe

    12 Percebemos aqui que, para que o ser possa ser pensado enquanto ato posicional preciso que nos

    situemos novamente ao nvel predicativo. Somente pela predicao se constitui o objeto que estaria

    presente de modo imediato na intuio.Surge, ento, a critica de Heidegger a Husserl que possibilitar ao

    primeiro edificar sua estrutura hermenutica. Segundo Heidegger, o local onde se deve procurar o ser

    estaria na estrutura do como hermenutico, isto , em nvel pr-predicativo, porque para que a predicao

    se realize necessrio que a estrutura do como hermenutico estrutura da compreenso em geral j

    tenha sido pressuposta.

  • 21 21

    necessariamente o nvel predicativo. Portanto, o ser teria como estatuto um

    momento anterior ao juzo. A proposta de uma significao pr-predicativa da

    intuio a contribuio fundamental da fenomenologia husserliana na

    formao do pensamento hermenutico de Heidegger. Entendemos, ento, que

    a fenomenologia de Husserl abre caminho para a proposta heideggeriana de

    uma ontologia fundamental medida que possibilita a investigao do ser do

    ente a partir de um novo mbito no qual o interesse terico e experimental pelo

    mundo, tal como a tradio filosfica interpretou como um agregado de entes

    independentes uns dos outros , fica de lado. Na terminologia husserliana,

    seria a passagem da subjetividade mundana subjetividade transcendental.

    O que significa que a fenomenologia no pretende investigar os objetos do

    mundo, contrria ao conhecimento de regies nticas. Assim, Husserl reduz

    tudo subjetividade e rompe com a distino entre natureza (o mundo das

    coisas corpreas) e esprito (o mundo anmico, o pensamento), tornando

    possvel alterar a prpria significao do conceito de mundo. O que, para

    Heidegger, tem extrema importncia no que diz respeito edificao da

    ontologia fundamental, entender que Husserl no opera uma descrio

    adequada do modo de ser da conscincia intencional, no sentido de que

    restringe a intencionalidade visada objetiva da conscincia. A

    intencionalidade teria uma amplitude que no considerada por Husserl: o

    visado pela intencionalidade seria o ser em geral, do qual o ser-objeto um

    modo. A fenomenologia reflexiva (entenda-se, a intencionalidade), no permite

    a formulao da questo ontolgica. Segundo Heidegger, somente a partir da

    possibilidade de se perguntar por algo assim como ser que a ontologia pode

    vir a ser possvel. Como veremos, a subjetividade transcendental de Husserl

  • 22 22

    nada tem a ver com o ser-a heideggeriano. Na medida em que Husserl passa

    da vivncia concreta ideao da conscincia ele desconhece, segundo

    Heidegger, o que h de mais caracterstico na estrutura do ser-a, a finitude de

    suas possibilidades de ser. (PAISANA, 1992, p. 301) O projeto heideggeriano

    se edifica sobre a pergunta pelo sentido do ser do ser-a, isto , sobre o

    entendimento do seu modo de ser ntico desde suas possibilidades de ser.

    Para Heidegger, a reduo fenomenolgica deve conduzir compreenso do

    ser. O modo de ser do ser-a se revela atravs da compreensibilidade, da

    estrutura da compreenso enquanto uma possibilidade de ser do prprio ser-a.

    A compreensibilidade seu poder-ser (Seinknnen) caracterizado pelas suas

    possibilidades enquanto tais que podem vir a ser eleitas ou no. Enquanto o

    ser-a compreenso ele guarda precisamente em si a possibilidade de

    mundo, isto , de abertura ou desvelamento dos entes. A compreenso abre

    um crculo de possibilidades que d origem ao questionar pelo sentido do ser.

    J a investigao reflexiva de Husserl compreende a conscincia a partir de um

    substrato ltimo sobre o qual ela deveria se constituir e, desse modo, no

    questionvel desde si mesma. A pergunta pelo sentido do ser do ente no

    possvel pela perspectiva da conscincia reflexiva. Como diz Paisana (1992, p.

    302): [...] o sentido do ser da conscincia nunca pode ser libertado como

    questo, isto , a partir da abertura das suas possibilidades Contudo,

    atravs do contributo husserliano da libertao do ser da cpula do juzo que

    Heidegger constitui a noo central para se entender o existencial discurso

    (Rede) em Ser e tempo, a saber, a mundanidade do mundo. A questo agora

    entender como Heidegger coloca em consonncia o seu interesse pela

    questo do ser com a significao pr-predicativa encontrada na noo

  • 23 23

    husserliana de intuio categorial. J que admitimos que o conceito

    heideggeriano de fenomenologia distancia-se da noo de seu mestre.

    Mediado pela anlise da intuio categorial na qual o ser foi liberado da

    cpula do juzo e considerado como dado, isto , dado no ao modo do dado

    sensvel, Heidegger foi conduzido a perguntar: o que significa [ento] ser?,

    qual o sentido do ser do ente? Segundo Heidegger, Husserl no fez esta

    pergunta visto que, para Husserl no havia a sombra de uma questo

    possvel, porque para ele era de si compreensvel que ser quer dizer: ser-

    objeto. (HEIDEGGER, 1990, p. 466) Contrariamente a ele, Heidegger entende

    que, se o ser enquanto presencialidade constante (Gegenwart) for

    questionado, possvel, sim, indagar pelo seu sentido. Para Heidegger, ser

    no significa necessariamente ser-objeto, a objetividade que um modo

    possvel de ser em presena.13 A objetividade um modo possvel de

    apresentar ser, modo este que deve pressupor j certa significabilidade. Na

    terminologia heideggeriana, o modo da objetividade deve contar com uma

    prvia abertura (Ouvertre) ao mundo.14

    Entendemos, ento, que a formulao heideggeriana da pergunta pelo

    ser (Seinsfrage) e seu sentido somente efetivou-se porque a noo de ser

    estabelecida por Husserl foi a de um ser dado (anwesend), intudo e que 13 Desde 1907 Heidegger se debrua sobre a obra de F. Brentano, Sobre a mltipla significao do ser

    segundo Aristteles (1862). Foi a partir dela que o autor trouxe consigo a intuio da problemtica

    ontolgica e se uniu ao estudo da fenomenologia visto que Husserl tambm tinha um trnsito direto com a

    obra de Brentano. A questo fundamental do pensamento heideggeriano surge desde os argumentos

    brentanianos acerca dos diversos sentidos do ser. Haveria quatro modos possveis de se pensar e dizer o

    ser: o ser por si, o ser como possibilidade e realidade, o ser como verdade e o ser por acidente. Mas para

    Heidegger a questo definitiva de tal interpretao saber qual a determinao fundamental de ser cujo

    domnio atravessa todas as mltiplas significaes. Advm assim a pergunta pelo sentido do ser. Ver:

    Carta a Richardson, 1962. 14 Para que o ser dado de Husserl surja, preciso contar com uma significabilidade inicial ou originria do

    conceito de ser.

  • 24 24

    possibilitou o questionamento do ser em um modo possvel de aparecer,

    enquanto objeto intencional. Husserl inaugura um mbito promissor de

    questionamento atravs da indagao pelo ser, mas trabalha nele com o ente

    considerado em seus atributos sensoriais. Na perspectiva de Husserl, o sentido

    fundamental em que surge a palavra ser ocorre antes mesmo de toda

    possvel predicao atravs do objeto da percepo simples. J na perspectiva

    de Heidegger, seja esta substancialidade pensada como presena ou em

    vrios outros modos de aparecimento ou de significado, para que ser possa

    alcanar algum modo possvel de aparecimento, preciso contar com um

    mbito de mostrao da coisa em si mesma, o mbito hermenutico. Estaria

    nesta dimenso a tentativa de Heidegger de pensar a unidade dos significados

    mltiplos de ser, enquanto a pergunta pelo seu sentido? Caso seja, a anlise

    ontolgica no poderia mostrar que estes mltiplos significados da palavra ser

    no se reduzem uns aos outros impossibilitando pensar ser a partir de uma

    significao fundamental? A dimenso hermenutica de questionamento no

    possibilita que aceitemos um significado fundamental para a palavra ser e,

    ainda assim, possamos ordenar as outras significaes em funo desta?15

    15 Em Gnter Figal (2005, p. 13/14) esta elaborao leva a consideraes muito frutferas. Caso seja

    aceita uma postura ctica em relao pergunta pelo ser, seria possvel contestar a posio

    proeminente deste verbo tanto na linguagem cotidiana quanto no uso filosfico da prpria palavra. Se

    admitirmos os vrios momentos de uso deste verbo em toda a obra heideggeriana, admitiremos, no uma

    unicidade no seu uso, mas a possibilidade de acolher diversas questes e anlises heideggerianas no

    contexto de outras questes filosficas e de outras concepes, frutificando-as a partir da. Contudo, se

    supomos a questo do ser como plena de significado, ento, alm de admitirmos que sua inteno era

    distanciar-se da tradio filosfica para deixar para trs um discurso objetivo e comprometido com

    argumentos, admitimos ainda um dilogo extremamente rico entre o que conduz e mantm em curso a

    questo filosfica desta tradio. Diz Figal (2005, p. 13-14)., essa questo uma vez mais a questo do

    ser, e, assim, parece que s podemos nos inserir na autocompreenso de Heidegger na medida em que

    supomos essa questo como plenamente significativa.

  • 25 25

    O domnio principal de investigao do filsofo o da interrogao

    acerca do ser; a esfera da existncia. Ao contrrio de outros problemas que se

    esgotam na interrogao e na resposta, o problema do ser est implicado na

    questo do prprio interrogar. Interrogar o sentido do ser significa perguntar

    pela estrutura da pergunta pelo ser, visto que a nossa estrutura pr-reflexiva

    a possibilitadora da reflexo, e no o contrrio. A questo do sentido do ser

    deve ser encontrada no questionamento da existncia; a pergunta est imersa

    no acontecer mesmo. Para Heidegger, desde a anlise da existncia que se

    poder encontrar o fio condutor de todo o indagar filosfico. A interrogao

    filosfica surge do existir e para ela se volta, inicia e termina no mbito da

    existncia. D-se, assim, o salto heideggeriano para a pergunta pelo ser. Abre-

    se o caminho para a fenomenologia hermenutica, para o estudo da

    significabilidade pr-predicativa. Alcanado o ponto que nos interessa, a saber,

    a possibilidade de pensar o ser fora do horizonte da presena, cabe-nos agora

    tematizar a proposta heideggeriana de questionamento do ser em Sein und

    Zeit.

    1.2. O PROGRAMA ONTOLGICO DE SER E TEMPO

    Revela-se fundamental para o filsofo, neste momento, saber qual o

    sentido fundamental que domina as mltiplas significaes assumidas pela

    palavra ser. A multiplicidade de modos em que o conceito de ser se desdobra

    levanta o problema da determinao unitria do seu sentido. Para Heidegger,

    preciso haver um sentido dominante nesta diversidade que auxilie na

    investigao da questo central da filosofia: o que o ente? O autor d a este

  • 26 26

    problema a forma de uma pergunta pelo sentido do ser. Edifica-se, assim, a

    mais expressiva obra do filsofo: Ser e tempo (Sein und Zeit, 1927). Esta obra

    um tratado filosfico que tem como objetivo principal apresentar o sentido do

    ser em geral, apresentar a estrutura possibilitadora de toda significao

    possvel de ser. Ela organizada atravs da delimitao das condies de

    possibilidade do desenvolvimento da questo do ser tendo em vista a

    construo de uma ontologia fundamental.

    Segundo Heidegger, o horizonte de sentido do conceito de ser tarefa

    da elaborao de uma ontologia fundamental. Se a pergunta pelo sentido do

    ser caracterizada como uma pergunta fundamental, como pretende o filsofo,

    a investigao a que esta d origem tambm deve ser tomada como

    fundamental. Como entender isto? Perguntar pela unidade de significao do

    conceito ser e, mais especificamente, por sua condio de possibilidade,

    significa reconhecer a necessidade de uma fundao para a ontologia. Assim,

    atravs da elaborao da ontologia fundamental (Fundamentalontologie) torna-

    se possvel reconhecer mais facilmente esta carncia. Como veremos mais

    frente, esta designao de ontologia fundamental deve ser entendida em

    funo das ontologias regionais.

    Logo, na tentativa de legitimar a problemtica ontolgica, Heidegger

    apresenta, na parte introdutria de Ser e Tempo, a necessidade de colocar

    novamente a questo do ser. Heidegger diz que a questo sobre o sentido do

    ser foi simplesmente deixada de lado em sua abordagem.16 A exegese

    dominante interpretou o conceito ser desde o esquema da presena

    (Gegenwart). O que significa que o representar metafsico, ao longo da histria

    16 Cf. HEIDEGGER, 1999, 1.

  • 27 27

    da filosofia, impediu a colocao adequada da pergunta pelo sentido do ser.

    Mltiplas so as significaes concedidas ao ser no decorrer da histria da

    ontologia, como investigou o autor.17 No entanto, na perspectiva heideggeriana,

    o modo de acesso pergunta pelo ser do ente encontra-se limitado por uma

    idia especfica de ser surgida de determinada regio deste mesmo ente: a

    idia de ser como constncia do ser simplesmente dado. (HEIDEGGER,

    1999, p. 144, 21) O ser apreendido da mesma forma que se apreende o

    ente, enquanto substncia. Nesta forma de operar, o ser permanece

    inacessvel porque apreendido com base no entendimento lgico e em suas

    regras fundamentais. Ao se colocar a questo do ser a partir de certa

    rigorosidade representativa extrai-se o investigado do mbito que lhe prprio,

    o mbito ontolgico. Como afirma Heidegger, enquanto questionado, o ser

    exige, portanto, um modo prprio de demonstrao que se distingue

    essencialmente da descoberta de um ente (id. Ibid. p. 32, 2).

    Ao afirmar ser necessrio que a atitude filosfica execute a retomada do

    problema do sentido do ser, Heidegger discute no 1 de Ser e Tempo alguns

    preconceitos que favorecem e mantm a falta de um questionamento do ser

    ou, como dissemos, a carncia de fundao da ontologia. Esses preconceitos

    so os seguintes: Ser o conceito mais universal, [...] uma compreenso do

    ser j est sempre includa em tudo que se apreende do ente.

    Constantemente empregamos o conceito ser e compreendemos o que ele, a

    cada vez, pretende designar. Falar acerca da universalidade deste conceito,

    para Heidegger, no de modo algum resolver o problema de sua significao,

    17 Ver os cursos pronunciados por Heidegger na Universidade de Marburg durante o semestre de vero

    de 1926 e o semestre de inverno de1927, respectivamente, A filosofia antiga e A histria da filosofia de

    So Tomas a Kant.

  • 28 28

    pelo contrrio, somente perceber sua extrema obscuridade. 2) O que se pode

    concluir da sua mxima universalidade, que o conceito ser , tambm,

    indefinvel, pois a palavra a ser definida, ser, j empregada na prpria

    definio: O ser ... Neste caso, a indefinio do conceito assinala para o fato

    de que o ser no poderia ser conhecido ao modo do ente; e, 3) Ser um

    conceito evidente por si mesmo. Em todo conhecimento, proposio ou

    comportamento com o ente e em todo relacionamento consigo mesmo, faz-se

    uso do ser e, nesse uso, compreende-se a palavra sem mais (Id. Ibid.. p.

    28/29, 1). De acordo com Heidegger, justamente o carter de indefinio e

    de auto-evidncia do conceito de ser que dispensaria um questionamento

    acerca de seu sentido. Um problema que ele verifica estar enraizado na histria

    da Filosofia. No entanto, pergunta Heidegger: A questo do sentido do ser e a

    tarefa de um esclarecimento deste conceito no formam pseudoquestes, se

    acreditamos dogmaticamente - como a regra que o ser o conceito mais

    universal e o mais simples?.(HEIDEGGER, 1985, p. 33, 4) Considerando

    isto, como compor essa interrogao pelo ser? Por onde avanar at a questo

    do seu sentido? A partir de que o determinar? Como o analisar? Sobre qual

    caminho se deve avanar at a questo do sentido do ser em geral? Na

    perspectiva de Heidegger retomando um dos procedimentos da

    fenomenologia reflexiva de Husserl para transpor o campo de interrogao

    em direo a um desligamento da representao e do pensamento do ser

    como presena, inicialmente, esse caminho deve encontrar-se desvinculado do

    pensamento filosfico que tem como base pressupostos aceitos sem um

    profundo questionamento. Segundo Heidegger, faz-se necessrio romper com

    os sistemas filosficos que inverteram a questo do ser ao perguntarem pelo

  • 29 29

    ser desde o ente e retroceder origem do pensamento acerca do seu sentido.

    O que significa: a retomada do problema da fundao da ontologia e a

    explorao das suas possibilidades encobertas.

    A anlise dos preconceitos que impediram o questionamento originrio

    da questo do ser garante a proposta de retomada da questo, pois atesta que

    ela nunca foi colocada de forma clara, ou pelo menos, de maneira suficiente.

    Ela nos mostra, fundamentalmente, que o conceito ser comumente utilizado

    por ns. Uma interpretao do ser oferecida sempre que nos relacionamos

    com o ente. fato para o autor que j dispomos de certa compreenso do ser

    (Seinsverstndnis) do ente ao nos relacionarmos com ele; experimentamos a

    sua realidade, a sua estabilidade, decidimos a sua verdade, etc.

    Compreendemos este conceito porque ele subjacente a toda atitude em

    relao ao ente. Considerando isto movemos sempre numa compreenso do

    ser, numa anterioridade que possibilita compreendermos os entes que saem

    ao encontro dentro do mundo. Alguma coisa como o ser se oferece a ns na

    compreenso do ser do ente. O que significa que o sentido do ser deve

    encontrar-se, de alguma maneira, j disponvel ao ser-a. Na interpretao

    heideggeriana, a pergunta fundamental pela possibilidade do conceito ser

    conduz pergunta, mais originria, sobre a concepo pr-ontolgica de ser.

    Apesar de fazermos uso do conceito ser no podemos determin-lo

    teoricamente, ele se apresenta a ns numa total incompreenso. Ao fazer uso

    desta palavra deparamo-nos com uma variedade de significados alcanada

    pelo conceito. Esta idia confusa de ser Heidegger chama de concepo pr-

    ontolgica do ser ou, podemos dizer tambm, uma concepo pr-conceitual.

    Contudo, segundo o autor, a partir da tematizao dessa compreenso

  • 30 30

    indeterminada do conceito de ser, a qual se move no limiar de um mero

    conhecimento verbal, que ela pode ser superada. (HEIDEGGER, 1999, p. 31,

    2) Esta compreenso em que desde sempre nos movemos a indicao que

    Heidegger segue como mbito fundamental da procura pelo sentido do ser.

    Apesar de ser uma indicao um pouco vaga e indeterminada, ela auxilia na

    busca da questo heideggeriana. A compreenso que sempre mantemos de

    ser em todas as nossas relaes fornece o acesso questo do seu sentido.

    Vemos, ento, que a questo do sentido do ser somente surge porque, desde

    sempre nos movemos numa compreenso do ser, ainda que obscura,

    favorecida pelo prprio existir. Segundo o filsofo, ns no sabemos o que diz

    'ser'. Mas quando perguntamos o que 'ser' ns nos mantemos numa

    compreenso do '', sem que possamos fixar conceitualmente o que significa

    esse ''" (Id. ibid., p. 31, 2). Como dissemos, na compreenso pr-ontolgica

    o sentido do ser encontra-se de algum modo disponvel ao ser-a. Esta

    afirmao diz ainda que, tal ente, desde sempre, encontra-se envolvido em

    uma compreenso de ser da qual brota a pergunta pelo seu sentido e a

    tendncia para a conceituao.

    Como, ento, se d o acesso ao ente enquanto tal, nossa relao com

    ele? preciso que haja algo que nos encaminhe a este acesso. Ser esta a

    funo ocupada pela compreenso ontolgica? Visto que o ente enquanto tal

    no se d a conhecer conceitualmente, ele deve se mostrar numa significao

    inicial. Isto quer dizer que preciso compreender algo como o ser para se ter

    experincia do ente enquanto tal. Desse modo, a ontologia fundamental

    concretiza-se como Analtica do Ser-a. A fundao da ontologia se torna uma

    explicao da possibilidade intrnseca da compreenso do ser. Desse modo,

  • 31 31

    somente atravs da anlise da constituio ontolgica do homem enquanto

    existncia que a pergunta sobre a compreenso pr-ontolgica do ser pode ser

    entendida. Nessa proposta de investigao da estrutura da existncia, de uma

    Analtica do ser-a, Heidegger intenta trazer luz novamente a compreenso

    originria que temos do ser e que ficou esquecida ao longo da histria da

    Filosofia.

    1.3. O PRIMADO NTICO E ONTOLGICO DA QUESTO DO SER: A ONTOLOGIA

    FUNDAMENTAL

    Nos pargrafos 3 e 4 de Ser e Tempo, Heidegger fala do alcance do

    conceito de cincia e a posio que ela ocupa em relao colocao do

    problema do ser. As cincias positivas se ocupam do estudo de uma regio

    determinada dos entes (Sachgebiet), previamente aberta por um esforo

    desenvolvido como ontologia regional. Para que haja certo avano para as

    cincias, necessrio que o domnio correspondente a elas esteja de antemo

    descoberto, de modo a que os conceitos-base, isto , os conceitos sobre os

    quais suas teorias se apiam, e mesmo os objetos investigados, fiquem

    disponveis a uma primeira aproximao possibilitadora da investigao. o

    que Heidegger chama de experincia pr-cientfica. A experincia pr-cientfica

    prope uma interpretao inicial das diferentes regies dos entes. A partir

    desse domnio que surgem os pressupostos que guiam todas as cincias

    positivas. No entanto, h um rompimento da cincia com esse domnio pr-

    cientfico. A investigao cientfica acaba por desconsiderar a natureza de

    seu campo de pesquisa, ou seja, do campo que d origem aos pressupostos

  • 32 32

    do qual parte. Desse modo, os conceitos condutores que abrem o campo de

    estudo de determinada cincia no so investigados e muito menos

    esclarecidos; seus conceitos condutores so operados cegamente.

    Podemos retomar aqui a discusso de Heidegger com Husserl no que

    diz respeito diferena entre a analtica existencial e a fenomenologia

    transcendental. O escopo husserliano era o de uma concepo de filosofia

    como cincia, isto , de uma filosofia fenomenolgica; sendo assim, o mbito

    pr-predicativo que aberto pela vivncia intencional mostra que o estudo

    fenomenolgico deve ser considerado como anterior a toda relao da

    conscincia com o mundo. O que significa que o carter prvio da investigao

    fenomenolgica serviria de base a todos os ramos do conhecimento, ou

    melhor, se colocaria antes de toda a cincia explicativa do real, antes da

    cincia fsica da natureza, da psicologia e antes mesmo de toda

    metafsica.(HUSSERL, 1999, p. 21, II) Assim, o conhecimento seria explicitado

    numa total unidade desde a fundao concedida pela intencionalidade.

    Somente esta investigao permitiria elucidar verdadeiramente, segundo

    Husserl, a experincia mundana. No caso de Heidegger, a analtica existencial

    se apresenta como ponto de partida da anlise de fundamentao das

    ontologias regionais. A analtica do ser-a no pretende ser um corpo

    doutrinrio totalmente incontestvel, mas, ao contrrio, prope ser uma

    interpretao que deixa em aberto a possibilidade de ramificar-se e continuar

    crescendo.

    Seguimos com a anlise crtica de Heidegger s cincias regionais.

    Segundo o filsofo, necessrio um questionamento acerca do domnio em

    que a cincia se move, para, a partir da, chegar a um questionamento radical

  • 33 33

    capaz de antecipar a interpretao do ente em sua constituio fundamental. A

    pergunta da cincia deve ser pela prpria estrutura que a possibilita obter seus

    conceitos-base. No obstante, o mtodo utilizado pelas cincias incapaz

    dessa elaborao. Ela apenas consegue se firmar metodologicamente porque

    no se volta para os problemas de fundao; ela no pode atravs de seus

    mtodos e princpios compreender a estrutura que a torna possvel. Somente

    atravs da ontologia que o setor cientfico tem como pensar os conceitos do

    qual parte. Atravs da anlise do ser dos entes com o qual as cincias se

    ocupam que elas podero saber mais sobre si mesmas. Assim, a carncia de

    fundao somente pode ser contornada atravs de uma ontologia regional, isto

    , o que deve ser questionado so as estruturas possibilitadoras que permitem

    ao ente investigado aparecer como tal. Para Heidegger, antecipar um

    determinado setor do ser liber-lo em sua constituio ontolgica e

    disponibilizar para as cincias as estruturas obtidas enquanto perspectivas

    lcidas de questionamento". (HEIDEGGER, 1999, p. 37, 3)

    A cincia deve, portanto, ser pensada como um modo de ser possvel ao

    ser-a. Um modo de ser no qual o ser-a se comporta com entes que ele

    mesmo no precisa ser. (Id. Ibid. p. 39, 4) Este ente carrega em si uma

    compreenso de sua constituio ontolgica, de sua existencialidade, que est

    implicada na idia de ser em geral. Isso faz dele um ente que existe

    compreendendo ser. Como dissemos anteriormente, o ser-a, por ser em si

    mesmo ontolgico, determinado pela existncia, e para tanto, carrega uma

    compreenso pr-ontolgica do ser. Assim, na estrutura do ser-a que as

    ontologias se fundam. Isto justifica porque a ontologia fundamental deve ser

    procurada na Analtica existencial. Pois na Analtica que sero apresentadas

  • 34 34

    a condio de possibilidade da projeo de ser pela compreenso de ser.

    Portanto, a tarefa originria de uma ontologia regional exige a elaborao de

    uma ontologia fundamental. As ontologias regionais dos diversos domnios dos

    entes que fundam as cincias precisam estar fundadas numa ontologia

    fundamental. Considerando, portanto, que o questionamento ontolgico mais

    originrio do que as pesquisas nticas das cincias positivas, as investigaes

    sobre o ser dos entes devem considerar ainda o questionamento acerca do

    sentido do ser em geral. (Id. Ibid. p. 37, 3). Deste modo, a ontologia

    fundamental deve ser vista como uma investigao sobre o sentido do ser em

    geral, isto , uma investigao sobre o horizonte no qual o ser se mostra. Uma

    ontologia fundamental deve ser realizada a fim de que se possa apreender o

    ser. A questo do ser visaria no apenas s condies a priori de possibilidade

    das cincias, mas ainda, s condies de possibilidade das prprias

    ontologias que antecedem e fundam as cincias nticas. (Id. ibid. p. 37, 3).

    Alm do primado ontolgico, a questo do ser possui ainda um primado

    ntico frente aos demais questionamentos que o ser-a pode se colocar. Para

    entendermos este primado preciso considerar, primeiramente, que no

    discurso terico das cincias, no que diz respeito aos determinados domnios

    do ente, as teorias cientficas encontram-se enraizadas em atitudes e

    comportamentos. Como foi dito, a cincia ou o fazer cientfico um modo de

    ser possvel ao ser-a. Ela enraza-se no ente que escolhe se comportar de tal

    ou tal maneira. (GREISCH, 1994, p. 85). Desse modo, para esclarecer o

    primado ntico da questo do ser preciso, antes, abordar o primado ntico do

    ser-a na colocao do problema ontolgico.

  • 35 35

    H um ente entre todos os outros que possa guardar em si a

    possibilidade de uma elaborao acerca do sentido do ser? Se h, o que o

    distingue de todos os outros entes? Na perspectiva ontolgica, todos os

    objetos, sejam eles naturais, culturais, ideais, reais e etc., possuem sua

    dignidade ontolgica porque dizem respeito ao ser ou a maneiras de ser. No

    entanto, elaborar a questo do sentido do ser significa trazer luz o questionar

    mesmo. Nos Prolegmenos Histria do Conceito de Tempo, Heidegger

    (2006, p. 182, 16) afirma que o nexo entre a questo do ser e o ente

    interrogante, o ser-a, ocorre porque ns somos esta questo. Este perguntar

    pelo ser j , por sua vez, um ente. (Id. ibid., p. 185, 17). Afirma o autor

    (2006, p. 185): perguntar pelo ser ele mesmo um ente que se d junto com a

    questo acerca do ser ao empreender o perguntar, caso se o perceba

    explicitamente ou no. No contedo da questo encontramos o mesmo que

    pergunta. Heidegger procura legitimar esta questo quando afirma ser preciso

    entender corretamente o que se pergunta ao perguntar pelo ser. (Id. ibid., p.

    185, 16). O que est em jogo quando nos colocamos esta questo? preciso

    entender que o interrogar est intrinsecamente relacionado ao ente que

    pergunta: o ser-a. Privilegiar o ser-a como o ente capaz de acessar o conceito

    de ser significa que ele o ente habitado pela questo do sentido do ser. O

    que se busca, portanto, tornar acessvel esse ente que pergunta e que

    projeta questes. Pois faz parte do seu modo de ser o questionar. O que

    significa que o ser-a existe estabelecendo uma relao com o seu prprio ser.

    Ele no nunca uma ocorrncia ou algo que tem lugar, ele sempre mais e

    outra coisa que uma simples ocorrncia. Existindo se relaciona com e por sua

    existncia. O ser-a possui o privilgio frente aos demais entes de

  • 36 36

    compreender-se como possibilidade de ser deste ou daquele modo. Existindo o

    ser-a est decidindo-se a todo o momento, pois se compreende na lida

    consigo mesmo. A compreenso que esse ente tem de seu ser ou de sua

    existncia se d onticamente, ou seja, esta compreenso se d no prprio

    existir, no fato concreto da existncia. A partir de sua existncia que o

    homem se compreende; no existir mesmo ele compreende seu ser. Portanto, a

    questo da existncia sempre s poder ser esclarecida pelo prprio existir

    (Id. ibid., p. 185, 16).

    A tese de Heidegger de que da compreenso ntica resultam

    estruturas ontolgicas. Na compreenso de seu ser, o ser-a compreende

    tambm o mundo e os entes que esto dentro dele. Desta forma, uma Analtica

    existencial j se encontra em tal compreenso ntica. A possibilidade de uma

    construo ontolgica encontra-se ou funda-se na compreenso ntica da

    existncia, onde se d uma compreenso pr-ontolgica do ser. Pois na

    compreenso do ser o ser-a caracterizado em seu ser mesmo previamente

    elaborao de toda ontologia explcita.(GREISCH, 1994, p. 86) Uma

    investigao ontolgica sempre uma possibilidade a ser projetada por um

    ente que existe. De modo que o fundamento da prpria compreenso de ser,

    ou da ontologia, o ser-a. O ser-a possui a capacidade terica de

    desenvolver uma ontologia por ser em si mesmo um ente ntico e ontolgico.

    Como ente ontolgico, isto , que acolhe em si uma compreenso pr-

    ontolgica de ser, possvel perguntar-se ontologicamente com anterioridade

    aos outros entes. Perguntar-se pelo sentido do possvel. Desse modo, o ser-a

    a condio ntico-ontolgica de possibilidade de todas as ontologias

  • 37 37

    regionais e o primeiro ente a ser interrogado no questionamento pelo sentido

    do ser.

    Como afirma Heidegger, a analtica existencial possui razes nticas

    existencirias. (HEIDEGGER, 1999, p. 40, 4). Na cotidianidade mediana se

    determina o que constitui o aspecto ntico do ser-a. Interpretar este ente

    ontologicamente implica abordar a possibilidade mesma do existir, a

    existencialidade da existncia. Isto significa que na cotidianidade o ser-a deve

    ser visto no pela diferena de um modo de existir, isto , a partir de uma

    determinada idia de existncia, mas como um modo indeterminado que

    prprio da cotidianidade do ser-a, na qual ele se encontra de incio e na maior

    parte das vezes. (Id. ibid., p. 79, 9). Este modo indeterminado do ser-a deve

    ser considerado ontologicamente, pois na indiferena cotidiana que

    encontramos as estruturas ontolgicas que compem a existncia. Segundo

    Heidegger (1999, p. 80, 9), estas estruturas so encontradas a priori na

    cotidianidade.

    1.4. O CONCEITO HEIDEGGERIANO DE FENOMENOLOGIA

    No perodo de 1926 a 1927, Heidegger profere um curso em Marburg

    publicado sob o ttulo: Os problemas fundamentais da fenomenologia (Die

    Grundprobleme der Phnomenologie). Esta a primeira elaborao formal,

    desde a assimilao do pensamento de Husserl como seu assistente,

    diretamente ligada fenomenologia enquanto procedimento metdico. Este

    trabalho surge contguo preparao de Ser e tempo, marcando a autonomia

    filosfica do filsofo alemo. Assume Heidegger, assim, sua prpria verso da

  • 38 38

    fenomenologia. No referido curso, o filsofo admite a fenomenologia como

    mtodo para se investigar a compreenso de ser do ser-a e determinar seus

    elementos fundamentais. Ao contrrio das demais cincias, a fenomenologia se

    ocupa dessa compreenso que pertence ao ser-a. O que significa que ela a

    interpretao terico-conceitual do [sentido do] ser, de sua estrutura e de suas

    propriedades (HEIDEGGER, 1985, p. 28, 3) O ser e o que o constitui o

    fenmeno privilegiado na investigao fenomenolgica porque o ser funda e

    confere sentido ao que se mostra diretamente. Ento, seria uma busca pelo

    indeterminado, o ser, e como ele experimentado frente ao determinado, ou

    seja, frente ao que se mostra diretamente. Segundo o filsofo, a pergunta pelo

    sentido do ser uma pergunta eminentemente fenomenolgica. Heidegger

    entende que ser sempre ser de um ente.(HEIDEGGER, 1999, p. 35 - 3)

    Essa a intencionalidade do ser. A fenomenologia , portanto, em seu

    contedo, a cincia do ser dos entes, ela ontologia. Consideremos, ento,

    que a fenomenologia de Heidegger tem como meta investigar o sentido do ser

    a partir de um nico modo de ser entendido em sua possibilidade e unidade

    inversamente ao que pensava a ontologia antiga que entendia o ser numa

    diversidade de significaes.18

    O propsito deste captulo, portanto, apresentar a definio de

    fenomenologia exposta em Ser e Tempo, bem como, sua articulao com a

    analtica existencial do ser-a. Na anlise do que seja este procedimento

    fenomenolgico, preciso que nos debrucemos sobre a interpretao do 7

    que trata da fenomenologia. Como nos informa o autor, esta uma exposio

    provisria e de ndole terminolgica do conceito de fenomenologia. Este carter

    18 Conferir nota 19.

  • 39 39

    provisrio ou preliminar do mtodo fenomenolgico nos avisa que ele no pode

    ser elaborado explicitamente fora do movimento da prpria anlise do seu

    objeto. Por conseqncia, este procedimento no poder partir da

    demonstrao e da deduo, mas de uma mostrao (Aufweisung). De

    acordo com a constituio fundamental do ser-a, o conceito de mtodo

    apenas poder ser distinguido e devidamente delineado, se considerado desde

    a anlise do ser e do sentido. O mbito em que transita o mtodo

    fenomenolgico no pode ser determinado por um ente previamente dado. Ao

    contrrio, na no delimitao do objeto que se forma propriamente o mtodo.

    Com a expresso fenomenologia Heidegger refere-se a um conceito de

    mtodo. Este termo no pretende exprimir o contedo essencial dos objetos,

    mas o modo como os objetos so, isto , tal como se mostram em si mesmos.

    A fenomenologia para Heidegger no um mero mtodo formal que pode ser

    justificado antes mesmo da prpria investigao. A originariedade do conceito

    de mtodo est em prender-se estrutura possibilitadora das coisas em si

    mesmas, contrariamente qualidade essencial de determinada coisa. A

    fenomenologia se caracteriza por manter aberta a tendncia para as coisas

    mesmas e liber-las dos atrelamentos inautnticos e constantemente

    emergentes e sorrateiramente atuantes (Figal, 2005, p. 34). Portanto, o

    procedimento fenomenolgico se determina por um questionar prprio que

    surge do comportamento existencial do ser-a, o questionar hermenutico.

    Justifica-se, assim, a necessidade de reiterar expressamente a questo que

    interroga pelo ser apresentada no primeiro pargrafo de Ser e Tempo. Desse

    modo, o questionar filosfico que caracteriza o conceito de mtodo

    fenomenolgico, interroga-se pelo sentido do ser e, no mais, pelo ser do ente.

  • 40 40

    Contrariamente s cincias positivas que se perguntam pelo ser de um ente

    previamente dado. Com efeito, apenas a partir do que procede da

    investigao existencial juntamente com a aplicao dos seus principais

    momentos (reduktion, konstruktion e destruktion. (HEIDEGGER, 1985, p. 41 -

    5)). que se torna possvel determinar propriamente a noo de fenomenologia

    heideggeriana. O que significa, que o conceito de fenomenologia apenas

    poder ser apresentado se estiver em movimento na analtica do ser-a. Deste

    modo, o mtodo fenomenolgico encontra-se em estrita relao com a analtica

    existencial porque, como explicitamos um pouco atrs, atravs da anlise das

    estruturas do ser-a que o ser e seu sentido se revelam. Na dinmica prpria da

    analtica existencial que este conceito pode adquirir forma. Ele se determina

    desde o mbito de interrogao prprio ao ser-a pelo ser e seu sentido, e

    no antes dele. Heidegger planejava uma teorizao mais completa e definitiva

    sobre o conceito de fenomenologia a ser elaborada na terceira seo do

    tratado Sein und Zeit quando da anlise do ente interrogante. Mas seu intento

    no chegou a se efetivar. Uma tentativa neste sentido encontrada na

    elaborao do curso de 1927, Die Grundprobleme der Phnomenologie obra

    utilizada parcialmente em nossa pesquisa. Em conseqncia dessa mudana

    de planos, decisiva para a tematizao do mtodo de Heidegger, um

    procedimento que, como vimos, fugia de toda possvel determinao explcita,

    passa, no pensamento posterior do filsofo, a uma abordagem do ser como

    evento da verdade. 19

    Retomamos a abordagem do pargrafo sobre a fenomenologia.

    Primeiramente, recuperaremos a anlise dos termos fenmeno e logos

    19 Conferir: BLANC, M. F. 2001, p. 215.

  • 41 41

    ambas as partes componentes do termo fenomenologia. Em seguida,

    exporemos os trs momentos constitutivos do mtodo fenomenolgico:

    reduo, construo e destruio na tentativa de alcanar uma primeira idia

    de sua significao. Visamos recuperar a preparao inicial deste

    procedimento na edificao da anlise da questo do ser fora do mbito que

    subjuga o ser presena.20

    Vemos que a retomada da questo sentido do ser est claramente

    associada mxima fenomenolgica: s coisas em si mesmas. Pois, o

    procedimento fenomenolgico pretende descrever tudo o que aparece tal como

    se apresenta em si mesmo numa tentativa de tomar os fenmenos a partir

    deles mesmos. Entendido, ento, que a abordagem fenomenolgica tem como

    meta a busca do ser, o que nesta investigao ser questionado o ser

    mesmo. Este "[ir] s coisas mesmas!" deve ser compreendido como

    possibilidade existencial do ser-a; como um procedimento que tem carter

    transcendental. Em Ser e Tempo esta mxima vista de duas maneiras.

    Primeiro, "ir s coisas mesmas" possui o significado de ir contra "construes

    soltas no ar" e "pseudoquestes que se apresentam". (HEIDEGGER, 1999, p. 57,

    7) Este conceito est vinculado s discusses crticas que Heidegger mantm

    com as elaboraes tericas da tradio filosfica. Segundo o autor, para um

    esclarecimento do mtodo fenomenolgico no se deve recorrer s ontologias

    historicamente dadas. A investigao fenomenolgica no deve partir de teses

    j enunciadas sobre o ser. Este procedimento tambm no deve prescrever

    "um ponto de vista" ou uma "corrente" filosfica na qual tratar o objeto ou

    mesmo ancorar-se em artifcios tcnicos. (Id. Ibid., p. 57, 7). Ainda que o

    20Ser empregada nesta abordagem a obra de Heidegger intitulada: Die Grundprobleme der

    Phnomenologie.

  • 42 42

    conceito ser seja um termo comum para a tradio e possa ser simplesmente

    empregado, sem mais, ele no pode, no entanto, ser considerado desde uma

    perspectiva exterior, isto , com base em princpios ou pressupostos. Num

    segundo momento, no qual esta mxima explicitada atravs da anlise dos

    termos lgos e fenmeno, veremos que a fenomenologia ser esboada a

    partir de um horizonte terico que toma os objetos como fenmenos, visando

    certa maneira de abord-los.

    Como vimos, para que os objetos alcancem a forma de fenmeno

    preciso transpor os encobrimentos proporcionados pelas construes tericas

    inadequadas da tradio filosfica. preciso considerar, segundo Heidegger,

    que um fenmeno pode encobrir-se de variados modos. Primeiramente, ele

    pode nunca ter sido descoberto e, por isto, encontrar-se velado. Ou ainda, o

    fenmeno pode encontrar-se entulhado, isto significa que ele foi descoberto e

    voltou a encobrir-se. Neste caso, o encobrimento pode ser total ou parcial. Por

    estar na forma de fenmeno, o objeto encontra-se, j que parcialmente

    encoberto, na forma de total aparncia (Schein) aproximando-se a uma

    desfigurao. De acordo com o filsofo, para se entender de modo originrio o

    termo fenmeno preciso recuperar, num primeiro momento, a significao

    que esta palavra alcana entre os gregos. Para estes, fenmeno quer dizer "o

    que se mostra, o que se revela". Neste mostrar-se o ente revela-se em si

    mesmo, tal como . Da no se exclui, no entanto, a possibilidade do ente

    revelar-se como aquilo que ele no , ou seja, de mostrar-se como parecer

    ser. Neste caso, o fenmeno seria visto tal como ele no , caracterizando-se

    como parecer ou aparncia. A coisa no mostrada tal como em si mesma.

    O fenmeno mostra a coisa como ela parece ser. Neste sentido, fenmeno

  • 43 43

    designa um bem, que se deixa e faz ver como se fosse um bem, mas que na

    realidade no assim como se d e apresenta.(Id. Ibid., p. 58, 7) Contudo,

    o fenmeno como aparncia, somente ocorre quando algo pretende mostrar-se

    assim como . Este significado originrio de fenmeno fundamenta e sustenta

    o aspecto de... do ente. O que significa que a primeira significao de

    fenmeno como mostrao, revelao, como algo que tende a mostrar-se,

    funda o seu segundo sentido, mais ou menos negativo, de parecer, aparncia,

    semelhana e iluso, etc., e no o contrrio.

    A palavra fenmeno pode ainda ser entendida num segundo sentido

    ainda mais derivado: como manifestao (Erscheinung). Porm, esta distino

    no exprime o mesmo que aparncia. Manifestao indica algo que em si

    mesmo no se mostra, contrariamente aparncia que mostra algo que em si

    mesmo no . Ou seja, a manifestao indica o que e a aparncia mostra o

    que no . Por exemplo, as manifestaes de uma doena no mostram a

    doena, mas apenas deixam dela uma indicao. A doena no se mostra

    como tal. A manifestao aponta a doena que em si mesma no se mostra.

    Deste modo, a manifestao tem o sentido de um anunciar-se de algo que no

    se mostra. O no-mostrar da manifestao no o mesmo que o da aparncia

    j que a manifestao nunca poder ter aparncia de algo, pois apenas indica

    algo que no se mostra. O manifestar-se no se mostra enquanto tal, apenas

    anuncia-se. Por isto, a manifestao nunca ser um mostrar-se no sentido do

    fenmeno. O fenmeno da manifestao se sustenta no fenmeno em sentido

    originrio, isto , no mostrar-se de algo. Para que a manifestao seja possvel

    ela deve ter como suposto o mostrar-se de alguma coisa, visto que ela indica

    algo que se manifesta, e justamente por isso, manifestao. Deste modo, na

  • 44 44

    medida em que algo pode anunciar-se a partir do que se mostra, o fenmeno

    pode transformar-se em aparncia, isto significa que a manifestao pode

    tornar-se tambm simples aparncia. Por exemplo, o rosto vermelho pode ser

    interpretado como anncio de febre. No entanto, a ocorrncia do rosto

    avermelhado pode ser devido iluminao. O rosto parece vermelho, ele no

    est vermelho. Neste caso, o rosto vermelho no anncio de febre. Logo, a

    manifestao uma simples aparncia.

    Prender-se ao fenmeno enquanto o que aparece, desde suas

    caractersticas empricas e acidentais significa um modo no originrio, e

    mesmo deturpador, do autntico modo de dar-se das coisas. Na maioria das

    vezes o fenmeno encontra-se desfigurado comprometendo a anlise que dele

    fazemos. Precisamos considerar como fenmeno a estrutura mesma que

    possibilita que o ente seja aquilo que , ou seja, pensar o inaparente, o que

    subjaz ou encontra-se encoberto no ente. O fenmeno ocorre num duradouro

    jogo entre ocultamento/desocultamento do ente. No processo de surgimento do

    ente uma parte da sua estrutura se vela para que o ente surja em totalidade,

    ainda que esta totalidade seja parcial, vista da perspectiva fenomenolgica. A

    parte que volta a encobrir-se possibilita o prprio aparecer do ente. Por isso,

    um momento estrutural do ente continua necessariamente encoberto. Contudo,

    preciso perguntar: se a fenomenologia de Ser e Tempo visa justamente

    tematizar essa estrutura ontolgica, como ela pode faz-lo? H segundo

    Heidegger, uma situao existencial prpria do ser-a que prepara toda questo

    sobre o ser. Essa situao existencial ou modo de ser prprio expresso pelo

    fenmeno da compreenso ontolgica, constitutivo e subsistente a ele. Isto

    quer dizer que a indicao formal da idia de existncia e de ser sempre esteve

  • 45 45

    orientada por esta compreenso ontolgica. Falemos dela, pois, atravs de

    sua elaborao que poderemos perceber que tais idias guardam em si certo

    contedo ontolgico. (Id. ibid., p. 107, 63). Qualquer modo de ocupao

    pressupe que o ser-a j tenha se compreendido de algum modo. Apesar da

    falta de determinao ontolgica suficiente (Id. ibid., p. 106)., preciso admitir

    que desde sempre o ser-a se mostra e se percebe enquanto ser-no-mundo, e

    no como algo simplesmente dado. Essa antecipao prpria do ser-a que

    torna possvel a ele compreender-se em qualquer situao. Assim, atravs da

    elaborao ontolgica constitutiva do ser-a que se poder obter um

    esclarecimento ontolgico da idia de ser. E, diz Heidegger, essa elaborao

    s possvel com base numa interpretao originria do ser-a feita pela idia

    de existncia. Desse modo, a fenomenologia de Ser e Tempo tematiza aquilo

    que s pode ser conceituado na medida em que j compreendido. A

    conceituao fenomenolgica pressupe necessariamente o que pretende

    conceituar, de modo que mantm com o indicador formal uma relao de

    circularidade. O conceito fenomenolgico deixa e faz ver o ente em si mesmo

    tal como se mostra a partir de si mesmo. O que est pressuposto e deve ser

    compreendido o prprio interpretar constitutivo do ser-a. O interpretar

    entendido como um modo de ser em relao ao ser.

    Assim, retomando a anlise, preciso reconhecer que o conceito de

    fenmeno, tal como utilizado at aqui, um conceito puramente formal. Pois,

    no sabemos ainda a qual gnero de realidade ele pode ser aplicado.

    (GREISCH, 1994, p. 103). Justifica-se, desse modo, a necessidade de separar

    o conceito fenomenolgico e fundamental de fenmeno, o fenmeno como o

    mostrar-se em si mesmo, do conceito no fenomenolgico e derivado, isto ,

  • 46 46

    em que a coisa no tomada propriamente, mas sua caracterstica mais

    essencial provm de vrios preconceitos admitidos acerca do sentido de ser do

    ente no decorrer da histria da Filosofia. Segundo Heidegger, uma apreenso

    do conceito fenomenolgico de fenmeno requer que o ente interpelado esteja

    determinado como o que se mostra enquanto tal. Caso este critrio no seja

    admitido, teremos apenas uma noo formal de fenmeno, o que significa que

    no teremos um contedo ao qual aplic-lo. Ou seja, se entende por fenmeno

    o que j sempre se mostra nas manifestaes [...] e que pode mostrar-se

    tematicamente, [ou, como aparncia]. Continuando a explicao terminolgica

    do termo fenomenologia com vistas a alcanar uma idia mais verdadeira deste

    conceito, passamos interpretao da noo grega de lgos.

    Para alcanar o sentido prprio do conceito de lgos, Heidegger

    recupera a polissemia que este conceito teve com os filsofos gregos Plato e

    Aristteles, mostrando que seus vrios significados fizeram com que seu

    significado fundamental tendesse disperso, aparentando no haver um

    significado bsico. Para Heidegger, h um significado primordial para este

    conceito: discurso. A plurivocidade do conceito de lgos guarda em sua base

    a significao de discurso. No entanto, como entender essas variadas

    significaes (tais como: razo, julgamento, conceito, definio e fundamento)

    imbricadas na noo de lgos como discurso? Inicialmente, entendemos que

    Heidegger toma esta questo como um problema fenomenolgico e no

    semntico. Entre os gregos, o significado da noo de lgos como discurso,

    quer dizer: tornar manifesto, colocar vista, fazer visvel, revelar, fazer

  • 47 47

    conhecer. Sua significao bsica , portanto, revelar aquilo de que trata o

    discurso declarativo. (HEIDEGGER, 1999, p. 62 - 7) 21.

    Este deixar e fazer ver as coisas que acontece como modo de ser do

    ser-a se efetiva na linguagem. Segundo Heidegger, em seu exerccio

    concreto, o discurso (deixar ver) tem o carter de fala, de articulao em

    palavras. (Id. ibid., p. 63 - 7). Justamente por ter a funo de tornar

    manifesto que o lgos pode ser verdadeiro ou falso. Na perspectiva

    fenomenolgica, portanto, a verdade do lgos entendido aqui como deixar

    ver, deixar conhecer significa desvelar o ente sobre o qual se discorre no

    dizer. A verdade , ento, desveladora do ente, ela deixa e faz ver o ente como

    algo desvelado. Em referncia verdade enquanto desvelamento que a

    proposio definida. Contrariamente ao ser-verdadeiro, tem-se a falsidade do

    lgos no sentido de encobrimento. A falsidade deixa e faz ver algo como o que

    ele no . Ela encobre o ser-verdadeiro do ente. Ela encobre o em si mesmo

    do ente. A falsidade interpreta algo a partir de outro algo, ou seja, recorre

    sempre a alguma outra coisa e, assim, o prope como o que ele no . Nesta

    estrutura encontra-se, portanto, tanto a possibilidade de descobrimento quanto

    de encobrimento.

    Na interpretao de Heidegger, torna-se importante afirmar a

    impossibilidade da concepo de verdade numa teoria lgica da proposio ou

    do julgamento. O lgos no sentido proposicional no o lugar primrio da

    21 Para justificar a escolha da noo de discurso como o significado bsico e primordial do lgos

    Heidegger remete-se a Plato e Aristteles, pois eles utilizavam o verbo tornar manifesto (Offenbar

    machen) para caracterizar a funo fundamental de discurso. Desse modo, eles seriam os primeiros a

    acenar para a essncia fenomenolgica da linguagem mesmo aceitando a plurivocidade do conceito. Cf.

    (Greisch, 1994, p.104).

  • 48 48

    verdade.22 O discurso declarativo apenas uma modalidade particular do

    deixar e fazer ver. O que Heidegger pretende, ento, alargar o conceito de

    verdade, e para isto tem como via a perspectiva grega de lgos, segundo a

    qual inclue na anlise do lgos um poder relevante prprio da sensao

    (aisthsis). Segundo o autor, a verdade anterior ao lgos a simples

    percepo sensvel de algo. Na percepo originria s h descobrimento, algo

    nunca se encontra encoberto. Perceber alguma coisa significa j poder captar

    as determinaes do ser dos entes enquanto tais. Esta percepo nunca ser,

    portanto, falsa. O que pode acontecer no haver percepo. Pois, nela, o

    ente s pode estar descoberto; na percepo o ente s se mostra como o que

    ele , nunca como o que ele no . Atravs do fenmeno ontolgico

    caracterstico da noo de lgos enquanto deixar e fazer ver que a questo

    do ser e de seu sentido pode ser pensada enquanto uma possvel elaborao.

    A partir desta elucidao a fenomenologia pode ser expressa do

    seguinte maneira: um "deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra,

    tal como se mostra a partir de si mesmo". (HEIDEGGER, 1999, p. 65, 7)

    Como indicamos anteriormente, este seria o conceito formal de fenomenologia.

    Ele no apresenta contedo, no apresenta um tema a ser investigado, como

    ocorre, por exemplo, com os termos teologia, biologia, etc., que se referem a

    um objeto de estudo especfico - o ente divino, os viventes. Este conceito

    formal de fenomenologia apresenta-se como um modo de abordar e de mostrar

    o fenmeno em questo, afastando toda determinao que no leve para as

    coisas elas mesmas.

    22 Segundo Greisch (1994, p.104), Heidegger reconhece que a funo sinttica que caracteriza o discurso

    declarativo tem uma significao puramente aponfntica.

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    O conceito de fenomenologia deve apresentar como contedo: a

    questo do ser. Com a desformalizao, pretende-se deixar e fazer ver o ser e

    suas estruturas. Assim, a fenomenologia conduz os objetos forma de

    fenmeno, do que se mostra em si. Com efeito, o fenmeno privilegiado na

    investigao fenomenolgica o ser, visto ser a estrutura que concede sentido

    e fundamento ao que se mostra diretamente. Fica, portanto, justificada a

    afirmao de Heidegger de que a fenomenologia apenas se realiza enquanto

    ontologia.23 Na perspectiva fenomenolgica, os fenmenos, de incio e na

    maioria das vezes, no se do. (HEIDEGGER, 1999, p. 66, 7). Isto significa

    que justamente o que deve ser considerado como fenmeno o que no se

    mostra diretamente e na maioria das vezes. De incio, o ser no acessvel

    seno a partir do ente. Como j aludimos, a tese de Heidegger a de que

    fenmeno somente o que constitui o ser, e [que] ser sempre ser de um

    ente. (Id. ibid., p. 68, 7). O ver fenomenolgico recai, ento, sobre o ente de

    tal modo que possibilita a tematizao do ser deste ente. Visar

    fenomenologicamente o ente reflete numa reconduo ao ser.

    Realizada a aproximao inicial na tentativa de explicitar o procedimento

    fenomenolgico a partir da anlise do fenmeno e do lgos, veremos ainda que

    ele constitudo de momentos ou etapas que devem ser pressupostas para o

    reto andamento da elaborao fenomenolgica.24

    Este procedimento composto de trs momentos constitutivos que so

    os seguintes: reduo, construo e destruio. A reduo fenomenolgica

    23 A partir desta idia de fenomenologia Heidegger delimita, em seus trabalhos posteriores, de modo

    mais concreto, o conceito de filosofia. Aqui j se encontra a tese de que a fenomenologia o mtodo

    prprio da investigao filosfica. 24 Como indicamos anteriormente, a fim de apresentarmos as etapas constitutivas do mtodo

    fenomenolgico, utilizamos a obra de Heidegger intitulada: Die Grundprobleme der Phnomenologie.

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    descrita como a "reconduo do olhar fenomenolgico de apreenso do ente

    qualquer que seja sua determinao para a compreenso do ser desse ente".

    (HEIDEGGER, 1985, p. 40, 4). Este momento refere-se a um direcionar-se

    para o ser em si mesmo desviando o olhar da simples efetividade do ente.

    Percebemos que a reduo aponta para a diferena entre a filosofia e as

    cincias positivas, ou melhor, para seus respectivos objetos. A filosofia dirige

    sua investigao para o ser, enquanto as cincias positivas dirigem aos entes.

    Na literatura comentada h intrpretes que vem a etapa da reduo

    como um procedimento negativo do mtodo fenomenolgico, pois esta etapa

    captaria a diferena entre filosofia e cincias positivas sem apresentar o

    pressuposto sobre as estruturas e o sentido do ser com o qual a filosofia conta.

    Ou seja, faz-se uma relao entre elas sem ter presente os dados concretos

    quanto ao mbito e o objeto do questionar filosfico proposto pelo filsofo.

    Heidegger afirma em Os Problemas Funda