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AS REPRESENTAÇÕES DO AUTOMÓVEL NO HUMOR GRÁFICO BRASILEIRO DO INÍCIO DO SÉCULO XX Marilda Lopes Pinheiro Queluz – UTFPR Luciana Vicente da Silva – UTFPR - Bolsista do CNPq - Brasil Tamiris Cequinel Belli – UTFPR Esse trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla sobre as representações da tecnologia no humor gráfico brasileiro do início do século XX. O objetivo aqui é analisar as charges ligadas à mobilidade urbana, especificamente no caso do automóvel. O levantamento de caricaturas e charges foi feito acervos físicos como a Casa da Memória de Curitiba, a Biblioteca Pública do Paraná, o Museu Paranaense. As análises possuem um caráter interdisciplinar, considerando o conteúdo narrativo, a linguagem e o contexto histórico como uma unidade expressiva e dialógica, alinhavada na materialidade do desenho, na organização da forma e entre os vários níveis do texto. Com base em elementos da semiótica visual, observou-se a linguagem plástica, a linguagem verbal e a linguagem icônica (JOLY, 1996). A imagem aqui é pensada como cultura material, envolvendo as relações estabelecidas entre as pessoas e os artefatos, nas esferas da produção, circulação, consumo e usos. Entende- se tecnologia como um processo forjado nas relações entre as pessoas e os artefatos, que envolve dimensões sociais, políticas, culturais e econômicas, constituídas historicamente. Implica estudar o modo como a sociedade se organiza para produzir, consumir, usar, imaginar e representar a tecnologia, ou os artefatos tecnológicos, como o automóvel, por exemplo. As representações do automóvel propõem verdadeiras narrativas tecnológicas, no sentido apontado por David Nye: Tecnologias são parte de um diálogo entre seres humanos sobre suas diferentes percepções. Este diálogo toma a forma de narrativas, diferentes histórias que contamos um ao outro para dar sentido às transformações que acompanham a adoção de novas máquinas (...) Qualquer que seja a forma narrativa, as máquinas são raramente entendidas pelo público como coisas em si, puramente abstratas. Ao contrário, as tecnologias funcionam como partes centrais dos dramáticos eventos. (NYE, 1998, p.3): Estas narrativas tecnológicas constituem e são constituídas pelo imaginário social do período, rearticulando, simbolicamente, as mudanças sociais e urbanas, bem como as mudanças na linguagem visual do período. A caricatura e a charge, aliadas ao desenvolvimento da imprensa, numa incipiente indústria cultural, especialmente a partir do final do século XIX, assumem o papel de tradução do cotidiano e das notícias diárias, pelo viés da ironia e da ambiguidade. III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 2097

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Page 1: AS REPRESENTAÇÕES DO AUTOMÓVEL NO HUMOR … Lopes... · observou-se a linguagem plástica, a linguagem verbal e a linguagem icônica (JOLY, 1996)

AS REPRESENTAÇÕES DO AUTOMÓVEL NO HUMOR GRÁFICO BRASILEIRO DO INÍCIO DO SÉCULO XX

Marilda Lopes Pinheiro Queluz – UTFPR

Luciana Vicente da Silva – UTFPR - Bolsista do CNPq - Brasil Tamiris Cequinel Belli – UTFPR

Esse trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla sobre as representações da

tecnologia no humor gráfico brasileiro do início do século XX. O objetivo aqui é analisar as

charges ligadas à mobilidade urbana, especificamente no caso do automóvel. O levantamento

de caricaturas e charges foi feito acervos físicos como a Casa da Memória de Curitiba, a

Biblioteca Pública do Paraná, o Museu Paranaense. As análises possuem um caráter

interdisciplinar, considerando o conteúdo narrativo, a linguagem e o contexto histórico como

uma unidade expressiva e dialógica, alinhavada na materialidade do desenho, na organização

da forma e entre os vários níveis do texto. Com base em elementos da semiótica visual,

observou-se a linguagem plástica, a linguagem verbal e a linguagem icônica (JOLY, 1996).

A imagem aqui é pensada como cultura material, envolvendo as relações estabelecidas

entre as pessoas e os artefatos, nas esferas da produção, circulação, consumo e usos. Entende-

se tecnologia como um processo forjado nas relações entre as pessoas e os artefatos, que

envolve dimensões sociais, políticas, culturais e econômicas, constituídas historicamente.

Implica estudar o modo como a sociedade se organiza para produzir, consumir, usar, imaginar

e representar a tecnologia, ou os artefatos tecnológicos, como o automóvel, por exemplo.

As representações do automóvel propõem verdadeiras narrativas tecnológicas, no

sentido apontado por David Nye:

Tecnologias são parte de um diálogo entre seres humanos sobre suas diferentes percepções. Este diálogo toma a forma de narrativas, diferentes histórias que contamos um ao outro para dar sentido às transformações que acompanham a adoção de novas máquinas (...) Qualquer que seja a forma narrativa, as máquinas são raramente entendidas pelo público como coisas em si, puramente abstratas. Ao contrário, as tecnologias funcionam como partes centrais dos dramáticos eventos. (NYE, 1998, p.3):

Estas narrativas tecnológicas constituem e são constituídas pelo imaginário social do

período, rearticulando, simbolicamente, as mudanças sociais e urbanas, bem como as

mudanças na linguagem visual do período.

A caricatura e a charge, aliadas ao desenvolvimento da imprensa, numa incipiente

indústria cultural, especialmente a partir do final do século XIX, assumem o papel de

tradução do cotidiano e das notícias diárias, pelo viés da ironia e da ambiguidade.

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As charges redimensionaram o olhar sobre a cidade, movendo o enfoque do progresso e da modernização para os usos do espaço público, para as relações dos usuários com o mobiliário urbano, para a interação com as novas tecnologias e aparatos técnicos. O medo e o encantamento pelas máquinas, a reapropriação dos artefatos e dos espaços, as interações culturais articularam uma permanente negociação de significados e uma ressemantização da experiência urbana. (...) interceptaram os discursos mais diversos – o higienismo, a disciplinarização dos indivíduos, o esquadrinhamento do espaço, as campanhas publicitárias, etc – transformados pelas práticas cotidianas. (QUELUZ, 2002, p.167)

Para Diana Donald (1996), é possível pensar as caricaturas como artefatos complexos

que dão visibilidade às contradições das práticas culturais de uma dada época, não apenas

como reflexo do social, mas ajudando a constituir e divulgar essa visibilidade.

A República investiu numa modernização conservadora, pautada nas reformas urbanas

e nas inovações técnicas. Ferrovias, telégrafos, telefones, gramofones, luz elétrica,

saneamento, bondes elétricos, cinematógrafos, litografia, zincografia, fotografia, Exposições

Universais, automóveis, provocavam curiosidade e desconfiança na população. O medo e o

encantamento pelas máquinas, a reapropriação dos artefatos e dos espaços instauraram uma

permanente negociação de significados da experiência urbana, das novas percepções do

espaço e do tempo, no ritmo das fábricas.

Reavivando expectativas individuais de destinos futuros, as cidades brasileiras viveram, portanto, certamente em ritmos e circunstâncias desiguais, nas primeiras décadas deste século, uma experiência coletiva de encurtamento de duração que ampliou de forma redobrada a mobilidade, o consumo e o intercâmbio pessoal, forjando possibilidades ou tornando mais difusas as fronteiras do público e do privado. (SALIBA, 1998, p.328-329)

Percorrer os novos trajetos na cidade, “com todos os seus estados híbridos e

transitórios”, a convivência nem sempre tranquila entre velhos e novos hábitos, os embates

entre tradição e inovação, acabam por desencadear “respostas diversas, paixões contraditórias,

pinturas matizadas.” Imbricam-se sensações de “histeria, loucura, tédio, medo, assombro,

repulsa, encantamento” numa “escala múltipla de representações”. Estas formam “elos

mediadores, correspondências histórico-culturais entre técnica e sociedade, entre progresso

material e estados de espírito, entre o estado de coisas e as maneiras de apreendê-las.”

(HARDMAN, p. 35)

As caricaturas permitem repensar algumas dessas práticas de “criação, inserção,

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apropriação e transformação” das inovações técnicas, demonstrando novas dimensões de usos

estabelecidos no cotidiano, trazendo a ideia de tecnologia enquanto uma “experiência vivida”

(QUELUZ, p.26)

Nos debates sobre novas tecnologias apresenta-se uma encruzilhada: por um lado, a

ode à máquina, o fascínio acrítico aos progressos técnicos e, por outro, o fim de toda a

criatividade humana, a desumanização, o pessimismo e o pavor do impacto das inovações e

das consequências que ela pode trazer. São duas faces do determinismo tecnológico, ambas

apagando a agência humana e as construções sócio-culturais que as fundamentam. É

necessário reconhecer que “as máquinas, assim como os sistemas tecnológicos são

socialmente construídos”, interferindo e sofrendo interferência dos diversos grupos sociais

que interagem nas práticas cotidianas e usos dos mesmos. O termo “impacto” seria inexato, na

medida em que os sistemas tecnológicos “são extensões da vida humana: alguém faz seus

componentes, alguém os comercializa, alguns se opõem a eles, muitos os usam, e todos os

interpretam”. Os seres humanos é que dão “forma e significado” às máquinas. (NYE, 1998,

p.5)

Além disso:

Objetos, tecnologias, ainda sistemas tecnológicos – estradas de ferro e pontes, luzes elétricas, e motores - carregam, como resultado dessa complexidade e sutileza, muitos níveis de significado cultural …esses significados podem às vezes ser mais potentes para as pessoas do que as funções sociais e econômicas para as quais esses objetos, tecnologias e sistemas tecnológicos foram projetados. (COWAN, p. 218)

As diferentes formas de envolvimento com a tecnologia combinam-se com as

experiências presentes na cultura. As charges invertem a perspectiva hegemônica dos

discursos oficiais, estabelecendo cortes e rupturas, descobrindo novas faces da experiência

urbana, inventando o cotidiano. Constituem não um quadro único, mas pluralista, conjugando

fragmentação e integração. Questionam o cotidiano, convidando o leitor a se ver neste

universo. A cidade altera-se nos ritmos, na sonoridade, nos cheiros, visualmente,

reconstruindo-se a cada momento em pontos de vista múltiplos, em fragmentos.

As imagens trazem a complexa tentativa de compreender as diferentes relações e as mudanças advindas da introdução de novas técnicas e modos de vida assim como revelam como os mitos da modernidade e da cidade moderna são reelaborados na experiência cotidiana de diferentes grupos da sociedade. (SEVCENKO, p. 523).

Entre a admiração e o receio, convivia a suspeita de que os antigos problemas ainda

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conviviam com os “milagres” do progresso e de que as novas invenções não eram suficientes

para transformar a política ou a condição social. Entre a sedução e a frustração desenhavam-se

novas possibilidades de transporte e comunicação, anunciando o século XX como o século da

modernidade, da República e da construção da cidadania. As charges mostram a importância

que o “mobiliário urbano”, os objetos/artefatos, começam a ter para a população, a partir de

seus usos, interferências, ou seja, do ponto de vista das interações/mediações.

Sair de casa e movimentar-se na cidade exigia, agora, uma atenção redobrada, uma

nova disposição corporal, uma reeducação dos sentidos e gestos. Os novos meios de

transporte implicavam novos hábitos, a quebra da rotina local, a descoberta dos novos traços

urbanos, viabilizando passeios mais distantes, criando novas formas de contato e de

sociabilidade, ampliando os laços comunitários, ensinando a ver em movimento, rearticulando

as paisagens, unindo pontos estratégicos. Eram um “textos móveis” que ensinavam a reler a

cidade. (NYE, 1990, p.104)

Guillermo Giucci (2004, p.11) considera a ascensão da “automobilidade” entre 1900 e

1940, como um momento decisivo da “modernidade cinética”. “É a época da Segunda

Revolução Industrial, quando os motores elétricos e de combustão substituem em grande

parte a energia muscular humana e animal” (GIUCCI, 2004, p.11)

Henrique Santos Dumont, o irmão do inventor da aviação, foi o dono do primeiro

carro que chegou ao Brasil, e desfilou pelo centro de São Paulo, em 1893. “Oficialmente, o

primeiro acidente de carro no Brasil ocorreu em 1897 na estrada velha da Tijuca, Rio de

Janeiro. Era Olavo Bilac que se chocava contra uma árvore com o automóvel de José do

Patrocínio.” (LUDD, 2005, p. 16). A primeira placa é de 1903, pertencente ao industrial

Francisco Matarazzo. Em 1919, Henry Ford abriu uma montadora em São Paulo,

popularizando o Modelo T.

O sistema tecnológico automotriz serviu para ilustrar a tese de que a tecnologia exercia uma grande influência na mudança social. A lista de efeitos sociais realmente impressiona. Sobre a distribuição da população, os negócios, a indústria, o governo, a saúde, a morte, a família, o ócio, a sexualidade, a moral, a vida urbana e rural, os valores, a educação, a moradia, a linguagem, a percepção do tempo e do espaço. (GIUCCI, 2004, 12)

Mas os resultados, as condições de interação com os artefatos não são homogêneas,

dadas as diferentes vivências históricas e as diferentes lógicas culturais. No Brasil, a

representação do automóvel “assume uma particularidade, ora metafórica, ora de rejeição

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moralista, mas sempre paródica” (SALIBA, 1998, p.333)

Este artefato tecnológico da modernidade e da mobilidade, desenvolvido “nos

prestigiosos países do Norte” trazia envolta em sua funcionalidade uma “aura mítica” e

misturava-se às tradições escravistas de poderes assimétricos:

(...) instantaneamente se tornou símbolo de poder e instrumento de terror. Ademais, os carros começaram a fluir para cá antes que existisse uma estrutura viária, sinalização ou códigos de trânsito, gerando uma situação calamitosa, agravada pelo fato de que atropelamentos, mesmo seguidos das mortes das vítimas, eram apenas passíveis de uma multa pecuniária de valor ínfimo para os infratores. Era o convite para o terrorismo automotor que veio para ficar, acrescentando tonalidades mecânicas aos sistemas de privilégios e opressão típicos da sociedade brasileira.” (SEVCENKO, 1998, p.558)

As representações do automóvel lidavam com a ambivalência entre o símbolo do

progresso e o de criminalidade. Os carros foram chamados de máquinas mortíferas em

inúmeras charges e na figura do chofer convergiam as dúvidas e receios da população ante as

mudanças da cidade. Se os condutores de bondes já eram tidos com desconfiança, o motorista

do carro era visto como um verdadeiro criminoso, cujo poder estava no saber conduzir e

compreender a grande arma da modernidade. Apresentava-se a profissão e o uso do novo

transporte como uma ameaça pública. (Figura 1)

“Os nossos chauffeurs” Comissário: - Qual é sua profissão?

Chauffeur (distraído): Assassino. Comissário: - Assassino?

Chauffeur (caindo em si) – Quero dizer chauffeur. Figura 1 - Felix - A Bomba Ano I n.7 - 10.08.1913

Na figura 2, observa-se o carro como parte da paisagem, associado à saída dos teatros

e cinematógrafos, aos passeios, à moda. O casal em primeiro plano, caracterizado na

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elegância dos trajes e do andar, revela as marcas de distinção social imbuídas no uso dos

automóveis.

“O subterfúgio do prompto”

- Então estás disposto a me levar ao Portão de automóvel? - Estou prompto mas aquele chauffeur já matou cinco pessoas e esborrachou três automóveis...

Figura 2 - Helio Scotti - A Bomba Ano I n.8 – 08.1913

Por outro lado, embora a profissão de chofer represente um novo domínio do saber

técnico e o coloque “em uma situação claramente superior ao mero empregado”, reafirmava o

prestígio e o status do patrão, dono do automóvel (figura 3). A presença do cãozinho, o gesto

submisso do chofer, e a cabeça erguida do burguês, mostram graficamente as hierarquias

sociais.

Figura 3 - O Itibere Ano II n.- 6 ago.1920

De modo irônico e pessimista, ressaltando os danos físicos e materiais, as figuras

seguintes, atrelam o carro ao destino das pessoas, à transformação e depredação das ruas e

cidades, às surpresas advindas a cada esquina, cada cruzamento, num humor sarcástico e

muitas vezes moralista, como no da punição do chofer (figura 7)

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– “Santo Remédio”

- Como vai seu pai? Sempre paralítico? - Não senhor.

- Ah! Já sarou... - Sim senhor, um automóvel cortou-lhe as pernas. Figura 4 - Felix - A Bomba Ano I n.4 10.07.1913

“Depois do desastre...

- O auto do Macedo não vale agora nem 500 mil réis - E o poste dos bondes nem 500 réis...”

Figura 5 -A Bomba Ano I n5 20.07.1913

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O míope – Diga-me uma coisa Tiburcio, aquilo que apareceu lá na esquina é automóvel?

Figura 6 - Olavio - A Rua Ano II n18 - 18.07.1913

-Prenderam o chofer?

- Sim, está preso. É esse que aí está entalado. Figura 7 - O Itibere AnoVI n.64 - ago.1924

Até mesmo os anúncios de automóveis, nas revistas de humor, traziam certa

ambiguidade no deslumbramento com o artefato (figura 8). A velocidade, neste caso, era vista

como uma vantagem e uma desvantagem. A presença do casal idoso cria o contraponto do

passo lento, surpreendido pelos efeitos de fumaça, pela velocidade e pelo som da buzina.

Pelos trajes e posturas, evidencia-se no público alvo da propaganda o apego das elites aos

símbolos de modernização.

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Figura 8 - HERÔNIO – O Olho da Rua n. 3

A contemplação do novo, por gerações distintas, mescla a curiosidade, a tentativa de

entender como o funcionamento técnico e o receio da máquina (figura 9)

Figura 9 - A Bomba n. 16, 10/11/1913.

- O automóvel anda mais depressa que o bonde...mas onde fica o burro, papai? - Burro é quem fica na frente do automóvel...

Na comparação do bonde com o carro, define-se o espaço do povo, a divisão entre os

que são espertos para apreender as implicações das novas tecnologias, e os que são burros,

incapazes e excluídos dos benefícios do progresso. Pai e filho ficam perplexos com o tempo

instaurado nos modernos meios de locomoção (trens, bondes com tração elétrica, automóveis)

porque estes,

de certo modo, ofereciam o espetáculo de superação de distâncias, antes aparentemente enormes, graças ao movimento mecânico. E, também, de um controle possível sobre o tempo, que parecia possível alargar ou comprimir, de acordo com o uso ou não de tais maquinismos. (SUSSEKIND, p. 49)

Justapõem-se nesta charge diferentes temporalidades: o tempo do ritmo lento dos

bondes puxados por burros e o tempo da modernidade, regido pelo ritmo veloz do carro. A

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comparação entre as novas gerações de máquinas está presente não apenas no diálogo, mas na

própria presença de pai e filho e no paralelismo das diagonais: é possível ver que a linha que

une o chapéu do pai, o cabo do guarda-chuva e o chapéu do garoto, é paralela à linha do

volante e à linha inclinada da frente do carro. Também paralela é a linha onde se encontram os

personagens em relação à linha da rua por onde segue o carro.

As andanças pela cidade tomam novos contornos e as opções de deslocamento são

questionadas, como na sutil ironia ao desnecessário aprendizado do caminhar (figura 10). As

diferenças entre saberes necessários ou não são atravessadas também pelas diferenças de

classe

Figura 10 - A Rua Ano II n.15 23.05.1913

Ao mostrar os “benefícios do automóvel” (Figura 11), as mudanças de ritmos são

tratadas nos traços do desenho e na cor, nos limites entre natureza e técnica. As construções

são retas, traços, esboços. A natureza é curva e tem cores vivas. A elegância e o charme da

modernidade art nouveau contrapõem-se ao fundo da construção neoclássica. Os trajes da

moda, as curvas sensuais, justapõem a mudança constante sobre a tradição. O diálogo em

torno da relação amor e morte remete à presença do carro na vida das pessoas, seduzindo,

conduzindo. Conta-se a vida através do carro. Instauram-se tempos distintos que convivem,

interagem (tempo da moda, do carro, da vida, das construções). A imagem do automóvel é

construída pela sua ausência, como “os primitivos espetáculos de fantasmagoria” em

“manifestações fugazes, que desaparecem na velocidade dos novos meios de transporte, na

mudança célere da paisagem industrial (...)”. (HARDMAN, 1988, p. 29-30).

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Figura 11 - Hélio Scotti. “Os benefícios do automóvel” – A Bomba n. 18 – 30/11/1913

- Foi num passeio de automóvel que vi pela primeira vez meu defunto marido. Foi também num automóvel que ele me pediu em casamento e eu lhe dei o sim...Foi ainda um automóvel...

- Que os conduziu à igreja? - Não, que matou meu marido.

O automóvel provocou novas situações de sociabilidade, novos desejos e

comportamentos. “A modernidade cinética invade as palavras, que devem aceitar o imperativo

do movimento. Desde o início do século XX há a exigência de uma nova terminologia que

acompanhe as profundas transformações tecnológicas.” (GIUCCI, 2004, p. 65) O próprio

funcionamento e os princípios tecnológicos desta máquina foram apropriados nos diálogos

amorosos. “Explosão, radiador, combustão interna, amores volantes – o automóvel fornece

palavras-talismãs para enquadrar o íntimo e o individual”. (SALIBA, 1998, p.334)

A cultura material também pode ser percebida nas relações sentimentais, nos jogos de

sedução, nas ambições sociais, na constituição das identidades de gênero.

O automóvel é um emblema de poder e força, indispensável para atrair as mulheres. O carro permite multiplicar as oportunidades de contato, convívio e desfrute da companhia feminina. O carro é ele mesmo uma mulher, digno de conhecimento íntimo, zelos, atavios, carinho e amor. Daí a volúpia de ter e dirigir vários carros, de cobiçar o alheio e de trocá-los tão frequentemente quanto possível. A publicidade desde cedo se aperceberia desse potencial erótico associado aos automóveis e passaria a explorá-lo em extremo. (SEVCENKO, 1998, p. 559

Em “Os milagres do automóvel” (figura 12) mostra-se, pela irreverência, a influência

do automóvel no julgamento de um bom partido para uma filha. No julgamento do futuro

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genro, o prazer de andar de automóvel alia-se à imagem de status e poder econômico.

“Os milagres do automóvel”

- Tua mãe é que é o diabo, minha flor, não simpatiza comigo... como há de deixar que nos casemos? - O Sr. nos convida para passear de automóvel que ela deixa.

Figura 12 - Felix - A Bomba Ano I n.6 - 30.07.1913

O automóvel é metonimicamente representado em “Toques de buzina” (Figura 13),

caracterizado como uma sonoridade que interfere nas rotinas, nos percursos pela cidade,

destacando os efeitos sinestésicos da modernização. O automóvel está presente no diálogo,

nos sentimentos apreensivos, mais do que nas ruas. A própria buzina é uma novidade ainda

difícil de reconhecer. É um artefato que faz parte do carro e leva a novos modos de ação. Os

espaços são demarcados – rua, calçada, árvores podadas, controle dos transeuntes. A

associação entre toques de corneta e de buzina nos fala de reflexos, ações, ordens a serem

cumpridas (correr/recolher ao quartel, à calçada). Mas a desordem, a resistência aos novos

hábitos está na conversa no meio da rua, no fundo de árvores com mais destaque que a própria

rua.

Figura 13 - H.S. “Os toques de buzina” – A Bomba n. 13 – 10/10/1913

- Ouvi tocar a recolher e corri imediatamente ao quartel. - E chegaste a tempo?

- Não, não era corneta...era um automóvel. As charges sobre os automóveis são uma face importante para as concepções sobre

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tecnologia, rearticulando, simbolicamente, as mudanças sociais e urbanas, os

comportamentos, além das mudanças na linguagem visual do período. Resgatar essa cultura

visual pode contribuir para compreender as relações entre as pessoas e os artefatos, ampliando

os olhares sobre os modos como a sociedade se organizou para produzir, consumir, usar,

descrever e imaginar a tecnologia. As representações das experiências urbanas e dos usos do

automóvel são construídas como paródias da vida diária. Contudo, como insiste Giucci (2004,

p. 228), “Mais que uma modalidade parasitária e derivativa, inimiga da criatividade e da

originalidade vital, a paródia reorganiza esteticamente o passado e recria a tradição a partir do

presente.”

As ruas da cidade deixaram de ser apenas palcos ou molduras das práticas sociais, mas

converteram-se em personagens principais, colocando em xeque as contradições do

crescimento dos centros urbanos. Na figura 14, entrecruzam-se os olhares, as atenções, as

atuações de pedestres e motoristas, o caminhar sensual, a atitude de voyeur, a moda, os

objetos de desejo e de consumo, nas fronteiras cotidianas das apropriações dos espaços e das

negociações de significados.

“Perigo das Ruas”

- Deixa passar este perigo - Qual dos dois?

Figura 14 - Osmario Branco - O Itibere Ano IV n.42 - out.1922

Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. A Obra da arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Textos escolhidos / Walter Benjamin, Max Horkeimer, Theodor W Adorno. São Paulo: Abril Cultural, 1985 CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda.(org.) História em cousas miúdas. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005

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