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A LÍNGUA NA POESIA PORTUGUESA(DOS CANCIONEIROS GALAICO-PORTUGUESES À MODERNIDADE)

José Augusto Seabra

Ao tentarmos remontar à origem da poesia é a questão da origem da língua que deigual passo sempre repomos. Se, como escreveu Heidegger, a poesia é a “língua originária deum povo”, também para ele “a língua, em si mesma, é a poesia mais original”. Isso supõeque, à nascença, língua e poesia se confundem, estando prometidas uma e outra a todas asrenascenças a vir.

Tal é, paradigmaticamente, o caso da língua e da poesia portuguesas: elas defluíram,em sincronia, das suas matrizes galaicas, reencontrando-se historicamente nos momentosdecisivos da sua afirmação e irradiação, que foram sempre em primeira mão assumidos pelosseus poetas.

Assim foi com os trovadores dos Cancioneiros primitivos medievais, que das“cantigas de amigo” e das “cantigas de amor” às de “escárnio e mal-dizer” modularam asformas poéticas mais elementares ou já complexas da língua, com uma “mestria” que nadaficou a dever às provençais, mesmo quando as imitavam, numa musicalidade e subtileza desentido onde o Português se elevou, num ritmo dançante, a uma culminância expressiva, deque os poemas de D. Dinis são um exemplo, anunciando a vida futura de um idiomacambiante e diverso, capaz de assumir a sensibilidade pensante de toda uma civilizaçãoatravés da cultura de um povo que teria uma longa história.

A língua poética galego-portuguesa não era, entretanto, nas suas origens, limitada aoterritório da Galiza e depois de Portugal, mas sim a língua própria de um “género” poético― o lírico ― cultivado em toda a área centro-ocidental da Península Ibérica. Esta língua iriatornar-se, mais tarde, uma língua nacional ― o Português ― mas continuaria a ser a língualírica peninsular por excelência, como o Castelhano o era para a poesia épica e a narrativa. Os

 jograis deslocavam-se de corte em corte, trovando em galego-português.

Os poemas conservados nos Cancioneiros da Ajuda, da  Biblioteca Nacional   e doVaticano, compostos nessa língua entre finais do século XII e meados do século XIII e

 princípios do século XVI, obedecem ao mesmo tempo a uma “Arte de Trovar”, a uma poéticafragmentária transcrita no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, e a uma espécie de Koiré,com modalidades linguísticas diversas, que está na origem do futuro idioma português.

Tanto as cantigas de amigo como as cantigas de amor , além das de escarnh’e e demal-dizer , eram compostas em língua galego-portuguesa, mas em níveis diferentes desta: as

 primeiras numa linguagem de forma popular, as segundas num estilo mais cortês, à imagemda poesia provençal, que visavam imitar, e as terceiras numa linguagem híbrida.

Comparem-se, por exemplo, duas cantigas ― uma de amigo e outra de amor  ― deEl-Rei Don Dinis, um dos mais dotados trovadores, além de um monarca notável, fundadorda Universidade portuguesa:

“ay flores ay flores do verde pyno

 se sabedes novas do meu amigoay deus e hu e

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 ay flores ay flores do verde ramo

 se sabedes novas do meu amadoay deus e hu e

 se sabedes novas do meu amigoaquel que metiu do que por amigoay deus e hu e

 se sabedes novas do meu amadoaquel que metiu do que mh a juradoay deus e hu e”

Esta cantiga de amigo, de estrutura paralelística, em que a mulher pede às flores de pinho novas do amado ausente, é composta numa linguagem coloquial e simples,memorizável pela reiteração do refrão. Já uma cantiga de amor , do mesmo Don Dinis, é mais

sofisticada e complexa, enquanto discurso poético:

“Quer’eu en maneira de provençal fazer agora um cantar d’amor”,

 propõe-se o poeta (e já não a amada) imitando os trovadores occitânicos. A estrutura do poema é agora mais rebuscada, isto é, de índole culta, enxertando-se no galego-portuguêsmúltiplos provençalismos, com uma conotação literária algo artificial.

A tradição poética oriunda dos Cancioneiros Primitivos galego-portugueses prolongou-se ainda pelos fins do século XIV e pelo século XV, mas com uma evolução nosentido da poesia escrita e já não oral. A língua portuguesa estava entrementes em vias defixar-se.

Ao aproximar-se a Renascença e o Classicismo, os poetas do “Cancioneiro Geral”,recolhido por Garcia de Resende, incorporaram um movimento de renovação literária que,mesmo repercutindo ecos da influência italianizante, prolongou a tradição portuguesa e

 peninsular, confluindo depois no dolce stil nuovo. A nossa língua expandiu-se então nas suasmúltiplas virtualidades, numa fase de consciência gramatical do idioma que iria coincidircom o trabalho dos seus criadores mais altos. Até quando bilingues, qual um Gil Vicente, umSá de Miranda e um Camões, foi como cultores da língua nacional que eles se identificaram

com o seu povo, lançado num projecto histórico ecuménico. E um deles, António Ferreira,nos seus Poemas Lusitanos, profetizou a irradiação universal da “portuguesa língua”, que asdescobertas propiciaram:

“Floresça, fale, cante, ouça-se e vivaa portuguesa língua, e, lá onde for,

 senhora vá de si, soberba e altiva.Se te qui esteve baixa e sem louvor,Culpa é dos que a mal exercitaram,

 Esquecimento nosso e desamor”.

À maneira de Joachin du Bellay na  Défense et Illustration de la Langue Française,António Ferreira tornou-se assim um paladino clássico do idioma, que entretanto se começara

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a fixar através da primeira gramática portuguesa de Ferrão de Oliveira (1536) e da de João deBarros (1540), que se lhe seguiu, sendo cultivado pelos principais escritores portugueses daépoca.

Mas entre eles quem mais sobressaiu foi sobretudo Camões, que n’Os Lusíadas fez

de Vénus a protectora dos Portugueses, invocando a latinidade da sua língua. Ao argumentarcontra Baco, que no Concílio dos Deuses se fizera adversário dos navegadores portugueses,

“Sustentava contra ele Vénus bela, Afeiçoada à gente Lusitana Por quantas qualidades via nela Da antiga, tão amada, sua Romana; Nos fortes corações, na grande estrelaQue mostraram na terra Tingitana,

 E na língua, na qual quando imagina,Com pouca corrupção crê que é a Latina”.

O Épico soube explorar, na versatilidade proteica dos géneros poéticos que praticou,ao mesmo tempo a unidade e a diversidade do idioma, apto tanto à longa narração daaventura marítima e da história pátrias, como à medição filosófica, ética e mística, massobretudo à efusão lírica amorosa e erótica, na sua “dupla chama”, como lhe chamou OctávioPaz. O Vate levou assim a língua até requintes expressivos, que anunciavam o maneirismo,deixando um rasto indelével nas gerações sucessivas, que se alongou até à modernidade, etornando-se a figura emblemática do sentimento patriótico.

Entre os poetas barrocos, apesar do contexto vigente do domínio castelhano, tambémeste sentimento se exprimiu literariamente, através de um dos seus teóricos e cultores maisnotáveis, como Rodrigues Lobo, o Melodino. E não se pode esquecer o discurso oratório,

 profético e na sua essência poético, do Padre António Vieira, que Fernando Pessoa haveria desagrar, simbolicamente, como “imperador da língua portuguesa”, à qual deu umamagnificência esplendorosa e inigualável: “Aquele movimento literário da nossa clara línguamajestuosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis”, eis como no  Livro do

 Desassossego  Bernardo Soares evoca a língua de Vieira, cuja leitura o fazia romper em“lágrimas felizes”.

Com o neo-classicismo arcádico, a busca de um equilíbrio formal não deixa de terimplicação no rigor da escrita da língua, que aliás se estende de Portugal ao Brasil, com os

 poetas da “Inconfidência Mineira” e os de pendor nativista. E é do interior do arcadismo queemergem os poetas pré-românticos, os quais se libertam dos espartilhos clássicos paraassumirem uma maior liberdade expressiva, de que um Bocage e um Nicolau Tolentino sãoexemplo, sem esquecer um Filinto Elísio, fiel no exílio à sua portugalidade, ou umaMarquesa de Alorna, precursores um e outra de Garret e Herculano.

O primeiro Romantismo foi um momento decisivo da consciência poética nacional,desde o autor de Camões  ao da  Harpa do Crente, que noutros géneros vazaram o seu

 patriotismo literário e linguístico inerente ao seu liberalismo político, valorizando as mesmastradições históricas e a linguagem vernácula ou popular, com as diferenças expressivas quelhes eram peculiares. Se, na continuidade, com as metástases ultra-românticas, se assistiu a

uma crise da expressão poética, esta logo foi superada pelo impulso renovador que, sob osauspícios de um poeta tutelar como João de Deus, foi dado pela “geração de 70” à poesia

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 portuguesa, nomeadamente por Antero de Quental, que desde as Odes Modernas aos Sonetos,em ciclos sucessivos, deu voz quer ao seu idealismo revolucionário socialista quer à suasinquietações metafisicas e religiosas, abrindo o caminho a uma “Escola Nova”, em que asinfluências baudelairianas e pré-simbolistas se fizeram sentir, com marcas de originalidade

 própria, como em Gomes Leal.

Um poeta da mesma época interpretou de modo grandiloquente o sentimentonacional, a que a crise do Ultimatum e o levantamento republicano de 31 de Janeiro deramgrande acuidade: Guerra Junqueiro, o autor da  Pátria mas, igualmente, de composições quese aproximam do lirismo tradicional. Seria, entretanto, nos poetas que anunciariam amodernidade, desde Cesário Verde aos simbolistas e neo-garretistas fin-de-siècle, comoEugénio de Castro, António Nobre e Camilo Pessanha, que as virtualidades da língua

 portuguesa, nas suas modulações e significações fascinantes, atingiriam um refinamentoextremo, de que o autor de Clepsidra é o paradigma.

A afirmação do primado da língua como elemento essencial da formação da

consciência nacional foi proclamada, no dealbar do século XX, pelo movimento daRenascença Portuguesa, que após a instauração da República, em 1910, foi o primeiro grandesobressalto cultural contra o espírito de decadência em que se afundara a monarquia. Nãoescreveu Teixeira de Pascoaes, o seu poeta carismático, na Arte de Ser Português (1915), quese Portugal é uma pátria é porque existe uma língua portuguesa? Segundo ele, “a língua e ossentimentos por ela traduzidos cristalizaram” a tal ponto que Portugal, “adquirindo umalíngua própria, uma História, uma Arte, uma Literatura, também adquiriu a sua independência

 política”. Mas, para Pascoaes, é sobretudo a poesia que “intervém na criação da alma da pátria, definindo e sublimando as suas qualidades, e tornando-as, ao mesmo tempo,universais e duradouras”.

Foi precisamente nesta “Weltanschauung portuguesa” de Pascoaes que Pessoa baseou a sua profecia duma “Nova Renascença”, com a sua “poesia auroral”, de que ageração modernista de Orpheu iria retomar. Aliando a revolutio à  traditio, ela propunha-se,com efeito, construir, como assinalava Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, uma “novalinguagem, uma nova expressão poética”, à semelhança das experiências que as vanguardaseuropeias tentavam na altura. Mas tudo isso pressupunha uma renovação, uma revolução até,da língua portuguesa. Eis porque Almada Negreiros, o mais futurista dos protagonistas domodernismo, exclamava num manifesto: “(...) Ainda nenhum português realizou o verdadeirovalor da língua portuguesa (...) porque Portugal a dormir desde Camões ainda não sabe overdadeiro significado das palavras”.

Esse significado só poderia advir “duma nova pátria inteiramente portuguesa einteiramente actual”, que essa geração construtiva projectava no futuro, sendo embora esse o“futuro do passado”, de que fala Pessoa na  Mensagem: tanto o de uma língua sempre deregresso às origens como o de uma língua avançando para um horizonte longínquo e infinito.

Esta mitografia poética da língua assumida como pátria - uma pátria que não é a pátria política, mas uma pátria outra, a do poeta e a da poesia - encontra-se nas gerações que,ao longo deste século, quiseram, cada uma à sua maneira, levar a cabo o projecto órfico. Aslinguagens que falam o mito variam, consoante as diversas opções poéticas, ou apesar delas:desde as mais ingenuamente “subjectivas” até às mais perigosamente “colectivas”, onde as

alienações ideológicas, nacionalistas ou internacionalistas, espreitam e se infiltram. A cada

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geração a sua língua e a sua pátria, mesmo quando estas não concordam, no imaginário e nosimbólico, com a realidade nacional, tornando-se sinais dum irremediável exílio.

Foi talvez Jorge de Sena, um poeta ciosamente independente face às tentaçõesrecuperadoras, quem exprimiu da forma mais radical uma visão irredutível da sua pátria

 poética e linguística:

“Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátriade que escrevo é a língua em que por acaso de gerações nasci”.

Pátria mítica, a bem dizer: o poeta imagina-se “em Creta, com o Minotauro”, lugarutópico donde exorciza todas as pátrias:

“Com pátrias nos compram e nos vendem, à faltade pátrias que se vendem suficientemente caras para haver vergonhade não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minoutauro,

teremos nenhuma pátria”.

Ironia e irrrisão supremas: já que o Minotauro não fala português e o poeta ignora ogrego, eles só podem entender-se em “volapuque”, língua artificial que também nenhumdeles conhece... A verdadeira língua, a verdadeira pátria deles estão sempre ausentes.

Esta experiência do expatriamento poético, desse “país perdido” de que falava o poeta simbolista Camilo Pessanha, encontra-se em muitos outros poetas, como umaverdadeira obsessão:

“Quando a pátria que temos não a temos Perdida por silêncio e por renúncia Até a voz do mar se torna exílio E a luz que nos rodeia é como grades”.

Estes versos de Sophia de Mello Breyner Andresen apelam para uma pátria e parauma língua ideais, onde as palavras seriam a reinventar:

“Pedra rio vento casa Pranto dia canto coragem Espaço raiz e água

Ó minha pátria e meu centro”.À semelhança do projecto de Mallarmé, há que dar “um sentido mais puro às

 palavras da tribo”. Essa é a aposta da mitografia dum poeta como António Ramos Rosa, que persegue incansavelmente um país feito duma “interminável palavra” no “interminávelsilêncio”:

“Num país velho, sem antiguidade pura,morre-se à míngua de uma palavra nova,num país que soçobra e subsiste, longe,

longe, mas aqui”.

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Sim, para além de todas as decadências do país histórico e político, esse “país puro”subsiste, como uma outra pátria, porque

“subsiste uma palavra, uma sílaba de vento”,

Cabe ao poeta rearticulá-la, construindo uma nova língua a partir da língua antiga -uma língua poética, feita com outras palavras, outras sílabas:

“Sílabas.Com sílabas se fazem versos “,

escrevia já António Ramos Rosa no seu primeiro livro. Ele passaria toda a sua obra, numrepisar infinito, a soletrar cada “sílaba de vento” (“todas as sílabas eram de ar”), tentandoconstruir pela escrita uma pátria de palavras para habitar, poema a poema:

“Até à folha onde escrevo, que país de mãos seria?”.

Esse país sonhado incansavelmente pelo poeta não é, decerto, o país real, que outro poeta, Alexandre O’Neill, em tom satírico, ironicamente evoca:

“Ó Portugal, se fosses só três silabas”.

Portugal é, aliás, como o próprio confessa, uma “questão” nunca resolvida consigomesmo... Mas que só poderia resolver, ao fim e ao cabo, com palavras.

É certo que essa “Pátria, lugar de exílio”, de que fala Daniel Filipe, foi, para muitos,no sentido referencial, uma “Pátria expatriada”, como lhe chama Manuel Alegre:

“Procuras Portugal em Portugale não o encontras e não o vês “.

Mas é flagrante que, mesmo neste caso, o expatriamento seja vivido sob o signo da perda da língua, num ostracismo de Babel:

“Procuras Portugal e andas com elenos mil destinos do teu destino.

 Dói-te na pele.

 Babilónia Sião Paris Babel Meu povo peregrino”.

A perda da pátria é, pois, antes de mais a perda da língua. Perda que, em últimainstância, é vivida como a perda de si mesmo, isto é, duma língua que se identifica com a

 perda do sujeito. Tal é a experiência extrema dum poeta que se quis, no seu exílio semregresso, um “estrangeiro definitivo” - Adolfo Casais Monteiro:

“Talvez, estrangeiro em qualquer parte, fosse a minha pátria ser livreno diverso perder-me em todo o mundo...

Talvez esta imagem me persiga

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até ao fim, de ser nada em toda aparte, para ser cada novo instante um estrangeiroQue não entende sequer a língua de si mesmo”.

Só resta então ao poeta o silêncio, que é para ele “sempre a única resposta” tal como

a dá no seu testamento, fazendo o balanço dum exílio irremediável.

Mas o silêncio é ainda um “rumor” onde ecoa toda a língua, nas palavras ausentes, presentes, como escreve Eugénio de Andrade, que é hoje um dos testemunhos maisfascinantes dessa língua mitográfica:

“Que fizeste das palavras?Que contas darás tu dessas vogaisde um azul tão apaziguado?

 E das consoantes, que lhes dirás,

ardendo entre o fulgordas laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quandote perguntarem pelas minúsculas

 sementes que te confiaram?”

O poeta é, pois, o guardião da língua, o que vela por ela, enquanto “morada do ser”,como pretende Heidegger: “Se nos ativermos à sua essência, a língua é em si mesma a poesiamais original, e o que é nela poesia, no sentido mais restrito ― o que nós designamos em

 particular como “poesia”― é a língua original dum povo”― escreve o filósofo comentandoHölderlin. A poesia portuguesa, ao identificar-se com a sua língua, retorna às fontes desta,como à pátria nascente, renascente.

A língua portuguesa não podia encontrar melhores porta-vozes do que os poetas, quea erigiram em mito fundador, através do qual ela se pode desdobrar numa universalidade semfim, ao mesmo tempo histórica e sempre a vir.