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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Programa de Pós-graduação em Filosofia A justiça e a sabedoria prática em Paul Ricoeur São Paulo, 2011

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

Programa de Pós-graduação em Filosofia

A justiça e a sabedoria prática em Paul Ricoeur

São Paulo, 2011

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

Programa de Pós-graduação em Filosofia

A justiça e a sabedoria prática em Paul Ricoeur

Dissertação apresentada como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre por Felicidade Aparecida Gouvea Muñoz Orientador: Prof. Dr. Hélio Salles Gentil

São Paulo, 2011

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Agradecimentos

E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo... De O cancioneiro de Rebanhos – Alberto Caieiro.

Gostaria imensamente de agradecer a todos que contribuíram para instigar em

mim uma atitude filosófica. A reflexão filosófica transformou a minha percepção do

mundo, de modo que já não me sinto mais a mesma, como diz o trecho da poesia

acima. Sinto-me nascida a cada momento. Talvez porque a minha experiência no

campo da filosofia tenha sido tão intensa que redirecionou os meus movimentos,

mudando e ampliando o meu olhar. Nesse sentido, posso dizer que despertei como

uma criança que olha à sua volta e vê o mundo com curiosidade. Contudo, a minha

curiosidade, contrariamente à da infância, já não é ingênua, ela se dá de modo

reflexivo e muito mais criterioso. Essa atitude filosófica que dirige o meu modo de

pensar é também uma atitude que considero amorosa, já que me possibilita ver o

mundo como uma “eterna novidade”. É preciso dizer que, provavelmente, não teria

conseguido transformar o meu olhar se não existissem pessoas capazes de me auxiliar

nessa jornada. Desse modo, quero deixar por escrito o meu sentimento de gratidão.

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SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................................p.7 Capítulo 1: O senso de justiça, a violência e a vingança. 1.1. A prática e os princípios de justiça a) O plano da prática............................................................................................... p.15 b) O plano dos princípios........................................................................................ p.26 1.2. A lei e a moral............................................................................................. p.32 1.3. Infração e punição....................................................................................... p.43 1.4. A violência e a vingança a) Violência e Coerção do Estado.......................................................................... p.46 b) A Vingança......................................................................................................... p.54 1.5. Retribuição e Reconhecimento mútuo............................................................ p.56 Capítulo 2: Sabedoria Prática: a justiça em ação 2.1. Antígona de Sófocles: “o trágico da ação”..................................................... p.62 2.2. A responsabilidade e a culpa a) A responsabilidade............................................................................................. p.82 b) A culpa............................................................................................................... p.88 Capítulo 3: O justo e o injusto no plano das mentalidades 3.1. Ética e Moral: a intenção de vida boa e a obediência às normas.................. p.93 3.2. “Visar à vida boa”: cuidado de si................................................................... p.94 3.3. Viver bem com e para o outro: a solicitude................................................... p.98 3.4. Desejo por instituições justas......................................................................... p.99 3.5. A sabedoria prática: a justiça em ação a) O conflito e a sabedoria prática..................................................................... p.101 Conclusão...............................................................................................................p.105 Bibliografia............................................................................................................p.114

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Resumo

Essa reflexão é sobre a justiça e a sabedoria prática nas relações cotidianas sob a perspectiva da fenomenologia hermenêutica da Paul Ricoeur. A sabedoria prática, na instância da prática de justiça, atua segundo Ricoeur como uma mediação entre a norma moral e a intenção ética. Ela opera na medida em que se deve incluir no julgamento uma dimensão ética, para que se possa estabelecer as trocas regradas de uma razão ponderada, para que os argumentos sejam plausíveis diante do tribunal. O caráter ético é, nessa concepção, a sugestão de um télos de “vida boa” que tenta estabelecer a mediania na argumentação, como uma atitude mais justa na aplicação das regras em relação aos conflitos que nascem a partir de convicções mais acirradas ocorridas na dinâmica social. A violência e a vingança constituem-se na contraparte a ser contida pela estrutura do aparelho judiciário do Estado. Sabemos, porém, que uma atitude justa é difícil, principalmente quando há uma situação de conflito grave entre duas pessoas, em que cada qual acredita obstinadamente que somente a sua convicção é justa. Examinamos a Antígona de Sófocles, uma imagem clássica desse conflito entre duas convicções. Antígona apega-se ao direito familiar de poder enterrar o irmão e Creonte aferra-se em cumprir uma lei para castigar o morto. Nesse embate entre os dois é possível ver que a falta de uma sabedoria prática no modo como cada antagonista se posiciona em sua própria convicção pode piorar a situação do conflito e dificultar, assim, um possível consenso sobre o que poderia ser mais justo para a ocasião. A justiça, no caso, não agiu de maneira justa, ela trouxe sofrimento para ambos, pois nenhum dos dois conseguiu entrar em um acordo sobre o que no julgamento moral em situação poderia ser mais justo. Ambos posicionaram-se em uma dimensão do direito, reservando para si o que era o correto, mas o justo pela lei sem uma intenção ética visando o bom, sem exercitar a sabedoria prática, pode acabar levando então às conhecidas consequências trágicas. Depois de acompanhar a discussão desse caso exemplar, examinamos as soluções conceituais de Ricoeur em torno da noção de sabedoria prática, dando destaque à perspectiva ética de uma vida boa, que inclui o cuidado de si e do outro, na resolução dos conflitos de justiça. Nosso trabalho mostra, assim, que a reflexão de Ricoeur articula os princípios teóricos e a prática, tanto a judiciária quanto a cotidiana, de um modo consistente. Palavras chaves: Ricoeur, justiça, sabedoria prática.

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Abstract

This reflection is about the justice and the practical knowledge in everyday relationship under perspective of Paul Ricoeur’s hermeneutic phenomenology. The practical knowledge, in the instance of justice, practice acts by Ricoeur like a mediation between the moral norm and the ethical intent. It operates as it should include in the judgment an ethical dimension, so that we can establish the orderly exchange of a weighted reason, so that the arguments are plausible before the court. The ethical character is, in this conception, the suggestion of a “good life” télos which tries to establish a moderated argumentation, like a fairer attitude in the application of the rules related to the conflict that born since intransigent convictions occurred in the social dynamic. Violence and revenge are the contravention which has to be carried by the structure of the State judiciary. Although we know that a fair attitude is hard, mainly when there is a serious conflict between two people, when each one believes obstinately that only his conviction is fair. We examinated Sophocles’ Antigone, which is a classical image of the conflict between two convictions. Antigone clings to family law to bury her brother and Creon grasp top comply with the law and punish the dead. In this clash, it’s possible to see that lack of practical knowledge in the way each antagonist place itself in his own conviction, can worse the conflict and complicate a possible consensus about what could be fairer for the occasion. Justice, in this case, didn’t act in a fair way; it brought suffering for both, because no one could enter into an agreement about what could be fairer in a moral judgment. Both of them positionated themselves in a law dimension, reserving for them what was correct, but the just by the law, without an ethical intention which aims the good, without the use of practical knowledge, can lead to the well-known tragic consequences. After analyze this case, we examinated Ricoeur’s conceptual solutions around the practical knowledge notion, emphasizing the good life ethical perspective which includes take care of yourself and take care of other, in the solution of justice conflicts. In this way, our work shows that Ricoeur’s reflection links theoretical principles and practical, even the judiciary and the everyday one, in a consistent way. Keywords: Ricoeur, justice, practical knowledge.

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INTRODUÇÃO

“‘A justiça concentra em si toda a excelência’. É, assim, de modo

supremo a mais completa das excelências. É, na verdade, o uso da

excelência completa. Completa, porque quem a possuir tem o poder de

usá-la não somente para si, mas também com outrem. [...] a justiça é a

única excelência que parece ser um bem que pertence a outrem, porque

efetivamente envolve uma relação com outrem; isto é, produz pela ação o

que é de interesse para outrem [...]”.

(Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1130 a1, livro V, São Paulo, Editora Atlas, 2009).1

“A virtude da justiça se estabelece com base numa relação de distância

com o outro, tão originária quanto à relação de proximidade com outrem

ofertado em seu rosto e em sua voz. Essa relação com o outro é, ouso

dizer, imediatamente mediada pela instituição. O outro, segundo a

amizade, é o tu; o outro segundo a justiça, é o cada um o que é seu.”

(Ricoeur, Paul. São Paulo. Ed. Martins Fontes, 2008).2

Na questão da justiça, às vezes somos confrontados por questões filosóficas tão

abrangentes que se torna uma tarefa difícil estabelecer um limite para aquilo que se quer

de fato compreender ao estuda-la. Tendo em vista essa dificuldade, procuramos

restringir nossa abordagem em um ponto específico da questão da justiça, pois

entendemos que seria uma discrepância de nossa parte desviar a nossa atenção querendo

abraçar todos os discursos teóricos e filosóficos a respeito desse tópico. Pois bem,

ocupar-nos-emos de modo mais preciso do tema: “a justiça e a sabedoria prática em

Ricoeur”. Entretanto, o nosso foco principal se deterá no viés das relações interpessoais;

espaço, segundo o filósofo, em que o senso de justiça sendo guiado por uma sabedoria

prática tem na figura do outro a face do justo disposto no predicado bom, além do

sentido legal.

Antes, contudo, de dispensarmos um tempo a essa questão, pareceu-nos

relevante dizer por que escolhemos Ricoeur para guiar a nossa reflexão sobre a justiça.

Primeiramente, porque consideramos, conforme o autor, que o pensar filosófico não é

apenas uma atividade, mas uma tarefa pessoal, concreta e temporal lançada sobre uma

questão vinculada ao mundo exterior, todavia mediante nossos próprios interesses e

1 Aristóteles, Ética a Nicômaco, Tradução do Grego de António de Castro Caeiro, São Paulo, editora Atlas S.A., 2009, livro V, p. 105. 2 RICOEUR, Paul. O Justo 1 Título original em francês: Le Juste 1, Editions Esprit, Pari, 1995. Trad. Ivone C. Benedetti, SP. Ed. Martins Fontes, 2008, Prefácio, IV, p.9.

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sentimentos. Essa tarefa é uma experiência filosófica compreendida, de modo peculiar,

por um pensamento cuja base é a fenomenologia e a hermenêutica. Estes dois

pensamentos encontram-se visando, para Ricoeur, a compreensão de si mesmo e de

explicar as coisas mediante a decifração dos sentidos ocultados no significado aparente

dos símbolos. O filósofo analisa, refletindo sobre as questões filosóficas introduzindo as

sequências simbólicas por meio da linguagem; tarefa árdua que implica em três níveis

de profundidade: no plano da vida cotidiana, da vida científica e no nível da própria

reflexão.

Ricoeur é um filósofo que no campo ontológico procura reagrupar o modo de

existir, de viver, do sentido em que o homem tenta compreender a si mesmo e as

questões que o envolve, levando em conta a presença do homem no mundo, suas

perspectivas, seus contrapontos e contrastes. Nesse sentido, a reflexão filosófica de

Ricoeur está sempre tentando transpor os seus próprios limites; na tentativa de acessar

novas fronteiras que elucidem por noções a existência e a vida. Essa tarefa nos instiga a

buscar novos sentidos, a perceber pontos de vista oriundos de outras perspectivas

profundamente distintas. Nesse contexto, é possível ingressarmos no plano

hermenêutico, buscando interpretar e compreender para poder reinterpretar a realidade.3

Entendemos que as reflexões filosóficas de Ricoeur são postas sob um ponto de

vista cujas motivações se aludem ao anseio de conservar a surpresa do questionamento.

Nesse sentido, ele herda de sua cultura a função da interrogação a partir de um “recurso

vivo”, isto é, de um expediente colocado a serviço de um horizonte de sentido em que o

verdadeiro, o justo, o belo trocam entre si as suas significações. Para ele, a filosofia tem

um elo especial com a sua própria história; as questões filosóficas originam-se a partir

de outras não respondidas ou que foram contestadas. Nesse cenário filosófico, para ele,

questionar é: estabelecer relações, criticar, reinterpretar, mas, sobretudo é manter-se

aberto e curioso em relação a todos os recursos vivos que não são familiares a

conversação do cotidiano.

Paul Ricoeur considera que no nível da reflexão “a filosofia é convidada a

negociar entre as próprias categorias e as que as ciências propõem”. 4 Para ele, a

atividade filosófica pode contribuir em favor do diálogo na dinâmica partilhada pelo

3 RICOEUR, Hermenêutica e Ideologias, Organização e Tradução: Hilton Japiassu, Editora Vozes, Petrópolis, RJ. 2008. Apresentação – Paul Ricoeur: Filósofo do sentido, p.7 4 HAHN, Lewis Edwin. (coordenador) A filosofia de Paul Ricoeur, Título original: The Philosophy of Paul Ricoeur. The library of Living Philosopher, 1995. Trad. António Moreira Teixeira, Instituo Piaget, Lisboa, Portugal, 1999, p. 9.

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conjunto da comunidade científica enquadrado no campo das práticas humanas. O autor

considera que a filosofia pode assegurar o seu próprio futuro, ajudando simultaneamente

os cientistas a refletir sobre o duplo estatuto de espisteme e de tekhne da sua própria

ciência. Ele compreende que a atividade filosófica desempenha um modesto papel,

porém eficaz, no nível das disciplinas de intervenção na vida social, política e civil. Seja

qual for o contexto em que o filósofo é chamado a expor o seu ponto de vista, dever-se-

ia considerar não somente a preocupação de clarificação conceitual e o rigor

argumentativo, mas respeitar, principalmente a ética da discussão. Segundo Ricoeur, em

todos os lugares em que o filósofo se fizer ouvido à argumentação e a interpretação

estará misturada ao juízo; encarregado de conduzir do provável na ordem da deliberação

para a decisão numa situação singular. 5

O movimento filosófico do autor não se reduz ao modo de um pensamento

reflexivo, ele sai de sua posição filosófica e esforça-se por dirigir sua experiência em

direção ao diálogo com diferentes campos de atuação, visando sempre uma “vida boa”.

Este ato filosófico veio de encontro a nossa aspiração de uma vida boa e nos motivou a

também oferecer nossa pequena contribuição para um bem viver em sociedade.

Acreditamos que, eticamente, é possível para cada um fazer algo de concreto em favor

de um mundo melhor. Ricoeur considera que “a ética é um movimento entre a crença

nua e a crença cega num “eu posso” primitivo, e a história real onde certifico este ‘eu

posso’.”6 Este discurso comporta uma hermenêutica em que dizer “eu posso”, significa

que há alguém se situando e expressando a própria potência. Nesse aspecto, existe uma

pessoa que pode ser o outro, o qual é possível chamar de tu; podendo dizer “eu posso”.

Nessa hipótese linguística do “eu posso” estendida no “tu podes” há um pressuposto

ético que para Ricoeur tem critérios que se sustentam tanto no sentido de bom da justiça

como na questão da sabedoria prática.

No decorrer do estudo, as ideias serão expostas procurando mostrar:

primeiramente que por detrás dos conteúdos, princípios e sentidos se encontra no

sentido de justiça um significado de bom cujo elemento da sabedoria prática se sustenta

na ideia ética de “vida boa”. Esta ideia ética, idealizada por Aristóteles, para o filósofo

francês, pressupõe um ideal alargado para além de nós mesmos; em que reconhecemos

no outro um ser também capaz de aspirar: uma “vida boa realizada com e para o outro

5 Idem, p.321 6 Idem, 206.

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em instituições justas”.7 Essa condição ideológica, segundo Ricoeur, pode servir de

inspiração para um trabalho concreto em favor de uma justiça social mais justa.

Retomaremos também, a tragédia de Sófocles com o intento de refletir e analisar, no

nível das relações interpessoais, a questão do justo e do bom em instituições que nos

parecem injustas.

Para dar conta desses pontos em questão usaremos três estudos de Ricoeur. A

saber: teremos por base no primeiro capítulo o texto “O justo entre o legal e o bom”

(1991) do livro Leituras 1; no segundo capítulo teremos por alicerce o estudo

denominado “O trágico da Ação”, Interlúdio na obra O si mesmo como um outro,

(edição original francesa de 1990 e a tradução brasileira de 1991) e no terceiro capítulo

embasaremos no texto “Ética e Moral” (1990). Este estudo faz parte também dos

estudos organizados na obra cujo título original francês: Lectures 1: autor du politique.

Éditions du Seuil, 1991. A tradução brasileira editada pelas Edições Loyola em São

Paulo denomina-se Leituras 1 – Em Torno ao Político, 1995.

Em relação ao sentido de justiça, no horizonte do texto “O justo entre o legal e o

bom”, foi considerada, por Ricoeur, numa sequência que inclui três planos diferentes. A

saber: o plano dos princípios, o das instituições e o das mentalidades (este último tomar-

se-á também por relações interpessoais). Nessa reflexão, o filósofo entrecruza diferentes

questões envolvendo os princípios teóricos da justiça, o plano institucional e o plano

das mentalidades em um viés que se movimenta pela questão da linguagem e da ação do

sujeito.

Este artigo filosófico é uma reflexão filosófica em que a ideia de justiça tem

como plano de discussão a filosofia moral e a política. Pelo tópico intitulado: “Política,

Linguagem e Teoria da justiça” é possível perceber que a ideia de justiça tem por objeto

de estudo não só a política e a moral, mas a linguagem também. Nesse contexto, o

sentido de justiça alarga-se não se restringindo a um único campo de pensamento. No

entanto, a ideia de justiça compreendida socialmente como prática instituída, apresenta-

se na figura do aparelho judiciário, seguindo-se de um conjunto de leis escritas,

tribunais etc.

Além desse contexto institucional, a ideia justiça aparece também de modo

teórico como uma ideia de direito conduzindo as condições da justiça social. No

domínio da ideia de justiça existem, ainda, os princípios que norteiam ou fundamentam

7 RICOEUR, Paul. Leituras 1- Em torno ao político, Título original: Lectures 1: autor du politique, Éditions du Seuil, 1991.Trad. Marcelo Perine, São Paulo, Edições Loyola,1995 p.89.

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a noção de justiça. Além do mais, há na dimensão da justiça, a instância do político em

que se tem uma ação dirigida ao viver em comum e à dominação política. Em suas

múltiplas significações, a justiça pode aparecer pelo emprego da força pública; para

Ricoeur é uma necessidade política e por vezes jurídica para estabelecer a ordem e a fim

de dar cumprimento às sentenças que foram decididas diante do tribunal. Em relação às

circunstâncias de justiça, há ainda, de acordo com o autor, a atividade comunicativa que

emprega a força do argumento e o emprego dialógico da linguagem.

A parte comunicativa está vinculada a questão da linguagem, por exemplo, no

modo de confronto argumentativo no tribunal, isso implica em uma sequência: primeiro

as circunstâncias de reivindicações tornando-se ocasiões de justiça que requerem os

canais judiciários, por sua vez, estes oferecem um sentido de justiça argumentado em

princípios da justiça que tiveram os conteúdos e sentidos, então, formulados e

discutidos no âmbito da filosofia moral e política.

Os princípios e a prática de justiça no plano das instituições serão mais

detalhados no decorrer do primeiro capítulo. Lembramos que nosso percurso será feito

seguindo a perspectiva da fenomenologia hermenêutica. De modo sucinto, a questão da

fenomenologia está vincula ao campo das experiências mundanas do sujeito que é capaz

de pensar, de falar, de agir e sofrer as consequências das próprias ações. Ricoeur desvia

momentaneamente de seu movimento reflexivo fenomenológico para recorrer à

hermenêutica dos signos e das obras definidas pelas estruturas semânticas. Na

interpretação os signos ampliam-se além de sua especificidade dos sistemas simbólicos

acabando, assim, por resultar em uma hermenêutica que possibilita por em suspeita as

noções do texto. Esse desvio conserva a preocupação de reconhecer que há um campo

de validade de toda análise estrutural sendo preciso respeitar essa instância para no final

poder formular outra ressignificação após a interpretação.

Além da herança cultural filosófica, Ricoeur também herdou outros legados. Ele

não se esqueceu de que recebeu grande influência de Gabriel Marcel, autor de

pensamentos filosóficos, que segundo nosso filósofo8 aborda os problemas filosóficos

utilizando os exemplos vivos encontrados nas peças teatrais. Ricoeur compreende que

esses exemplos vivos são importantes na reflexão sobre a questão da prática da justiça

que precisa, por exemplo, estabelecer uma ligação entre todo o aparato processual legal

com os valores morais a fim de um julgamento mais justo em situações concretas.

8 Entrevista, encontrada no site http://www.fondsricoeur.fr/photo/confrontaion%20des%20heritages-pr.pdf ,sobre os filósofos que influenciaram o pensamento do Ricoeur.

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Ricoeur diz que deve a Gabriel Marcel “a problemática do sujeito ao mesmo tempo

encarnado e capaz de distanciar de desejos e poderes”.9 A partir da reflexão do filósofo

citado acima Ricoeur agregará à sua análise reflexiva a questão do trágico em conjunto

com o sofrimento; que não é apenas um padecimento, ele também é um modo de ser do

humano que é inseparável das ações. O nosso autor considera que viver é agir e sofrer.

A fim de esclarecer o sentido do sofrimento nas ações dos sujeitos, Ricoeur direcionará

sua reflexão pelo problema da intersubjetividade, do sujeito que sofre as ações de

outros. A intersubjetividade que designa as relações entre os vários sujeitos consiste em

uma experiência na existência do sujeito. As pessoas são os sujeitos de suas ações. O

agir humano nem sempre é um ato reflexivo, muitas vezes as mentes agem motivadas

por contradições entre o pensar e agir. As pessoas vivem em circunstâncias de

acontecimentos diversos e mutáveis, de ideias incertas que impregna uma moral

comum. O sujeito é uma singularidade, porém vive em um contexto complexo e plural

de modo que suas ações influenciam e sofre a influência pela vivência do outro.

Em relação à intersubjetividade convém dizer que ela é um legado de Karl

Jasper, que trabalhou esta questão pensando o problema da violência em situações-

limites sob dois aspectos: de um lado considerou as situações inaceitáveis, mas que

fazem parte das experiências do ser humano, por exemplo, o sofrimento, a solicitude, o

fracasso, a falta e a morte. De outro, considerou que a noção de existência inclui três

elementos: a liberdade, a situação e a alteridade. Esses elementos de reflexão puderam

auxiliar Ricoeur, como veremos, a pensar a questão da justiça por uma abordagem que

permite confrontar o sentido de bem e de legal em situações que a condição humana é

submetida a limites; em que se desdobra entre um dever moral e uma vontade de uma

“vida boa”. Esta é uma aspiração cuja tentativa de realizar não é fácil, já que há

constantes sobreposições de vontades e o que é bom para um pode não ser para o outro.

Embora a convivência se dê em contextos confusos em que se misturam os mais

diferentes interesses, por exemplo, os econômicos, os políticos, os religiosos e os

individuais; é possível à justiça incluir ao legal do justo, o bom.

Tendo já falado de forma ampla sobre o autor e nossa intenção sobre o estudo

em relação à justiça resta-nos descrever o movimento dos capítulos. No primeiro, será

uma tarefa de distinguir os planos mencionados acima, tentando mostrar as relações

entre eles. Apresentaremos no plano da prática da justiça; os conceitos e as noções de

9 RICOEUR, P. Da Metafísica à Moral, Ed. Inst. Piaget, p. 63. 9 Cabe dizer que Marcel fornece à reflexão de Ricoeur a possibilidade de pensar a questão do trágico considerando a figura do sofrimento.

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justiça em conjunto com os princípios reconhecidos como “princípios de justiça”. A

ênfase será dada a dois aspectos diferentes da justiça: o sentido institucional da lei que

pune as infrações e o sentido moral que engloba a ideia de retribuição e reconhecimento

mútuo.

De modo mais específico, a ideia justiça será tratada, primeiramente, do ponto

de vista da sistemática da lei e na problemática do juízo moral. Depois, pela forma de

coação e punição em que a violência é justificada sob o ponto de vista da coerção do

estado e a noção de violência injustificável da justiça apresentada como vingança.

O segundo capítulo é composto pela leitura da clássica tragédia de Sófocles,

Antígona. A abordagem desta tem como ordem de prioridade a problemática do justo e

do injusto em relação à existência de conflitos e de uma convicção tão obstinada e

exaltada que impede qualquer tipo de “sabedoria prática” para poder saber ponderar a

situação em julgamento moral. Enfocaremos a questão do conflito que Ricoeur analisa

vinculando-o a perspectiva de Hegel e de outros pensadores que também o abordaram

em Antígona. Além do conflito, daremos destaque à questão da convicção, pensada em

conjunto com a questão da responsabilidade e da culpa. Procuramos realçar na questão

do conflito e da convicção o sentido de “sabedoria prática”. Segundo Ricoeur, ela é um

elemento ético essencial e necessário para o estabelecimento de uma ação prática da

justiça. Para Ricoeur, a sabedoria prática acrescenta à perspectiva ética de “vida boa”

uma efetuação concreta da ação ponderada. Lembrando que a apresentação de Antígona

serve como análise de caso em que o nosso interesse consiste em tentar compreender,

segundo Ricoeur, “a passagem das máximas gerais da ação ao julgamento moral em

situação”.10

10 RICOEUR, Paul. O Si Mesmo como um outro, Título original em francês: Soi-Même comme un autre, Editions du Seuil, 1990. Trad. Lucy Moreira Cesar. Campinas, SP. Ed. Papirus, 1991, p.282.

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Deixamos para o terceiro capítulo a questão da intenção ética à moral, tendo na

sabedoria prática um modelo de consenso para os conflitos. Também, deixamos a

questão da regra que para ser interpretada inclui o diálogo, tanto na prática institucional

da justiça como na convivência interpessoal. Além disso, acrescentamos a análise, de

Ricoeur, de como se dá a realização de uma “vida boa” nas relações interpessoais. O

filósofo parte do pressuposto de que a ideia ética de “vida boa” não é uma tarefa muito

fácil de pôr-se em prática, pois na vida cotidiana há os diversos conflitos que agastam a

convivência exigindo de cada pessoa certo tipo de tolerância para identificar o que de

fato é justo e o que não é. O realce será dado a uma perspectiva ética da “vida boa”. Se

no primeiro capítulo o destaque do sentido de “vida boa” foi para o plano das

instituições, nesse capítulo, a reflexão sobre essa aspiração se deterá no significado da

ação em relação ao sentido de: cuidado, estima e respeito devido a “cada um”. Nessa

perspectiva, retomaremos a reflexão de Ricoeur que se movimenta em torno do

“cuidado de si” e da “solicitude”.

Nossa conclusão retoma a ideia de Ricoeur que tenta conciliar a ideia de

autonomia/escolha com a receptividade solidária em relação ao outro. Como diz

Ricoeur – “uma autonomia solidária da regra de justiça e da regra de reciprocidade”.

Conciliar essa ideia em meio às relações interpessoais no cotidiano exige um esforço de

cada um para tentar refrear e moderar as próprias paixões, as convicções imponderadas

e as certezas pautadas no senso comum; a fim de que se abra uma possibilidade para que

possamos tentar viver bem com e para o outro em instituições justas. Sabemos que não

é papel da filosofia estabelecer o que deve ser para as pessoas ou para as instituições;

porém, é possível a ela chamar a atenção para mostrar que há condições de aplicação

para uma perspectiva ética cuja intenção seja um desejo da “vida boa”.

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Capítulo 1

O senso de justiça, a violência e a vingança.

1.1. A prática e os princípios de justiça.

a) O plano da prática

Parece-nos que se usa frequentemente a palavra justiça para designar o que é

justo. No sentido moral, tem-se a impressão de que a palavra justiça assume uma

consistência jurídica e política para nos mostrar por meio da lei o que é lícito e bom a

todos e aquilo que não é. Ademais, nessa estrutura da justiça, as ações de cada um

geralmente são consideradas justas ou injustas dentro de um contexto de prejuízo tidos

como crime ou falta diante de uma instância que os define, os julga e sanciona. Somos,

assim, levados a imaginar que o sentido da palavra, além da acepção instituída na

prática jurídica, carrega uma força capaz de atingir a vida dos indivíduos em seu “bem

estar”, em sua liberdade etc. Em “O justo entre o legal e o bom”, artigo de Ricoeur de

1991,11 a ideia de justiça é analisada a partir de um sentido enquanto acontecimento

concreto em relação à prática da justiça. Nesse sentido, o conceito de “justiça” constitui-

se de uma ideia reguladora presidindo uma prática social complexa pondo em jogo

conflitos típicos, procedimentos codificados e um confronto regrado por argumentos,

bem como a proclamação de uma sentença.

No plano da prática, segundo Ricoeur, a justiça é institucionalizada12. E é

requisitada todas as vezes que há ocasiões e implicam em reivindicações oponentes.

Essas circunstâncias requerem um recurso das vias ou dos canais de justiça, isto é, o

aparelho judiciário situado no plano institucional13.

Segundo Ricoeur, para que a reflexão sobre a justiça seja efetuada há duas vias a

ser exploradas, não esgotando nelas, porém, a ideia de justiça. Para ele, a prática social

da justiça requer uma análise, primeiramente, pela via que passa pelo plano das

instituições e de modo mais profundo, por outra que se movimenta pelo viés das

relações humanas.

Antes de seguirmos o percurso pela via do plano institucional, é importante

deixar claro que, para o autor, a ideia de justiça é uma conquista da razão; contudo, ela é

11Op. Cit. Leituras 1- Em torno ao Político, 1991. 12 Op. Cit. O si mesmo como um outro, Nessa obra Ricoeur assevera: “somente num meio institucional específico é que as capacidades e disposições que distinguem o agir humano podem expandir-se.”, p. 298. 13 Idem, p. 147 “Tarefas do Educador Político”– Segundo Paul Ricoeur, as comunidades históricas somente se apropriam de suas experiências técnica e econômica por meio das instituições; grosso modo, esse fenômeno são formas de existência social propiciando às relações humanas uma forma regrada e normativa ligadas a estruturas determinadas de manter sob um poder público a possibilidade de uma dinâmica mais organizada às relações sociais.

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exercida no cotidiano tendo um histórico que emergiu lentamente de uma origem mítica

e sagrada. Nesse aspecto, ele considera que nesta ideia comporta também as questões

simbólicas. Para ele é possível perceber, por exemplo, um fundo mítico na ideia de

justiça tanto nas reflexões dos pré-socráticos gregos como nas tragédias de Ésquilo e

Sófocles. Paul Ricoeur considera que estes pensadores tentaram engendrar um sentido

racional à ideia de justiça, todavia, não deixaram o sentido imemorial de justiça

desaparecer. Para o filósofo, embora haja uma concepção mais racional e processual

desta ideia, as conotações do sagrado e do mito ainda têm uma potência, perpetuando-se

socialmente até os dias atuais.

De acordo com Ricoeur, um sentido imemorável de justiça que não desapareceu

apresenta-se, pelo sentido contrário da justiça, no modo de queixa. Para o autor, esse

modo negativo abre a possibilidade de penetrarmos no campo do injusto e do justo. A

queixa faz parte do comportamento humano e na maioria das vezes aparece quando a

pessoa se sente insatisfeita ou indignada. Diante da justiça, segundo o autor, a queixa é

uma ação mais “aguda e perspicaz” para reivindicar o que é justo no significado de

justiça. Esse modo de agir, para o filósofo, evidencia algo que falta às relações

humanas. Sem deter-nos na questão da falta, dir-se-á que para o filósofo, a injustiça tem

um sentido mais contundente, movimentando o pensamento antes de se tentar pensar o

significado de justiça. Têm-se, então, nessa ideia de justiça um sentido duplamente

reflexivo: por um lado, encontra-se a ideia no sentido positivo de justiça em que a lei

está relacionada à prática social; por outro, a ideia no sentido negativo da falta de

justiça; o espaço da queixa é um comportamento que está pautado a uma origem quase

imemorial, inscrita na simbologia mítica e sagrada da prática cotidiana.

O autor tem em vista de que a via de orientação da prática social de justiça está

pautada nas tradições do cotidiano. Porém, sabe que a justiça com base na tradição

cultural e a prática de justiça mantêm-se em vieses diferentes, conduzindo-nos a duas

concepções distintas e concorrentes da ideia de justiça. Para Ricoeur, essa oposição não

é uma invenção filosófica, mas uma característica da própria ideia de justiça. Essa

particularidade, no entanto, pode desenrolar-se em dois sentidos para o justo da justiça:

de um lado, o significado de justo recebe uma conotação ética tendendo ao predicado de

“bom” e de outro permanece estruturado nas capacidades jurídicas do “legal”. Todavia,

esses dois sentidos, aparentemente em oposição, podem ser considerados simplesmente

como uma fraqueza do conceito ou como uma constituição dialética que deve ser

respeitada.

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A respeito do justo da justiça, a tese de Ricoeur diz: “a dialética do bom e do

legal seria inerente ao papel de ideia reguladora, podendo ser atribuído à ideia de justiça

com relação à prática social que nela se reflete”. 14

Tendo em vista os pressupostos acima, tomaremos a ideia de justiça

primeiramente como prática de justiça socialmente instituída, depois, como uma

aquisição marcada pelo sentimento, pelas configurações simbólicas presentes no

universo dos signos e nas expectativas em relação a outrem etc.

Na questão da prática da justiça, convém relembrar que ela é uma atividade

social estabelecida em um sistema de distribuição instituído. De acordo com Ricoeur,

este sistema, nominado de sociedade, é constituído por indivíduos históricos e culturais;

ao se agruparem de modo cultural e historicamente organizados como sistema de

repartição, introduzem um sentido de bem a tudo aquilo que consideram ser bom para a

vida em comunidade. Grosso modo, uma sociedade constrói seu sistema jurídico como

ideia reguladora para presidir as relações pessoais beneficiadas pelo concurso da

partilha em que cada pessoa é portadora de diferente papel, cabendo a cada uma a

participação social. Porém, para manter de forma regrada as relações interpessoais de

maneira que todos possam tomar parte nesse processo de distribuição, a sociedade

politicamente institui regras de aplicação da igualdade para operar na distribuição das

partes. Nesse contexto prático social, cada parte da distribuição é considerada um bem a

ser partilhado. Diante da lei a partilha transforma-se em direitos adquiridos. No campo

da aplicação há circunstâncias em que ocorrem reivindicações levantadas por interesses

ou direitos opostos; exigindo, assim, a presença de uma “instância superior” para

decidir entre essas reivindicações.

Cabe dizer que na prática social de justiça a instância superior é representada

pelo Estado governamental de uma nação, país etc. Esta instância é considera, dentro de

um sistema de governo, como uma instituição política que tem o controle das instâncias

legislativas empíricas e historicamente constituídas. Esse campo institucional

responsável pela esfera de justiça tem uma concepção processual delimitada em um

espaço público. Segundo Ricoeur, essa via legislativa tem por prioridade instaurar

regras para um sistema de repartição que visa à partilha de todos os bens sociais. No

campo institucional, a ideia de justiça, em circunstância de reivindicações, se transforma

14 Ibid, p.91

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em um fenômeno ou acontecimento sendo representado pelos canais ou vias que é a

forma institucional judiciária. 15

De acordo com Ricoeur, as “ocasiões” ou “circunstâncias” de reivindicações de

direito normalmente são provocadas por “conflitos de interesses” entre as pessoas de

uma sociedade civil. As situações conflitantes demandam uma esfera superior quando

deixa de existir a possibilidade de um acerto em comum. Entretanto, a gravidade do

conflito pode ser posta em jogo caso essa instância jurídica, por princípio, não seja

reconhecida em seus os canais de justiça. A instância jurídica somente pode funcionar

como aparelho judiciário se os seguintes elementos forem reconhecidos pelos membros

da comunidade, a qual essa esfera superior se dirigirá para orientar. Os canais ou

aparelho de justiça são compostos: de um corpo de leis escritas; dos tribunais ou cortes

de justiça cuja função é pronunciar o direito e dos indivíduos encarregados de julgar e

pronunciar a sentença; por exemplo, os juízes, promotores, advogados, etc.16.

O filósofo francês acrescenta que existem, ainda, na instância de justiça

institucional dois aspectos: o primeiro consiste no monopólio da coerção que tem o

poder de impor as decisões da justiça empregando o recurso da força pública; o segundo

aspecto refere-se aos argumentos da justiça, parte da atividade comunicativa, podendo

aparecer, por exemplo, nos confrontos de argumentos diante de um tribunal. Esta

instância de ação da justiça é, assim, o lugar em que ocorrem os processos de

reivindicações e as sentenças, cabendo a ela o ato de julgar.

No ensaio “O ato de julgar”, parte da coletânea do livro O Justo 1, Ricoeur

afirma que somente no fim da deliberação efetua-se o ato de julgar. Esta atividade de

julgamento, em sua forma institucional judiciária, se expressa primeiramente no pólo da

lei e do direito jurídico, constituindo-se pelo processo e efetuando-se no ato de julgar.

O filósofo assevera que no sentido mais usual do termo a palavra julgar significa

opinar e avaliar. Já na acepção jurídica o ato de julgar significa estatuir na qualidade de

juiz17.

O sentido usual de o termo julgar é mais abrangente e, nesse aspecto, Paul

Ricoeur propõe uma classificação por “ordem de densidade crescente”.18 Em primeiro

lugar, o filósofo analisa o senso de julgar considerando o sentido da palavra que

argumentativamente é mais fraco; nesse aspecto, julgar tem o significado de emitir uma

15 Op. Cit. Leituras 1, p. 94 16 Idem 89. 17 Op. cit. O Justo 1, p. 171. 18 Idem p.175

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opinião a respeito de qualquer coisa. Para o autor, o sentido de julgar torna-se um pouco

mais forte quando a palavra recebe um significado de avaliar; desse modo, introduz-se

um elemento hierárquico expressando preferência ou aprovação; a avaliação

exprimindo-se em um grau um pouco mais forte recebe a significação de se preferir isso

àquilo, aqui há a apreciação de algo ou a aprovação de julgar. 19 Outro grau maior de

força para a palavra julgar, segundo o filósofo, encontra-se entre a face do sentido

subjetivo e a do objetivo do julgamento; do lado objetivo: “alguém considera uma

proposição verdadeira, boa, justa, legal”; e do subjetivo: “adere a ela”. Para finalizar a

classificação do termo, o autor leva em consideração um nível mais profundo em que

julgar procede da conjunção entre entendimento e vontade: o entendimento

considerando o verdadeiro e o falso e a vontade decidindo entre os dois. Todavia, é no

âmbito do processo que o ato de julgar atinge um sentido mais forte recapitulando todos

os significados usuais da palavra; não somente com o sentido de opinar, avaliar ou de

considerar verdadeiro, mas em última instância, julgar tem o sentido de: tomar posição. 20

A tomada de posição em um julgamento faz parte da prática de justiça no âmbito

institucional21. E o sistema judiciário envolvendo a questão do julgamento é um

acontecimento social. Entretanto, esse acontecimento social envolvendo todos os canais

ou vias da justiça, não é em última instância uma simples tomada de posição; ao

contrário é uma prática complexa pondo em jogo conflitos típicos, procedimentos

codificados e os confrontos de argumentos regrados. Para que essa instância se

mantenha independente e seja qualificada com competência e autoridade para poder

tomar posição no ato de julgar tem-se de haver as condições necessárias. Caso contrário,

a justiça institucional não conseguira exercer eficientemente as suas funções.

Ricoeur enumera quatro condições necessárias para uma prática de justiça

eficaz: primeiramente a existência de leis escritas; em segundo lugar a presença de um

plano institucional constituído por tribunais ou cortes de justiças etc.; em terceiro lugar

pela atuação das pessoas encarregadas de julgar, para esse intento elas precisam ser

qualificadas, competentes e independentes; e em quarto lugar, a ação judicial

19 Ibid. p. 171 e 199. 20 Idem, 176. 21 Op. cit. Leituras 1 – Em Torno ao Político. O aparelho judiciário é definido por uma sequência: leis-tribunais-juízes-sentença, entre uma instância superior e uma base de sustentação. p. 104

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desenvolvida inicialmente pelo curso do processo e finalizada pelo pronunciamento de

uma sentença.22

O autor assevera que no processo jurídico, além de um pronunciamento da

sentença há também, em todo julgamento, a possibilidade de deliberar. A acepção de

liberação alcança um aspecto reflexivo para o sentido do ato de julgar mantendo uma

relação dupla com a lei: por um lado existindo a força do direito representando a

“determinante” deste; por outro, o ato de julgar traduzindo-se por uma interpretação

“reflexiva” da lei que requer uma sabedoria no ato de julgar para deliberar. Nesse

sentido, o ato de julgar tem uma força determinante e reflexiva que, de acordo com

Ricoeur, pode ser ampliada a partir do ato reflexivo do sentido de deliberar. Se

considerarmos esse ato a partir desse sentido reflexivo, então poderemos alcançar uma

reflexão filosófica fora desse limite do judiciário.

Segundo o autor, o ato de julgar pode, além disso, expressar-se pelo sentido de

“de-limitar” cujo significado é por limites a pretensão de um sobre o direito de outro e

assim corrigir as distribuições injustas. Trata-se aqui de uma deliberação em que se

estabelece a parte de um e a parte de outro, atribuindo a “cada um” o que é seu. O

filósofo compreende que, nas circunstâncias últimas, o sentido do ato de julgar ao ser

recolocado no processo, sob a forma de incerteza, se posiciona de maneira ampliada. É

preciso ter em mente sempre, no entanto, que por trás dos procedimentos específicos do

processo judiciário há uma prática social composta por uma sociedade civil que é o

campo de incertezas. O campo social é o espaço das discussões e que em última

instância as partes reivindicantes recorrem à prática social da justiça para manter seus

direitos, sem, contudo, ter a certeza de que serão atendidos igualmente em suas

reivindicações. 23

O filósofo referindo-se as reivindicações assevera que o processo jurídico é

fenomenologicamente a forma codificada do conflito; para ele, atrás do processo há o

conflito, a pendência, a demanda etc.; isto é, por trás do conflito há a violência. Desse

modo, segundo o autor, cumpre recolocar o processo, com seus procedimentos

institucionais estrategicamente decodificados e interpretados para formar uma rede de

significados que atenda na prática da justiça as necessidades do conflito oriundo do

campo civil. Este último sendo o território público das discussões, fenômeno social

intrínseco ao funcionamento das relações interpessoais, dá margens às ocorrências de

22 IBID, 176. 23 Idem pp.178, 179

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diversos conflitos. As incertezas, as pendências, a demanda de justiça e o litígio podem

gerar conflito e a partir deste pode chegar-se a violência. Assim, o lugar da justiça, de

ordinário, está tomado por um sentido negativo, como se estivesse fazendo parte do

conjunto de alternativas que uma sociedade opõe à violência. 24

Antes de nos determos na questão da violência, é preciso não perder de vista a

questão da prática de justiça como ideia que nos remete a problemática dos conceitos.

Como já dissemos, na reflexão “O justo entre o legal e o bom”, Ricoeur considera que o

conceito de justiça constitui-se uma ideia reguladora para reger a prática social que não

é meramente uma conquista racional, mas também um modo de experiência humana.

No sentido das experiências humanas, o autor levará em conta além das singularidades

dos conceitos elaborados pelas mentes, as situações e os significados de justiça

relacionada ao “viver em comum” de uma comunidade histórica. É nesse aspecto que a

ideia de justiça concerne às relações interpessoais, isto é, as experiências humanas. Por

experiência humana, dever-se-á entender as práticas intelectuais, morais e espirituais

acumuladas sob a forma de obras, monumentos visíveis, de livros e de bibliotecas, ou

seja, tudo aquilo que de algum modo deixa rastro se constituindo de um recurso vivo

como aquisição da humanidade25. Dessa forma, para Ricoeur, a ideia de justiça

vinculada ao modo de experiência humana engloba na prática cotidiana um sentido que

oferece também o emprego do diálogo e do discurso entrelaçando os signos, os

símbolos, os textos que são modos de expressão comunicativa.

Mongin assevera que, para Ricoeur, os signos e os símbolos são elementos

facilitadores para a comunicação.26 Nesse sentido, nosso autor está de acordo, ele

complementa que o campo da linguagem “tem um caráter que significa a nossa pertença

a uma tradição ou a tradições cujos valores passam pela interpretação dos signos, das

obras, dos textos, nos quais as heranças culturais se inscrevem e oferecem à nossa

descodificação”27. Desse modo, a experiência humana também se constitui de elementos

de linguagem um facilitador englobante de toda herança cultural e histórica.

O elemento da linguagem conglomerando os significados históricos tem uma

especificidade, em especial a narrativa, que simultaneamente nos dá um sentido de

pertença e de distanciação. O autor compreende que a narrativa exerce uma função de

24 Op. cit., O JUSTO 1 p.178. 25 Op. cit., L1, pp. 146 e 147. 26 MONGIN, Olivier, Paul Ricoeur as Fronteiras da Filosofia, Trad. Armando Pereira da Silva, Ed. Instituto Piaget, Lisboa, Portugal, 1997. 27 RICOEUR, Paul. Do texto à acção – Ensaios de Hermenêutica II, A tarefa da hermenêutica, (TA), trad. Alcino Cartaxo, Ed. RÉS Ltda., Portugal, p.106, 107.

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mediadora da história entre o horizonte de duas consciências: a do passado e a do

presente. Sua função de mediação possibilita que haja um diálogo, através do texto,

entre dois interlocutores. O diálogo intertextual permite, por exemplo, que exista uma

fusão da historicidade entre as diferentes experiências humanas. Esse acontecimento

que se realiza como comunicação discursiva ocorre em um tempo e espaço específico.28

O discurso é um acontecimento cujo caráter é exprimir a fala de alguém.

Nesse sentido, o discurso é sempre sobre alguma coisa que aconteceu no mundo.

A língua é a condição prévia de comunicação, pois ela fornece os seus códigos, mas é

no discurso que se estabelece o diálogo. O discurso poderá ser estendido ou

interrompido conforme a tensão entre o significado e a significação do que é dito.

Ricoeur considera que o discurso é efetuado como acontecimento e compreendido como

significação. Ele afirma: “a significação tem uma acepção lata que abrange os aspectos

e todos os níveis da exteriorização intencional que torna possível, por sua vez a

exteriorização do discurso na obra e na escrita29”. O filósofo analisa que o

acontecimento pelo aspecto do discurso tem uma significação de algo que se realiza

temporalmente, no presente. Contudo, enquanto sistema da língua, o acontecimento é

virtual e atemporal.30 A condição de distanciação operada pela escrita nos abre a

possibilidade de uma apropriação objetiva. Nesse sentido, por intermédio de um texto é

possível sabermos de questões, como, por exemplo, “do amor e do ódio, dos

sentimentos éticos e, em geral, de tudo aquilo a que nós chamamos de si, se isso não

tivesse sido trazido e articulado pela linguagem”.31

Cabe dizer que esse desvio que estamos fazendo pela linguagem é necessário,

pois segundo Ricoeur, possibilitará a inserção de uma intenção ética. Esta ética tem por

princípio a ideia de bem que reflexivamente vincula-se ao sentido de bom; em conjunto

com o sentido de legal compõe o justo da ideia de justiça. Desviaremos, então, um

pouco da ideia de justiça e retomaremos o percurso da linguagem pelo plano narrativo,

em particular, pelo mundo do texto. Lembramos, entretanto, que é apenas um desvio,

logo mais voltaremos à questão da justiça.

Para Ricoeur, diante do texto abrimos o campo da possibilidade de poder nos

compreender. Por analogia ao texto, a pessoa é capaz de poder dizer, fazer, narrar a

história de sua vida, assim como a dos outros. Ao nos expormos à linguagem, em

28 Idem, pp. 110, 111. 29 Ibid, p.114. 30 Ibid, p.111. 31 Ibid, p.123.

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particular, ao plano narrativo de um texto, diante deste, nós recebemos a oportunidade

de poder compreender. De modo que em face ao texto a pessoa percebe-se capaz de

uma potência que está em si mesma; contudo ao exteriorizar essa potência, dizendo,

fazendo ou narrando a sua própria história, vê-se na situação de responder por seus atos.

Essa responsabilidade pela própria ação possui um sentido de identidade mesma, uma

identidade narrativa. O texto é o outro de si mesmo capaz de ampliar o sentido de

pessoa capaz.

O filósofo consegue dar um sentido de si como menção a própria pessoa que se

analisa reflexivamente a partir do texto. Essa dimensão mais ampla seria uma proposta

ricoeuriana de existência no mundo. Ricoeur aproxima por referência a noção de mundo

que se aplica a realidade existencial do sentido do mundo do texto. Desse modo, o

mundo do texto que é imanente ao discurso, por referência amplia a possibilidade de se

ter uma compreensão de si diante do texto. Nesse aspecto, é possível uma compreensão

de si ao se reconhecer, por exemplo, como autor do próprio dizer, ou porque é capaz de

poder responder pelos próprios atos. É por aproximação ao texto que a pessoa pode se

identificar dentro de uma capacidade de pessoa capaz, podendo narrar e até

compreender uma narrativa. Assim, ao ampliar essa questão da narrativa, o autor agrega

o sentido de pessoa capaz dando a esse conceito um sentido que faz menção ao pronome

si; à medida que a própria pessoa vai se analisando reflexivamente se descobre como

um ser capaz; em uma dimensão mais ampla ela se percebe existindo no mundo e sendo

capaz de estabelecer um vínculo entre o mundo real e as suas experiências particulares.

O que acabamos de descrever é uma experiência hermenêutica do texto que ao

ser apreendida e reinterpretada amplia o nosso sentido da realidade. O filósofo

compreende que, nessa dimensão da linguagem, a ficção, por exemplo, é capaz de

manter certa distanciação do real consigo mesma. De modo que nesse distanciamento

ela introduz uma possibilidade de metamorfosear a realidade cotidiana com a

modalidade do “poder ser”. Ricoeur diz:

“a ficção é o caminho privilegiado da redescrição da realidade e que a linguagem poética é aquela que, por excelência, opera aquilo a que Aristóteles, ao refletir sobre a tragédia, chamava a mimèsis da realidade; a tragédia, na verdade, apenas imita a realidade porque a recria por meio de um muthos, de uma fábula, que atinge a sua essência mais profunda”. (RICOEUR, Do texto à ação, p.122)32

Em suma, Ricoeur considera que o discurso é um acontecimento que é

ultrapassado pela significação. O discurso faz referência a alguma coisa no mundo ou a

32 Op. cit. Do texto à ação, 122

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um mundo. Para ele, o mundo é o conjunto das referências abertas pelo texto. O filósofo

fala do mundo grego, designando-o não por referência situacional para aqueles que lá

viviam, mas designando-o por referências que ostensivamente nos abre um mundo, de

agora em diante, se oferecendo como modos possíveis em dimensões simbólicas do

nosso ser-no-mundo.33 Essa explicação, parece-nos que tende a ampliar nossas

referências libertando-nos de nossa própria estreiteza diante das situações e, de certo

modo essas referências parecem orientar a nossa conduta de maneira sensata. Nossas

condutas são ações que podem se expressar de modo sensato na tomada de decisão em

situações de julgamento moral no âmbito da justiça.

Nesse aspecto, para o autor, a linguagem é uma faculdade humana de

comunicação cujos signos, símbolos e significados possibilitam estabelecer uma

locução para se designar à outra pessoa. A interlocução é uma ampliação da linguagem

que possibilita a pessoa interagir com outros. A linguagem, nesse aspecto, afigura-se

como um acontecimento institucional, cultural e social. Ela é um fenômeno que se

mantém estruturalmente, embora esteja sujeita a constantes renovações a fim de

alcançar uma intenção significante para os acontecimentos que são articulados no

discurso. Ela enquanto palavra, no nível da efetuação, inclui em sua estrutura um sujeito

falante e uma referência. Para o filósofo ao dizer se diz algo sobre alguma coisa a

alguém. Nesse nível de efetuação uma pessoa no ato de dizer qualquer coisa expõe o

seu pensamento estruturando-o, em palavras, que ao serem pronunciadas se modificam

ao se transformar em um acontecimento. 34 Cabe dizer que no ato de falar, a pessoa pode

deixar transparecer, até mesmo, o que está inscrito na imaginação, por exemplo, o seu

desejo.

O desejo é uma aspiração exprimindo-se em nosso querer, pela linguagem, em

especial pelo ato de narrar podemos transformar esse desejo em um discurso possível de

se aplicar à realidade. Deste modo, podemos pelo discurso transformar a nossa

imaginação em algo que se possa expressar; revestindo a nossa intenção de uma

categoria ética de “vida boa” com referência temporal marcada simultaneamente por

uma significação simbólica e histórica.35

33 Op. cit., p.190. 34 RICOEUR, P. EL Conflicto de las Interpretaciones, Ensayos de hermenêutica, Trad. Alejandrina Falcon, Fondo de Cultura Econômica, Argentina, 2008. Hermenéutica y Estructuralismo, La estructura, la palabra, El acontecimiento, p.79 a 84. 35 Op.cit., Do texto à acção, p.264.

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Na temática da prática da justiça há um eixo reflexivo, no plano do discurso, que

evoca um significado em referência ao desejo. No contexto ético da justiça, o desejo é

um télos em que a pessoa aspira alcançar uma vida boa. Para situar a palavra desejo na

ordem da moral Ricoeur recorre à linguagem cujo significado reflexivo refere-se ao

objeto que se apresenta à mente. No plano da linguagem a simbólica do desejo pode ser

apresentada fenomenologicamente na forma de uma meta; uma projeção que se dá no

campo das possibilidades futuras e no modo do esforço impulsionando a vontade ativa a

orientar as ações presentes. No significado ético aristotélico de justiça o desejo tem o

papel de impulsionar o sujeito a buscar para si o télos da “vida boa”. Essa maneira

intencional de evocar “o desejo de uma vida boa” para a realidade é um acontecimento

que exige um contexto político e moral.

O sentido político refere-se ao campo da política; coincidindo com “a ação

humana na história, ou ação razoável.”36 A moral, nesse contexto, significa “o modo

reflexivo que julga as intenções, condena as paixões, põe limites a violência, mas não dá

a razão da ação no mundo; interdita, mas não legitima a ação37.” Assim, no campo

político e moral a ideia de justiça tem um espaço em que a linguagem procura através da

palavra se centrar na reflexão para se prevalecer sobre o sentido de violência.

É necessário lembrar que as atividades argumentativas tentam prevalecer diante

do monopólio da coerção ou do emprego da força. Para Ricoeur, é no contexto prático

que se realiza o emprego dialógico da linguagem dando significações reflexivas à

formalização da ideia de justiça. Mongin considera que esse espaço reflexivo da prática

de justiça é para Ricoeur um campo em que não se consegue isentar a idéia do bom para

o legal do justo. Se pensarmos a idéia de justiça por meio da prática do justo, será

possível ver que ela não pode ser apreendida somente pelo ponto de vista formal; a

justiça precisa de valores para instaurar um julgamento que tenha pretensão moral de

verdade. 38

Nesse sentido, para Ricoeur, a verdade assim como a justiça, é no pólo da lei

uma ideia reguladora do mais alto nível; sendo a sua função a de manter um acordo

comum que politicamente iguala todos os homens como seres humanos de ações

suscetíveis de avaliações e que podem ser orientadas por uma moral estabelecida pela

idéia de bem. No espaço moral, a justiça tem o papel de avaliar e qualificar se as ações

36 Op. cit., L1, A filosofia política de Éric Weil(1957), p.39. 37 Idem p.41. 38 MONGIN, Olivier, Paul Ricoeur as Fronteiras da Filosofia, Trad. Armando Pereira da Silva, Ed. Instituto Piaget, Lisboa, Portugal, 1997, p.90.

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são boas ou não, de modo que valorar de certo modo julgar e o ato de julgar evoca o

sentido de bom a fim de se manter um nível de moral mais equilibrado. 39

Grosso modo, portanto, o plano institucional é o espaço das reivindicações em

situação de conflito. Nesse horizonte da prática judiciária ocorrem às condições para o

julgamento nas práticas de convivências sociais. No contexto social, o indivíduo não é

autônomo o suficiente para fazer o que quer em relação às questões de direito legal.

Segundo Ricoeur, a autonomia do sujeito político é uma condição de possibilidade que

a prática judiciária transforma em tarefa. Desse modo, na esfera social e política o

indivíduo possui uma autonomia passiva, já que suas escolhas se encontram sob a tutela

do estado de direito. Por ocasião dos conflitos em que há fatores circunstanciais de

violência e de reivindicações recorre-se a estrutura do direito; evocando a justiça dos

tribunais para tentar conseguir uma paridade de justa medida à sua sentença. O juiz, na

prática da justiça, é o elemento neutro na situação de conflito. Ele tem a função de

distanciar-se do problema para promover um julgamento justo. Esse terceiro elemento,

neutro, tem a função de julgar as ações pelas suas consequências, fazendo dela a

medida para estabelecer o critério do justo e do bom.40 Essas instituições de direito que

inclui à prática de justiça, os tribunais, a lei, as normas e a ordem, bem como as pessoas

e todas as atividades funcionais tem a tarefa de estabelecer as teorias e os conceitos

formais de direito para organizar a prática social. Essa instância jurídica tem

implicações políticas e morais. Por fim, a prática da justiça institucional se assenta não

só em uma formalidade hierarquia jurídica; mas também na idéia de justiça que surgiu

do pensamento reflexivo ou consciente caracterizado por um espírito de época. Esse

pensamento reflexivo de época exprime uma postura crítica da razão a respeito das

atitudes, comportamentos e conhecimentos cujos conteúdos forneçam os componentes

morais e políticos para uma sociedade.41

1.2. O plano dos princípios

Como já foi dito, a ideia de justiça rege uma prática social sob o signo dos

princípios e da lei. Dos princípios da justiça, há um que se destaca: o sentido de

igualdade pronunciado como equidade. Ricoeur considera que desde Aristóteles a

justiça se manifesta pelo sentido de equidade42. No prefácio de O justo 1 há uma citação

39 Op. cit., O justo 2, p.63. 40 Idem, pp.97, 98,99 41 Op. cit., O justo 1, p.153 a 159. 42 Idem p.197.

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destacando o sentido de equidade aristotélico que está vinculado diretamente ao

significado de justo; porém, não um justo conforme a lei, mas de acordo com o

corretivo da lei. Supostamente a equidade teria por definição um sentido de correção

incluindo as regras de partilhas desiguais. Segundo o filósofo, o princípio de

igualdade/equidade, considerado pelo sentido de justo, tem-se perpetuado como uma

ideia de justiça no contexto prático social; aflorando-se nos conceitos formais do

conceito distributivo dos sistemas jurídicos, em uma tentativa política e moral, para

estabelecer um senso correlativo de direito.43 No nível dos princípios, então, se seguem

os conceitos formais e as teorias sobre a justiça como o discurso argumentativo da

justiça.

Na instância do discurso é importante respeitar a forma que o jurídico adquire,

pois ele não se caracteriza somente como um instrumento legal para impor e manter a

lei; mas em um sentido mais profundo, o jurídico tem um aspecto orientado pelas

discussões coerentes para solidificar os processos judiciais. Parece-nos que para Ricoeur

não é possível classificar um discurso como coerente e constituído de sentido sem que

se mencione a linguística. 44 Já foi dito que no contexto da justiça institucional, o campo

da linguística tem o seu papel. É por meio desse espaço que se opera os símbolos e os

signos assim como os significados dos conceitos e dos princípios que fazem parte dos

textos escritos. Notamos que, segundo Ricoeur, a linguagem abre a perspectiva de o

homem poder desenvolver comunicativamente as suas capacidades no presente, de

poder desenvolver valores utilizando as próprias experiências anteriores. Ela abre ainda

a possibilidade para que na questão da justiça haja um modo reflexivo para e sobre o

agir humano. Nesse sentido, ela possibilita exteriorizar os sentimentos de indignidade

oriundos de ações que envolvem conflitos de convicção no nível da moral. 45

É sabido que a ideia de justiça não é contemporânea; como dissemos, para

Ricoeur, o significado desta é quase imemorável. Na ordem das relações humanas o

sentido de justiça foi emerso aos poucos, tendo agregado os aspectos míticos e sagrados

em seu significado. O filósofo entende que na prática cotidiana o sentido de justiça se

distingue por um fundo mítico intercalando-se com o racional. Tendo o significado de

justiça passado por muitas transformações para chegar a uma perspectiva em que se

pudesse considerá-la como um sistema racional de direito. 46 Para ele, essa ideia através

43 Ibid, p. 1 44 Ibid, pp. 59 a 68. 45 Ibid, pp. 150, 151, 152. 46 Op. cit. Leituras 1 – Em torno ao Político, O justo entre o Legal e o bom (1991) p. 89

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do tempo recebeu um pensamento mais crítico. Contudo, esse pensamento crítico já

ocorrera desde a época dos gregos, por exemplo, a ideia de justiça dos pré-socráticos e

dos escritores das tragédias. Embora, para o filósofo, o significado de justiça tenha se

transformado em uma atitude mais crítica, nesse período, o sentido mítico e sagrado

continuaram fazendo parte do sentido de justiça. Ricoeur cita como exemplo a ideia de

justiça em Aristóteles; para este pensador antigo, a ideia de justiça considerada uma

ética racional tem implicações com o sentido mítico e sagrado; sentidos que se

perpetuaram até os dias atuais. Dessa maneira, segundo Ricoeur, precisamos considerar

que essas implicações simbólicas tem relação com a prática da justiça nas atividades do

cotidiano.47

Como já foi dito, a ideia de justiça recebeu uma conotação mais racional em

Aristóteles ao dar à ética uma prévia do formalismo da virtude. No entanto, o sentido de

justiça e de equidade aristotélico, por carregar as alusões ao simbólico, tem por caráter

aproximativo um valor de virtude abrangendo a bondade do bem, embora a justiça e a

bondade “não se afigurarem absolutamente idênticas nem genericamente diferentes”.48

No primeiro parágrafo do livro V da Ética a Nicômaco Aristóteles assevera que

a justiça e a injustiça são concernentes as ações humanas em que os atos dos indivíduos

podem afigurar-se justos e injustos. Aqui as ações justas e injustas recebem uma

conotação moral e são consideras por meio dos atos morais do homem em relação à

cidade.49 Nesse sentido, a ideia de justiça aristotélica apresenta-se pelo fator moralizante

e regulador das ações. Para Aristóteles, quem transgride a lei e quem toma mais do que

lhe é devido, são indivíduos não equitativos. O sentido de “quem” toma uma

importância na medida em que há implicitamente na ideia de justiça um agente capaz de

agir equitativamente e cujos atos podem ser justos ou não. O filósofo grego assevera

que as ações de obediência à lei e ao princípio de igualdade conferem ao homem que

tenha praticado esses atos um sentido de justo. Ser justo, por conseguinte, significa ter

uma conduta deliberadamente legal e equitativa; e de modo contrário, ser injusto seria

escolher as coisas que não são boas, por exemplo, transgredir a lei ou agir de modo não

equitativo.

As coisas lícitas são pronunciadas e decididas pela legislação e são denominadas

regras de justiça. Para Aristóteles a justiça é pronunciada pela lei e colima para um

47 Idem, p. 90. 48 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, trad. Edson Bini, São Paulo, Editora Edipro, 1a. Edição 2002. 159 49 Idem, p.135

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interesse comum de todos. A lei é a regra legal que prescreve a conduta correta, de

modo a não se contrapor ao sentido moral.50 Nos termos aristotélicos a lei ao ser

aplicada na prática tende a preservar a felicidade da comunidade política51. Para

Aristóteles a justiça equitativa pode existir num grau mais completo, na vida doméstica,

entre marido e mulher, mas não entre pais e filhos ou entre senhor e escravo. Nos dois

últimos há uma hierarquia e a justiça não consegue aparecer na possibilidade de

igualdade e de liberdade.

Cabe lembrar que a justiça, para Aristóteles, de certo modo é sempre de domínio

da política. A justiça política é considerada natural quando ela apresenta-se com a

idêntica validade para todos e em qualquer lugar. Ela é considerada convencional

quando as regras são estabelecidas como medidas padrões aplicáveis em atendimento

circunstanciais e de modo conveniente. O conceito de política aristotélico determina um

sentido de política que seja uma doutrina do direito e da moral aplicada às

circunstâncias do contexto prático. A justiça política é, assim, tanto uma prática natural

como uma prática baseada em convenções. Lembrar-se-á de que na Ética a Nicômaco

o homem é um ser social, um ser da pólis que existe convivendo com o outro na cidade.

Nesse aspecto viver bem consiste em conduzir a própria vida moralmente, em relação a

si mesmo, ao outro e à instituição sob a ação do predicado bom.

De modo geral a ideia de justiça, em Aristóteles, mantém o princípio de

equidade tanto no nível da lei como no campo da moralidade. Nesse sentido, a vida

humana, ordinariamente, ao estabelecer laços de relação entre si, precisa estabelecer

regras e leis que organizem esses vínculos, mas acabam também valorando as ações

pelo signo do bem, no sentido daquilo que são estimáveis boas. Para Ricoeur, esse

sentido de bem da Ética a Nicômaco estende-se em direção à justiça como um modo

distributivo de partilha parcial; a distribuição em relação à justiça acontece entre

relações de igualdade; as divisões vinculam-se a uma situação específica e são

estruturadas socialmente de forma proporcional.

Devemos considerar que se na prática o sentido de justiça mostra-se complexo,

na teoria essa ideia também não é algo simples. Já foi dito que a ideia de justiça é um

pensamento racional, mas de cuja estrutura tem sido construída tendo em vista a

complexidade do mundo em que se vive. Nesse aspecto, é importante dizer que, para

Ricoeur, a justiça não é simplesmente uma ideia procedimental cuja função seja garantir

50 Ibid, p. 159 51 Ibid, pp.58 a 160.

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a coexistência. Nessa questão da justiça, é preciso considerar a existência das teorias,

da lei, da moral e dos princípios cujos sentidos orientam as ações do sujeito. Além

disso, o significado de justiça implica na ideia de pessoa em conjunto com as próprias

ações, basicamente a justiça se dirige as atitudes e ações de alguém ativo e capaz de

escolher. Nesse sentido, quando a ideia de justiça vincula-se ao princípio de igualdade,

torna-se uma ideia mais complexa ainda; envolvendo as questões das partilhas e, por

conseguinte as distribuições.52

Ricoeur assevera que na ideia de justiça, as distribuições formam um princípio,

outrora ressaltado por Aristóteles e, posteriormente, aproveitado pelos medievais como

uma ideia de justiça distributiva. Segundo o filósofo francês, apesar desse princípio de

distribuição parecer uma ideia simples e evidente até para uma criança, como prega a

concepção do direito natural, é importante ter-se em mente de que este princípio tem um

significado não foi esgotado nessa concepção dos medievais. Para o autor, nesse sistema

jurídico, há outra ideia designando a justiça por virtude suprema. Nesta ideia, a justiça

configura-se sem distinção entre a moral e o direito. De modo mais específico, a justiça

considerada um poder reto tem por função a faculdade de conduzir as ações por

caminhos de retidão. Ricoeur considera que a palavra retidão tem um significado de

socialmente correto e está relacionada com o sentido de verdade; estabelecida de acordo

com aquilo que é considerado justo e bom a fim de se manter as relações interpessoais.

No ensaio, Justiça e verdade, Ricoeur propõe à ideia de justiça e para a de

verdade que as duas sejam consideras como “ideias reguladoras de mais alto nível”.

Para o autor, embora as duas ideias possam igualmente ser formuladas de modo

independente uma da outra, há um sentido de igualdade apresentando-se quando

verdade e justiça entrecruzam-se de maneira rigorosa e recíproca.53 O sentido de

verdade geralmente entrecruza-se com a ideia de justiça igualmente; possibilitando,

assim, promover um juízo justo em todas as circunstâncias em que há um julgamento

moral de situação. Igualmente, a ideia de verdade e de justiça vincula-se também a ideia

de bom, constituindo-se um nível ético sob o signo da justiça. 54

A ideia de justiça e de verdade, segundo o filósofo, corresponde a três níveis de

imputabilidade: a lógica do provável que diz respeito à estrutura da argumentação; a

verdade que deve ser formulada por espécie de evidência “hic er nunc daquilo que

52 Op. cit. 89 53 Op. cit., O justo 2, p.63 54 Idem, pp.64, 67

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convém fazer” e “a lógica do provável em que a verdade consiste em uma adequação do

juízo à situação”. Esse nível de verdade não é sustentado por um sentido de

universalização, ele está num grau de exigência ética e “consiste na adequação do juízo

a situação”55. Nessa relação de igualdade entre justiça e verdade, a ética tem a bondade

instituída como meta de vida boa.

Esse nível de verdade adequado ao juízo moral no âmbito dos conflitos

cotidianos inclui, segundo Ricoeur, um ponto de vista impessoal cuja capacidade de

negociar varia entre uma perspectiva pessoal e uma impessoal. A capacidade de

estabelecer um ponto de vista que não seja pessoal abre espaço para um horizonte moral

em que o outro se torna tão importante quanto nós mesmos. Para Ricoeur, o significado

ético que estabelece um ponto de vista impessoal para a própria vida contribui para que

a própria vida seja examinada sob o ponto de vista tanto do bom quanto do legal como

partes iguais do justo. Por esse viés a justiça é retomada tanto pelo significado ético do

bem da bondade quanto pelo do legal.56 A ideia de justiça aparece, então, orientada por

um sentido ético da ideia de bem podendo se mostrar, especialmente quando há uma

situação de conflito.

As situações em conflitos requerendo juízos morais se deslocam para o âmbito

da justiça que é marcada pelos costumes ou por uma tradição histórica de certa

comunidade; além disso, ela é assinalada também por uma ideia mítica ou sagrada em

conjunto com a lei normativa do Estado de direito.

Em resumo, segundo Ricoeur, a ideia de justiça, em relação aos seus princípios é

formada não somente como uma conquista da razão, mas com todos os significados

históricos e sociais das experiências humanas. Os princípios de justiça marcam-na

servindo de fundamentos ou de ponto de partida, mas são os significados, por exemplo,

de igualdade, de equidade, de liberdade, que estabelecem os sentidos para os princípios

sustentando, assim a ideia de justiça. Além dos significados que envolvem aqueles

princípios, há o caráter de justo implicando em um sentido ético de bom, além dos

aspectos de legal das normas. Todos esses elementos são fundamentais para constituir e

sustentar a ideia de justiça.

55 Op. cit., O justo 1, p.76. 56 Idem p.75 a 77.

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1.2. A lei e a moral

Com já visto, a prática da justiça e seus princípios não são objetos novos à

filosofia. Também já é sabido que, para Ricoeur, a tradição histórica tem mostrado que

a ideia de justiça já esteve presente na antiguidade, como, por exemplo, em Aristóteles,

nas tragicidades dos poetas gregos e nos diálogos da República em Platão. Entretanto,

para nosso filósofo, é em Aristóteles que podemos ver a questão da igualdade se

expressando moralmente pela justiça. Na ideia de justiça aristotélica, a condição

humana tende ao justo e seu compromisso ético é saber incluir-se como igual na vida

política da polis. Nesse aspecto, o indivíduo em sua condição política tem de empenhar-

se para ser virtuoso, em particular, sendo capaz de manter uma justiça que seja

reparadora e corretiva (diothôsis). No que concerne a essa ideia de justiça, Ricoeur

ressalta que em Kant essa questão foi também abordada e está vinculada ao direito. Em

Kant, a justiça tem no princípio de igualdade um vinculo com o conceito de liberdade

que, por sua vez, está atrelado aos conceitos de dever ou de obrigação moral. 57

Ricoeur considera que essa ideia de justiça mantida em sua forma processual

abstrata é supostamente legítima e sem grandes problemas; no entanto, quando se tentou

aplicar este princípio de igualdade, na prática da justiça, a fim de estabelecer-se uma lei

que pudesse reger as distribuições às liberdades pessoais e as partilhas de bens,

apareceram os obstáculos. Os problemas apresentaram-se, mais especificamente, na

dimensão das relações interpessoais e sociais. Para o autor, neste âmbito das relações se

misturam dois planos diferentes dando ao princípio de igualdade uma conotação

confusa. As duas dimensões que se confundem são: a do político e a da economia.

Convém relembrar, todavia, que o campo das relações interpessoais constitui-se

parte do espaço público social. Este existe como sistema de distribuição o qual é uma

instituição de repartição estreitamente ligada aos dois níveis citados acima. Da

passagem da ideia de justiça como princípio de igualdade para o entendimento no plano

das relações interpessoais misturam-se o político e a economia; e assim, em relação à

justiça de distribuição, em primeiro lugar, o que passa a ser reconhecido é o sentido de

injusto, depois o sentido de desigualdade. Nesse ponto, a justiça é chamada a decidir

quando o indivíduo considera que na questão da distribuição, a sua parte na partilha foi

injusta, pois foi desigual. A justiça, para o reivindicante, tem o papel de atribuir a cada

um a sua justa parte. Contudo, para que a justiça institucional possa exercer o seu papel

57 Op.Cit. Leituras 1- Em Torno ao Político, pp. 90,91.

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de mediadora, terá que ter em mãos, não só a formalidade da lei, mas as condições para

estabelecer valores morais. É nesse sentido que para Ricoeur uma teoria puramente

processual da justiça dificultaria as decisões de mediação em julgamento de situações

conflituais de interesses ou de direito.

No plano da prática de justiça as reivindicações existentes por algum tipo de

interesse em conflito, somente serão satisfeitas se estiverem justificadas pela estrutura

da lei.58 Ricoeur considera que a lei seria a restauradora do direito dando respaldo às

vítimas. O respaldo acontece mediante a estrutura do processo, na instância judicial, as

questões de justiça se desenrolam, na instância política do Estado de direito, num jogo

em que aplica os recursos da lei para julgar e estabelecer a pena a quem deve por

direito59.

Na esfera do agir humano, essa formalidade ultrapassa o limite da dimensão da

lei e tornam-se uma questão moral. Nesse sentido, as regras da justiça seja ela

considerada natural ou convencional são igualmente variáveis de modo que não são

absolutas; essas variáveis das regras da justiça que são ordenadas pelo homem são

conduzidas não somente tendo um ponto de vista deontológico, mas também uma

concepção teleológica. Cabe-nos considerar que para Aristóteles “a justiça política era

exercida sempre entre pessoas livres e iguais, cuja vivência em comum tinha como

finalidade de poder satisfazer suas necessidades. Essa espécie de justiça restringia-se

“entre as pessoas cujas relações mútuas são reguladas pela lei e esta existe no seio

daqueles entre os quais há uma possibilidade de injustiça.”60 Entre os quais há

possibilidade de poder escolher agir voluntariamente de modo justo ou injusto.

Na concepção aristotélica “a justiça é um bem do outro”; contudo, parece-nos

que a justiça necessita de um sentido moral em que haja um reconhecimento mútuo e

proporcional da igualdade de um e do outro. Ricoeur salienta que nessa regra de

distribuição há uma repartição feita no face a face, sem exigir a mediação de um terceiro

elemento. Ela aparece na relação da amizade, já que esta última tem um sentido que

iguala os indivíduos. Na relação de amizade, as regras de distribuição deixam de ser um

dever e passam a se constituir um tratado de virtudes cuja finalidade seria manter uma

vida boa entre os amigos. Um primeiro problema para uma ideia de justiça vinculada ao

sentido da amizade é que moralmente ela tem um traço limitado, em virtude dela se

58 ROSS, ALF. Direito e Justiça, trad. Edson Bini, 2a. Edição Edipro – São Paulo, p.325. 59 Op. cit., O justo 2, p. 184. 60 Ibid, p. 151

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consolidar apenas entre pares que se definem iguais diante dos valores morais. Outro

obstáculo situa-se na complexidade da instituição social, esse sistema não tem a

preocupação de manter a amizade entre indivíduos. A instituição dispõe da lei e de

diferentes normas a fim de prescrever aos indivíduos os deveres e direitos que possam

mantê-los dentro de uma conduta que inclua os valores sociais. Assim, nos momentos

normativos da lei a tarefa jurídica é tomar uma decisão imparcial a fim de tentar

encontrar uma solução correta para os conflitos de interesses. 61

Anteriormente comentamos que a justiça aristotélica situa-se sob o signo da lei e

da moral do bem. Essa ideia foi elaborada por Aristóteles tendo em vista que a justiça é

um dos bens humanos mais excelentes. Para distinguir os bens partilháveis daqueles que

não são possíveis de partilhar como se fossem objetos exteriores, Ricoeur formula uma

questão. Ele quer saber se sendo justiça um bem humano, então qual seria esse tipo de

bem humano que se constitui a justiça. Para responder a questão, ele, elenca os bens que

são considerados motivos de felicidade e prazer para se viver uma vida boa e justa em

sociedade. Já é sabido que o princípio de igualdade é um bem na concepção de justiça.

Para Aristóteles toda sociedade instituída requer um sentido de justiça equitativa a fim

de repartir, partilhar ou distribuir. O modo que essa distribuição é feita sem que haja

injustiça se define pelo frágil equilíbrio que estabelece a mediania entre o excesso e a

falta. A instituição exerce o papel de termo médio entre os dois extremos em razão de

portar em si um traço que corresponde ao ponto de vista da lei, além da moral62.

De acordo com Nussbaum, na tradição aristotélica o ser humano é um ser

político e a pólis é um elemento indispensável à vida. Os interesses políticos são

considerados partes do que se é enquanto ser humano. Nesse aspecto, a vida humana

não é compreendida quando a pessoa vive uma vida solitária, já que a solidão carece de

um bem ético que consiste na eudaimonia. Essa virtude é um bem humano que seria

incompleto se fizesse uma oposição à vida política63. O homem é um ser de natureza

política de modo que a sua vida pretendida boa seria frustrada se não fosse

compartilhada com os outros. A vida humana é examinada, por Aristóteles, tendo por

consideração a participação da pólis nas escolhas de cada um. Nussbaum lembra-nos

que a pólis grega organizava-se sob um regime democrático que excluía os estrangeiros,

as mulheres e os escravos. Aristóteles é um estrangeiro, em Atenas, e apesar de sê-lo,

61 Op. cit. Leituras 1- Em torno ao Político, p.92. 62 Op. cit., L1, p 92. 63 NUSSBAUM. Martha C., A fragilidade da bondade, trad. Ana Aguiar Cotrim, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2009, 1ª. Edição, 305.

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segundo a autora, é capaz de poder viver uma vida humana plena e boa, para o filósofo

antigo, não é necessário para se viver bem que se tenha, por exemplo, um posto político;

é possível viver bem politicamente agindo de modo justo e bom.64

Nessa tradição em que a vida se constitui de interesses sociais e políticos. O agir

humano consiste em agir politicamente. Porém, esse agir é por excelência um modo do

ser humano se relacionar com o outro. A filósofa assevera que na visão aristotélica a

vida não seria conveniente para nós; e seríamos seres frustrados e apartados de uma

parte do que somos se não tivéssemos o agir político como um fim em si mesmo e como

um componente da eudaimonia humana.65

Por eudaimonia, Aristóteles entende que é um estado de satisfação que se

apresenta por certa atividade da alma, realizada em conformidade com a virtude. 66

Essa atividade, segundo Nussbaum, é constituída, em Aristóteles, por um sentido

de ações justas e boas. As ações, da pessoa, encontram-se justas mesmo em situações de

risco, em que as circunstâncias são vulneráveis a privação e desgraças. A noção de justo

requer um sentido de bom cuja postura pessoal consiste em ser flexível diante dos

reveses circunstanciais. Essa flexibilidade é uma atitude equilibrada que possibilita à

pessoa uma reflexão ética para poder fazer as próprias escolhas a fim de que sejam

feitas com base em uma sabedoria prática que mostrará um modo de bem agir. Essa

postura ética é maleável e aberta com relação ao mundo. Nesse aspecto, ela confere, de

acordo com a filósofa, um sentido de fragilidade. Essa concepção ética de bem viver é

frágil porque as contingências relativas ao mundo são vulneráveis ao risco de não se

obter para si a boa vida.67

A natureza da eudaimonia e da bondade, para Aristóteles é constituída também

pela fragilidade da vida, na qual se inclui a falta, o risco, a necessidade e a limitação.

Essas fragilidades não diminuem a eudaimonia; elas realçam a estrutura dessa virtude

cuja busca para si é a vida boa que nada mais é do que a busca por uma vida humana

sob o pólo dos valores morais. Essas coisas boas se sintetizam nas experiências do

“viver junto” sob a égide da vida ética e política. Nussbaum acrescenta que para

Aristóteles o viver junto provém de um projeto ético em que se compartilham as

atividades tornando-as mais agradáveis. Essa ideia infere nesse contexto ético um

64 Idem, p. 304. 65 Ibid, p. 306. 66 Op. cit., Ética a Nicômaco - a eudaimonia é um bem supremo que é estabelecido como conduta de vida que necessariamente é uma vida em sociedade na Pólis. 67 Op. cit., A fragilidade da bondade, p. 296.

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sentido de philia cujo sentido tem um valor instrumental que pode contribuir para

qualquer coisa que se deseja fazer em conjunto. A ideia ética, de Aristóteles, para viver

junto um bem viver está sustentada no caráter da philia, já que ela colabora para que o

trabalho em conjunto com os outros possa se tornar mais agradável. A autora assevera

que na quando Aristóteles recorre ao sentido de prazer para valorizar o trabalho em

conjunto “com outros”, isto é, lado a lado; o filósofo está, para a autora, “pensando

também na maneira como um tipo de conversação, um compartilhar das partes do

trabalho, faz dele um trabalho “para outros”, em que a mutualidade e o prazer da relação

pessoal que se inserem profundamente no trabalho.68”

Paul Ricoeur considera que na ética nicomaquéia a justiça é definida pelo “frágil

equilíbrio” da ideia de equidade que estabelece um sentido de reparação ao

desequilíbrio que existe entre a falta e o excesso. O filósofo francês entende que a

justiça aristotélica no sentido de igualdade rege a distribuição de todos os bens. A

questão para Ricoeur é que se o sentido de distribuição se refere ao sentido de partilha

de repartição e se pode repartir qualquer bem; então é válido distribuírem-se

igualmente, na sociedade, as tarefas, as vantagens, as desvantagens, as honras e

encargos? Ele compreende que, nesse sentido, “a idéia de justiça exigiria que se partisse

da imagem de uma sociedade caracterizada não só por um querer “viver junto”, um voto

de cooperação, mas por regras de repartição”.69

O autor destaca duas consequências na idéia de sociedade situada pelo sistema

de distribuição. A primeira consequência dessa ideia consiste em instituir-se uma justiça

institucional que se possam distribuir os papeis sociais, nesse aspecto, o sentido de

philia aristotélico não se encaixa, já que a amizade se dá no face a face, ela é pessoal e

não necessita da mediação das instituições. Ricoeur considera que a amizade acontece

entre duas pessoas próximas entre si, já a justiça é uma distribuição para cada pessoa,

essa partilha para ser justa precisa de ser mediada por um terceiro elemento. O segundo

resultado desse tipo de sociedade consiste em um conceito de distribuição estreitamente

vinculado a idéia de justiça institucional enquanto regulação de distribuição

proporcional para manter a relação social. Essa regra de distribuição institucional

somente permanece enquanto houver uma participação social por parte dos indivíduos.

O sentido de justiça como distribuição aparece sob duas concepções a

deontológica e a teleológica. A primeira opera essa idéia de justiça pelo viés do legal, a

68 Op. cit., A fragilidade da bondade, p 317 69 Op. cit., L1, pp. 92, 93.

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outra concebe o sentido de justiça pela idéia da bondade. Ricoeur chama-nos a atenção

para o sentido de proporcionalidade, já que repartir por proporção exige uma idéia de

“partilha aritmética”. Nosso filósofo compreende que Aristóteles já havia notado que a

idéia de partilhas desiguais são obstáculos para a aplicação prática eficaz de uma idéia

de justiça. Para Paul Ricoeur somente é viável uma idéia de partilha igualitária

aritmética aquilo que os medievais consideraram por igualdade proporcional. Nesse

sentido, eles salvam uma idéia de isotés, de cujas relações apresentam-se duas pessoas e

duas partes, para um sentido de justiça distributiva. Para os medievais a justiça é

proporcional quando na teoria das proporções matemáticas, a igualdade se dá entre

relações de indivíduos, por exemplo, a relação entre a contribuição de tal indivíduo e tal

parte, e a relação entre contribuição de outro indivíduo e outra parte.

Em relação ao pólo da lei, a mais elementar, segundo Ricoeur, consiste em uma

obediência ao dever. Nesse aspecto, o dever é uma obrigação moral que cumpre o que

se é prescrito pela razão para definir o que é um bem ou um mal. Esse nível da lei

realiza-se pela reflexão moral. A análise da lei é estabelecida, no espaço moral, tendo

como correspondência o desejo de uma intenção ética que estabelece para si um sentido

de vida boa com e para os outros em instituições justas. A intenção de vida boa tem um

elo comum com a norma jurídica cuja função estruturadora é caracterizada no legal. O

ordinário da lei consiste basicamente em proibir as ações consideradas em desacordo

com o sentido legal da lei. Para impor-se a lei é preciso que haja uma pretensão de

universalidade para a norma.

Ricoeur no ensaio “A filosofia Política de Éric Weil” (1957) assevera que a

moral é o ponto de partida da filosofia política.70 O filósofo entende que na questão da

filosofia política, a moral tem sido motivo de muitas querelas entre os pensadores.

Contudo, para ele, a moral tem sido encarada apenas sob a perspectiva da formalidade e

uma moral formal e abstrata pode tornar-se negativa por falta de conteúdo. Ricoeur

assevera que as regras do direito exigem que o direito seja positivo a fim de poder reger

as regras das relações práticas. A crítica em relação à moral formal é que ela não é

conveniente para a lei se apoiar, já que se trata de algo abstrato e negativo. Do ponto de

vista da filosofia política, a moral é insuficiente para preencher as próprias exigências

que estabelecem a prática de convivência de uma comunidade histórica, já que segundo

Ricoeur “ela aponta o fim sem indicar o caminho”71.

70 Idem, p.40. 71 Ibid, pp. 40 e 41.

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A moral, no contexto político, é o espaço em que aparecem os aspectos da

norma e respectivamente o da lei. As leis regentes de um Estado de direito das cidades,

dos países ou das nações, são concebidas levando em consideração os princípios de

justiça e os conceitos, por exemplo, o sentido de igualdade e da liberdade. Para Ricoeur,

esses conceitos não são concretos e somente podem ser atestados por meio da

consciência e não por um contrato. Os contratos que especificam a questão da igualdade

ou de liberdade são apenas ficção; segundo o filósofo, essa questão iguala-se a uma

concepção de dever ou obrigação de justiça em relação ao princípio moral da autonomia

que nada mais é do que a liberdade de pensar kantiana.

Em relação à moral, segundo Kant a liberdade de falar ou de escrever pode ser

tirada por uma coação civil, contudo a liberdade de pensar não pode ser tirada por um

poder exterior, nesse sentido a pessoa é livre e deve moralmente ser considerada como

fim em si mesmo. Já que ela não precisa se submeter a qualquer lei senão a que dá si

própria.72

Ricoeur assevera que as leis aplicadas ao senso de justiça somente se firmaram

no território institucional como um dever porque houve uma união com a tradição

contratualista. No entanto, num primeiro momento, as leis são assentadas em um

sentido de bom e de legal, depois se mostram diametralmente opostas. Em linguagem

culta, o “bom” procede da concepção teleológica, situando-se em um ponto de vista de

finalidade e o “legal de um sentido deontológico da vida moral e política considerada

em geral”.73

A justiça situada sob o signo do “bem” se expressa como uma das virtudes

gregas sob o signo da palavra areté.74 A justiça pelo sentido de virtude pode ser

considerada, por exemplo, por prudência, pela temperança ou pelo sentido de coragem.

Qualquer uma dessas seria evocar as mesmas virtudes cardeais que foram consideradas

pelos filósofos do período medieval. Nesse aspecto, a ideia de justiça como virtude,

moralmente, colabora para orientar nossas ações no sentido de cumpri-las sob um tipo

de perfeição; simbolizando mais ou menos a acepção popular de felicidade. Para

Ricoeur, o caráter teleológico vincula-se a intenção de uma “vida boa”, conferindo uma

virtude particular à justiça.

72 KANT, Immanuel, 2005, ed. Vozes, Textos Seletos - O que significa orientar-se pelo pensamento? P.59. 73 Op. Cit. L1, 161. 74 Idem. p. 91 – a palavra areté pode, segundo Ricoeur, ser traduzida por excelência termo que Cícero, Sêneca e marco Aurélio traduziram por “virtus”

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O filósofo considera que “viver bem” é o télos dessa intenção ética, contudo

nessa concepção há simultaneamente dois caracteres contrastantes: por um lado, a ação

da pessoa conferindo um significado e uma direção dessa intenção que é dado a

entender pela palavra “sentido”; por outro lado, o sentido de “bom” e de “bem” sendo

atingidos por uma incerteza perturbadora, já que não há nenhum consenso universal e

unívoco fazendo que o sentido de “bem” tenha uma significação vinculada ao predicado

“bom”. Sem um consenso para estes dois sentidos, procurou-se tê-los unicamente por

referência ao bem humano. No entanto, o autor se questiona sobre qual bem humano.

Para ele, sempre existiram debates concernente a essa questão estendendo-a à relação

entre prazer e felicidade e entre a vida ativa e a meditativa.

Entretanto, autor assevera que a concepção teleológica da justiça se constitui um

tópico a parte nos tratados de virtudes, não se restringindo, assim, a essa conjetura

trivial. Ricoeur considera que a justiça tem um traço particular que conduz uma

perspectiva teleológica a uma deontológica. Nesse caso, o traço referido é um

“formalismo imperfeito” que é diferente de um “formalismo realizado encontrado nas

concepções modernas puramente processuais”. Para Ricoeur, esse formalismo

imperfeito foi conduzido a uma linha de pensamentos cujas teorias requisitavam um

sentido de justiça que designasse um formalismo perfeito; isto é, por um formalismo

puramente processual da justiça. 75

Para o filósofo essa passagem rompe o vínculo da ideia da justiça com a ideia

de bem, em particular com a ideia de vida boa. Ele compreende que foi sob o impulso

da filosofia de Kant que a teoria da justiça recebeu uma concepção moral deontológica.

Esta concepção resume todas as relações morais, jurídicas e políticas a uma ideia de

legalidade, de conformidade com a lei. O problema, segundo o autor, é que nessa visão

ortodoxa somente merece o nome de “leis” os arranjos jurídicos derivados de um

imperativo soberano inteiramente constituído a priori. De acordo com Ricoeur, a

fórmula kantiana que diz: “Age de tal modo que trates a humanidade na tua pessoa ou

na de outro não apenas como meio, mas sempre também como um fim” cujo sentido

procede de um conhecimento puramente formal e racional; independente da experiência

passa a ser concebido por como um positivismo jurídico controlado pelas instâncias

legislativas empíricas historicamente constituídas.76

75 Op. Cit.; L1, p.95 76 Idem, p. 96

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O formalismo, considerado completo, não abre nenhum espaço para um ponto de

vista teleológico, nem para a ideia de bem. Todavia, a ideia de justiça pela perspectiva

deontológica, para o filósofo, requisita, no campo institucional, que se aplique a ideia de

justiça tendo por perspectiva um sentido contratual baseado na ficção. Ricoeur assevera

que a tradição contratualista utilizou-se dos pressupostos fictícios para constituir os

contratos sociais que estabelecem, por deliberação, um Estado de direito. Para o autor,

essa concepção contratual tem por objetivo e função separar o justo do bom,

modificando o processo de uma decisão fantasiosa a todo compromisso precedente

relativamente a um hipotético bem comum. De acordo com essa conjectura, é o

procedimento contratual que por suposição concebe o princípio ou princípios de justiça.

Para o filósofo é possível dizer que o contrato apodera-se no plano das instituições o

lugar que a autonomia exerce no plano fundamental da moralidade. No entanto, em

contraste com a autonomia do indivíduo, liberdade que se pode chamar de “fato de

razão” e podendo ser atestada pela consciência individual, a autonomia do contrato se

dá por liberdade atestada ficticiamente. De acordo com o autor, a ficção que fundamenta

o contrato precisa ser refundada constantemente, permanecendo assim, “para igualar

uma concepção deontológica de justiça ao princípio moral da autonomia e da pessoa

como um fim”.77

Uma ideia de justiça contemporânea cujos princípios fundamentam-se em uma

questão ficcional é a Teoria da Justiça de Rawls. Essa ideia de justiça pressupõe que

cada membro social abandone a sua liberdade primitiva em favor de uma forma de

liberdade civil que o coloque como membro de uma república. Para Ricoeur, essas

formas contratuais já foram formuladas tanto em Rousseau com em Kant, tornou-se um

problema não resolvido. Rawls tenta solucionar essa questão com a sua teoria da

Justiça, porém, seu projeto acaba do mesmo modo que as dos outro, isto é, embasando-

se em uma ideia contratual fictícia.78

Ricoeur considera que embora a concepção de liberdade de Rawls tenha uma

visão puramente processual da justiça, não considerando os pressupostos da moral e

isentando-se de qualquer ideia de bem; ela é melhor do que a teoria de Kant; pois não

permite que de um princípio tão abstrato quanto o respeito da pessoa humana se possa

derivar de um conjunto pronunciado de leis.

77 Ibid, p. 97 78 Op. Cit. L 1, p.101, 102

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O filósofo francês assevera que reteve da teoria de Rawls uma contribuição que

possibilitará solucionar o problema citado. Grosso modo, para ele, se os princípios de

justiça puderem ser considerados também por uma perspectiva que possa ser

desdobrada como recurso pelo campo do irreal assim como é feita no campo do real

seria possível, então, retomar a ideia de bem a destinando a essa concepção de justiça.

Ricoeur destaca três pontos fortes do argumento de Rawls: primeiramente o princípio de

distribuição, a justiça enquanto distributiva estende-se a toda espécie de vantagens

suscetíveis a serem partilhadas. O filósofo considera que Rawls não põe acento nas

próprias coisas a serem partilhadas, já que isso seria semelhante a reintroduzir a questão

teleológica do “bem”. No entanto, na medida em que a sociedade se deixa apreender

como sistema de distribuição, a partilha que num contexto social complexo se mostra

desigual acaba por requerer um consenso que permita arbitrar entre reivindicações

antagonistas. Esse consenso, portanto, relativo aos processos de reivindicações é um

fenômeno consensual-conflitivo consagrado à ideia da justiça distributiva.79

O segundo ponto que o filósofo considerado forte na teoria de Rawls trata-se do

primeiro princípio igualitário assegura a igualdade de todos os cidadãos diante da lei.

De acordo com o autor, esse princípio que formaliza as conquistas de liberdade é de

modo mais amplo a vitória moderna da isotés de Sólon. Para Ricoeur, ter-se-ia de

prestar atenção ao desdobramento evocado pelos sentidos de inclusão e exclusão que

são partes extensivas ao plano da igualdade de cidadania. Segundo o filósofo o

primeiro princípio de igualdade precisa prioritariamente ser satisfeito, sem que a regra

de partilhas desiguais possa infringir a igualdade perante a lei.

Dos dois princípios de justiça de Rawls, esse segundo e último é o responsável

pela solução do problema das partilhas desiguais. Esse princípio, segundo Ricoeur, é o

terceiro ponto mais capital e contestável dessa teoria da justiça. Este princípio de justiça

afirma que entre todas as partilhas desiguais, existe uma que é mais justa do que todas

as outras. Essa regra de partilha assevera que todo aumento de vantagem para os mais

favorecidos diminui a desvantagem dos menos favorecidos. Essa fórmula de Rawls, de

acordo com o nosso autor, pretende maximizar a parte mínima. Para ele, o fundamental

79 Idem pp. 101, 102. Em relação ao princípio de distribuição há a expressão “equilíbrio refletido” e “convicções bem ponderadas”. Ricoeur assevera que não compreendeu de que forma a fórmula de Rawls “maxmin” contribui para um equilíbrio refletido, além disso, parece haver uma circularidade no argumento quando esse autor diz que o equilíbrio refletido é alcançado com as convicções bem ponderadas. Em relação a essa última expressão, ele diz que “é o epíteto bem ponderas é que deve ser sublinhada. [...] “que quer dizer “bem ponderadas” senão “submetida a critica do outro? [...] Isso significa confiar na racionalidade do outro, pondo-se no lugar do outro. Para Ricoeur sem a confiança não haveria apoio para a fábula contratual. p.140, 141.

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dessa ideia é que ela estabelece um ponto de equilíbrio e vantagem maior em relação às

desigualdades mais ostensivas. Essa teoria da justiça procedimental de Rawls com base

em um princípio de igualdade ambíguo dá acesso para que se articulem e organize

econômica e socialmente os dois princípios, dos quais um é igualitário e o outro não.

Ricoeur levanta uma questão; para ele é preciso saber até que ponto esses dois

princípios de justiça, principalmente esse último, podem exercer o papel de ideia diretriz

em relação à prática social de justiça.

Para o filósofo, portanto, é graças a uma “ficção de um contrato social” que

superamos uma natureza supostamente primitiva para ter acesso a um modo de viver em

cidades. Nelas aparece o Estado de direito que se dá mediante as leis que regem a

liberdade e a igualdade de cada cidadão. A forma de liberdade e igualdade perante a lei

é imposta como direito civil que diz respeito a cada membro de uma república. Infringir

os direitos do outro, ferindo a lei de liberdade ou de igualdade pode dar origem a um

processo judiciário cuja pena ou punição dever ser estabelecida pelos canais de justiça

institucionais.

Em síntese podemos dizer que a justiça institucional teve que se despir de seu

caráter divino para revestir-se de um valor positivo. Politicamente é o Estado que

estabelece as leis em benefício das em relações sociais. De acordo com Ricoeur, esse

movimento da justiça de romper com o sentido sagrado da lei mantendo a lei apenas sob

o teor institucional do governo determinou-se o caráter social da obrigação moral. Essas

mudanças da lei transformaram as atitudes das pessoas, de maneira radical. As normas

morais deixam de ser respeitadas pela imposição da igreja. Elas acendem a um status

em que são cumpridas e respeitas de acordo com a própria convicção e a

obrigatoriedade da lei, agora, imposta como ajuste político e social80.

Paul Ricoeur considera que no contexto da prática da justiça, a lei e a moral

aparecem como exigências de uma dinâmica social. A justiça processual permite que se

arbitrem quando há reivindicações concorrentes. Os problemas marcados pelas

oposições de idéias em conflitos requerem uma contribuição forte do direito positivo,

em seu papel primeiro, de sancionar e punir que se desenvolveu o plano institucional.

As instituições são desenvolvidas para que as suas estruturas permitam que a justiça

possa realizar-se por meio da aplicação das leis. Assim, cabe a instituição jurídica

estabelecer as leis e as normas a fim de possibilitar as relações humanas em sociedade

80 Op. cit., L1, p. 90

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segundo três características do legal: primeiro pela função estruturadora implicando nos

imperativos negativos de proibição, por exemplo; não matar, não roubar etc.; em

segundo lugar elaborar a lei tendo por pretensão a universalidade, isto é, uma exigência

de legitimidade e validade para a regra básica. Em terceiro lugar, a lei tem que ser

composta respeitando o elo entre a norma e a pluralidade humana. Enfim, da legalidade

à lei existem as esferas cujos papeis estruturam, dão validades universais e organizam a

questão da pluralidade humana.

1.3. Infração e punição

Precisamos lembrar que, para o autor, o espaço político é o lugar em que ocorre

a prática da justiça. Nesse sentido, o político é a dimensão em que se constituem as

experiências humanas em sociedade e é nesse espaço público que os conflitos se

apresentam. Os motivos que dão origem as divergências são os mais diversos, por

exemplo, as oposições de ideias, de convicções ou opiniões contrárias, ainda que

pertençam ao espaço da política, os conflitos são partes das experiências humanas.

Nesse espaço político, se trava a luta pelo exercício do poder, pela posse de bens etc.;

porém, é no campo das experiências que se é marcado pelas sanções ou punições das

infrações cometidas. Desse modo, as ações se definem no plano das experiências,

contudo, as conseqüências são avaliadas como um ato de infração e sentenciado em uma

punição pelo plano institucional de uma comunidade histórica.

Em relação às infrações, Ricoeur considera que, às vezes, a pessoa age sem ter a

compreensão de que a ação de sua autoria produz mudança. O indivíduo desconhece,

muitas vezes, que ao criar relatos para a sociedade em que se vive ele está indiretamente

produzindo valores e crenças. Além disso, pode ocorrer que mesmo sendo capaz de

interpretar e construir os fatos passados, não consegue dar conta de que está construindo

a sua própria história e o faz a partir de suas reflexões, ainda que feitas por

transposições anacrônicas dos conceitos de outras épocas. O ser humano quando relata

os acontecimentos; articula suas idéias, mesmo que essa articulação seja desconexa e

fragmentária, ainda assim, ele retira suas ponderações de um fato histórico. É desse

modo, por exemplo, que reconstruímos no cotidiano a ideia de justiça. Possivelmente

desse deslocamento da ação para a palavra concebemos uma ideia de justiça, talvez se

tenha caracterizado primeiramente pelo aspecto narrativo da queixa. O modo da queixa

é na visão de Ricoeur duplamente reflexivo. De um lado, é a maneira mais perspicaz de

penetrarmos o sentido da justiça pelo injusto. Nas relações humanas, o modo da queixa

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é a externalização dos nossos sentimentos; verbalizamos quando sofremos uma

injustiça, nesse aspecto, a queixa é uma maneira de dizer ao outro que houve um ato

injusto causando sofrimento.81

No espaço público a justiça é concebida enquanto princípios do direito positivo;

é pensada a partir da necessidade das questões legais e não do sentido de “bom”.

Cabendo as leis organizarem-se tendo em vista a justificativa para o direito de punição

por infração. Nesse sentido, a lei, apesar de formal, aparece como um princípio prático

para atender as normas relevantes às ordens jurídicas. Ela está fechada no direito

positivo baseando-se apenas na experiência das coexistências de liberdades. A justiça

enquanto prática social é pensa e organiza as normas e regras para coibir e estabelecer

as punições às infrações em caso de uma transgressão da lei. Nesse aspecto a lei é um

instrumento político e não moral, tendo por função punir quem infringiu as normas

estabelecidas, a pena será imposta na sentença final do processo. As infrações podem

ser motivadas pelo não cumprimento da lei, ou porque uma ação tenha causado prejuízo

a alguém, a sociedade ou a cidade.

Ricoeur considera que a lei é puramente procedimental, não havendo escolha de

fato, existindo somente a obrigação. O indivíduo, enquanto cidadão é obrigado a

cumprir a lei a qual está submetido, caso a desrespeite será punido; nesse sentido,

adotam-se as formas de restrições a fim de incluir e manter os direitos de cada um.

Consequentemente cumpre-se à lei a fim de evitar a punição. A questão do justo insere-

se nessa ideia apenas pelo sentido moral de legal, no sentido de regulador da justiça82.

Para o filósofo é possível agregar a essa ideia reguladora em conformidade com a lei,

outra ideia que possa se mostrar como significado de bom a uma distribuição de

sentença que possa ser justa, assim como a reparação.

Em relação às normas morais há duas circunstâncias que precisam ser pensadas:

a primeira trata-se da possibilidade do sentido de justiça ser concebido sem a conotação

de moralidade. Nesse sentido, é possível desvincular o valor moral de culpa do sentido

de responsabilidade no plano da jurisprudência. A segunda circunstância é a

possibilidade de se pensar o sentido de justiça sem traduzi-lo simplesmente pela

manutenção das normas e das relações humanas. Para se pensar o conceito de justiça,

por esse viés, introduzem-se as questões simbólicas da linguagem. Segundo o filósofo,

81 Idem p. 90. 82 RICOEUR, P. Le juste, la justice et son échec, France. Ed.L’Herne, 2005 , p.15

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até o momento isso não foi feito. Caso pudesse ser feito, então seria possível perceber

que a abrangência do sentido de culpa e da responsabilidade no plano da justiça tem um

contexto maior do que o da ordem e da lei.

Recordamos que as questões de justiça também abrangem as significações

simbólicas da linguagem, por exemplo, na forma dos processos, dos argumentos e das

atividades sentenciais. Estas atividades comunicativas da justiça permitem submeter à

dinâmica processual as sentenças devidas para as punições das infrações. Nesses

processos, as ações de infrações sofrem avaliações que conferem significações

“plausíveis e dignas de ser consideradas”. O julgamento desses tipos de ações tende a

considerá-las conforme o prejuízo ou sofrimento causado. Nesse sentido, o tribunal em

seu exercício de julgar delibera sobre a ação, tentado um acordo de reparação ou de

indenização aos efeitos nocivos das ações. Em casos graves que não tenha um modo de

amenizar os prejuízos, estabelecendo-se as penas ou punições.

Em suma, perante a lei as infrações são punidas, pela aplicação de uma pena;

cabendo ao responsável da ação cometida à obrigação de submeter-se à pena, ainda que

por coação. A instância jurídica é o elemento singular, em que se pressupõe uma

neutralidade para julgar e adequar os processos jurídicos às sentenças. Nesse âmbito o

juiz é a figura que se destaca. Segundo Ricoeur, ele será o terceiro elemento entre dois

reivindicantes de direitos iguais. O magistrado representa o elemento neutro capaz dar

o distanciamento justo do caso para emitir uma sentença. Para o nosso autor, não basta,

porém, o juiz dar o veredito à sentença segundo a lei, cada caso exige dele uma

sabedoria moral adquirida na prática de suas experiências. Além disso, esse mediador,

na prática da justiça, terá ao seu alcance um aparato processual que inclui os advogados,

promotores e júris. Além do mais, dependendo da circunstância judicial haverá a força

policial para impor a ordem e fazer cumprir o acordo entre as duas partes reivindicantes;

cabe ainda a essa força policial impor o cumprimento das sentenças e das punições do

responsável pela infração.

Por contraste, as relações cotidianas não podem impor sanções legais; no

máximo podem-se impor sanções morais uns aos outros. Ricoeur assevera que em

relação às sanções pessoais temos as seguintes tendências: primeiro de advertir o

oponente; em caso de não entendimento, a outra tendência é afastar a pessoa do nosso

convívio pessoal. Quando as experiências de justiça saem dos limites do cotidiano em

caso de infração grave, as punições deixam as fronteiras pessoais e estende-se para o

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âmbito da justiça institucional. O plano superior da justiça é o espaço que tem a

capacidade técnica para resolver os pedidos de socorro daquele que reclama por justiça.

Nesse espaço público tenta-se diminuir a gravidade do conflito provocado por

desacordos nas situações cotidianas. Para Ricoeur os desacordos podem aparecer de

diversos modos, por exemplo, quando há divisões desiguais ou retribuições

desproporcionais, outra forma de conflito aparece quando existem elogios imerecidos,

promessas traídas, os supostos furtos ou quando se tem as convicções desrespeitadas.

Estas situações na vida cotidiana mostram-se, por vezes, contingencialmente, no

entanto, são esses aspectos contingenciais que, geralmente, dão margens aos mais

diversos conflitos. Alguns são solucionados sem o auxílio do canal de justiça outros,

entretanto, recorrem-se às instituições judiciárias, com base na confiança, para resolver

os impasses.

1.4. A violência e a vingança

a) Violência e Coerção do Estado

Segundo Ricoeur, tanto às relações interpessoais quanto à prática jurídica a

questão da confiança é muito importante. Há implicitamente uma promessa do Estado

de direito governamental de que a instituição jurídica exercerá um poder para promover

a justiça com equidade para todos os cidadãos. Quando ela é rompida a confiança nas

relações sociais ou jurídicas torna-se vulneráveis a todo tipo de violência. Na prática

jurídica essa confiança pode ruir se o argumento da justiça tornar-se frágil ao ponto de

deixar que a injustiça transpareça. A falta de confiança na justiça pode ser motivada por

um sentimento de lamento daquele que se vê injustiçado. Nesse aspecto a lamentação

aparece primeiramente “no grito” – que injustiça! Essa exclamação, segundo Ricoeur,

é um clamor que se exprime na falta do sentido de justiça. Esse grito é considerado

autentico quando as motivações por reivindicações de direito for um sentimento

autêntico de injustiça. Essa reivindicação pode não ser autêntica se a pessoa

reivindicante se mantiver irredutível às próprias convicções. Para Ricoeur se “o grito”

for autentico; então, merece o nosso respeito e deve ser ouvido, a fim de se tentar

encontrar uma solução justa para aquele que se vê injustiçado.

As relações interpessoais, no espaço institucional, ficam algumas vezes

fragilizadas, principalmente quando as pessoas se sentem desrespeitadas em seus

direitos. Algumas vezes elas tentam resolver o conflito existente sem o auxílio dos

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canais de justiça, em muitos casos sem nenhuma reflexão ou ponderação ocorre tal grau

de violência que acaba em uma situação trágica. Essas soluções não ponderadas e

irrefletidas, na maioria das vezes, agravam os problemas ao invés de resolvê-lo. Ricoeur

considera que quando estamos imbuídos do sentimento de injustiça, tornamo-nos menos

prudentes para solucionar os conflitos existentes. Nesse caso, não conseguimos resolver

o conflito porque não sabemos nos distanciar do problema para tentar encontrar uma

solução que seja justa para ambas as partes. Em caso de conflito entre pessoas em que

não há a distancia da justa medida para se estabelecer um consenso, então se necessitará

das vias da justiça; pois, sem que haja um terceiro elemento para intermediar ou

apaziguar as duas partes em conflitos, provavelmente uma das partes poderá infringir as

normas de conduta social valendo-se da violência para tentar solucionar a questão em

conflito. Para Ricoeur o Estado de direito tem um papel central na vida das

comunidades históricas de coibir e punir as violências bem como de fixar as condições

reais de punições, além de dar as garantias da igualdade necessárias para todos perante a

lei.

Em caso de violência, cabe ao Estado de direito o papel de ocupar-se das

conciliações ou das reparações. Além do caráter reparador, o Estado exerce o papel

moralizador, isto é, ele tem uma função educadora e reguladora. Segundo Ricoeur,

enquanto educador o Estado tem o dever de ensinar à comunidade os critérios racionais

e da prudência para questionar a respeito das condições das ações, se, por exemplo, são

sensatas ou não. Neste contexto, parece-nos que a ação política requer um sentido moral

reflexivo para que as decisões efetivamente possam ser justas. A política fica

desacreditada quando falta confiança na ação política.

Parece-nos que o interesse do Estado de direito político deveria coincidir com os

interesses dos cidadãos. Acreditamos que cada cidadão acrescenta um sentimento de

confiança nas promessas políticas, caso elas não sejam cumpridas, a quebra desta

provoca um sentimento de indignação que pode gerar atos de violência recíproca.

Nesse caso, às vezes os sentimentos de injustiça dos cidadãos reivindicantes podem

chegar ao ponto de destituir o poder governamental. A justiça aparece sob o manto da

violência; nesse aspecto, ela não se identifica com os representantes legais. Nessa

situação, parece-nos que sobrevive a lei, mas não aqueles que a representam. A história

mostra que diante de tais conflitos as comunidades históricas entram em luta a fim de

restabelecer um sentido justo que implique não somente a lei, mas também o bom. Ao

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cessar a violência é instaurada a confiança e os novos governantes podem instituir o

processo legal que estabelece um fim às situações limites de conflitos.83

No cotidiano quando os conflitos entre oponentes ultrapassam os limites do

tolerável tornando-se violento, é necessário acionar todo o aparato da lei com seu

aparelho judiciário. Contudo, há ocasiões em que os conflitos podem ser resolvidos

pelas próprias pessoas. Nesses casos, ter-se-ia de tentar encontrar um meio termo para

resolver as desavenças. Talvez seja possível chegar-se a algum tipo de consenso se não

houver uma radicalização nos pontos de vistas das convicções. A ponderação ou

prudência é um elemento essencial para que se mantenha a reflexão em relação à

situação de conflito. É preciso considerar que o uso da violência reduz a razão e não se

alcança um entendimento sensato quando a razão fica nublada pelo sentimento de raiva,

revanche ou de excesso de indignação. No cotidiano é possível recorrer ao bom recurso

da linguagem discursiva para exprimir a própria posição, sem chegar às agressões

verbais ou físicas. O recurso da linguagem é, segundo Ricoeur, bom e razoável quando

contribui para prática do diálogo, na dimensão da não violência. Cabe rememorar que o

diálogo não são dois monólogos entre “surdos”, isto é, uma conversa em que as duas

pessoas falam, mas ninguém escuta que esta se diz. O diálogo, para Ricoeur, constitui-

se em duas falas discursivas que se tem como horizonte manter-se eticamente na ordem

da razão, do respeito e da ponderação.

Nesse sentido, consideramos que somente conseguimos estabelecer o diálogo

porque há duas vontades que intencionam deliberadamente um bem viver; elas expõem

as suas ideias com a finalidade de tentar chegar a algum consenso que amenize o

conflito existente. Somos, assim, conduzidos pelo discurso da linguagem ao espaço

moral e da ética para que não tenhamos que recorrer à lei toda vez que nos expusermos

aos conflitos.

Não devemos desconsiderar o sentido moral de agir e sofrer. As ações são o

modo ativo de ser do humano. Entretanto, essas atividades possuem um caráter passivo

que se apresentam quando sofremos a ação do outro. Quando essas ações estão em

desequilíbrio podem causar prejuízo ou sofrimento a alguém; porém, quando elas estão

em equilíbrio com certa disposição ética de manter-se um bem viver, então as ações

podem ser motivo de prazer e contentamento. Na obra de Aristóteles, Ética a Nicômaco,

83 Op. cit. Leituras 1 – “Tarefas de um Educador”, p. 145.

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livro II, as ações realizadas são consideradas moderadas quando reguladas pelo justo da

justiça. A moderação consiste em um comedimento em relação às próprias ações. A

pessoa moderada é ética e pensa para agir, de maneira que ela pondera as suas próprias

decisões. Além disso, ela é capaz de refrear intencionalmente as suas convicções e

vontade de se impor as outras ações; nesse sentido, suas ações passam pelo crivo de

uma analise e reflexão antes de acarretar algum tipo de prejuízos a outrem. 84

Retornando a questão das ações passivas, em efeito, é o modo como sofremos

as outras ações no mundo, isto é, elas são o modo como recebemos as outras expressões

e experiências. Sofrer uma ação é ter que suportá-la, ou ter que admiti-la como uma

ação diferente da nossa. Nesse aspecto, sofrer é também consentir que haja outro além

de nós capaz de agir. Essa palavra admite o sentido de sofrimento em relação à dor

física ou moral, por exemplo, sentimos dor, porque alguém nos bateu, e sentimos dor

por causa de uma ofensa recebida. Esses sofrimentos podem causar-nos um desconforto,

angústia, aflição, raiva, etc.. Esses sentimentos podem ser suscetíveis de revides e

provocar um conflito que pode em seus limites chegar às ações de violência.

No espaço das relações interpessoais esses dois movimentos – agir e sofrer –

estão entrelaçados entre si e constituem, segundo Ricoeur, as ações humanas. Em nossas

interações no cotidiano agimos e sofremos as ações uns dos outros. Nesse contexto as

liberdades se sobrepõem umas as outras, nem sempre, porém, de forma tranquila, já que

estamos sempre tentando valer nossos direitos e convicções. Muitas vezes,

ultrapassamos os limites do tolerável e o que consideramos nosso direito, às vezes,

ultraja as convicções do outro, essas ações podem gerar conflitos e acabar em violência

quando elas forem consideradas injustas. As ocasiões em que recorremos ao espaço

jurídico para fazer valer nosso direito; nesse caso, cabe a ele o papel de mediador entre

os conflitantes e será ele quem imputará a responsabilidade da ação àquele que infringiu

as regras de convivência, sancionando-o e obrigando o autor da ação a cumprir uma

pena.

Ricoeur assevera que o sentido de justiça tem um traço comum a diferentes

dimensões. Essas dimensões ligadas à ideia de justiça percorrem o âmbito da lei, da

moral e do político. No plano do político, a justiça caracteriza-se por ter o “monopólio

da coerção”; nessa instância a lei pode ser publicamente imposta sob o estigma da

violência. Ricoeur assevera que nenhum tipo de violência pode ser justificado, contudo,

84 Op. cit., Ética a Nicômaco, p. 70

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é preciso reconhecer que cabe ao estado de direito o exercício legítimo do poder e da

força; dois elementos que servem para comandar e se fazer obedecer. Presume-se que

em uma república ou sociedade democrática essa legitimidade somente é dada,

simbolicamente e temporariamente, ao Estado de Direito de certo Governo por sufrágio.

Compreendemos que não é possível uma legitimidade em decorrência de abusos de

poder em casos de Governos que se impõe como Estado de Direito absoluto, pois isso

seriam o domínio do autoritarismo, da tirania ou da dominação e exploração dos

participantes da sociedade85.

Porém, há um tipo de violência no nível das ações interpessoais que aparece em

certo sentido, quando se extrapola os limites que circundam o espaço de liberdade que

cabe a cada pessoa. A estrutura básica da sociedade pode, por vezes, estar fragilizada e

com dificuldades para estabelecer um sentido de distribuição que favoreça os mais

desvalidos; as pessoas sentindo-se desprotegidas e em desigualdade gritante, podem

rebelar-se recorrendo à violência. Pode-se dizer que a ruptura com o diálogo é o risco

que se corre em relação à justiça. Se há uma recusa em relação ao diálogo, os excessos

de violência podem fazer-se presentes e dar origem aos sentimentos de indignação e

protestos. Ricoeur diz que a frase “isso é intolerável” surge como um grito de basta à

violência. Parece-nos que ao dizer-se “basta”, há nessa fala dois movimentos, um que se

dirige à violência para mostrar-lhe que se está disposta a viver de modo mais pacífico; o

outro movimento é o retorno do sentimento de generosidade que temos conosco ao

mostrar-se disposto a dizer o que se sente. A generosidade é um bem que aparece

quando se tem a coragem de expor-se – ao dizer o que sente ao outro – abre-se um

espaço para o diálogo. Nesse sentido, a generosidade, parece-nos que é o ato de suportar

a própria dor a fim de incluir o outro na relação. 86

É preciso dizer, contudo, que em nossas relações sociais nem sempre estamos

dispostos a agir de modo generoso. Além disso, o estado de paz não depende apenas das

ações individuais. Existem institucionalmente as leis e as normas que regem as nações,

comunidades, países e etc. A fim de tornar possível o cumprimento das leis e colocar

ordem para manter a coesão de uma sociedade o Estado de Direito concilia a ação

política de bem estar com formas de violência e coerção. Parece-nos paradoxal que o

Estado de direito de um país tenha que fazer uso da coerção, isto é, da violência ou da

85 Idem, p. 59. 86 Op. cit. L 1 – “Tolerância, Intolerância, Intolerável” p. 174

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força física para impor a não violência e a ordem. Temos, porém, que considerar que o

Estado de direito, tem como ideal a não violência.

Ricoeur diz que se tem que considerar que a forma política do Estado de direito

emergiu dos contextos históricos de violência. Nesse aspecto, traz o “estigma” da

violência na estrutura governamental, de modo que a coerção mantida pelo estado de

direito dos países ou nações é muitas vezes justificada moralmente perante a lei sem ter

o sentido de violência. Ricoeur assevera que seria ingenuidade de nossa parte imaginar

que poderiam existir ações não violentas para coibir outras que infringem a lei. Para o

filósofo é preciso considerar que ao coibir os que desrespeitam os direitos humanos, ou

ao impedir a desordem social, haverá sempre algum tipo de violência coercitiva por

parte do estado de direito.

Embora esse tipo de violência exista, o autor considera que a coerção deixa de

ser justificada quando ela afirma uma tirania governamental ou que se torne uma forma

violenta de subjugar os sujeitos em seus direitos humanos. A questão da violência

precede a da não violência; de acordo com Ricoeur, a primeira, às vezes perde-se no

inexplicável da condição humana, a segunda é, no sistema político, mais uma verdade

formal que serve como ponto de partida, para os governos elaborarem suas leis. Para o

filósofo quando os governos mantêm os discursos da não violência como um recurso

para manter diálogo com outros governos, eles estão se dispondo também a “respeitar a

multiplicidade, a diversidade, a hierarquia das linguagens” que para nós é o único modo

de trabalhar o sentido razoável da prática da não violência87.

Em relação à violência política, Paul Ricoeur assevera que Hannah Arendt

conseguiu fazer uma distinção cuidadosa entre o conceito de força e o de violência. Para

a filósofa a violência no plano da instituição política não é abuso de poder e o poder por

sua vez não é o uso legítimo da violência. Ricoeur busca no conceito de poder que

procede dos romanos o sentido de energia ativa e a efetuada; a saber, o poder é a

capacidade de agir em comum.

Para Ricoeur o sentido energia designa-se pontualmente por residir nos

indivíduos, isto é, algo que está reservado no interior do indivíduo e ainda não foi

realizado. A força é a energia que foi dependida ou efetuada. De modo que no campo

político da ação a força é a efetuação da energia que foi marcada pelo agir em comum.

Ricoeur considera que se o poder somente existe enquanto os homens se predispuserem

87 Repetimos diversas vezes a palavra não violência de modo proposital, porque ela tem um sentido não cabível ao uso de um sinônimo.

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a agir em conjunto, então ele desaparece quando os homens se dispersam. Nesse

sentido, o poder é frágil porque ele dura enquanto houver um consenso entre as

individualidades para manter o agir em comum. A violência é a exploração dessa

fragilidade e a força é a relação do poder com a cidade no campo da ação. Segundo

Ricoeur no campo das relações pessoais a violência não pode ser negada como condição

do próprio indivíduo; no entanto, além da violência existe a possibilidade de uma ação

razoável que pode ser empreendida pelo desejo de justificação que é a fonte de uma

liberdade que considera as ações do ponto de vista da reflexão. 88

A análise semântica dos conceitos, segundo Ricoeur, permite que se faça uma

reflexão mais profunda sobre termos complexos e polissêmicos. Nesse sentido, o que se

deseja é mostrar que se tem de levar em conta que as palavras expressam mais de um

sentido. Além disso, estas escondem aspectos que podem ser revelados por meio dos

significados, signos e até pelos sentimentos que elas provocam no ser humano. O termo,

“poder”, por exemplo, tem mais de um sentido; tem uma conotação de potência, mas

também é possível compreendê-la como capacidade de qualquer coisa. Além disso, o

termo pode evocar um sentimento de soberania, de violência ou até de liberdade. No

entanto, essa palavra pode ser considerada apenas como um predicado pertencente ao

sujeito. Ricoeur exemplifica com a frase, “eu posso”. Para o autor, há na frase um

sentido de poder cuja explicitação está na capacidade voluntária de fazer algo. A

questão demandada é: como essa noção pode ser acrescentada ao sentido de justiça?

Ricoeur compreende que as palavras precisam ser analisadas respeitando suas

preocupações ontológicas e epistemológicas. Além do mais, ele considera que é preciso

respeitar o contexto em que elas se apresentam. Assim, por exemplo, a palavra poder,

como já foi dito, tem um sentido polissêmico que se for retirado de seu léxico comum e

for inserido em um contexto político, o termo receberá um sentido unívoco e nesse caso

vincular-se-á a uma situação específica.89

Ricoeur recorre à teoria de Hannah Arendt para mostrar outro aspecto da palavra

poder; agora vinculada ao contexto da instituição política. Segundo o filósofo francês,

nesse contexto político a palavra ganha um significado que se contrasta entre o

duradouro e o frágil. Ele comenta que esses opostos constituídos pela durabilidade e

pela fragilidade do poder aparecem em conjunção com as ações do Governo. Essa

conjunção se faz presente no exercício do poder governamental em relação ao povo. Por

88 Op. cit., L1, p. 18. 89 Idem, p.18

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esse viés, o poder também está vinculado à instituição política e por meio desta é capaz

de formular uma teoria de como as instituições políticas são formadas. Esse significado

de poder que se apresenta simultaneamente duradouro e frágil é também à nossa própria

condição humana. Essa condição que Ricoeur inclui em si, o agir e o sofrer das ações.

Portanto, a condição humana é a capacidade de poder agir e sofrer as ações. 90

Como já foi dito, nossas experiências institucionais vividas sob o signo da

condição humana mostra-se nas exigências em que ser no mundo requer de cada pessoa

certa dose de tolerância e respeito a fim de poder conviver de forma justa. Nesse

contexto, a tolerância é algo mais do que se ter condescendência, pois ela nos remete

em principio ao respeito, seja às próprias idéias ou ações ou as alheias. O respeito, de

acordo com Ricoeur, pode ser entendido como estima, ela encontra-se na capacidade de

ser o agente de sua própria ação. Ricoeur afirma que o respeito e a estima que temos por

nós mesmos advêm da compreensão de sermos capazes de narrar e ao mesmo tempo ser

o sujeito principal da nossa própria história, num interligamento entre as outras

histórias. Essa capacidade nos torna sujeitos capazes também de julgar e avaliar as

nossas ações e a dos outros.

As ações de violência no campo dos relacionamentos interpessoais requerem um

possível reconhecimento em relação à autoria da ação. O reconhecimento situa a ação e

o autor, diferenciando uma história pessoal de outra. Mas para que haja um

reconhecimento, parece-nos que é preciso da confiança na sinceridade do discurso

alheio. É a confiança que torna a relação mais compreensiva e possibilita haver uma

interação. Entretanto, poder-se-ia dizer que confiar no discurso alheio é um ato de

generosidade.

Ricoeur menciona que em nossos relacionamentos com o outro, as relações de

desconfiança podem tornar as interações mais conflituosas. Parece-nos que as relações

de desconfianças são permeadas por interações de intolerância. Torna-se muito difícil

estabelecer qualquer tipo de reconhecimento que seja mútuo em relações desse tipo,

pois haverá sempre o risco de não existir de alguma parte a retribuição. No caso do

reconhecimento mútuo, parece-nos que a primeira vista só é possível estabelecer um

respeito entre iguais, isto é entre amigos. Mas, o reconhecimento é mencionado aqui

como um tipo de igualdade que consiste em se reconhecer que as duas pessoas, “eu e o

90 Ibid, p. 16

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outro”, isto é, nós somos igualmente sujeitos capazes de agir e sofrer as ações um do

outro.

Em casos limites as ações que não são reconhecidas podem gerar conflitos pelo

não reconhecimento dos direitos do outro. Se estendermos esse não reconhecimento

para o âmbito político, a ação pode provocar uma falta de expectativa em relação à

justiça. A falta de reconhecimento das ações jurídicas e do poder político podem

também gerar por parte da sociedade um desrespeito às exigências do governo de

direito para um acordo justo. A desconfiança pode criar uma expectativa de não

reconhecimento que se expressa na violência. Podemos abordar essa questão da falta de

reconhecimento e desconfiança pelo viés da questão da ambiguidade do intolerável.

Ricoeur considera que nem tudo pode ser tolerável, por exemplo, a violência é

intolerável, ela seria o limite para o basta.91

Mas sabemos que esse limite gera uma confusão, pois um simples ato pode ser

considerado uma violência, nesse sentido, como impedir a violência de agir, sem que se

haja com violência. A resposta de Ricoeur será o uso do reconhecimento mútuo nas

lutas para os estados de paz. Como fica, então, a questão do reconhecimento se o Estado

não reconhecer o individuo como sujeito capaz e, se o mesmo se ocorrer com o

individuo em relação ao Estado de direito. No iluminismo essa questão era confusa, não

havia uma clareza nos papéis de cada um. Conseqüentemente, não estava, ainda, claro

para as mentalidades que não era cabível ao Estado prescrever artigos de fé, ou mesmo

agir de maneira coercitiva a fim de persuadir o indivíduo a pertencer a esta ou aquela

religião. Não se entendia que a questão da fé era papel das instituições religiosas, que

deveriam permanecer circunscritas a s suas próprias instituições, sem extrapolar limites

referentes às funções do mundo civil.

b) A Vingança

Segundo Paul Ricoeur a vingança é uma forma injustificável de justiça por isso

ela é intolerável. Ela é uma forma injustificável, porque, segundo o filósofo, não há

valores morais ou éticos capazes de sustenta-la como forma de justiça. O problema

desta é que ela tomada por um sentido de justiça singular em que a pessoa quer reparar a

injustiça sofrida com as próprias mãos, fazendo da sua ação uma revanche. Nesse

91 Op. cit. L1- « Tolerância, Intolerância, Intolerável, p.174.

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sentido, segundo o filósofo falta à vingança o atributo da confiança e do reconhecimento

no poder institucional de fazer justiça.

Compete expor que, para o filósofo, embora a vida humana comporte em si

mesma o trágico e suas significações contraditórias; ela tem pouco espaço para a

vingança. Este tipo de revide, em que se responde à violência com a violência, soma-se

dois tipos de violências, adquirindo um aspecto de problemática que aparecem nas

ações humanas relacionadas ao contexto político. Uma ação de vingança nos leva a crer

que a confiança no poder público rompeu-se. Nesse aspecto, instala-se um descrédito de

que a instituição judiciária não é capaz de poder conduzir a idéia de justo, por meio da

aplicação das normas, até a fase final do processo.

Parece-nos que a vingança contradiz o poder da instituição de justiça, nesse

sentido, ela representa a falência do discurso argumentativo propagada pelo direito

institucional, nela não há a predominância da lógica ou da prudência, mas apenas o

sentimento de raiva, ódio e de revide. Entendemos que para Ricoeur a vingança é uma

revanche na qual predomina a violência marcada geralmente, pela falta de mediação do

poder público entre o povo e a autoridade92. Nessa concepção política, o poder não é

compreendido no sentido de uma ação em comum e somente permanece enquanto

houver ações conjuntas. Destacamos a palavra poder porque já foi visto que ela tem um

sentido e um significado próprio. Ricoeur diz que para Hannah Arendt poder e violência

são considerados sob a égide da “fragilidade de uma prática visando o duradouro”93.

Essa noção de fragilidade é para Hanna Arendt a condição do poder político. O frágil

apresenta-se como uma fraqueza do Estado político de direito que se deixa corromper

pelo próprio poder que exerce. Em relação ao duradouro pode-se dizer que ele um

projeto político de longo prazo; em que o Estado político tem por preocupação a

elaboração das leis. Estas se aceitas devem implicar em um sentido de justiça que na

prática possa dar conta de evitar as contradições que estruturam as redes de

significações da vida humana.

Uma das condições para a vida humana, segundo Ricoeur94, é a sua constituição

de experiências que implicam no pertencimento de uma tradição inscrita e oferecida

para interpretação e decifração. Por tradição deve-se entender por herança cultural e

histórica inscritas nos textos, nas obras e nas interpretações dos signos e significados em

92 Op. cit. L1, p.16 93 Idem, p.17 94 RICOEUR, P. Hermenêutica e Ideologias, trad. Hilton Japiassu, 2008, Petrópolis, ed. Vozes, p 41

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geral. Para o filósofo, esse é um pressuposto que deve acompanhar àquele que deseja

pensar as questões em torno ao político. Além disso, é importante pensar essas questões

a partir dos limites das experiências cabíveis à condição humana. Em seus limites são as

experiências humanas que tornam possíveis aos filósofos elaborar um modelo de

justiça. As teorias que são desenvolvidas têm princípios que servem de parâmetro tanto

para as instituições como para as ações comuns nas relações dos sujeitos. Cabe lembrar,

assim, que as instituições políticas não são meras abstrações, elas são constituídas pelas

ações conjuntas dos homens. De maneira que é necessário que haja um espaço chamado

social e institucional jurídico para que as ações conjuntas possam ser efetivas.

Parece-nos que a vingança é uma forma ilusória e egocêntrica de por fim a um

conflito. Matar por matar é um ato insensato, mas matar porque alguém foi morto, não

torna a ação mais sensata, nem razoável, para Ricoeur por mais forte que sejam os

motivos, eles não justificam qualquer tipo de vingança. Nesse sentido, o filósofo

considera que é importante tentar abster-se de tentar fazer a justiça individualmente,

ainda que a probabilidade de sucesso em um julgamento seja nula. Se quisermos que o

senso de justiça se mantenha e se enraíze no “querer a vida boa” é preciso de um

esforço para que as questões de revides sejam direcionadas as estruturas jurídicas.

Nelas as reivindicações podem ir a julgamento e a vítima receber as reparações com a

condenação do réu. A pena será ao mesmo tempo a punição e a possibilidade de

reabilitação para o condenado. As interdições e as reparações conferem um estatuto de

julgamento que é tarefa do poder político e não dos indivíduos em particular.

1.5. Retribuição e Reconhecimento mútuo

Ricoeur demarca o sentido de reconhecimento a partir de três aspectos: primeiro

aparece como conhecer novamente, isto é, apreender pela mente a ideia de alguém ou

alguma coisa já conhecida. Essa apreensão é possível ao ligar entre si imagens,

percepções que se refere ao objeto apreendido pela mente, por exemplo, “distinguir,

identificar, conhecer por meio da memória, pelo julgamento ou pela ação” O segundo

aspecto, tem a acepção de admissão ou considerar verdadeiro. O terceiro sentido de

reconhecimento é assinalado por um sentido de qualidade reconhecimento-gratidão,

“recompensado é aquele que recebe sinais de gratidão”. 95

A polissemia do termo reconhecimento pode segundo Ricoeur possibilitar uma

alusão ao sentido jurídico em que ela é utilizada como idéia de justificação para a luta

95 RICOEUR, P. Percurso do reconhecimento, ed. Loyola, 2006, pp.18,19.

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do reconhecimento. Nesse sentido a palavra liga-se a idéia de reconhecimento de um

direito, isto é, reconhecer é considerar verdadeiro o direito do outro. Segundo Ricoeur a

idéia de reconhecimento-admissão se refere, nesse caso, a admissão pública da

existência de um órgão jurídico. O sentido da palavra desloca-se conforme a

problemática em que ela está inserida.

De acordo com o filósofo o sentido de reconhecimento deu-se historicamente em

meio as mentalidades intelectuais que tinham um pensamento com maior consciência

crítica. Após, já em um segundo momento as justificações de reconhecimento se

fizeram nas lutas corporais, como nas revoluções ou lutas armadas. Nesse caso, as lutas

foram um modo de justificação para o reconhecimento que ultrapassou o plano das

idéias para outro momento, representado pela questão do excesso de violência que é

intolerável. O sentido de intolerável na história das mentalidades representa o

questionamento filosófico da problemática do injusto. Já as revoluções aparecem em

uma circunstância em que o sentido de intolerável já tenha sido levado ao extremo. Para

Ricoeur possivelmente o excesso de violência fez com que as pessoas se rebelassem e

dessem desesperadamente os seus gritos de basta, “isso é injusto”. Nesse caso, o grito é

representado simbolicamente pela luta armada, assim a revolução foi uma tentativa para

dar um basta à injustiça. Podemos supor que a justificação do intolerável nesse período

tenha iniciado a partir de um sentimento de insatisfação de poucos; posteriormente, o

sentimento de indignação em relação ao intolerável tenha alcançado uma dimensão tão

insuportável que findou tragicamente com os excessos na revolução. Com os

sofrimentos provocados pelos acontecimentos trágicos, a idéia de intolerável torna-se

mais alargada e contribui para que as pessoas possam redefinir seus valores e crenças.

Foi, portanto, a partir da consciência critica em relação às injustiças e ao intolerável que

se deu vazão a um sentimento de insatisfação cuja ampliação saiu do âmbito restrito de

algumas mentalidades e passou a fazer parte da cultura popular. Do alargamento desse

sentimento de insatisfação generalizado na França uma revolução. Posteriormente com

esses acontecimentos houve um aprendizado que promoveu a transformação nas mentes

em relação ao reconhecimento.

A história marca o período do “iluminismo” como um momento em que as

mentalidades intelectuais procuravam analisar reflexivamente às situações de conflitos

para argumentar filosoficamente a fim de estabelecer um sentido de igualdade e

liberdade por meio do reconhecimento mútuo; a burguesia e a população angustiada

pela falta de liberdade e desigualdades sociais encontram nas lutas armadas uma

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maneira de atingir os seus propósitos. Nesse sentido, a história narra que a revolução

possibilitou uma redefinição profunda do funcionamento do sistema político e

econômico nas instituições. Pode-se dizer que foi a partir desse período trágico que se

redefiniu as atitudes e valores nas maiorias das mentalidades. Os motivos, para essa

redefinição foram às próprias experiências vividas nesse contexto de conflitos e

insatisfações. Essa reestruturação no modo de pensar e agir se deu bem mais

profundamente nas mentalidades e permitiu que os indivíduos pudessem supor que em

suas vivências sociais o Estado poderia assumir a tarefa de assegurar as posses justas

das coisas. Nesse período, cada um passou a ter uma expectativa de que o Estado seria

capaz de preservar os bens e as vidas das pessoas. Assim, estabeleceu-se legalmente no

campo político leis para reprimir os indivíduos que violassem e espoliassem os bens, a

liberdade e a vida humana. 96

Essa transformação possibilitou uma mudança cultural em relação à liberdade;

no sentido de entender que cada pessoa poderia ser capaz de escolher não somente a

própria religião, mas a própria maneira de viver. Ricoeur designa essa transformação de

mutação cultural. A partir dessa mutação as pessoas passaram a ter um nível de

compreensão da justiça diferente daquela que tinham antes. Na França, por exemplo,

depois da revolução as pessoas aprenderam a compreenderam que tanto a liberdade e

como a igualdade deveria ser um estado de direito para todos. Mas, para que cada um

pudesse de fato sentir-se livre e em estado de igualdade perante o outro, era necessário

reconhecer ou admitir a legitimitidade do Estado civil de direito. Assim, além do

reconhecimento do Estado, houve também o reconhecimento das leis vigentes, e dos

direitos cabíveis a cada um. 97

Após as mudanças imposta pela revolução a mentalidade popular ainda não

havia apreendido as novas regras civis e a questão da lei tornou-se polêmica. Nesse

imbróglio entre a lei civil e a divina, as convicções que incluíam as crenças religiosas

confundiram-se com as questões de segurança do Estado e com os costumes culturais e

hábitos de cada um. A ideia de justiça que surge, portanto, exige um sentido de

tolerância que respeite as expressões de todos esses sentimentos e convicções.

A ideia de justiça na prática cotidiana das instituições ainda emerge de forma

bem lenta. Nessa dinâmica, ainda que lenta, parece-nos que há espaço para podermos

projetar para o futuro uma ideia de justiça em que caiba a ideia ética de bem na

96 Op. cit. L 1- “Tolerância, Intolerância, Intolerável”, p. 176. 97 Op. cit., L1, pp.174 a 190

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construção de nossas relações interpessoais. Neste caso, as instituições quando justas

promovem uma educação, aos diferentes indivíduos que intencionam uma perspectiva

de vida boa, à medida que se reconhece e respeita o direito dos indivíduos, além de

delinear as regras de reconhecimento para manter os limites de cada um.

Para Ricoeur não há convivência se não houver a apreensão do outro. Ele

considera que viver é de certo modo viver com o outro; essa convivência é uma ação

social institucionalizada e orientada para que as relações entre sujeitos mantenham-se

em um nível de respeito e tolerância. Nessa ideia de convivência está implícita também

a noção de uma sociabilidade de ação e cooperação entre os indivíduos, feita em virtude

dos motivos que as próprias pessoas possam compreender. Isso significa que na prática

cotidiana os indivíduos agem coordenando suas funções sociais, ou suas rotinas,

costumes e hábitos de modo a encontrar o reconhecimento do outro para o seu próprio

agir. O vínculo de mutualidade, nessas relações sistemáticas de reciprocidade, tem um

sentido coletivo e plural. Quando incluímo-nos nessa coletividade passamos a

denominarmo-nos pelo pronome pessoal “nós”.98 Assim, somos nós os elementos

fundamentais que contribuem para o sentido de reconhecimento mútuo. Para Ricoeur a

mutualidade está contida na própria reciprocidade.

Nesse movimento de reciprocidade, a retribuição é o que mantém o sentido de

mutualidade. Para Ricoeur, há dois tipos de reciprocidades mútuas que merecem ser

destacadas: A mercantil, regida por contratos e o reconhecimento mobilizado por um

sentido fora do contrato. Essa reciprocidade contratual pode dar-se por precaução para

impedir abusos, ou por benefícios de transferências, ou abandono de um direito. Seja

qual for o motivo, o contrato será feito de forma voluntária e soberana99. Para ele, as

relações mercantis são acontecimentos contingenciais; porém, podem ser marcadas por

contratos ou por simples troca de mercadoria. No contrato existem clausulas que

precisam ser reconhecidas pelos contratantes para que haja o cumprimento das regras

contratuais; além disso, eles precisam reconhecer-se mutuamente como pessoas capazes

de manter um contrato.

Para Ricoeur nas trocas mercantis simples há um tipo de reciprocidade que se

assemelha a uma ação generosa. A ação generosa consiste em dar sem querer que o

outro reconheça a ação feita, é abandonar o próprio direito em favor do outro. Na troca

98 Op. cit. O percurso do Reconhecimento, pp. 167 a 246 99 Idem p. 182

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simples cada um entrega um objeto sem exigir o reconhecimento da ação. Ricoeur

compreende que são duas ações opostas, no entanto, se aproximam pela falta de

obrigação ou necessidade de retribuição do que se recebeu. Ele denomina esse tipo de

retribuição como um presente. Todavia, no gesto do presente há um movimento que não

exige a necessidade de retribuição. Apesar disso, ele compreende que se no ato de dar

não há a necessidade da troca, há, porém, um reconhecimento que acontece de modo

oculto. O que está oculto, no entanto, se revela no agradecimento daquele que recebeu o

presente. Ao agradecer, seja com uma palavra, com um gesto, ou um sorriso, de certo

modo há uma retribuição do presente.100

Nesse aspecto, a retribuição se faz percebida pelo autor da ação generosa por

meio do reconhecimento do outro da sua própria generosidade. Para Ricoeur, por

contraste à reciprocidade mercantil, a generosidade tem um aspecto cuja força simbólica

obriga quem recebeu um presente a retribuir. Essa força consiste na dignidade moral do

sujeito, isto é, quem recebe um ato generoso retribui moralmente com a gratidão ou a

estima. Em contrapartida, esse tipo de ação, segundo Ricoeur, pode gerar uma situação

paradoxal em que a gratidão se transforme numa ação de opressão e exigências de

vantagens. Ricoeur considera esse paradoxo do presente um nó duplo que precisa do

evitamento das controvérsias. Novamente, diríamos que para Ricoeur a prudência é o

elemento de sabedoria que abre a possibilidade de cada um por em prática o sentido de

justiça. A justiça é posta em prática no sentido de uma ética de bem viver que sugere a

cada pessoa que seja mais generoso com e para o outro sem querer fazer exigências

descabidas ou oprimir o mais desvalido a fim de obter vantagens.

Em relação a essa questão da justiça, é importante dizer que não se trata aqui de

tentar simplificá-la ou constituí-la de um nível de utopia inatingível. Paul Ricoeur sabe

que essa questão é muito complexa e exige muitos elementos para poder pensá-la

reflexivamente. Um deles é a questão da tolerância. O filósofo entende que embora ela

seja um termo que tem sido constantemente banalizado; se o significado de tolerância

puder ser mais bem compreendido101 poderá tonar-se um passo para um modelo de

consenso que possa servir para amenizar os excessos de violência entre conflitos

constantes. Porém, aqui a tolerância será tomada a partir do significado de

100 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva, trad. Antônio Filipe Marques, Edições 70 Ltda., Lisboa, Portugal, 2001, p.79 – Cap.II – I Regras da Generosidade. Segundo Mauss, as trocas podem ser feitas de modo voluntário, tornam-se presentes e tem antes de tudo um objetivo moral, o objeto visa produzir um sentimento amigável entre duas pessoas. “ Ninguém tem a liberdade de recusar um presente oferecido.” Todavia, as pessoas tentam superar umas as outras em generosidade. Nesse sentido, as trocas acontecem misturando os sentimentos e as pessoas. 101 Op. cit., L1, p. 174.

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generosidade, isto é, do dar-se como um dever a si mesmo; nesse aspecto, a tolerância

apresenta-se como ato de generosidade e será uma forma de compromisso de si para

consigo mesmo. Nesse caso não haverá a expectativa da gratidão do outro, porque a

ação generosa é um presente dado de si para si. O presente é dado quando reconhecemo-

nos autor da própria ação.

Nesse sentido, quando nos reconhecemos como autores de uma ação que foi boa

para outro, temos um sentimento de satisfação e isso aumenta a nossa estima. Assim,

não é o agradecimento ou gratidão do outro que movimenta um sentimento de satisfação

pelo nosso agir em favor do outro é o reconhecer-se na própria autoria de uma ação

benéfica em favor do outro. Para Paul Ricoeur, o reconhecimento é evocado primeiro na

condição da generosidade de dar sem esperar receber algo em troca e segundo consiste

nas relações efetivas dos próprios sujeitos agentes, nessa operação de dar, receber e

identificar as relações ocorridas. É nessa luta pelo reconhecimento que Ricoeur quer que

se entenda a tolerância em todos os seus limites. Nesse sentido reconhecer seus próprios

erros e assumir o compromisso de retificá-los é em certo sentido um ato de

generosidade para consigo mesmo. De certo modo torna-se uma contribuição para o

estado de paz entre os indivíduos, diminuindo a violência gerada pelo apetite de poder.

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Capítulo 2

Sabedoria Prática: A justiça em ação

2.1. Antígona de Sófocles

a) O trágico da Ação

“O trágico da ação” é uma reflexão de Ricoeur intercalada na composição da

obra Soi-même comme um autre (1990).102 Esta reflexão, segundo o autor, abre o nono

estudo trazendo uma voz não filosófica a fim de restituir ao conflito o lugar que ele não

teve nas análises filosóficas. O filósofo escolhe a clássica tragédia, Antígona, de

Sófocles, em especial, porque há algo nela que invade o campo da filosofia ao dizer a

respeito do caráter inelutável dos conflitos na vida moral.

O autor francês retoma essa obra ficcional porque embora seja um elemento

diferente da filosofia abre espaço para guiá-lo em sua análise reflexiva em torno da ação

ética. Ele assevera que existe nessa tragédia uma “instrução insólita da ética pelo

trágico”. Segundo o autor, “a irrupção do trágico” na reflexão produz um ensinamento

na dimensão da filosofia moral feita de modo indireto e não unívoco. De acordo com

Ricoeur, “a tragédia é comparável às experiências-limites, geradoras de aporias”. Para o

filósofo, a tragédia ensina-nos algo a respeito do caráter inelutável do conflito na vida

moral e delineia uma sabedoria trágica capaz de orientar uma sabedoria prática. 103

Antígona realça as ações intempestivas originadas por situações de conflitos que

persistem tornando-se intratáveis e inegociáveis. Além disso, a ação de cada

protagonista é motivada por uma convicção que permanece obscurecida e fechada em

defesa do próprio arbítrio em relação ao justo. Para Ricoeur “são os próprios conflitos

que suscitados pelo rigor do formalismo que confere ao julgamento moral em situação

sua verdadeira gravidade”. Cabe dizer que, segundo o autor, não seria a situação de

conflito que constituiria o trágico da ação, pois sem a travessia pelos caminhos dos

conflitos agitando uma prática norteada pelos princípios de moralidade, cederíamos às

atrações de um situacionismo moral entregando-nos sem defesa ao arbitrário.

A ação que se encerra no trágico é motivada por uma convicção inseparável de

uma perspectiva estreita, parcial e unilateral impossibilitando, assim, que haja qualquer

solução ou acordo a fim de por fim aos conflitos. De acordo com Ricoeur, cada

protagonista estabelece para si um limite manifesto na própria ação, suas escolhas e

102 RICOEUR, P. Si mesmo como um outro, trad. Lucy Moreira Cesar, Campinas, SP.Editora Papirus 1991, obra original: Soi-même comme un autre, France, Éditions du Seuil, 1990. Pp. 283 103 Idem, pp. 282,283,284

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deliberações ficam restritas à fronteira da própria convicção do que cada um considera

ser justo. Quanto à solução para essa situação envolvendo tanto a convicção acirrada

como um conflito moral persistente, para Ricoeur, é por ser subtraída da saída, por

exemplo, de um consenso que a tragédia acaba por desorientar o nosso olhar;

condenando-nos, assim, a reorientar nossas ações por nossa conta incluindo os riscos e

os custos.104

Nesse sentido, para o filósofo, há na sabedoria trágica alguma coisa que pode

nos orientar nos conflitos na vida moral restituindo à sabedoria prática um lugar na

experiência única do julgamento moral em situação.105 Segundo o autor, “dessa irrupção

intempestiva, esperamos o choque suscetível que desperta nossa desconfiança contra

não somente as ilusões do coração, mas também as ilusões nascidas da hybris da própria

razão prática.”106

Lembramos que para o filósofo, da irrupção do trágico, isto é, dessa invasão

repentina e violenta dos elementos hostis manifestados na tragédia deveu-se o caráter

intempestivo para a dimensão não-filosófica. Esse caráter que não pode ser ocultado

produz um ensinamento moral, ainda que seja indireto e de modo plurívoco, “a

sabedoria trágica restitui a sabedoria prática à prova do único julgamento moral em

situação”.107

Desse modo, Ricoeur escolhe também essa tragédia108, assim como Hegel e outros

autores que já a analisaram. Ela, segundo nosso autor, tem um sentido didático que

reconduz o formalismo moral a uma maior vivacidade da ética. Nesse sentido, o autor

retoma Antígona, primeiramente pela instância do endurecimento dos conflitos (Le fer

du conflit) e após pelo viés da instituição.

Em relação ao conflito, o filósofo considera que este ultrapassa a problemática do

político, já que a tragédia explora as energias espirituais oriundas dos mitos e da

tradição familiar. Antígona explora a ideia de justiça não somente pelo sentido da lei,

mas por uma moral ética do sentido de bom. Essa tragédia não se esgota nesses dois

sentidos, ela mostra a questão das tradições regendo um sentido de justo, dos

significados diferentes para cada agente e em relação a suas ações. Além disso, aborda a

104 Ibid, p. 286. 105 RICOEUR, P. Soi-même comme un autre, « Le Soi et la Sagesse Pratique », Éditions du Seuil, France, 1990. p.282 – « Bien au contraire, faute de produire un enseignement direct et univoque, la sagesse tragique renvoie la sagesse pratique à l’épreuve du seul jugement moral en situation. » p. 281. 106 Idem, 283 (Ed. traduzida) e p. 281 (edição original) 107 Ibid. 108 SOFOCLES, A trilogia Tebana, trad. do grego por Mário Gama Cury, editora Zahar, RJ 2009 – Antígone trad. Trajano Vieira, editora Perspectiva, São Paulo, 2008.

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problemática do conflito moral centrado na noção de dever ou obrigação mantida por

uma convicção simplificada e contida em um ponto limite das experiências humanas de

cada protagonista.

Antígona é uma obra que de acordo com Ricoeur reporta ao trágico da ação e por

consequência ao sofrimento. Essa duas dimensões, a do trágico e a do sofrimento, para

o autor, são concernentes ao conflito suscitado por um rigor excessivo de princípios e de

uma moral situacional de obrigação. A gravidade e a singularidade da situação bem

como a forte convicção incitam um julgamento moral sem sabedoria prática109.

Consideramos que, para Ricoeur, uma moral da obrigação gera situações conflituais e

Antígona, embora seja uma ficção é nesse sentido um exemplo visível trazendo

consequências na efetuação real do sentido de justiça em que a falta de uma sabedoria

prática dificulta a sensatez para poder deliberar bem em um julgamento moral em

situação. Ricoeur considera que nesse tipo de situação é preciso levar em conta que na

lei existe uma máxima geral vinculando-a como obrigação para todos; porém, na prática

a fim de aplicação da lei, existem procedimentos em que as máximas sofrem

interpretações para se adequarem as ocasiões ou circunstâncias de aplicação em

determinada situação de julgamento.

Parece-nos que, segundo Ricoeur, em relação ao julgamento moral em situação há

uma máxima geral da ação que precisa ser efetuada como singularidade. Nesse aspecto,

há algo nela que se apóia em princípios de justiça tidos como universais e considerados

um dever ou uma obrigação para todos. Entretanto, para fins de aplicação a máxima

teria que se deixar singularizar a fim de ser adaptada conforme a particularidade do

conflito em situação de julgamento. Nesse nível, há uma passagem em que a

formalização do sentido de justiça enquanto máxima geral precisaria de um agente que

pudesse interpretá-la adequando-a a singularidade da situação de julgamento. Nessa

passagem do geral para o particular em que seria necessária à interpretação, a sabedoria

prática serviria de sugestão ou alternativa para que se pudesse ter uma compreensão

reflexiva e mais equilibrada ou ponderada em virtude da ocasião da justiça. Ricoeur

denomina essa sabedoria de um saber prático consagrado à dimensão ética.

Retomaremos mais adiante a questão da sabedoria prática, no momento retomaremos a

questão do trágico em ação.

109 RICOEUR, P. Soi-même comme um autre,(SA),Éditions du Seuil, 1990, Neuvième Étude, Le soi et la sagesse pratique : la conviction, p, 279,280.

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Ricoeur levanta a seguinte questão: em relação à Antígona, por que temos

preferência pela protagonista? Ele assevera: “seria a sua vulnerabilidade que nos

sensibiliza, seria porque a sua figura representa a não violência em seu extremo, ou

porque ela revela um sentido de philia que não altera o Eros?” Uma resposta possível

encontra-se na palavra do próprio autor citando o coro em Antígona. Ricoeur diz: “a

última palavra do coro é de uma cruciante modéstia: ‘a sabedoria [to phronein] é, de

longe a primeira fonte de felicidade: não é necessário ser ímpio para os deuses. As

palavras altaneiras, pela grande importância que lhes dispensam as pessoas orgulhosas,

ensinam-lhes [édidaxan], mas somente quando são velhos, a ser sábios [to phronein]’

(vv. 1347-1353).”110 Talvez tenhamos preferência por Antígona porque ela é jovem e

seu olhar ainda está voltado as experiências familiares, ao contrário de Creonte que

carrega consigo a experiência de um velho que deveria já ter aprendido a ser sábio.

Antígona, de acordo com o filósofo, é constrangida pela obrigação de garantir ao

seu irmão um funeral conforme as exigências da tradição de ritual aos mortos, embora

este tenha se tornado um inimigo da cidade. Ela está convencida de que pode expressar

os seus direitos familiares diante da cidade. Ricoeur considera que o vínculo que une a

irmã ao irmão desconhece a distinção política entre amigo e inimigo. Esse vínculo tem

uma força procedente da tradição mítica e sagrada, se transformando em um pacto de

morte. Creonte também é constrangido pela obrigação, contudo, subordina seus laços

familiares à cidade e em defesa desta priva de sepultura aquele que se tonou um

inimigo. Ricoeur assevera que “a cidade recebe de sua fundação e de sua estrutura

religiosa uma significação que ultrapassa a política.”111

O autor assevera que um dos pontos do trágico, não tão evidente no texto, é a

questão da amizade. O modo como cada protagonista delineia a fronteira entre amigo e

não-amigo (entre philos e ekhthros) acirra mais a discórdia entre eles. Conforme o

filósofo, amizade e inimizade são tão carregadas de significação que é a paixão que os

motiva a agir. Cada protagonista se vê envolvido por uma energia mítica e sagrado

reduzindo o próprio sentimento em mesclas não examináveis de coações do destino e

das opções pautadas pela própria decisão.

O filósofo reitera que a tragédia delineia uma sabedoria capaz de nos guiar nos

conflitos de uma maneira totalmente distinta. A tragédia ensinar sob dois aspectos:

primeiro pelo próprio conteúdo do conflito que conservou um caráter mítico de

110 Op. Cit. O si mesmo como um outro, 289. 111 Idem, 284 e 282

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resistência à repetição total de qualquer discurso moral ou ético; segundo porque há

nessa questão do conflito, a questão da convicção.

Antígona, segundo Ricoeur, tem um fundo agonístico em que se contrastam os

opostos, por exemplo: “o homem e a mulher, o velho e a jovem, a sociedade e o

indivíduo, os vivos e os mortos, o homem e o divino”. O autor considera que o

reconhecimento de si somente acontece à duras penas.112 Mas, além disso, a duas

convicções em contraste: uma a favor da tradição familiar, outra favorecendo as leis que

regem a cidade.

De modo sucinto, ver-se-á que a tragédia de Sófocles, Antígona, é composta

basicamente por dois protagonistas. A história narra uma situação em que duas

convicções acirradas, cada qual em uma única concepção de justiça, estão em conflito

moral. Consideramos que a questão que se apresenta, no sentido ético da justiça é: se

um julgamento moral em situação requer da sabedoria prática o recurso de uma

“perspectiva ética” que possa talvez estabelecer: “um sentido de vida boa com e para os

outros em instituições justas”; será que seria possível estabelecer um sentido de justiça

moldado pela sabedoria prática que requer a perspectiva ética, ainda que a instituição

seja injusta?

A fim de compreender melhor essa questão retomaremos Antígona.

Posteriormente a morte de Édipo, Antígona e Ismene voltam a Tebas constatando que a

imprecação de seu pai em relação aos irmãos tornou-se profética cumprindo-se o que

Édipo havia dito que a disputa entre os dois irmãos pelo reino de Tebas seria em vão,

pois os dois morreriam um pela mão do outro. Com a morte dos dois herdeiros, Creonte

irmão de Jocasta, torna-se o sucessor ocupando o trono. Na posição de rei, delibera em

favor de Etéocles, seu aliado, para o rei, somente este sobrinho seria digno de obter um

sepultamento digno. O governante pediu que dessem a Etéocles um enterro condigno à

condição de um amigo da cidade. Em contraste, para Polínices, o rei impôs um castigo

severo, como infame inimigo de Tebas. Com base na distinção de amigo/inimigo,

Creonte ordenou a proibição de qualquer tipo de ritual funerário a Polínices que pela

tradição deveria permitir os rituais sagrados. Além disso, impôs a quem desrespeitasse

essa ordem uma punição.

Creonte apiedado de Etéocles, já que este tinha morrido, reiterou a sua amizade

e a piedade dos deuses. O governante elevou-o à condição de herói da cidade e, como

112 Ibid, p. 286 e ( Ed. Original, p.283)

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tal, considerou-o merecedor de toda honra e respeito dos cidadãos de Tebas. O

sepultamento deste sobrinho seria conduzido com todas as dignidades. Ao contrário das

honras instituídas a Etéocles, o irmão morto, em combate contra Tebas, teria por

punição a vergonha de ser impedido de receber os rituais funerários condizentes a

qualquer morto. Creonte determinou, em edito, um ato de proibição estendido a

qualquer pessoa que supostamente pretendesse dar algum tipo de ritual ao morto. O

pronunciamento da sentença imputava ao morto o ato indigno e desonroso de ficar com

o corpo exposto, após a morte, para ser comido pelas aves de rapina.

Essa lei que fora publicada pela cidade inteira na forma de um decreto novo,

confrontou-se com os princípios morais de justiça de Antígona. Embora soubesse que

diante da lei ela estaria cometendo um delito, recusou as imposições proibindo o enterro

de seu irmão, decidindo por conta e risco a enterrá-lo. Ao ser descoberta em delito,

enfrenta o rei, iniciando-se um conflito irreconciliável entre duas convicções bem

diferentes a respeito do dever que é justo à justiça.

Antígona diz a Ismene que, para ela, seria belo poder morrer cumprindo seu

dever de enterrar o irmão.113 Para a protagonista é um direito sagrado e justo poder

manter as leis que tem a sua força na tradição ancestral familiar. Para a jovem essa lei

deveria prevalecer acima das leis escritas, ainda que ao custo da própria vida. Para ela,

a intransigência da lei recentemente promulgada é descabida, pois não há sentido uma

lei proferida em relação aos mortos, Antígona considera que a lei deve orientar a ação

dos vivos e não daqueles que não pertencem mais a este mundo. Para a irmã, Polínices

já tinha sido punido com a morte, ele teria de carregar para o túmulo a desonra do ato

cometido contra a cidade, mesmo que não tivesse tido o desprezo de ter o corpo

sujeitado às aves carniceiras.

Para Creonte a lei deveria primar por manter intacta a honra da pátria e quem se

antepusesse a ela renegaria a própria pátria. Para este governante havia apenas dois tipos

de pessoas, os amigos e os inimigos da cidade, estes últimos não merecem a sua

amizade e para eles a lei deve torna-se implacável.114 Creonte diz:

Se alguém, sendo o supremo guia do Estado, não se inclina pelas decisões melhores e, ao contrário não se inclina pelas decisões melhores e, ao contrário, por algum receio mantêm cerrados os seus lábios, considero o mais ignóbil das criaturas. [...] A salvação de Tebas é também a nossa, em minha opinião; se navegarmos bem, com a nau a prumo, não nos faltarão amigos. Com semelhantes normas manterei a glória da cidade, e pauta-se por elas o edito que mandei comunicar ao povo há pouco, relativamente aos filhos de Édipo. [...] Só

113 Idem, p. 204 114 Op. cit. O justo 1 p. 208.

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quem quiser o bem de Tebas há de ter a minha estima em vida e mesmo após a morte115. (Creonte, par, 204, 220, 240.) Antígona serve-se da lei divina, essa lei precede o corpo de leis da cidade-

estado. Para ela a ideia de lei desaparece diante das tradições que obriga os familiares a

cumprirem com o dever moral de enterrar dignamente os seus mortos. Ela mantém a

convicção firme de que descumprir as regras humanas em favor da mais cara aos deuses

é um “delito santo”.116 Antígona agiu contrariando a lei, mas após esse delito, teve a

dignidade de assumir publicamente a autoria de seus atos, tomando para si a

responsabilidade de sua ação.

Diante dessa afronta o governante admite publicamente que nenhuma mulher o

governará enquanto ele estiver vivo117 decidindo puní-la rigorosamente. Antígona

recebe seu castigo, sem contestá-lo, a morte para ela é apenas a concretização de parte

de seu destino, lamentou-se, apenas, por não ter ninguém que pudesse lamentar por sua

morte.

A concepção de Creonte dos seus deveres e suas tarefas em relação à cidade

encerra-se em um ponto de vista simplificado, muito restrito, e inflexível. Essa

limitação de perspectiva repercute em seu julgamento de todas as virtudes. Nesse

sentido, conforme Ricoeur, para o protagonista somente é bem o que serve a cidade; de

modo semelhante, só é justo o bom cidadão e a justiça é a arte de governar e ser

governado. A piedade, para Creonte, é segundo Ricoeur, rebaixada a vínculo cívico, e as

divindades, intimadas dignificar os mortos que serviram aos interesses da pátria.

Tardiamente, Creonte aprende com seus erros tornando-se herói. 118

Ricoeur concorda com Hegel sobre o ponto de vista de que Antígona tem uma

perspectiva tão limitada e inflexível quanto à de Creonte. Ele entende que embora a

maneira da heroína deliberar entre amigo e inimigo seja menos intransigente do que o

modo deliberativo de Creonte, quando se trata dos laços familiares, para ela, não há

negociação em relação ao que é justo. O filósofo pondera que esses laços estão fechados

às obrigações familiares; nesse aspecto, o “vinculo” de Antígona com o irmão morto

desconsidera o significado do “Eros” resguardado em Hêmon e celebrado pelo coro.

Segundo o autor os pontos de vista estão isolados, cada qual em um polo. Em um

extremo encontra-se Antígona convicta que somente o parente morto é amigo (philos).

115 Op. cit., A trilogia Tebana, pp. 208, 209. 116 Idem, p. 204. 117 Ibid, p.223. 118 Op. cit. Si-mesmo como um outro, p.286

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Ela mantem-se circunscrita nesse ponto-limite desligando-se das leis da cidade em favor

das sagradas. No outro extremo, Creonte obstina-se à lei, conservando a convicção de

que somente os amigos da cidade merecem os louvores da justiça.

Segundo o filósofo, tanto Antígona como Creonte mantêm duas visões parciais e

unívocas da justiça. Estas perspectivas simplificadas e antagônicas fazem parte das

convicções e revela o agir e sofrer humano de um e de outro. Nosso autor procura saber

o porquê de nossa preferência por Antígona. Ele conjectura que talvez seja em

decorrência a vulnerabilidade da mulher. Ou quiçá porque ela represente a figura

extrema da não violência em face do poder. Quem sabe ainda pela sonoridade que a

philia provoca não se alterando diante do Eros. Outra hipótese seria em relação ao ritual

de funeral havendo, nesse sentido, a necessidade do ritual para se nutrir o laço entre os

vivos e os mortos. Este último aspecto, para o autor, manifesta a fronteira entre a

convicção pessoal e o político; essa relação, então, não se exaure no político tendo-se

outras exigências que podem estar fundamentadas na íntima convicção.119

Ricoeur faz uma observação dizendo que a instrução ética pelo trágico deriva do

reconhecimento daquela fronteira contornando a limitação humana e o espaço da

instituição. Nessa tragédia, a ética esboça-se na poesia resultando em uma instrução,

sobretudo, do decurso do lirimos do coro de Hêmon e Tirésias.120 A instrução é

retomada, pelo autor, no sentido de to phronein que recorre à noção de “deliberar bem”.

Esse conceito é tido como se “pensar bem” fosse uma contestação esquadrinhada para

sofrer o terrível (eubolia) (v.96). O filósofo quer saber de que maneira a filosofia moral

responderá ao apelo da to phronein em que se requer um sentido de “pensar justo” com

o significado “deliberar bem”. Para ele, a ficção tramada, por Sófocles, é a de conflitos

sem a possibilidade de negociação.121

Ricoeur assevera que nenhum dos dois consegue deliberar bem, pois as

consciências dos protagonistas, em Antígona, estão reduzidas, na efetuação concreta do

sentido de justiça, a um único e severo ponto de vista ilusório. Para ele, as personagens

se mantém nesse ponto limite, desconsiderando que vivemos num inter-esse122 marcado

por uma convivência que requer o reconhecimento da presença do outro. Na tríade ética

119 Idem, 288, (Ed. Original, p.285), Ricoeur assevera que essas proposições encontram apoio nos versos vv. 452-455 de Antígona que têm marcado a tradição filosófica e que Hegel cita por duas vezes. 120 Ibid, p. 288 – Ricoeur cita uma sucessão versos que expressam um ensino didático: vv.332-333; vv. 584-585; vv 612-613; vv. E24-726; vv.835; vv.944-987; v. 1029; v. 1098; v.1270; vv. 1347-1353. 121 Idem, p. 290 – O filósofo cita a contribuição de Steiner em relação à situação do conflito como intratável e não negociável. 122 Op. cit. O justo 1 – “Prefácio” p.11(segundo o autor, em latim inter-sum, inter-es, inter-esse significa estar entre)

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do cuidado, sob o recurso ético do predicado bom revestido da perspectiva ética da vida

boa com e para os outros nas instituições justas, Antígona cuida apenas do outro

reconhecido, no “tu” da figura do irmão morto; mas desconsidera o cuidado devido a

Creonte, representante da figura do outro, que ganha valor na noção de instituição. Em

contrapartida, Creonte organizou-se em torno das regras envolvendo somente a vida

política; desconsiderando assim do cuidado necessário de um estadista com e para os

outros na instituição. O governante esqueceu-se de requerer para si um aprendizado

prático cuja sabedoria pudesse considerar que além das leis e das normas há um aspecto

moral solicitando a primazia da ética teleológica de intenção da “vida boa”; nela o

cuidado detém-se na solicitude voltada ao respeito pelos sofrimentos das pessoas.

Sem esses cuidados, para o filósofo francês, a relação afigura-se em afrontas e

em ações audaciosas, envoltas em movimentos de desrespeitos e violências mútuas.

Ricoeur considera a situação de conflito como algo inevitável as experiências humanas

e, renunciá-los condenar-nos-ia a deixar de apreender uma instrução da ética123. Nesse

aspecto, Ricoeur compreende que mesmo “o reconhecimento de si” somente é obtido ao

custo de muitos conflitos e por extensão os sofrimentos. Na tragédia, por exemplo, o

reconhecimento de si é adquirido por acréscimo depois que os conflitos persistentes

resultassem em sofrimento para os envolvidos que se recusaram a ceder em suas

convicções.

De acordo com o filósofo, a tragédia, tomada desse ponto de vista, gera um

aspecto aporético “ético-prática que se acrescenta a todas as aporias que foram

acumuladas pela identidade narrativa. Nessa perspectiva, um dos papéis da tragédia em

relação à ética é estipular um distanciamento entre sabedoria trágica e sabedoria prática.

Essa distância é alcançada quando a tragédia se recusa a conduzir seu enredo para uma

solução dos conflitos. Ao nos desorientar com a falta de solução, a tragédia impõe ao

homem a pena de orientar a sua própria ação por conta e risco dela mesma; porém, para

o autor, há uma sabedoria prática que poderá ser posta em ação no momento em que

uma situação exige que se responda melhor à sabedoria prática. Diz Ricoeur: “Essa

resposta diferenciada pela contemplação festiva do espetáculo, faz da convicção o além

da catarse.124

123 Op. cit., SA, 1991, p.286. 124 Ibid, p.290.

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Em relação a esse caráter purgativo, ou catártico, Barbara Freitag125 assevera que

ele tem pelo menos três funções nessa tragédia grega. “A expressão artística, a educação

do público e a função de purificar”. Esta última, segundo a autora, é ocupada quando a

peça encenada abre ao público uma possibilidade de reduzir aquela tensão pulsional que

foi produzida pelos conflitos existentes na trama encenada. A autora escreve que uma

catarse ocorre quando o público se identifica com algum dos personagens, por exemplo,

quando nos identifiquemos mais com Antígona do que com Creonte sentimos a sua

nobreza, a sua força e coragem para enfrentar a lei e a tirania do poder, porém, com a

morte da heroína sentimos diluir em nós a força e a nobreza. No final da encenação ou

leitura, temos a possibilidade de resgatar a força e a nobreza através da dor e da

sabedoria que Creonte apreendeu após os acontecimentos trágicos.

A autora considera que nos restará, após a morte de Antígona, somente a

fraqueza e a dor daqueles personagens sobreviventes. A catarse termina para o

espectador ou para leitor com a transformação de Creonte e Ismene. Os dois, como já

dissemos, transformam-se moralmente depois do sofrimento. Freitag considera que a

transformação exigiu de cada um a tomada de consciência dos próprios erros.

Reeducados pela situação trágica tornam-se pessoas mais sábias. Creonte torna-se uma

pessoa capaz de considerar não só os seus interesses, mas também os interesses dos

outros. Ismene torna-se uma mulher capaz de exercer a sua força para enfrentar com

coragem a tirania daquele que abusa de seu poder. A autora diz que nós somos

reeducados pela peça quando aprendemos ser mais simpáticos com as personagens

menos nobres e mais fracos. A filósofa considera que essa fraqueza e falta de nobreza

fazem deles pessoa mais humanas e abertas à experiência da vida126.

Freitag compreende que a tragédia traz em si “belos exemplos” de situações

conflitantes inseridos em situações que impelem a ações morais que são essenciais para

a vida. A autora entende que ao subir no palco, “os atores assumem formas quase

caricaturais que expressam no plano dramático os conflitos das ações humanas

projetadas em personagens mitológicos”. Para a filósofa as experiências humanas

encontram no trágico alguns pontos extremos dos dilemas e contradições das ações

morais. Freitag assevera que em Antígona o dilema pode ser observado no desfecho

trágico em que cada personagem expõe seu ponto de vista tentando justificar a sua

escolha, cada qual reivindica seus direitos baseando-se na lei. Para a autora, tanto

125 FREITAG, B. Itinerários de Antígona, A questão da Moralidade, Ed. Papirus, 2002, p.21. 126 Idem, p.25.

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Antígona como Creonte se vêem diante de uma situação embaraçosa com duas saídas

penosas e difíceis. Cada qual estava decidido a agir em favor de uma única lei

acreditando que a sua escolha era a mais justa e verdadeira. As duas leis eram

estruturadas e organizadas para regulamentarem os valores da cidade e da tradição

familiar. Duas leis diferentes, mas complementares, uma servia os interesses da pólis, a

outra servia para fortalecer as tradições do oikos127.

A catarse trágica abre espaço no momento da convicção para que se medite

sobre o lugar inevitável do conflito na vida moral. Na representação do trágico é

inevitável, segundo Ricoeur, que os traços típico-ideais dos personagens apareçam

inseridos em situações morais de extremo conflito para quem precisa agir. Parece-nos

que o trágico ficcional em relação aos aspectos éticos tem a função de simultaneamente

criar um distanciamento e uma aproximação entre o que Ricoeur nomeia de “sabedoria

trágica e sabedoria prática”. 128 Nesse sentido, compreendemos que a tragédia ao ser

encenada se distancia à medida que se trata de uma encenação pública de um mito cujo

discurso se acentua no dramático e fora do cotidiano.

Nesse sentido, entendemos que o público acompanha simultaneamente os

movimentos da encenação. As pessoas que assistem percebem as métricas e os diálogos

de modo que elas acompanham os aspectos da cenografia, do palco, dos atores, direção

etc. enquanto tentam discernir o que peça tem a ensinar. O espectador reconhece que

está diante de um espetáculo cujos personagens encenam uma situação de conflitos

demasiadamente insolúveis. Quem assiste ao espetáculo ou lê a peça tem a impressão de

que as figuras são conduzidas de forma caricatural ao desespero e que as interpretações

têm uma dinâmica que coincidem quase de forma invariável com a morte. Embora o

leitor ou o público esteja distante do ato da cena, a encenação tem algo que o aproxima

na proporção que ele esquece que se trata de uma encenação se deixa conduzir pela

densidade dos conflitos emocionais pela ambigüidade dos sentimentos contidos nas

identificações personagem e pessoas/público.

Retomando as funções da peça, Freitag assevera que na função da educação ao

público a encenação fornece ao público a possibilidade de ver os vários pontos de vista

de um único problema ou conflito de modo que se pode aprender a formar o próprio

juízo depois de ouvir diferentes argumentos. Por exemplo, é possível ver, após a trágica

127 Ibid, p.23, 24. 128 Op. cit., S.A, 1991, pp.283, 284.

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morte de Antígona, de Hêmon e Eurídice, Creonte reavaliando as suas ações, pelos

riscos que submeteu a cidade e sua família. Para a autora, no final da encenação torna-se

possível apiedar-se de Creonte, pois podemos percebê-lo de um modo humanamente

frágil. Nesse sentido, temos a possibilidade de compadecermo-nos do sofrimento do

protagonista, agora, tomado pela dor e percebendo o alto custo de sua ação obstinada.

Para Freitag, aos poucos, somos conduzidos a diminuir a nossa preferência por

Antígona, na medida em que percebemos que não há um único percurso para se buscar a

justiça. Na questão da moralidade somos conduzidos, no final da peça, a refletir

eticamente a respeito de nossas experiências condicionadas à vida, isto é, de nós

mesmos e do teor de nossas ações em relação aos outro.

Ricoeur lembra-nos que a sua reflexão cruza com a de Hegel pelo horizonte dos

conflitos na vida moral. Para ele, se fosse preciso renunciar os pressupostos de Hegel, a

parte renunciada não seria o seu tratamento dado à tragédia, nem a reconciliação,

solução, deste filósofo, para o conflito. O argumento da reconciliação em Hegel,

segundo Ricoeur, que ocupa todo o “capítulo 6” de a Fenomenologia do espírito é

frágil; pois ele tenta solucionar o conflito evocando uma reconciliação verdadeira entre

a consciência julgadora e o homem que age. Para Ricoeur, essa reconciliação com base

na renuncia e no perdão advém de um verdadeiro reconhecimento mútuo. E tal coisa

não acontece em Antígona.

O filósofo francês considera que não existe em Antígona qualquer tipo de

possibilidade para uma reconciliação que repouse em um reconhecimento mútuo ou na

renúncia de cada um dos protagonistas recebendo um valor de perdão. Esses poderes

éticos são inexistentes na tragédia. Embora Ricoeur tome um caminho diverso de Hegel

a respeito dessa teoria ética preferindo tomar os rumos éticos de Aristóteles em conjunto

com os rigores morais de Kant, ele deixa claro que o ponto de separação não se encontra

nessa solução para os conflitos. Os caminhos se separam porque a investigação de

Ricoeur não se limita a encontrar a aurora de uma vida ética; mas em se buscar no

campo moral dos conflitos uma dialética entre a ética e a moral, recurso que assume o

caráter orientador de uma sabedoria do julgamento em situação. Diz Ricoeur: “do

phronein trágico à phronésis prática: tal seria a máxima suscetível de subtrair a

convicção moral à alternativa destruidora ou do arbitrário”129.

129 Op. cit. O si mesmo como um outro, p. 293 (Ed. Original p. 290)

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Essa reflexão detém-nos no exame da própria vida, de maneira a pensar num

modo possível de transformar as nossas emoções, mantendo-as em equilíbrio com o

sentido ético de “vida boa”.

Em Antígona há a questão do mito e do sagrado compondo em conjunto com a

razão a ideia de justiça. Para o filósofo esses elementos compõem o agir e o sofrer do

ser humano. Os conflitos, na obra, por terem um caráter inegociável, são tratados na

tragédia como algo insolúvel. Paradoxalmente, essa situação de conflito insolúvel em

que as ações terminam em sofrimento terrível acumula em si uma sabedoria à tragédia

capaz de ensinar-nos a agir futuramente de um modo mais ponderado.

Em relação aos pressupostos de Hegel, a respeito de Antígona, Ricoeur diz que a

solução ética daquele, para a tragédia, assinalada na reconciliação do indivíduo com a

sua própria ação é um valor que serve apenas a uma situação particular entre a

consciência julgadora e o homem que age. Para ele, na solução hegeliana falta, aos

protagonistas, um sentido ético que os beneficiassem, no sentido de poder fazer algo

para que conseguissem subsistir em conjunto. De acordo com Ricoeur para que eles

pudessem sobreviver seria necessário de que as existências particulares renunciassem o

direito a própria existência e assim desaparecer em benefício das regras universais

mantidas por um Estado de direito que tivesse uma “consciência de si universal”. O que

absolutamente não aconteceu na tragédia.

Ricoeur cita Steiner dizendo que ele tem razão ao considerar os conflitos em

Antígona como algo intratável ou inegociável.130Por isso o trouxemos como uma voz

capaz de iluminar-nos em nossa compreensão da Antígona hegeliana.

Steiner na questão do trágico da ação, em Hegel, pelo exemplo de Antígona, diz

que o pathos131 do trágico não é o conflito entre dois deveres ou entre o dever e a

paixão. Para ele em Hegel o pathos está no conflito que se desenvolve entre dois planos

da existência humana. O plano do político e o plano das relações individuais, no caso, a

tradição familiar. Cada plano é defendido por um dos protagonistas e negado e

desvalorizada pelo outro. O conflito, segundo Steiner, ocorre em uma dinâmica

contextual de opostos e contradições. Para esse autor os conflitos dão-se no interior da

polis, nesse contexto, eles emergem e chegam ao extremo no momento em que há a

negação das prerrogativas dos mortos e dos vivos. O autor assevera que esses conflitos

130 Op. cit. O si mesmo como um outro, “O trágico da Ação” p.290. 131 Op.cit., Curso de Estética, v1, p.238. – Hegel assevera que o pathos segundo o significado grego é uma potência em si mesma legítima do ânimo, um conteúdo essencial da racionalidade e da vontade livre. O pathos grego é o que impulsiona para a ação de modo bem calculado e ponderado. P. 238

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políticos são articulados no âmbito da moral e a qualidade do trágico, num sentido

construtivo está na existência da derrota do confronto ético.

Além disso, Steiner assevera que para Hegel a peça Antígona de Sófocles é uma

obra de arte em cujo contexto representa um equilíbrio de absoluta proporção entre a

tensão e o desastre. De acordo com esse autor há, para Hegel, um equilíbrio rigoroso

entre motivação e destino e a prova condizente com esse postulado de Hegel é a

natureza agonística da consciência humana nessa obra de Sófocles. 132 George Steiner

menciona que, para Hegel, Antígona tem o mérito de tornar ‘efetiva e verdadeira’ a

simetria entre duas mortes dotadas de sentido.

Chama-nos a atenção quando Steiner diz: “depois das mortes de Antígona e de

Creonte, novos conflitos vão emergir da divisão, no interior da polis, da substância

ética133”. Se retornarmos ao final do universo de Antígona será possível ver que Creonte

não morre, embora tenha rogado à moira que dê a ele a morte merecida, sua existência

não finda e terá que aprender a viver com o mal impingido aos outros. Diante das

desgraças que abateu a vida de Creonte, ele diz: “Ai! Se me ilumine a moira derradeira,

a mais bela, a jornada terminal! Vem que eu rejeito mirar a luz do dia! A resposta do

coro a essa súplica é: “Mais tarde! Preme o que aí jaz! Incumba quem deve incumbir do

que vier!”134

Segundo Steiner, a personagem Antígona de Hegel é um indivíduo que sabe

enfrentar o seu destino, ela não foge aos imperativos da lei, ao contrário responsabiliza-

se por sua ação e diante do julgamento aceita a sua sentença. Nesse sentido, Antígona

acredita que agiu retamente em favor do irmão, ela não teme a morte, para ela, a morte é

seu destino e não tem o sentido de uma punição. Ao contrário a morte é aguardada e

celebrada, ela considera que a morte representa o alívio para o seu sofrimento. Porém o

que agoniza Antígona é como ela se encaminhará para a morte. Ela terá que suportar a

própria vida enclausurada em um túmulo de pedra, já que ela foi condenada a ficar

confinada em um cárcere de pedra. Essa adversidade, para ela, é pior do que morrer.

Antígona lamenta momentaneamente essa desventura.135 Esse lamento em relação ao

destino que não se cumpriu na íntegra, conduz Antígona ao suicídio.

Parece-nos que para o Hegel da Fenomenologia seria possível dizer que a

consciência simples e cindida de Antígona se desvaneceu na própria morte. Nesse

132 Op. cit., Antígonas, p.53. 133 Idem. 134 Op. cit., Antígone, pp. 97 e 98. 135 Op. cit., A trilogia Tebana, p. 238 vv.945.

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movimento em direção à morte, a heroína deixa de existir ou de estar-aí, cessa as suas

ações, para retomar a posição de alguém que passou para outra posição de si, nesse

sentido ela é em si uma pessoa morta. Antígona ao morrer deixa de desfrutar de seu

próprio agir, já não pode mais ocupar ou atarefar-se. Após a morte, ela ocupa o lugar de

tarefa para o outro. Ela é a coisa dos outros, nesse sentido ela é para Hegel um elemento

universal que retém para si o que ele denomina de simples Si. Antígona deixa de ser

uma consciência de si singular, ela, para Hegel, não é mais ilusão, ou alienação, no

momento da morte seu ser deixou de agir e, carente de pensamento se dissolve como

individualidade e seu agir passa imediatamente para a responsabilidade de outro.

Parece-nos em relação à instrução ética, que a morte do outro requer um

momento de cuidado ou de solicitude para o inexistente, ao sobrevivente cabe o

aprendizado de aprender a cuidar. Nesse sentido, Creonte e Ismene puderam aprender

com a tragédia, que na questão do querer viver em comum a pessoa tem que valer-se da

boa vontade a fim de tornar-se mais solícito com e para o outro.

Nussbaum é outra autora, citada por Ricoeur, que analisa Antígona sob a

perspectiva hegeliana. Fomos buscá-la para tentar entender a questão da convicção.

Essa autora assevera que tanto Creonte como Antígona tem um ponto de vista unilateral

e estreito em relação a sua descrição do que tem importância à vida. A filósofa

considera que cada um dos protagonistas ao se restringir a uma convicção inflexível nos

evidencia valores importantes que o outro recusou a levar em conta. Ela diz que Hegel

fez uma leitura correta de Antígona, mas cometeu um deslize ao não acentuar o fato de

que a escolha de Antígona é superior a de Creonte. A filósofa menciona que para Hegel

situa os dois protagonistas agiram igualmente com imperfeição em relação à estreiteza

do ponto de vista de cada um. Além disso, para Martha Nussbaum, Hegel tentou

eliminar da tragédia o sentido do conflito, um objeto que para ele era inaceitável para

uma concepção ética, mas, segundo a filósofa, a eliminação do conflito retira da

tragédia o aprendizado que se efetua. Diz Nussbaum que pelo percurso do conflito se

aprende por implicação a evitá-lo136.

A filósofa considera que em relação ao conflito moral central na peça somos

conduzidos a solucioná-los e Hegel tentou solucioná-lo por meio de uma concepção do

estado como ente harmonizador. Porém, para ela, mesmo que houvesse um governante

mais hegeliano do que Creonte, ainda assim haveria um profundo conflito. A autora diz:

136 Op. cit., A fragilidade da Bondade, p.58.

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“a declaração dos triunfos humanos pela razão acaba por mostrar-se também um

documento condensado das limitações, transgressões e conflitos da razão.”137 Para ela

quanto menor for a nossa resistência em abrir-nos à presença do valor, da divindade, no

mundo, tanto mais certamente o conflito nos cercará. A autora considera que Hegel foi

um otimista ao tentar eliminar da tragédia a possibilidade do conflito em benefício de

uma síntese harmoniosa para o mundo. A filósofa assevera que uma vida livre de

conflitos seria carente de valor e beleza. Além disso, ela considera que jamais

poderíamos ser sensíveis ao mundo se não pudéssemos nos beneficiar das tensões ou

conflitos.

A família, segundo a perspectiva hegeliana, determina como imediato o

comportamento ou ainda a forma de agir de seus membros. Nesse aspecto, a ética

estende-se de forma natural e imediata apenas ao relacionamento circunscrito desses

membros com relação a toda família. Entendemos que para Hegel a família é carente de

consciência política, isto é, enquanto familiar o elemento individual não se atenta de que

em sua efetividade é parte de um povo. Nesse sentido, a família é também como um si

efetivo singular que se contrapõe a substância ética efetiva e universal. Partindo dessa

perspectiva, Antígona, a protagonista de Sófocles, seria uma consciência-para-si

singular de maneira que o seu agir e efetividade só teria a família por fim e conteúdo.

Nesse aspecto, a heroína não teria conseguido abrir seu ponto de vista para além de seus

horizontes familiares, porque sua visão era vinculada restritamente ao bem familiar.

Paul Ricoeur está de acordo com Steiner quando este assevera que nos limites do

cedível há valores que são intratáveis ou inegociáveis. Todavia, assevera que é preciso

concordar com Hegel de que a visão de Antígona é tão estreita quanto à de Creonte.

Para Ricoeur ambos têm como ponto de sua experiência-limite uma simplificação da

amizade. Nesse aspecto, nosso autor considera que o sentido de philos tanto para

Creonte como para Antígona é bem estreito. Para o primeiro a amizade se limita a ser

amigo do cidadão e para a segunda a amizade tem um vínculo estreito com o irmão

morto. Consequentemente a amizade é atribuída em desigualdade, já que

arbitrariamente ela é atribuída apenas parcialmente.

Em Aristóteles a amizade nem sempre é regulada pela igualdade. Quando ocorre

uma disparidade os amigos não permanecem mais amigos. O filósofo considera que a

maior parte das pessoas espera alguma coisa de seus amigos138. Nesse aspecto, por

137 Idem, p.65. 138 Op. cit., Ética a Nicômaco, trad. Edson Bini, Ed. Edipro, livro VIII – parágrafo 5 a 9 p.222 a 228.

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exemplo, “um homem poderoso pode aguardar de seus amigos a honra e a bajulação

como objeto de afeto”. Assim, ao recebê-las retribui com benefícios vindouros. Os

escritos aristotélicos, em relação à amizade entre irmãos, diz: “irmãos tem tudo em

comum139”. Parece-nos que o filósofo grego compreende que é mais deplorável recusar

auxílio a um irmão do que a um estranho. Talvez, por analogia, possamos dizer que

seria apropriado às reivindicações de justiça ser atendidas de modo mais justo quanto

maior for o grau da amizade.140 Na tragédia Antígona, por exemplo, Creonte, que está

no exercício do poder, escolhe governar bem e fazer justiça, apenas, para aqueles que

são considerados amigos.

Nesse sentido, ter-se-ia a impressão de que é injusto um governo justo basear as

suas ações, mantendo o exercício do poder em função de proporcionar benefícios

somente aos amigos. Uma ação desse tipo poderia provocar um grito de basta e acabar

de modo trágico. Nesse aspecto, a prática da justiça dar-se-ia por meio de uma

perspectiva parcial e inteiramente estreita em relação às reivindicações de justiça, o que

poderia dar origem a desobediência, como, por exemplo, um desacato à lei. Parece-nos

que a ideia de justiça condiz com um sentimento de amizade, em relação ao exercício do

poder, que se estende a todos. O respeito de um governante devido ao povo governado

deveria ocorrer em uma hierarquia inversa, isto é, de cima para baixo e por

reconhecimento mútuo de baixo para cima. Por um lado, a pessoa governante, mantém

para si a responsabilidade de respeitar o sofrimento de seu povo, buscando em suas

ações uma alternativa para amenizar esse sofrimento. Por outro, ao respeitar, torna-se

moralmente, por reconhecimento, um indivíduo respeitado ou estimado.

Há dois pontos nos escritos de Ricoeur que consideramos essenciais nas ações

humanas. A autonomia e o conflito, a primeira pela liberdade e responsabilidade que

envolve as escolhas, o segundo porque tem relação às convicções e se bem ponderadas

podem dar origem a uma sabedoria prática. Em Antígona os dois protagonistas agiram

movidos por uma lei estabelecida pela própria convicção. A autonomia de poder

escolher vinculou as ações às paixões de cada personagem. O resultado das escolhas foi

o desrespeito reciproco. Parece-nos que Creonte ao desconsiderar os sentimentos e

sofrimentos de Antígona em relação às tradições familiares, as quais ela tanto desejava

preservar, provocou um sentimento de indignação em Antígona. Após a decisão do

governante a jovem acirrou-se nas próprias convicções do justo. O problema é que os

139 Idem, p.229. 140 Ibid. p. 183, 156.

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dois pretendendo ter a posse da razão e da verdade como uma afirmação incontestável e

universal, desconsideraram que essas convicções poderiam não passar de simples

opinião. Temos a impressão de que se um deles tivesse feito um esforço para diminuir a

própria indignação recorrendo a algum tipo de mediação ética possivelmente pudesse

dar à efetuação das regras um sentido de ponderação. Nesse caso, talvez tivessem mais

prudência no momento de reclamar os próprios direitos.

Em relação à Antígona, Ricoeur considera que afluem duas questões na moral da

justiça: primeiro “a pretensão universalista ligada às regras”; depois, “o apoio dos

valores éticos nos contextos históricos e comunitários para a efetuação das regras”. Para

ele, essa pretensão de universalidade vinculada às regras tem, em Kant, um sentido que

encontra proximidade com o termo autonomia. Todavia, diz que o critério universalista

utilizado por Kant para estabelecer o princípio moral no princípio político tem um uso

restrito. Para o autor, a autonomia é um termo que Kant pluralizou e moralizou

tornando-se um princípio político.

A autonomia, segundo Ricoeur, é vista, por Kant, como uma saída do homem de

sua menoridade, abrindo a possibilidade de se fazer uso do próprio entendimento. Pôr-

se em posição de menoridade, sem servir-se da própria razão e sujeitando-se a

orientação de outro é culpa do próprio homem. Já que não há nenhum Estado de direito

com o poder de impedir o homem de fazer uso livre da própria razão.141 Nos termos

kantiano, “pensar por si mesmo” tem o significado de procurar em si mesmo a soberana

pedra de toque da verdade (isto é, a sua própria razão). Sendo que a máxima que manda

pensar sempre por si mesmo é o esclarecimento [Aufklärung] que é a sabedoria da

razão142. Para o filósofo francês a autonomia kantiana é um procedimento formal da

razão que consiste em se ter a liberdade de pensar. Essa liberdade embora se mantenha

incólume à coação de outras consciências morais e não precise submeter-se à lei fora de

si mesma, seu modo de agir estará atrelado aos regimes de liberdades estabelecidos pelo

Estado de direito de um governo143. Nesse sentido, para Ricoeur o sentido de autonomia

kantiano que medeie à prática de justiça se restringe a um formalismo universal da

justiça. Embora seja possível pressupor-se que haja um critério de autolegislação de

cuja aproximação atravessa a regra da justiça no plano das instituições, por

reciprocidade ela também está presente no plano das relações interpessoais144. Kant

140. Op. cit. O si mesmo como um outro, p. 183, 322. 142 Idem, p. 61 há uma nota de rodapé do texto 3 significando orientar-se no pensamento. 143 Ibid,70. 144 Op. cit., SA, 1991, pp. 320, 321.

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considera que a autonomia da razão possibilita ao homem fazer uso seguro e bom de seu

próprio entendimento. De posse dessa autonomia em relação ao pensamento ele se torna

sábio e capaz de criticar a maneira como o Governo conduz a política, porém mantém-

se passivo e obediente quando está em exercício de um cargo ou função a ele confiada.

O filósofo francês assenta o princípio da autonomia no plano das relações

interpessoais, por ser mais frutífero; esse plano suscita-nos em relação à autonomia

kantiana uma reflexão moral partindo de uma idéia de justiça que estabelece por

princípio a idéia de respeito devido às pessoas. Ricoeur lembra-nos de que o princípio

de autonomia preconizada por Kant no início dos Fundamentos da Metafísica somente é

posta no fim do percurso da reflexão moral kantiana. A idéia de autonomia encontra-se

desenhada no reconhecimento da regra de justiça e da regra de reciprocidade. Nestas, a

liberdade é afetada pela própria lei que, segundo Ricoeur, se dá como se a própria

posição de autonomia não pudesse ser pensada sem a “auto-afecção”, isto é, sem a

própria manifestação imediata. Essa afecção, para Ricoeur, vincula-se ao respeito.

Quando este se movimenta e torna-se exaltado, ele afeta a nossa sensibilidade de modo

radical, de modo que essa radicalidade destrói a nossa disposição para o bem e afeta a

nossa capacidade de agir por dever.

Além disso, ele se detém nessa questão moral e política da autonomia

vinculando-a ao plano das relações pessoais a fim de tentar mantê-la conciliada com o

termo receptividade. Nesse aspecto, Ricoeur reinterpreta o sentido da autonomia

considerando-a a partir do seu sentido de responsabilidade. Ricoeur põe destaque na

nessa vinculação, porque, para ele, Kant deixou de considerar a responsabilidade pelo

liame da regra de solidariedade na “reciprocidade da justiça”145. Nesse sentido, a

autonomia torna-se solidária, ao encontrar-se atrelada à regra de justiça e à regra de

reciprocidade. Nosso filósofo considera que a efetuação da autonomia pela necessidade

de uma vinculação exterior com as regras, não pode ser uma autonomia

“autossuficiente”. Nesse aspecto, a autonomia será marcada por uma gerência do

sistema moral e jurídico. Ela, então, será requerida pela instituição e recolocada sob a

forma de um sistema formal jurídico, como conceito jurídico, estabelecido como uma

máxima universal que interpretada se adéqua para cada situação singular.

O princípio de autonomia é solicitado pelo sistema jurídico quando há conflitos

moral em nome da responsabilidade. A autonomia, nesse plano é formulada como um

145 Idem, p.322.

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princípio universal ligado ao respeito devido às pessoas como seres racionais e

históricos.

Pelo respeito à historicidade de cada um o princípio de autonomia, segundo

Ricoeur, se aproxima por reflexão ao sentido de contextualismo. Nesse aspecto, a

autonomia contextualiza-se quando se manifesta como respeito no plano das relações

pessoais. Entretanto, quando há uma ruptura entre o respeito da lei e o respeito às

pessoas, os conflitos parecem fluir com mais intensidade. O conflito pode dar origem a

graves tensões chegando às vias de confrontações físicas se não tiver um elemento de

sabedoria prática. Este recurso ético dá-se de modo contextual histórico e serve para

refletir sobre a origem dos conflitos, no momento em que há uma confrontação e é

preciso saber deliberar moralmente em favor do que é justo.146

Segundo, Ricoeur, a regra do respeito consiste em aprender a ceder ao impulso

de impor a própria convicção ao outro, como se a nossa convicção fosse uma verdade

absoluta. Ele diz que é dificultosa a tarefa de corrigir os impulsos de impor as próprias

convicções. Não é fácil porque ponderar exige reflexão; o sacrifício de se conter em

favor do respeito ao outro é um intento que poucos estão dispostos. Para o autor, a regra

de respeito exprime uma convicção ponderada. Mas, será que é possível de se manter

uma regra justa de reciprocidade; sem o desrespeito a convicção íntima de cada um e, de

modo que no consenso haja um valor estimado bom para ambos? No caso de Antígona

a voz do coro e a do conselho poderia ser ouvida, se tivesse sido ouvida, as ações teriam

tido uma opção para saber valorar o estimado bom, todavia, ninguém soube ouvir e cada

um, dos protagonistas, acabou do lado trágico da ação tendo por consequência o

sofrimento.147

A discussão de Ricoeur, nessa instância do respeito, alarga-se também pela

possibilidade de se pensar o sentido de justiça desvinculando-o o sentido de

responsabilidade no plano da jurisprudência do valor moral de culpa. Ricoeur entende

que para se pensar o conceito de justiça pelo viés da responsabilidade é preciso

introduzir as questões simbólicas da linguagem, coisa que até o momento não foi feito.

Para o filósofo francês a abrangência do sentido de culpa e responsabilidade no plano da

justiça tem um contexto maior do que o da ordem e da lei.

146 Ibid, pp.332, 333 147 Op. cit., SA, 1990, p.284.

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80

2.2 A responsabilidade e a Culpa

a) a responsabilidade

Paul Ricoeur busca compreender a noção de responsabilidade a partir da

definição mais comum que lhe é dada no campo jurídico, em termos de duas

obrigações: a obrigação que alguém tem de reparar o dano que causou por sua falta

(culpa/erro) e/ou a obrigação de suportar o castigo, sofrer a pena. Aquele que é

submetido a essas obrigações se torna responsável.148 Ele assevera, todavia, que a noção

contemporânea de responsabilidade não se limita a essas noções, ela é um conceito que

se encontra fragmentado e, por isso, merece um exame mais detalhado fora dos limites

da ideia de responsabilidade deixada por Kant.

O exame desse conceito será feito pelo autor a partir de duas das perguntas

consideradas importante: na primeira ele se indaga sobre “o que” nos torna responsável

pelas próprias ações e suas consequências? E na segunda, ele quer compreender se a

responsabilidade tem um vínculo inseparável à ação ou se ela é somente uma imputação

feita ao agente.

Segundo o filósofo, no adjetivo responsável incluem-se diversos complementos,

podendo aparecer imputações que em última instância pode, por exemplo, se

caracterizar alguém sendo responsável por seus atos, mas também se tornando

responsável pelos outros na medida em que estes são postos sob os seus cuidados.

Ricoeur alerta que, sob esse aspecto, corre-se o risco de podermos ser considerados

responsáveis por tudo e por todos. Sua dúvida é dirigida ao aspecto da possibilidade de

uma responsabilidade total em relação aos outros, para o autor, uma responsabilidade

deste tipo ganharia uma conotação de obrigação, encargos e compromissos. E o

problema é que ao transformar o sentido de responsabilidade em obrigação de fazer

algo, esse significado extrapolaria o âmbito jurídico cuja imputação requer a reparação e

a punição.149

Segundo o autor, a responsabilidade pensada no âmbito das mentalidades

possibilita que haja uma reflexão de um modo muito mais profundo do que pensá-la

pelo aspecto formal do conceito. Como já dissemos o plano das mentalidades possibilita

às ideias um confrontamento em diferentes ângulos argumentativos, inclusive pela

perspectiva da fenomenologia hermenêutica de Ricoeur. Sendo assim, tomará o termo,

considerando-o primeiro sob o ponto em que ela se apresenta em uma circunstância

148 Idem, p. 43. 149 Ibid, p. 34

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autodesignativa capaz de imputar-se a autoria das próprias ações; nesse aspecto, o

sentido de responsabilidade recebe um significado de ser capaz de responsabilizar-se

autor de uma ação. O termo responsabilidade vincula-se ao ato de imputar

deliberadamente uma ação de modo que seja possível torna-se eticamente um indivíduo

responsável.

Esse modo deliberado de responsabilidade tem correspondência com um sentido

em que ser responsável seria o mesmo que ser ético, de maneira que ao designar-se

como autor ou agente da ação também se designa como aquele capaz de responder pelas

ações.

Para Ricoeur quem se designa responsável falando age. Assim, ao se pronunciar,

por exemplo, “eu fiz” há dois acontecimentos: primeiro, no plano da ação, há nesse

pronunciamento um ato de responsabilidade imputada pelo autor; segundo, no plano

linguístico, existe um pronome singular de primeira pessoa acompanhado de um verbo,

em que o indivíduo falante se designa autor capaz de ser responsável, por exemplo, por

sua fala, por seu fazer, etc.; nesse aspecto, ao dizer eu “fiz” aparece implícito no dizer

um comprometimento, não somente no dizer da linguagem, mas eticamente como autor

da ação.

Para o filósofo a pessoa que fala: “eu fiz”, está de um lado, atestando de algum

modo a alguém que é capaz de estabelecer por meio da própria fala uma ligação de

confiança com aquele que o ouve. De outro lado, ao fazer o pronunciamento considera

que quem se propôs a ouvi-lo tenha feito dando seu voto de confiança. Assim, quem

fala de certo modo pronuncia as frases como se estivesse atestando que se

responsabiliza por aquilo que foi dito. Ricoeur analisando o sentido de responsabilidade

pondera que em uma simples frase dita a alguém, há um grau de comprometimento de

quem fala tornar-se responsável, aos ouvidos do outro, por aquilo que diz. Portanto, ao

se dizer “eu” será preciso levar-se em conta que esse falante está se designando autor da

ação na fala. Nesse sentido, o falante se coloca na esfera da autoria da ação.150

Para Ricoeur, o que torna alguém responsável para o outro é a confiança na

atestação. Segundo o filósofo, a confiança tem um significado que se intercala no laço

social instituído por contratos, bem como pelos pactos de todos os tipos e pelas regras

de reconhecimento que ultrapassam o face a face da promessa de pessoa a pessoa. Isso

significa, segundo o filósofo, a possibilidade de pensar a responsabilidade no plano das

150 Ibid, p.46,47.

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relações humanas, contexto em que cada ação se revela, ao mesmo tempo, como uma

iniciativa, como intervenção no mundo assim como um gerenciamento de si mesmo.

Tornar-se responsável pela própria ação é, nesse sentido, para o autor, um modo

de dizer “eu posso”. Essa potência que nos torna capazes de agir, pode ser ampliada

linguisticamente, de maneira que essa frase se conjuga também no sentido de “tu podes”

e “ele pode”. Esse alargamento em direção a outrem pode significar uma inclusão por

referência. Ricoeur compreende que nesse movimento de posicionamento do outro

como ser capaz é possível perceber que se podemos conjugar o verbo na primeira

pessoa, por exemplo, eu posso, também é possível conjugá-lo em segunda ou terceira

pessoa. Assim, podemos dizer, por exemplo, tu podes, ele pode. Por consequência,

teremos que admitir, fenomenologicamente, que por referência todos são capazes de

poder agir. Nesse aspecto, em que a ação ganha relevância, haverá um momento,

segundo Ricoeur, em que a ação de um confrontará a ação de outro; havendo, portanto,

para todas as pessoas que se relacionam um tempo de agir e outro de sofrer a ação.

Nessa concepção do homem que age e sofre ações, está implicada uma dimensão

ética e ontológica, pois quem age sob uma ética ou não é o ser humano que é presente

no tempo e espaço. A responsabilidade torna-se, nesse sentido e nesse plano, um

compromisso ético para o sujeito da ação. Põe-se destaque aqui ao deslocamento que

Ricoeur faz para o objeto da responsabilidade. A responsabilidade deixa de ter o seu

peso colocado apenas no plano institucional jurídico e dessa forma deixa de ser uma

responsabilidade universal passa reflexivamente também para o plano das convivências

diárias. Nesse nível, a responsabilidade se efetiva, conforme o autor, como significado

de “cuidado” para si com e para o outro. Cabe ressaltar que, para Ricoeur, “o cuidado”

exprime uma maneira de ser no mundo mais leve do que um sentido de

responsabilidade total por tudo e por todos. No cuidado não cabe o peso do dever, mas

sim de uma solicitude que na intenção ética opta pela vontade de uma vida boa para si e

com os outros151.

Pode-se dizer que a responsabilidade, nesse aspecto, deixa de ter um caráter

universal fixado ao uso jurídico clássico. O termo definido a propósito de um direito

civil é regido por um sentido de obrigação de reparar danos infringidos ao outro. Em

alguns casos a responsabilidade tem um sentido de culpa imputada como sentença

determinada pela lei; nesse sentido, tem-se a obrigação de suportar o castigo imputado,

151 Op. cit., O Justo 1, pp. 46 a 49.

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é responsável, portanto, todo aquele que está submetido à obrigação de reparar e sofrer

pena. Em contraste, o cuidado é um modo ético singular do ser humano ser-no-mundo

em relação a si-mesmo e ao outro.

Ricoeur menciona que a palavra responsabilidade no sentido de imputar tem um

sentido latino significando “por na conta de” ou “creditar algo”. A palavra imputação

pode ser vista pelo viés em que o termo pode ter um sentido tanto positivo como

negativo. Desse modo, é possível creditar méritos ao termo imputar e não somente as

infrações.152

O filósofo considera que no termo imputar existe um movimento oscilando entre

retribuição e atribuição, por exemplo, quando uma ação é lançada ou atribuída a conta

de alguém, esse ato de atribuição imputa ao sujeito da ação a responsabilidade de

responder por todas as consequências provocadas pelo agir. Dessa maneira, o sujeito

terá como obrigação retribuir a ação reparando-a. O filósofo considera que é preciso

considerar a metáfora da “conta” – “lançar [a ação]” por assim dizer à conta de alguém.

Ele enfatiza que “a metáfora da conta é uma possibilidade de fixar o conceito

imputação153”.

O autor assevera que o sentido de imputação teve uma contribuição da teologia.

Nesse sentido, o conceito não era compreendido como falta, mas como méritos

adquiridos154. O filósofo faz alusão ao conceito de imputação vindo do contexto

teológico; com Pufendorf o sentido da palavra imputação ganha um significado

principal que recaí na palavra “capacidade” do agente. Diz Ricoeur:

“Essa noção de imputabilidade – no sentido de capacidade para imputação” (moral e jurídica) – constitui uma chave indispensável para compreender a preocupação de Kant em preservar as articulações cosmológicas e éticas155 [...] do termo imputação, na qualidade de juízo de atribuição de uma ação censurável a alguém, como seu autor verdadeiro. (RICOEUR, 2008, O justo 1, p.39) 156”

Ricoeur menciona que o conceito de imputabilidade já era conhecido antes do

termo responsabilidade ter o seu emprego conhecido fora do contexto da teoria política.

Porém, atualmente é o sentido de responsabilidade que se tornou mais conhecido e

costuma ser empregado no sentido de imputação. Como já foi dito, a idéia de

responsabilidade fragmentou-se e requer uma reestruturação. Já se sabe que um dos

motivos da fragmentação do conceito deve-se, segundo o filósofo, a maneira

152 Ibid, pp.33 a 61. 153 Ibid, p.33 a 61. 154 Ibid, p.38 155 Grifos do autor. 156 Idem p.39

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diversificada como a palavra foi interpretada. Porém, para Ricoeur, é a idéia de

espontaneidade livre, deixado por Kant, que está implicada no conceito de imputação

que mais contribuiu para a fragmentação da palavra. Ricoeur compreende que é

possível convergir o sentido de responsabilidade/imputação para uma teoria que atribui

o sentido de responsável ao homem que atua e sofre a ação. Para o filósofo a teoria é

uma contribuição da filosofia analítica, da fenomenologia e da hermenêutica. À

primeira Ricoeur atribui à teoria de Strawson, denominada ascription, que significa

atribuir um predicado designado pela ação a alguém. Para Ricoeur essa questão tem

relação com a questão entre sujeito e predicados dos particulares de base. Segundo

Ricoeur, essa teoria tem um sentido de imputação significando atribuição, nesse

aspecto, a teoria não considera o imperativo de obrigação moral.157

A palavra responsabilidade recebe de Ricoeur um sentido de imputação,

contudo, ela é vai além da operação predicativa que consiste semanticamente em

atribuir um predicado ao sujeito. Para Ricoeur, o sentido de ascription de Strawson não

se preocupa em perguntar pelo sujeito da ação e, perguntar por “quem” difere da idéia

de perguntar “que”. O filósofo francês considera que saber a identidade de quem é o

autor implica em poder predicar ao autor a obrigação de reparar e ou sofrer a pena. O

significado de responsabilidade é pensado por Ricoeur em termos linguísticos, pelo viés

predicativo, porém, é analisado, sobretudo, pelo viés da ética que está implícita na

atribuição predicativa.

Destaca-se num breve discurso, em que a pessoa se designa como autor, dois

pontos no agir: primeiro, uma ação não se coloca sozinha ela exige um sujeito ativo

para assumir a capacidade de executá-la. Desvelada a figura do sujeito da ação, torna-se

necessário perguntar com que intenção a ação foi executada e por quê. Para Ricoeur o

motivo ou o que causou a ação é mediado por uma força que impulsiona o desejo de

agir. Para o autor desejar-agir tem uma intencionalidade que somente pode ser atribuída

ao sujeito que age e não a ação propriamente dita. Com a inserção de uma

intencionalidade a ação deixa de ser um simples acontecimento descritivo para receber

um “status” de acontecimento vinculado ao raciocínio.

157 Ibid, p.56.

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No plano da fenomenologia hermenêutica, a ação pede que se perguntem quem

assume a responsabilidade pela ação que se passa no mundo; nesse sentido, a ação

desdobra-se do vínculo analítico de o que e por que da ação para que se procure saber a

quem deve ser atribuída à ação. Segundo Ricoeur, ao fazer referência à ação tendo-a

como um acontecimento no mundo que se passa motivado pela vontade/querer do

sujeito, a questão da ação deixa de ser um acontecimento apenas conceitual para tornar-

se um fenômeno que se revela no plano ontológico. Nesse plano, as ações tornam-se de

certo modo correlativas ao plano do fazer e ser capaz ou poder fazer tem relação com a

noção de pessoa, já que é ela a responsável por mostrar a sua própria identidade na

autoria da ação158. Se esse sentido for estendido ao outro pelo reconhecimento de que

o outro também é capaz de assumir para si a responsabilidade das ações cometidas

respondendo por elas. A responsabilidade torna-se, nesse nível, diferente de culpa,

podendo ser responsável por uma ação sem que seja culpada por ela.

Para Ricoeur a responsabilidade civil precisa ser reformulada como conceito

jurídico, já que a idéia de culpa é inapropriada juridicamente porque ela é um

sentimento que diz respeito à condição moral do sujeito159.

Em relação à questão de sermos responsáveis por mais alguém além de nossas

ações? Ricoeur assevera que somos responsáveis pelo frágil. – Aqui a responsabilidade

entra no plano moral – a responsabilidade aproxima-se da idéia de solidariedade – O

que não quer dizer que se é responsável por tudo e por todos incondicionalmente. O

filósofo considera que seria uma dificuldade para o sentido de responsabilidade se não

se sopesasse um tempo de duração para a idéia de solidariedade. Nesse sentido, uma

responsabilidade solidária ilimitada, em que se torna responsável por tudo e por todos,

deve ser rejeitada, simplesmente por que não é possível imputar a reparação estendendo

ao infinito. Para Ricoeur, é preciso lembrar um preceito grego que diz: “nada em

demasia”160.

Por fim, consoante Ricoeur um conceito de responsabilidade como imputação

implica na idéia de risco; o que torna o sentido de responsabilidade frágil à medida que

não há garantias de que o risco e a imputação possam sobrepor-se e se reforçarem

mutuamente. Para amenizar os efeitos colaterais do risco, Ricoeur considera que talvez

158 Op. cit., SA,1991, p. 73 a 107 159 Idem, p. 73 a 107 160 Op. cit., O justo1, p. 60.

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a solução seja compartilhar a idéia de responsabilidade com o sentido de phronésis ou

sabedoria prática que permite desenvolver um sentido de prudência.161

Compreendemos que se essa sugestão for aceita como válida; então os teóricos

da responsabilidade cujas idéias envolvem o sentido de imputabilidade, de

solidariedade e de risco partilhado poderão encontrar um apoio e incentivo para fazer

do conceito de responsabilidade algo além da idéia que consiste em obrigação de

reparar ou de sofrer a pena162.

b) a culpa

O sentido de culpa é analisado por Ricoeur a partir do termo culpabilidade.

Nesse aspecto, ela é compreendida como um sentimento que aparece a partir de uma

tomada de consciência. De acordo com Ricoeur, o sentido de “consciência é não

somente consciência da percepção e da atividade, mas consciência de vida. 163” Em

relação à culpabilidade, o autor considera que existe apenas um tipo: a moral. O

filósofo compreende que ao julgar e sancionar uma culpa por um dado crime; o que a

justiça de fato faz é deliberar a responsabilidade do ato e impor uma sanção se o ato não

estiver condizente com a lei. Ao julgar a qualidade do ato como culpado ou inocente, a

justiça tenta impor os valores morais vigentes da época, impondo valores considerados

bons ou maus de acordo com o contexto político do julgamento.

A justiça no ato de julgar tem por definição alguns valores morais considerados,

por ela, universais, todavia, para Ricoeur, é preciso ressaltar que eles foram escolhidos e

sancionados conforme os costumes e organização social de uma época. Já foi dito que a

teoria da justiça serve-se dos aspectos morais para fundamentar a lei e dar a ela um

caráter moral imutável e universal. A prática de justiça é um elemento facilitador, de

caráter objetivo e coercitivo, que faculta o julgamento para impor sanções à falta de um

valor moral e não à culpa.

A culpa, para Ricoeur é um sentimento individual que é mantido pela

consciência; que pode ser “considerada variável, circunstancial, espontânea e

eminentemente subjetiva”164. Assim, a responsabilidade de um crime, por exemplo,

pode ser imputada, mas em relação à culpa, cada qual precisa sozinho ter par si a

tomada de consciência. O filósofo compreende que “a vida humana não é moralmente

161 Idem, p. 61 162 Ibid, p. 61 163 Op. cit., SA,1991, p.218 164 Op. cit., O justo 1, p. 200.

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neutra”165, nesse aspecto, todos nós estamos, de certo modo, vulneráveis às experiências

morais que exprimem, por exemplo, a honra e a vergonha, a dignidade e a indignidade,

o sublime e o infame etc. Ricoeur considera que estes pares opostos são partes das

expressões da consciência comum dos indivíduos; contudo, a partir desses binários é

que a pessoa aprende a formar avaliações que implicam em julgamento moral.

Nesse espaço moral da consciência, é possível uma independência da obrigação

da lei. Para aquele que deseja “uma vida boa” acoplada à idéia de bem, é possível

exercer sobre si mesmo uma autonomia acoplada a uma sabedoria prática para orientá-

lo no percurso de um bem viver.

Páll Skúlason assevera que, para Ricoeur, a culpabilidade designa uma tomada

de consciência em que há o reconhecimento do mal cuja implicação aparece na

alienação da liberdade. A liberdade aparece, nesse caso, diretamente vinculada à

experiência do sujeito na questão da culpabilidade. O autor diz que, para Ricoeur, a

liberdade é paradoxal; o paradoxo da liberdade consiste em ser simultaneamente

consentimento e recusa. Nesse sentido, Skúlason assevera que a liberdade na questão

da culpabilidade é concebida, por Ricoeur, como uma experiência que, às vezes, se

apresenta como alienação efetiva da própria liberdade e, outras vezes, pelo esforço de

liberação da própria liberdade. Parece-nos que o sujeito experimenta a sensação de

liberdade de dois modos; primeiro sem se dar conta da própria liberdade e num segundo

momento, experimenta-a pelo dilema da negação da liberdade ou esforçando-se para

tentar agir com autonomia. Fizemos uso da palavra autonomia em lugar da palavra

liberdade, porque ela nos pareceu mais apropriada. 166

Em Ricoeur, a liberdade enquanto experiência do sujeito aliena-se ou desfaz-se

diante de si mesma; nesse aspecto, o sujeito é afetado pela liberdade quando ela

apresenta-se como recusa dela própria. É importante lembrar que para Ricoeur as

experiências fazem parte da vida humana, de tal forma, que a liberdade é negada ou

afirmada pelo sujeito. Assim, é a pessoa que em sua posição paradoxal diante da

liberdade, afirma a sua liberdade no próprio ato de negá-la.

Em relação à culpabilidade, consideramos que para Ricoeur, a liberdade está

alienada da sua própria condição de liberdade, de maneira que a culpa apresenta-se

como um sentimento que se expressa em forma de cativeiro. A pessoa, para ele, age

165 Idem. 166 SKÚLASON, P. Le Cercle du sujet dans la philosophie de Paul Ricoeur, 5. Le conflit et l’instance ontologique – Finitude, culpabilité et absolu – p.316.

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alienada da culpa, mas quando toma consciência desse sentimento, o indivíduo culpado

sente-se prisioneiro do próprio sentimento de culpa. Além disso, o autor considera que a

pessoa cativa do sentimento de culpa somente é libertada desse sentimento pela

confissão da culpa. Ao narrar o estado de culpabilidade, simbolicamente a pessoa sente-

se purificada. 167

O filósofo assevera que a narrativa é a forma confessional da culpa. Para

Ricoeur, a culpabilidade tem um caráter que se expressa pelo viés do sagrado, dos

símbolos e dos mitos. Nesse aspecto, a mitologia e o sagrado são formas de linguagem

simbólicas que abrem a possibilidade para a consciência expressar uma experiência

interior e singular, inacessível à linguagem comum, em uma expressão simbólica de

exterioridade.

A culpabilidade, para Ricoeur, assim como a idéia de justiça, tem a sua origem

no mito. Porém, no mito da falta e do pecado. A culpa, simbolicamente, traz em si um

sentido de sujo ou impuro. O filósofo considera que o homem culpado tem a sensação

de estar sujo por ter cometido uma falta moral; ela representa de certo modo, um pecado

com o sagrado. A pessoa, portanto, que se sente culpada, também se sente impura e suja

ou em pecado; a fim de redimir-se, o homem confessa-se seu ato. Ao confessar sente-se

redimido ou purificado diante do Puro bem. A culpa, segundo Ricoeur, tem a

necessidade de purificar-se novamente, o sujeito culpado deseja confessar a sua culpa

para obter o perdão do mal cometido. Ricoeur diz que a culpa é uma experiência

humana que se revela pela confissão. Gostaríamos, de manter ao lado da palavra

confissão o termo atestação; pois, essa palavra tem uma dimensão, que de acordo com

Ricoeur, guarda o sentido de confiança. Atestar é dar o testemunho ou testificar com

veemência algo que considera verdadeiro. Parece-nos que a atestação tem um

significado que está mais próximo do sentido de responsabilidade e o significado de

confissão mais aproximado ao sentido de culpa.

Em relação ao ato confessional é notável dizer que ele traz um sentido equívoco

e ambíguo, dessa maneira não expressa todas as experiências da culpa. Além disso, o

ato confessional tem que ser uma ação livre, isto é, a confissão não pode ser uma ação

obrigada. Ao contrário, ela precisa ser um ato voluntário cuja iniciativa parte do próprio

sujeito que se sente culpado e não suportando a aflição de viver com o próprio

sentimento de culpa, escolhe alguém para poder confessar ou narrar as suas experiências

167 Op. cit., L1, A culpabilidade Alemã p, 71 – Violência e linguagem, 59 - Ética e moral, 145. – O justo 1, Consciência e a lei. P.200.

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de culpabilidade. Quando a pessoa decide-se por expor aquilo que está causando-lhe

aflição e angústia ela ao fazê-lo está explicitamente diante de sua confissão que é uma

atestação de sua responsabilidade. Ricoeur assevera que para esse intento ocorrer é

necessário estabelecer entre os parceiros da relação interpessoal um vínculo de

confiança recíproca. A confiança será o elo entre os dois interlocutores que iniciarão um

diálogo.

Cabe ressaltar que a confissão é propriamente para o culpado um alivio. Porém,

a exposição do sentimento de culpa não implica em um pedido de perdão. Nem

tampouco, para Ricoeur, o perdão estabelece para o culpado o esquecimento da ofensa e

da ação. O filósofo lembra-nos que nessa questão do perdão se houver o esquecimento

da ação, então é possível que outra ação parecida volte a acontecer trazendo danos a

outrem. Em relação à culpa somente o próprio culpado é quem tem o poder de aliviar-

se. Ele pode exprimir a sua culpa ao dizer, por exemplo, “sou culpado”. Nesse momento

do dizer, torna-se responsável, já que, nessa atestação pelo dizer, está imputando

publicamente a si mesmo um sentimento de culpa. Esta aparece à consciência como

uma ação que para si é moralmente repreensível. Admitindo-a publicamente, o culpado

mostra ao outro que tem por desejo responder moralmente por suas ações168.

Lembramos que, para Ricoeur, o homem torna-se culpado na medida em que

toma consciência moral de sua culpa. Sob essa perspectiva, Ricoeur considera que a

culpabilidade tem um caráter moral e individual. Alguém não pode imputar a culpa ao

outro; pois, ela implica na tomada de consciência e isso acontece de maneira singular e

interior. A culpa é, portanto, um sentimento que somente afeta a pessoa quando a

experiência de vida já ganhou um significado moral, ela se revela, ainda, nas

experiências de alienação, por exemplo, as experiências das ações humanas

consideradas absurdas, nos sofrimentos, nas angústias.

O sujeito que age e sofre pelo caráter da culpa, apenas consegue expressar a sua

culpabilidade pela mediação específica dos mitos e dos símbolos. Portanto, a

culpabilidade tem um caráter específico que somente torna-se expressável pelos

símbolos e os mitos que permitem interpretar o mal na história.

O problema é que o sujeito não consegue confessar a sua falta por meio da

linguagem lógica, já que ela não consegue dar conta das contradições e das revoluções

íntimas da experiência da culpa. Parece-nos segundo Ricoeur que a culpabilidade tem

168 Idem, p. 200

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uma dimensão ética e antropológica; e nesse sentido, não podemos esquecer que, para o

filósofo, é o homem o ser que procura se conhecer tentando compreender as suas

experiências eticamente e por analogia a dos outros. Assim, a culpa implica em atos e

em um agente capaz, tanto de referir a si mesmo dentro de um valor de bom ou de mau,

como de julgar moralmente as suas próprias ações, tendo por referência as experiências

boas ou más. 169

Assim, é possível dizer que a tomada de consciência é a unidade mais profunda

da culpabilidade, sem ela não há possibilidade de arrependimento, nem de uma

transformação ética mais profunda nas atitudes em relação ao outro. Convém esclarecer

que, segundo Ricoeur, a culpa é sempre do âmbito da moral. Nesse sentido, a lei pode

somente sancionar e julgar o crime, mas não tem controle sobre a consciência moral.

Desse modo, apesar dos canais de justiça ter o poder de deliberar sobre a questão da

responsabilidade, por exemplo, de um crime; o espaço judiciário é limitado, não

cabendo a ele decidir sobre a culpa; o crime somente é culpável enquanto falta moral.

Ele é um sentimento e, como tal não pertence ao espaço público, mas ao espaço moral

dos indivíduos.

A responsabilidade permanece como capacidade de suportar uma sanção, porém

a sanção de reparação tem uma significação moral e, a justiça fica limitada em estender

a sua jurisprudência aos sentimentos privados à própria pessoa. Não é possível para a

justiça deliberar, por exemplo, sobre a raiva, o medo ou a cólera. Estes sentimentos são

do mesmo modo que a culpa, segundo Ricoeur, restritos ao âmbito da moral. O motivo

dessa limitação consiste em serem os sentimentos um modo subjetivo e inapreensível do

humano e eles não são apreensíveis pela jurisprudência. Grosso modo, portanto, o

aparelho judiciário pode julgar o que se considera moralmente justo, ele pode até dizer

se alguém é moralmente culpável diante dos outros e responsabilizá-lo por sua ação; no

entanto, não será possível ao judiciário obrigar esse indivíduo a se sentir culpável diante

da própria ação criminosa. Consoante Ricoeur, para que a pessoa se sinta culpável é

necessário que ela mesma tome consciência e tomar consciência é algo pessoal e

depende do sentido moral. 170

169 Ibid, p.200 170 Tomamos a liberdade de retirar o sentido de tomada de consciência da apresentação da Fenomenologia do Espírito de Hegel feita por Henrique Cláudio de Lima Vaz em que para Hegel as figuras da consciência se desenham no horizonte de seu afrontamento com o mundo objetivo, isto é, em face da história e da dialética que se apresentam pelas oposições sucessões de figuras das experiências da consciência.

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Capítulo 3 – O justo e o injusto no plano das mentalidades

3.1 Ética e Moral: a intenção de vida boa e a obediência às normas

O sentido de estimado bom e o conceito que se impõe como obrigatório será

abordado reflexivamente tendo como texto de base “Ética e Moral” (1990), ensaio de

Ricoeur. Como já foi dito, anteriormente, este estudo compõe a terceira das reflexões

reunidas em Leituras 1 – Em torno ao Político. Esse texto aplica-se em ultrapassar o

sentido opositivo entre uma ética de finalidade e uma moral do dever para poder

delinear uma perspectiva de uma “sabedoria prática”.171

O primeiro parágrafo, do ensaio citado, é reservado para explicar as diferenças

entre ética e moral e o porquê da distinção entre as duas. Grosso modo, o autor diz que

não há nada na etimologia das palavras e na história que exija algum tipo de distinção.

Para ele, os dois termos remetem à ideia de costume, ethos que vem do grego e mores

procedente do latim. Todavia, para ele, há uma graduação sutil que conduz o sentido de

ética para o que é “estimado bom” e o de moral para o que se “impõe” como

“obrigatório na lei”. Nesse aspecto, por convenção do filósofo, o termo da ética será

abrigado no significado de “uma intenção de uma vida realizada sob o signo das ações

estimadas boa”; o sentido de moral estará ao lado do que é assinalado pela obrigação,

isto é, penderá para a obrigatoriedade das normas e das interdições que põe acento às

exigências de universalidade e por efeito de coação. Portanto, a ética será reconhecida,

por Ricoeur, por um sentido de “vida boa” e a moral por um senso de obediência a

obrigação das normas; a primeira é uma herança aristotélica e a segunda um legado de

Kant.

Ricoeur diz que sem ter uma preocupação ortodoxa para significar os conceitos,

assumirá a perspectiva ética de Aristóteles, entendendo-a por um aspecto teleológico,

(télos, significando fim); e a ideia kantiana de moral, considerando-a pelo caráter de

obrigação da norma, tendo, assim, um ponto de vista deontológico, (deon com

significado de dever). Ricoeur preserva em sua teoria três momentos: o primeiro

consiste em se ter para a ética a prioridade sobre a moral; o segundo requer que se passe

imprescindivelmente à intenção ética pela triagem da norma; o terceiro define-se pela

171 RICOEUR, P. Leituras 1 – Em Torno ao Político, “Ética e Moral”, trad. Marcelo Perine, Ed. Loyola, São Paulo, 1995 p. 161.

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legitimidade de um recurso da norma para a ética, em questão, quando a regra acarretar

em conflitos em que a única alternativa será uma sabedoria prática remetendo à

singularidade da situação. Nas próprias palavras do autor, portanto, seria:

1) a primazia da ética sobre a moral; 2) a necessidade para a intenção ética de passar

pelo crivo da norma; 3) a legitimidade de um recurso da norma à intenção ética, quando

a norma conduzir a conflitos para os quais não há outra saída senão uma sabedoria

prática que remete ao que, na intenção ética, é mais atento à singularidade das

situações. (RICOUER, Ética e Moral, pp. 161, 162.)172

3.2. “Visar à vida boa”: cuidado de si. Dos três momentos fortes da definição de “perspectiva ética”; a intenção ética é

a primeira e trata-se da questão de visar à “vida boa”. 173

A respeito da expressão aristotélica “intenção da vida boa”, o autor, enfatiza-a,

no modo gramatical do optativo e não imperativo, dando-lhe um sentido de aspiração:

“possa eu, possas tu, possamos nós viver bem!” O filósofo considera que se a palavra

“aspiração” for uma sugestão excessivamente fraca, então, poder-se-á utilizar a

expressão de “cuidado”, como: “cuidado de si, cuidado do outro, cuidado da

instituição.”174

Ricoeur põe em questão se não seria melhor começar a sua reflexão pelo sentido

de “cuidado do outro” em vez de “cuidado de si”. O autor insiste nesse ponto porque na

primeira expressão o termo si é, por ele, associado ao sentido de estima, no plano da

ética, e de respeito, na dimensão da moral. Também, porque em relação ao sentido de si,

ressaltado no texto, o filósofo assevera que não se deveria confundi-lo com termo

pronominal “eu”.

De acordo com o pensador existem duas coisas essencialmente estimáveis em

si mesmas: primeiramente a capacidade de agir intencionalmente; em segundo lugar,

pela capacidade de poder agir por iniciativa, introduzindo mudanças. Nesse aspecto, a

estima de si é o momento reflexivo da práxis. Para o autor, é “apreciando nossas ações

que apreciamos a nós mesmos como sendo autores delas” Ele considera que seria

172 Idem pp. 161, 162. Segundo Ricoeur o conteúdo referencial de vida boa é: “para cada um, a nebulosa de ideais e de sonhos de cumprimento com respeito à qual uma vida é considerada mais ou menos realizada ou irrealizada. É o plano de tempo perdido e do tempo reencontrado. Nesse sentido, é ‘em vista de que’ tendem as ações que tinham o seu fim em si mesmas [...]”. p. 210. “No plano ético é a adequação entre nossos ideais de vida e nossas decisões, elas próprias vitais [...]” p. 211. 173 Idem p. 162. 174 Ibid, p. 162. Obs.: O termo “cuidado” é de Heidegger, e será usado por Ricoeur, sem ortodoxia.

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imprescindível produzir toda uma teoria da ação a fim de mostrar como a estima de si

acompanha a ordem e as subordinações das ações.

Embora, a questão do si possa remeter a um sentido de outro, segundo Ricoeur,

nesse estudo a preocupação é de estabelecer o primado da ética sobre a moral, isto é, da

perspectiva sobre a norma. Nesse sentido, ele iniciará a sua reflexão esclarecendo

primeiramente o sentido de a intenção ética ter a primazia sobre a norma moral. Para o

filósofo é preciso dar a esta última um lugar justo, sem que, no entanto, ela tenha a

posse da última palavra.175

Iniciaremos pela definição da “perspectiva ética” que é denominada, por

Ricoeur, de a perspectiva da “vida boa” com e para os outros nas instituições justa.

Como dissemos, essa expressão é dividida em três momentos. O filósofo considera que

a vantagem, para ele, de iniciar na problemática ética pela noção de “vida boa” é que

não precisará fazer referência direta à questão da ipseidade sob a aparência da estima de

si. Para o autor, a estima de si em sua primeira significação, na qual a avaliação de

certas ações estimadas como boas reportam-se ao autor dessas, sem a estrutura dialógica

que introduz as referências em relação ao outro, permanece em uma significação

abstrata. Do mesmo modo, a estrutura dialógica sem a referência as instituições justas,

fica também incompleta. A esse respeito, a estima de si somente tem uma significação

completa quando está delimitada pelos três aspectos.

O primeiro elemento da perspectiva ética é, para Ricoeur, o que Aristóteles

denominou de “viver bem”, isto é, a “vida boa” ou a vida verdadeira. Para ele a “vida

boa” é o que deve ser nomeado primeiramente por ser o próprio objeto da perspectiva

ética. O filósofo assevera que qualquer que seja a imagem que cada pessoa tenha feito

para si mesmo de uma vida realizada, esse será o télos, isto é, a finalidade última de sua

ação. O autor nos lembra de que na ética Aristotélica, o bem somente pode ser tratado

como algo particular da práxis, nesse aspecto, o bem é tratado com uma intenção que

serve para o agente de estabelecer uma boa prática para a sua ação; lembrando que uma

boa prática é sempre justa e equitativa. Assim, toda ética aristotélica supõe o uso bem

como fim último de sua ação, sendo que esse uso do predicado bom não é algo que se

satura.

Paul Ricoeur considera que guardaremos dessa herança aristotélica, duas

grandes lições: primeiramente tem-se um aprendizado com a ancoragem na práxis da

175 Op. cit. O si mesmo como um outro, p.202.

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ética da perspectiva da “vida boa”. A segunda lição decorre da tentativa de Aristóteles

em constituir a teleologia interna para a práxis; princípio estruturante da perspectiva da

“vida boa”. Nessa reflexão aristotélica há um paradoxo segundo o qual a praxis, isto é, a

boa praxis seria para si mesma seu próprio fim, ao visar um fim ulterior. O problema

não resolvido por Aristóteles repousa na questão da escolha e da deliberação, esse

filósofo examina essa questão restringindo o alcance da deliberação. Ricoeur considera

que o paradoxo teria sido solucionado se tivesse sido encontrado “um princípio de

hierarquia, tal que as finalidades fossem de algum modo incluídas umas as outras, o

superior como o excesso do inferior”. De acordo com Ricoeur, uma solução oferecida,

por Aristóteles, quase que na forma de um esboço, refere-se a um modelo de sabedoria

prática, que os filósofos latinos traduziram por prudência, regulando e dirigindo o

caminho da vida do homem da phronésis e do phronimos176.

Para Ricoeur, essa praxis deve ser lembrada pela sua dimensão significativa

trazida por uma noção de regra constitutiva abrindo um espaço em que é possível

desenvolver apreciações de aspecto avaliativo vinculado aos preceitos do bem fazer.

Essas apreciações de qualificação propriamente ética são asseguradas por um recurso

que é o padrão de excelência da prática que estabelecem atividades coletivas de caráter

cooperativo. Nesse espaço de cooperativa partilhamos padrões de excelência que se

referem à perspectiva ética do bem viver. Nessa prática, os padrões de excelência

permitem, de um lado, que partilhemos a ideia de bens imanentes para pratica. Estes

constituem a teleologia interna à ação, no plano fenomenológico, isso corresponde a s

noções de interesses e de satisfação que fornecem o primeiro ponto de apoio ao

momento reflexivo de estima de si. Nesse sentido, para o filósofo, é no momento em

que apreciamos nossas ações que nos apreciamos nós mesmos como autores delas.

A vida boa tem as suas ações em um plano de vida que procedem de um

movimento de vaivém entre as ideias distantes e os domínios da prática. Cabe dizer que

para o filósofo “o sentido de vida recebe uma dimensão apreciativa e avaliativa do

ergon que qualifica o homem como tal. Este ergon está na vida, tomada em seu

conjunto, o que é o padrão de excelência de uma prática particular.”177

176 Op. cit. O si mesmo como um outro, p. 206 - obs. Os termos phronesis e phronimos de Aristóteles tem o sentido de boa deliberação, saber deliberar bem. Num sentido mais moderno, segundo Ricoeur: “diríamos é um trabalho incessante de interpretação da ação e de si mesmo que prossegue a pesquisa de adequação entre o que nos parece o melhor para o conjunto de nossa vida e as escolhas preferenciais que governam nossas práticas”; p. 211. 177 Idem, p. 209

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Ricoeur chama de plano de vida a ligação entre o ergon do homem que é a

adequação para a execução da escolha da prática e os padrões de excelência escolhidos

como ideal de vida. O termo vida que aparece repetidamente nas expressões: “plano de

vida”, “unidade narrativa de uma vida” e “vida boa”, designam simultaneamente o

enraizamento biológico da vida e a unidade do homem completo, enquanto se aprecia

reflexivamente. Essa perspectiva, de acordo com o autor, segue os pressupostos de

Sócrates em que uma vida sem exame é indigna desse nome. Nesse “plano de vida” tem

um sentido voluntário, esse plano é para o homem um projeto existencial, cuja noção de

unidade narrativa insiste pela composição entre intenções, causas e acasos. O homem

em seu projeto de vida é um ser ativo e ao mesmo tempo passivo em relação aos

sofrimentos e as eventualidades da vida.

A vida boa é para cada pessoa um projeto quase indistinto de ideais e de sonhos;

em que há uma vida realizada e irrealizada, um plano perdido e outro reencontrado; é

enfim um espaço de possibilidades e de limitações, em uma constante tensão entre o

fechado da finalidade e o aberto da estrutura global da praxis. Para Ricoeur “o que se

pensa aqui é a ideia de uma finalidade superior que não deixaria de ser interior ao agir

humano”.178

Esse projeto de vida é, para o filósofo, um trabalho incessante de interpretação

da ação e de si mesmo. Para ele há muitas maneiras de inserir uma perspectiva

hermenêutica: primeiramente entre a perspectiva ética e nossas escolhas singulares

desenha-se um círculo hermenêutico em virtude do ir e vir entre a ideia de vida boa e as

decisões que assinalam a nossa existência. Nesse aspecto, é “como um texto no qual o

todo e a parte compreendem-se um ao outro”. Para Ricoeur, após a ideia de

interpretação é acresce a ideia de significação e de significação para alguém. Desse

modo, interpretar o texto da ação é para a pessoa interpretar-se a si próprio. No plano

ético a interpretação de si torna-se estima de si.

3.2. Viver bem com e para o outro: a solicitude

Ao passar para o segundo termo, nomeado por: “viver bem com e para os

outros”, o filósofo recorre ao termo solicitude. Segundo Ricoeur, a estima de si tem um

caráter reflexivo que implica em um desdobramento, no horizonte da “vida boa”, em

direção à solicitude. A questão é como esse componente da perspectiva ética se

178 Op. cit. O si mesmo como um outro, p.210.

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desdobra na estima de si? No aspecto reflexivo sobre o horizonte da “vida boa” a

solicitude não pode ser pensada sem a estima de si, o desdobramento de uma para a

outra acontece na dimensão dialógica. Desse modo, a solicitude acrescenta à estima de

si as condições dialógicas subentendidas no próprio significado de solicitude em que

dizer si não é o mesmo que dizer “eu”, ao contrário, “o si implica em uma abertura em

direção ao outro de si a fim de que se possa dizer de alguém que ele se estima a si

mesmo como outro”. Para Ricoeur, somente por abstração é que se pode dizer da estima

de si sem tê-la posta em dupla com a questão da reciprocidade; do contrário haverá uma

exigência de um esquema cruzado requerendo a pronuncia de “tu também”. Esta pode

ser entendida, como, por exemplo, “tu também és um ser de iniciativa e de escolha,

capaz de agir segundo razões, [...] és capaz de estimar a ti mesmo. O outro, nesse

aspecto, é aquele que pode dizer eu como eu e, como eu, ser considerado um agente,

autor e responsável pelos seus atos. Do contrário, nenhuma regra de reciprocidade seria

possível.” 179

A reciprocidade tem um caráter singular transformando as pessoas, por meio do

reconhecimento, em seres insubstituíveis. Esse tipo de reciprocidade é a chave da

solicitude. Segundo Ricoeur, a reciprocidade em que um estima o outro tanto quanto a

si, aparentemente, se completa pela amizade; contudo, o filósofo nos alerta que é

somente por aparência, já que a reciprocidade não elimina certa dessemelhança.

Entretanto, a desigualdade é corrigida por um reconhecimento que restabelece a

reciprocidade, por exemplo, uma desigualdade que provenha da fraqueza ou do

sofrimento do outro, pode ser restabelecida por um sentimento de compaixão. A

compaixão, para ele, restitui à reciprocidade na medida em que, aquele que visivelmente

é o único a dar recebe mais do que dá por via da gratidão e do reconhecimento. A

solicitude restaura a igualdade no lugar em que ela não é oferecida, como na amizade

entre semelhantes.

3.3. Desejo por instituições justas

O terceiro termo implica, segundo Ricoeur, em “viver bem, com e para o outro,

em instituições justas”. Nesse sentido, a intenção que requer em se ter a vontade do

viver-bem abrange também o sentido de justiça. Este último é exigido pela noção de

outro que também tem o sentido de “tu”. A justiça por relação mútua estende-se para

179 Op. cit. Leituras 1, p.163.

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além da fronteira interpessoal. Viver bem, para o filósofo, não se limita as relações de

mutualidades pessoais, esse viver estende-se à vida nas instituições. O autor considera

que a justiça exibe delineamentos éticos que não estão inclusos na noção de solicitude,

por exemplo, a exigência de igualdade diferindo da equidade por amizade.180

A respeito do sentido de instituição, o filósofo assevera que é preciso entender

por esse termo, num primeiro momento da investigação o seguinte: “todas as estruturas

do viver-em-comum de uma comunidade histórica, irredutíveis às relações interpessoais

e, contudo ligadas a elas num sentido específico, que a noção de distribuição –

encontrada na expressão ‘justiça distributiva’ – permite esclarecer.”181

O autor entende que se poderá compreender o sentido de instituição como um

sistema de partilha em que se repartem tudo o que se faz menção às vantagens e

encargos de direito. Esse caráter distributivo da instituição incita um problema que, em

um sentido mais específico, diz respeito às partilhas vinculadas ao sistema de

distribuição. Para o filósofo, tem-se de considerar que no plano da instituição os

horizontes são mais vastos e ampliados do que os das relações interpessoais de amizade

e de amor. Nesse sentido, a justiça institucional cujas partilhas são feitas por meio de

um processo de distribuição pode ter na intenção ética uma extensão ampliando o seu

campo de atuação; assim, a justiça ao estender-se eticamente para além de um face-a-

face tem na especificidade do “cada um” aquele a quem se destina ou reserva o que cabe

numa partilha justa, isto é equitativa.

Ricoeur considera que possivelmente as pessoas se assombrem com o fato de

não se falar de justiça exclusivamente no campo moral, incluindo para esse tema o nível

ético. Ele mantém-se abordando a justiça no plano ético em razão da própria inscrição

dela no sentido do justo na intenção da vida boa e com respeito à amizade pelo outro. A

primeira razão que legitima essa inserção é: “a origem quase imemorial da ideia de

justiça, sua saída do molde mítico na tragédia grega, a perpetuação das suas conotações

religiosas até mesmo nas sociedades secularizadas atestam que o sentido da justiça não

se esgota na construção dos sistemas jurídicos que ele suscita.” A segunda razão

consiste em um sentido de justiça que tem um laço recíproco com o de injustiça. Para o

pensador é pelo modo de reivindicação que se entra em contato com a dimensão do

injusto e o justo da justiça. 182

180 Idem, 164 181 Ibid, 164 182 Op. cit. Leituras 1, p. 165.

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A primeira reclamação que se faz diante da justiça é a exclamação: “isso é

injusto!”. De acordo com o filósofo, o tratado da justiça nas Éticas de Aristóteles segue,

nesse ponto, o percurso de Platão. O problema consistirá em desenvolver um senso de

igualdade proporcional mantendo as inevitáveis desigualdades da sociedade no campo

da ética. A justiça distributiva enquanto equidade proporcional considera que cada um

receberá na medida da sua contribuição e de seu mérito. Nesse aspecto, para Ricoeur, é

inevitável que a ideia de justiça implique também em um sentido formal, pelo qual se

assinalará a seguir a moral. No momento, convém-lhe marcar que, para ele: “a justiça é

ainda uma virtude na via da vida boa, e no qual o sentido do injusto precede por sua

lucidez os argumentos dos juristas e dos políticos”.

3.3 A sabedoria prática: a justiça em ação

a) O conflito e a sabedoria prática

Começamos nossa pesquisa descrevendo a prática da justiça em relação às

ocasiões ou circunstância de conflito. Nesse sentido, mostramos, segundo Ricoeur, as

aplicações da ideia de justiça, em geral, nos canais e vias jurídicas em que a ideia surge

em situação de desacordo, divergências; mais amiúde surgem como contradições,

oposições ou luta de princípios, ou de proposta e atitudes, sejam quais forem os motivos

do conflito é o direito quem dá a forma do processo. Nas reflexões de 1990 “O trágico

da Ação” em Soi-même comme um autre e de 1991 em “O justo entre o legal e o bom”

em Leituras 1 em Torno ao Político, a noção de conflito é explorada, por Ricoeur,

tendo o aspecto do “conflito” como problemática do justo da justiça. Nesse aspecto, ele

apresenta-se na esfera da justiça em decorrência de situações singulares, por exemplo,

quando há um confronto entre convicções antagônicas. Ricoeur vincula esse confronto

aos aspectos de certa situação de julgamento moral, pois é ela que suscita uma reflexão

dentro do âmbito da prática política da justiça institucional.

Em relação ao conflito temos, segundo Ricoeur, no plano interpessoal, um

contexto prático cujas ações quando tem o caráter moral, geralmente, são fontes de

conflitos. Para o filósofo, é um obstáculo para a justiça quando os conflitos tornam-se

rígidos e inflexíveis a outros pontos de vista que sirvam de recurso para que a

moralidade possa tentar encontrar uma alternativa para conduzir as regras a um

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julgamento moral em situação. 183 A respeito do conflito e da sabedoria prática Ricoeur

diz:

Sem a travessia dos conflitos que agitam uma prática guiada pelos princípios da moralidade, sucumbiríamos às seduções de um situacionismo moral que nos entregaria sem defesa ao arbitrário. Não há caminho mais curto que aquele, para alcançar esse tato graças ao qual o julgamento moral em situação e a convicção que são dignos do título de sabedoria prática. (RICOEUR, p.282)184

Uma alternativa à justiça institucional em casos de conflitos seria operar

apelando para o recurso de uma ética teleológica que possa se expressar por meio de

um tipo de “sabedoria prática” a qual é instruída pelo próprio conflito. Lembramos que

no conflito de convicção há um fundo moral de cujos princípios podem apresentar um

traço inflexível. Nesta circunstância, ele pode acirrar-se dando origem a reivindicações

que se impõe uma decisão sobre o que é justo. Nesse aspecto, os conflitos apesar da

mediação dos canais de justiça com seus procedimentos codificados e os confrontos de

argumentos regrados por uma norma, assim como a proclamação da sentença; se não

tiver o recurso da “sabedoria prática” contribuindo para orientar as ações humanas sob

o signo do bem, a justiça poderá fracassar na luta por um consenso. A sabedoria prática

é um recurso vinculado às convicções bem ponderadas. Para Ricoeur, as convicções

merecem cuidados e apresentam sinais de perigos quando são afetadas por preconceitos

e por intolerância aos outros pontos de vistas. A convicção para ser segura quando ela

reivindica para si um equilíbrio refletido entre os próprios interesses e os dos outros. A

convicção é ponderada quando rompe com as próprias amarras e consegue ver os outros

pontos de vistas.

A sabedoria prática é um aprendizado adquirido das lembranças históricas e

culturalmente em virtude do trágico e do sofrimento vivido e provocado. A sabedoria

aparece quando já estamos cansados ou esgotados de tanto sofrer ou de fazer o outro

sofrer; quando tomamos consciência de nossas ações injustas; então só nos resta

procurarmos transcender essa fase optando de boa vontade por uma vida melhor. Nesse

aspecto, em virtude de se querer viver bem e por ter a intenção de agregar ao justo um

sentido de bom damos, então, um novo sentido a justiça desatando-a de uma rigidez

própria do plano formal; acrescentado, assim, novos traços as ações nas relações

interpessoais.185

183 Op.cit., SA,1991, O trágico da ação, p 283 à 344 . 184 Op. cit., SA. (1991), p.282 - (o plano da sabedoria prática é o plano da phrónesis, da prudência como arte de decisão equitativa em situações de incerteza e conflito, portanto no âmbito do trágico da ação). 185 Op. cit., SA, 1991, Instituição e conflito, p 293.

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Já comentamos anteriormente sobre a justiça e a injustiça, no entanto, cabe

retomá-la com referência para valorar as ações tidas de um lado como boas ou justas, e

de outro, como más ou injustas. A justiça que se apresenta como mediania, foi primeira

vez analisada em Aristóteles. Nele a justiça é chamada a decidir entre dois extremos, no

qual o ato justo é mediano.186 Esses extremos encontram-se moralmente entre os

excessos e a escassez. Para o filósofo antigo, o termo justiça, em contraste com a

injustiça, significa: “uma disposição moral que torna os indivíduos aptos a realizar atos

justos e que os faz agir justamente bem como a desejar o que é justo”. 187

As ações injustas, em particular, são atribuídas ao desregramento e aos vícios e

abrange, por conseguinte, o nível das relações interpessoais. Neste âmbito, a justiça e a

injustiça significam a prática da virtude ou do vício, em geral, em relação a alguém.188

Nesse contexto, um homem injusto é iníquo e, dessa forma não é equitativo. O justo, ao

contrário, sustenta uma posição que recomenda para si mesmo a mediania da igualdade;

entretanto, ele o faz, sem que essa recomendação implique em uma determinação e sem

a necessidade de se evidenciar aos indivíduos para os quais é justo. A justiça é uma

espécie de proporção cuja medida é o sentido de uma igualdade distributiva. Ela surge

como elemento que proporciona aos indivíduos uma mediania entre dois extremos: “o

demasiado muito e o demasiado pouco”. Nessa conjunção singular, o justo é a

combinação que dá aos conflitos e às queixas um sentido do que é mais desejável e esse

mais desejável é efetivamente bom entre os dois extremos.

A “sabedoria prática”, portanto, é o recurso ético que permite à instituição

conduzir as próprias ações de modo mais justo para tentar amenizar os conflitos

interpessoais. As ações da justiça que são atravessadas por esse recurso ético, merecem,

para Ricoeur, o título de equidade. Este elemento ético possibilita, por exemplo, na

ocasião do conflito se tentar elaborar algum tipo de diálogo que sirva para se construir

um caminho para um consenso-conflitual.189 A sabedoria prática é um aprendizado que

estabelece uma perspectiva ética para o sujeito da ação. Essa perspectiva consiste em

uma aspiração ou desejo de querer para si, uma vida boa com e para os outros em

instituições justas. Essa teoria ética não implica em um dever obrigando a pessoa a agir

bem e somente é válido, para Ricoeur, se puder servir-se da phronesis como orientação

para o bem viver. Esta visão teleológica que tem a sabedoria prática por elemento

186 Op.cit., Ética a Nicômaco, pp. 135, 143 187 Idem, 139 188 Idem, p. 139. 189 Op. cit., O justo 1, p.65.

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orientador das ações; tem em sua finalidade um propósito calcado no esforço para se

tentar alcançar esse tipo ideal de vida ética.

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Conclusão

Nossa intenção aqui é resgatar as ideias principais de cada capítulo para

estabelecer nossas considerações finais. Todavia, tomamos a liberdade de não seguir

rigidamente os capítulos. Começaremos retomando a ideia de que para Ricoeur é o ser

humano que se exprime no mundo, é ele quem vive os conflitos que projeta e inscreve

sua dor e a sua ação no mundo. Nesse aspecto é a pessoa o ser capaz de instituir

linguagem a fim de exteriorizar a sua subjetividade, imaginação, assim como os seus

sentimentos e interesses mediante sequências simbólicas. O ser humano nominado, por

Ricoeur, de homem capaz é quem reflete a partir de ideias; é quem idealiza, se ilude,

sofre, age e extrai sentido de sua própria existência e após extrair sentidos tenta

interpretá-los resignificando-os ao dar novos sentidos a estes. O homem para Ricoeur é

um ser hermenêutico que no esforço de se compreender vai interpretando, explicando as

suas experiências pelos experimentos das coisas e dos acontecimentos. Nesse aspecto, é

a pessoa quem cria novos sentidos e nesse movimento hermenêutico segue

reestruturando a sua própria existência.

Nesse sentido, compreendemos que a ideia de justiça, de bondade, de legalidade,

igualdade/equidade não podem em nosso entender ser meramente conceitos. Todas

essas palavras são carregadas de sentidos, isto é, de significações. Contudo, parece-nos

que, no nível da vida cotidiana, os princípios de justiça, como, por exemplo, a liberdade

e a igualdade são reduzidas, muitas vezes, aos modos procedimentais da instituição

política e governamental. Parece-nos, de acordo com Ricoeur, que a hermenêutica é a

via em que esses termos ganham uma profundidade reflexiva, pois ela nos desafia a sair

de nossa ilusão de uma consciência imediata que busca os significados em sua forma

mais aparente. O método hermenêutico auxilia-nos a uma tomada de posição mais

consciente mediante a decodificação dos significados não aparentes dos termos. Os

conceitos, configurados em signos e significados, ultrapassam essas configurações para

simbolizar sentimentos, avaliação, vontades e outras aquisições no nível de uma

episteme. Palavras como, por exemplo, liberdade e igualdade comportam inúmeros

significados e se renovam de acordo a interpretação que confere uma expressão. Seja

qual for o sentido conferido à palavra ou ao termo não devemos perder de vista que elas

se contextualizam a partir de uma situação, da compreensão e da interpretação de um

texto. Para Ricoeur compreender não se dirige a apreensão de um fato, mas a nossa

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possibilidade de ser. Esse poder ser confere um sentido ontológico cuja função é manter

uma relação com a palavra estendendo-a ao mundo e ao outro. Neste sentido, as

palavras podem ser faladas e ouvidas, escritas ou lidas de qualquer modo elas têm a

função de remeter-nos ao que é dito. Os termos podem tornar-se ideias, princípios e

valores morais que reflexivamente abrem possibilidade de orientar-nos no julgamento

para uma investigação de nós mesmos e de nosso mundo em relação à ética, a política

etc.190

Procuramos nessa investigação um sentido que não estivesse somente voltado a

si mesmo enquanto conceito, mas que tivesse um significado que se estendesse para o

mundo. Parafraseando Ricoeur, no começo, este mundo seria estranho a nós, contudo

ele se tornaria compreensível à medida que o apreendêssemos ao narrar as nossas

histórias tentando teorizar as nossas próprias experiências. Parece-nos que na questão da

justiça primeiro, voltamos o nosso olhar ao sentido da palavra, depois de modo curioso,

pelo assombramento que tivemos diante dos diferentes sentidos do termo, fomos à

busca de novas explicações, por fim tentamos encontrar uma explicação que pudesse

dar conta não só do estranhamento, mas do significado da justiça em nossas relações

pessoais no cotidiano.

Entretanto, o mais curioso é que no cotidiano, nem sempre damos conta desse

assombramento. Talvez, porque na maioria das vezes agimos por impulso, alienados das

crenças que servem de base para os aspectos mais comuns de nossas experiências. Ou

talvez, porque vivemos nossas experiências no cotidiano de modo apressado, sem

prestar atenção que a nossa vida está imbricada às outras vidas. Convivemos

geralmente em busca de benefícios, mas quando nossa procura encontra-se com o senso

de justiça, muitas vezes estamos destituídos do aspecto reflexivo. A falta de um

horizonte reflexivo abre a possibilidade para um agir sem prudência. A sabedoria

prática situada no plano da phrónesis se traduz por prudência que é a arte da decisão

equitativa em situações de incerteza e conflito. Esse recurso à disposição da ética do

viver-bem é o final do percurso para sentenciar em situações desconcertantes.

Saber julgar sabiamente é diferente do simples ato de julgar. Para Ricoeur, a

primeira requer uma disposição para partir de uma ideia teleológica guiada pela tríade:

estima de si, solicitude e cuidado com a instituição; as três são formadas pelo querer.

Este se mostra primeiro no desejo ou perspectiva da vida boa, em seguida nosso desejo

190 Ricoeur, Paul, Hermenêutica e Ideologia, Tradução Hilton Japiassu, Ed. Vozes Ltda. Petrópolis, RJ, 2008 p. 36,37 e Op. Cit. O justo, p.226, 227, 228, IV.

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se expande para fora de nós e assim, que seja uma “vida boa” com e para os outros, e

por último que a vida seja vivida em instituições justas. Essa intenção atravessa a

abordagem deontológica que é determinada pela noção de norma, obrigação, proibição,

formalismo e termina sua trajetória no plano da sabedoria prática. O querer viver bem

para Ricoeur é um ato reflexivo exigindo da pessoa um esforço para poder por o seu

projeto de vida em ação. O caminho da efetivação do querer viver bem está, segundo o

autor, enraizado em um projeto moral em nossa existência que inclua o ético marcado

pelo desejo, pela carência e pelo frágil de um sentido de bom para mediar o legal para

o justo. A bondade se caracterizará como meta do desejo e sob o signo da justiça o bom

se torna um bem encontrado na figura do bem-comum.

A ideia de justiça, em consonância com Ricoeur, não é apenas aquela

reconhecida como prática de justiça imbricada à esfera da jurisprudência e da instituição

social e governamental. Essa ideia entrecruza diferentes eixos: na ordem prática, há a

hierarquia de princípios que compõem as teorias e conceitos para formar uma ideia

formal e processual de justiça; já no plano da moral, a ideia de justiça é abordada ao

lado da ideia de verdade, e para garantir esse estatuto à justiça, moralmente se a situa no

espaço da norma, da proibição, do dever, do formalismo e do procedimento. Vimos que

para o nosso autor, essa ideia não se resume somente em situá-la nessas interseções,

pois a noção seria incompleta se não pudesse se desdobrar em diferentes sentidos e

significações incluindo a dimensão do simbólico, do mito e do sagrado. Na ideia de

justiça, de acordo com o filósofo, cabe não só o tratamento procedimental e todas as

formalizações racionais dos princípios para mantê-la como virtude das instituições

sociais. Mas, também os sonhos caracterizando-se pelo desejo da vida boa, as emoções

que não tolerando mais a injustiça, por exemplo, a arrogância, o desprezo, o ódio ao

estranho e emite um grito autêntico de indignação. Este grito, simbolicamente pode ser

um alerta, um pedido de socorro ou um modo de chamar a nossa atenção para as

injustiças que ocorrem no mundo. A injustiça clama por um sentido de bondade

caracterizado pelos sentimentos de respeito, estima e solicitude. Essa tríade, segundo o

autor, desenvolve-se no plano ético da perspectiva da vida boa em conjunto com o

sentido deontológico que coincide com o conceito de obrigação moral kantiano. Quando

articuladas nesse contexto, a estima que é formada por um sentido de autonomia de si,

mostrando-se na capacidade própria de agir, falar, refletir e responder por seus atos; e o

respeito à humanidade iniciando-se pela pessoa representada por si mesmo e

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estendendo-se à pessoa do outro e de outrem ganham uma projeção de solicitude que se

alarga em direção à cidade e dos fins a que cada um está submetido.

Consideramos que a estima de si, o respeito e a solicitude desdobrados na ética

da “vida boa” permitem, em ocasiões ou em circunstâncias de conflitos, nas quais a

justiça é chamada a decidir a fim de atribuir a cada um a sua justa parte, a mediação da

sabedoria prática; podendo ser o elemento que torna possível ao ato de julgar as

“convicções bem ponderadas”. Segundo Ricoeur: “a sabedoria em julgamento consiste

em elaborar composições frágeis sempre que é preciso decidir não tanto entre o bem e o

mal, e o branco e o preto, porém mais entre o cinzento e o cinzento, ou – caso

eminentemente trágico – entre o mal e o pior”191.

A prática de justiça concerne em saber efetuar concretamente uma ação

ponderada. Nesse sentido, em primeiro lugar trata-se de saber analisar as passagens das

máximas gerais da ação ao julgamento moral em situação, tendo em vista que para cada

situação é preciso um senso de renovação dos recursos das singularidades inerentes à

perspectiva da “vida boa”. Cabe lembrar que para Ricoeur o julgamento moral

desenvolve a dialética entre a perspectiva ética e a norma moral.192

Na convivência diária, o senso de justiça revela-se no sentido ético do respeito

como a regra básica de bem viver. Compreende-se que o respeito é um valor que

possibilita conciliar uma perspectiva ética de vida boa que possa transitar entre o bom e

o legal do justo. Em outros termos, poder-se-ia dizer que se há o respeito entre os

indivíduos, então existe uma abertura para um bem viver a vida boa. Nesse sentido, o

diálogo será o modo que o respeito se concretizará a fim de que haja entendimento entre

dois sujeitos que querem entrar em consenso. Todavia, é importante lembrar que nessa

questão do respeito é ética é primaz.

Nesse sentido, a ética apresenta-se na autonomia do indivíduo não somente para

legitimar a moral para que as normas sejam cumpridas, mas para abrir uma

possibilidade de bem viver. A fim de manter-se um sentido de bom e justo para o

respeito ao outro, Ricoeur assevera que cada um deve fazer um exame minucioso do

sentido essencial da vida humana. Nesse sentido, o exame consiste em uma reflexão que

se faz a partir dos símbolos que possibilitam fazer uma crítica das próprias ilusões. A

reflexão permite uma apropriação da compreensão de si mesmo e por analogia, a do

outro. A compreensão do outro somente é possível por meio de uma simbologia

191 Op. cit., O justo 1, 2008, p. 208, 209. 192 Op. Cit. O si mesmo como um outro, p. 282

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possibilitada pela linguagem. A reflexão, segundo o filósofo precisa ser feita de maneira

cuidadosa e crítica para que se tenha a compreensão dos mitos que envolvem nossas

experiências. É importante lembrar que os mitos e a linguagem de forma geral bem

como a simbologia da linguagem nos acompanham de forma repetitiva desde a infância.

Esses instrumentos se forem usados de maneira crítica e reflexiva permitirão à

consciência aprender a compreender o sentido do destino humano.

Para Ricoeur a linguagem é um instrumento que permite uma reflexão sobre o

respeito devido a si mesmo. Respeitar-se tem um sentido ético que possibilita um

sentido de dignidade que visa um sentido de uma vida boa para si, com e para o outro

em instituições justas.193 Dito de outro modo, uma vida boa significa ser capaz de

querer examinar a própria vida de modo constante e isso se constitui um laço entre a

vida, desejo, privação e realização. Consequentemente, a vida será questionada e,

compreendida na medida em que esse agir seja, na prática, uma maneira de conduzir a

própria vida de forma que entre o bom e o legal, esteja o justo.

Consideramos que ao tomarmos, como sugere Ricoeur, o sentido aristotélico da

ética da vida boa, poder-se-á manter uma ideia de justiça no nível das relações

interpessoais em que os conflitos reais, por mais complexos que sejam, possam ser

conduzidos por uma sabedoria prática. No campo institucional, também, a ideia de

justiça consegue fazer fronteira entre a ética da vida boa e a moral do dever legal.

Compartilhamos da ideia de Ricoeur de que a ética da “vida boa” é uma ideia

orientadora para as ações da pessoa. Recordamos, contudo que segundo Aristóteles, essa

ética é uma ciência política que estuda o nobre e o justo e sua finalidade é a ação e não o

conhecimento. Aristóteles assevera: – para aqueles que guiam seus desejos e ações

através do princípio racional, o conhecimento dessas matérias poderá ser sumamente

valioso194.

Vimos que para Ricoeur essa herança aristotélica ética contribui para assegurar às

atividades humanas uma espécie de valor mais elevado, cabendo a cada pessoa a estima de si e o

respeito ao outro195. Entendemos que a justiça tem um significado que vai além das fronteiras da

prática jurídica e dos princípios teóricos. Ricoeur assevera que também o plano das

mentalidades, em que a justiça atinge um nível mais profundo de reflexão a cerca da concepção

do bem; delineado na ética da “vida boa”. O plano das mentalidades situado em um território

propenso a constantes discussões, embora não dê nenhuma garantia de que o télos da “vida boa”

193 Op. cit., SA, 1991, p.202. 194 Op. cit., Ética a Nicômaco, livro 1 parágrafos 2 e 3. 195 Op. cit., L1, 1995, pp. 93, 94 e 161/2/3/4.

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de fato possa ser realizado, essa instância civil não tendo um único senso de justiça, teorias ou

princípios, pode ser confrontada com diferentes argumentos das consciências ou espírito

reflexivo de época. Nesse sentido, é possível, portanto, explorar os princípios da ideia de justiça

considerando-os como um modo de experiência humana.

Paul Ricoeur, ao considerar o legal e o bom para o justo da justiça, levou em

conta as singularidades das situações de justiça e relacionou-as ao “viver em comum”

de uma comunidade histórica concernentes às relações interpessoais; isto é, considerou

todas as experiências humanas. Além disso, ao agregar o sentido de bom em conjunto

com o legal ao justo pôde inserir um elemento ético à justiça. A sabedoria prática é um

recurso que confere a prática jurídica os benefícios da “justa medida” a fim de julgar as

situações de conflitos e tentar atribuir à responsabilidade de cada pessoa. Nas relações

interpessoais ela é um elemento essencial para articular um sentido de justiça que inclua

além da estima de si, o respeito e a solicitude em relação ao outro. Nesse aspecto,

consideramos, com Ricoeur, que graças ao elemento da sabedoria prática se pode abrir

espaço para um tratamento de respeito mútuo.

A vida boa não é dever, ela é um télos opcional que possibilita imaginar um bem

viver com e para o outro em instituições justas. O respeito parece-nos que deve ser uma

prioridade a ser mantida entre os parceiros, pois simbolicamente se torna uma aliança

que garante um nível razoável de confiança na promessa de responsabilidade de cada

pessoa. Paul Ricoeur disse que a promessa é inscrita na memória. A partir dessa

premissa, gostaríamos de complementar e dizer que ela é inscrita e ficará gravada na

memória na forma de uma tradição. A promessa de responsabilidade será evocada da

memória toda vez que diante do outro nos pôr em diálogo. A lembrança da atestação196

é importante para que a promessa seja reconhecida e cumprida. Se for esquecida ou caso

haja uma recusa por parte daquele que se comprometeu, a promessa corre o risco de ser

traída. Nesses impasses, portanto, surgem os conflitos, de modo que, se não houver

algum tipo de sabedoria prática para tentar encontrar um consenso, a solicitude pode

ficar ameaçada.

Antígona tem o mérito de ter sido solícita à súplica de seu irmão. Conquanto

que não tenha feito por ela mesma nenhuma promessa, se sentiu comprometida com o

pedido do irmão. Procurou ser solícita para não traí-lo. Mas, essa solicitude da heroína é

mantida como uma obrigação, fechado em um único caráter do justo na tradição em

196 Op. cit., O Percurso do Reconhecimento, 2006 p. 123, – sobre a atestação Ricoeur diz que em O si mesmo como um outro ele adotou o vocábulo para caracterizar o modo epistêmico das asserções vinculadas ao registro das capacidades. P.107

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contrário à lei. Antígona foi corajosa ao mostrar-se capaz de exercer certa autonomia

em relação à lei existente, mas sua escolha custou-lhe a vida e apesar de ter tido as

vozes do conselho, como um elemento capaz de guia-la em seu julgamento moral ela

não conseguiu ouvir essa sabedoria prática. Sua morte foi um sacrifício, talvez

desnecessário se tivesse escolhido outro modo de questionar a sentença dada ao irmão.

Ricoeur assevera que a palavra sacrifício comporta em si a simbólica da dádiva

que consiste no dar, receber e retribuir. O sacrifício de Antígona torna-se uma dádiva,

para nós que estamos lendo ou assistindo a peça, porque temos a possibilidade de

aprender com o trágico. Aristóteles assevera que para ser “um bom juiz para julgar um

assunto em particular é preciso que o indivíduo tenha recebido uma educação completa,

não somente para o estudo da política, mas de experiência de vida e de conduta”. Os

jovens, para ele, não estão aptos para o estudo da política porque carecem de

experiência de vida e de conduta. O problema do jovem, segundo Aristóteles, é que ele

conduz a sua vida e a sua meta orientadas pelo passional. Antígona é jovem e deixou-se

ser conduzida por uma ideia passional de justiça. Para a heroína os vínculos orgânicos

familiar eram os mais importantes, por um ente familiar não importa em se sacrificar.

Este sacrifício nos comove, porém nos ensina que na questão da convivência seja

política, social ou interpessoal é melhor que se mantenha uma atitude de ponderação em

lugar da paixão. O espaço da “convivialidade” requer, muitas vezes, renuncias e

abstenção, não sacrifícios, mas trocas recíprocas197.

É possível ser justo em sociedades injustas? Acreditamos que Antígona, sendo

jovem e sem saber fazer uso de algum tipo de sabedoria prática, mostrou-nos que é

possível elegermos uma causa justa em uma sociedade injusta. Contudo, mostrou-nos

também que a maneira de agir para atingir o objetivo pode ser diferente. Parece-nos que

a heroína deixou-se sucumbir diante do sofrimento, recusando-se a dialogar com a irmã

ou buscando o auxílio do conselho. Sua autonomia extrapolou os limites da razão,

Antígona agiu somente pelo sentimento que gritava: “isso é injusto”. É importante

destacar que a cidade de Tebas ao ser representado por Creonte, institucionalmente não

agiu de modo justo, já que impôs uma regra, tendo por conduta a ira pela ocasião do

acontecido. Ao impor uma regra sem considerar o sentimento de dor ou o sofrimento

que a regra imposta provocará, o governante deixou de considerar que uma sociedade

justa tem em vista uma perspectiva de bem estar que inclui uma intenção de vida boa

197 Op. cit., SA, 1990, p.107

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aos cidadãos. Ao desconsiderar a tradição familiar e ao romper o vínculo com o

conselho de anciãos solicitando-lhe a ponderação, Creonte mostrou-se injusto e

imponderado. Parece-nos que faltou a ele um sentimento de respeito à dor do outro.

Tem-se a impressão de que o governante não percebeu que suas ações podiam provocar

grande sofrimento nas pessoas que governava. Ao agir em nome de Tebas e da

sociedade, por consequência, a cidade e a sociedade tornam-se injustas. E a injustiça

pode acender a chama da intolerância, motivando ações de revide.

As ações imponderadas de um governante não parecem exibir uma sabedoria

política, nem uma sabedoria prática apreendida com as suas experiências de vida ou por

meio das histórias de guerra e intolerâncias. Uma conduta imponderada não delineia

uma intenção política de preservar o bem para os indivíduos, mas sim a de manter o

rigor de um poder pessoal. Tomando o Creonte como exemplo de governante, talvez

pudéssemos dizer que se ele tivesse agido de modo mais equitativo ou se agisse

sabiamente valendo-se na prática do sentido de bom para corrigir o seu orgulho não

agrediria o outro em sua fraqueza. Consideramos que um governante não age sozinho;

diante de uma regra injusta os indivíduos de uma sociedade podem reivindicar uma

postura mais justa. Nesse sentido, talvez se ele tivesse sido pressionado por seus

concidadãos sua ação não ficaria a mercê de uma atitude irredutível e talvez tivesse uma

postura mais justa diante daquela situação em julgamento.

Bem! Talvez tudo isso não passe de conjecturas, mas no campo das

possibilidades a ideia de justiça pode ter um significado ético de bom. Se a intenção de

vida boa na esfera da justiça puder associar-se ao sentido moral em que a atitude

fundamental diante do outro for constituído pelo o modo de respeito. Entretanto, este se

apresenta no modo da solicitude que não é uma forma impositiva de regra, nem um

dever. O respeito representado pela figura da solicitude não pode ser qualificado como

uma necessidade arbitrária para a esfera da política. Ele torna-se um modo da ética e

somente pode ser tomado como uma meta de vida boa cujo recurso principal é a

sabedoria prática. Essa forma ética equivale a uma escolha pessoal devidamente

avaliada para orientar a ideia de justiça às condutas do agir humano na trajetória da vida

boa com e para o outro em instituições justas.

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