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HermenêuƟca ĮlosóĮca e hermenêuƟca bíblica em Paul Ricoeur Geraldo De Mori* Resumo A hermenêutica ¿losó¿ca de Paul Ricoeur conheceu sua primeira elaboração no segun- do tomo de sua Philosophie de la volonté: La symbolique du mal. Já nesta etapa o ¿lósofo francês oferece uma grande contribuição à hermenêutica bíblica, uma vez que analisa os símbolos e o mito através dos quais o mal é confessado e narrado. A segunda elaboração da hermenêutica de Ricoeur é centrada no texto. Para isso, ele aprofunda a tradição her- menêutica anterior, além de estabelecer um diálogo fecundo com os estruturalistas e os ¿lósofos da linguistic turn. As teorias da me- táfora e da narração fazem parte desta nova hermenêutica, que não aborda os signos da cultura por eles mesmos, mas tendo em vista uma hermenêutica da ação de um sujeito (si) capaz. Este texto apresenta uma breve sínte- se dos principais elementos da hermenêutica ricoeuriana dos textos, indicando, num segun- do momento, seus desdobramentos na exe- gese bíblica. Palavras-chave: Paul Ricoeur, her- menêutica ¿losó¿ca, hermenêutica bíbli- ca, teoria da metáfora, teoria da narração, hermenêutica dos textos. g pelas Facultés Jésuites de Paris - Centre Sèvres -, professor de antropologia teológica e escatologia cristã na Faculdade Jesuíta de FilosoĮa e Teologia - FAJE -, Belo Horizonte, Brasil, onde é o Diretor do Departamento de Teologia e o Coordenador do Programa de Pós- Graduação. Publicou: A teologia em situação de pós-modernidade. São Leopoldo: Unisinos, 2005; Le temps. Énigme des hommes, mystère de Dieu. Paris: Cerf, 2006. Organizou com outros autores as seguintes publicações: Teologia e Ciências da Religião. Rumo à maioridade acadêmica no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2011 (com CRUZ, E.); Religião e educação para a cidadania. São Paulo: Paulinas, 2011; Aragem do Sagrado. Deus na literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Loyola, 2011; Mobilidade Religiosa. Linguagens, Juventude, PolíƟca. São Paulo: Paulinas, 2012.

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A hermenêutica ¿losó¿ca de Paul Ricoeurconheceu sua primeira elaboração no segundotomo de sua Philosophie de la volonté: Lasymbolique du mal. Já nesta etapa o ¿lósofofrancês oferece uma grande contribuição àhermenêutica bíblica, uma vez que analisa ossímbolos e o mito através dos quais o mal éconfessado e narrado. A segunda elaboraçãoda hermenêutica de Ricoeur é centrada notexto. Para isso, ele aprofunda a tradição hermenêuticaanterior, além de estabelecer umdiálogo fecundo com os estruturalistas e os¿lósofos da linguistic turn. As teorias da metáforae da narração fazem parte desta novahermenêutica, que não aborda os signos dacultura por eles mesmos, mas tendo em vistauma hermenêutica da ação de um sujeito (si)capaz. Este texto apresenta uma breve síntesedos principais elementos da hermenêuticaricoeuriana dos textos, indicando, num segundomomento, seus desdobramentos na exegese bíblica.

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  • Hermenuca losca

    e hermenuca bblica

    em Paul Ricoeur

    Geraldo De Mori*

    Resumo

    A hermenutica losca de Paul Ricoeur conheceu sua primeira elaborao no segun-do tomo de sua Philosophie de la volont: La symbolique du mal. J nesta etapa o lsofo francs oferece uma grande contribuio hermenutica bblica, uma vez que analisa os smbolos e o mito atravs dos quais o mal confessado e narrado. A segunda elaborao da hermenutica de Ricoeur centrada no texto. Para isso, ele aprofunda a tradio her-menutica anterior, alm de estabelecer um dilogo fecundo com os estruturalistas e os lsofos da linguistic turn. As teorias da me-tfora e da narrao fazem parte desta nova hermenutica, que no aborda os signos da cultura por eles mesmos, mas tendo em vista uma hermenutica da ao de um sujeito (si) capaz. Este texto apresenta uma breve snte-se dos principais elementos da hermenutica ricoeuriana dos textos, indicando, num segun-do momento, seus desdobramentos na exe-gese bblica.

    Palavras-chave: Paul Ricoeur, her-menutica losca, hermenutica bbli-ca, teoria da metfora, teoria da narrao, hermenutica dos textos.

    g pelas Facults Jsuites de Paris - Centre

    Svres -, professor de antropologia teolgica e escatologia crist na Faculdade Jesuta de Filosoa e

    Teologia - FAJE -, Belo Horizonte, Brasil, onde o Diretor do

    Departamento de Teologia e o Coordenador do Programa de Ps-

    Graduao. Publicou: A teologia em situao de ps-modernidade.

    So Leopoldo: Unisinos, 2005; Le temps. nigme des hommes,

    mystre de Dieu. Paris: Cerf, 2006. Organizou com outros

    autores as seguintes publicaes: Teologia e Cincias da Religio. Rumo maioridade acadmica

    no Brasil. So Paulo: Paulinas, 2011 (com CRUZ, E.); Religio e educao para a cidadania. So

    Paulo: Paulinas, 2011; Aragem do Sagrado. Deus na literatura brasileira contempornea. So

    Paulo: Loyola, 2011; Mobilidade Religiosa. Linguagens, Juventude,

    Polca. So Paulo: Paulinas, 2012.

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    Abstract

    The philosophical hermeneutics of Paul Ricoeur met his rst drafting in the second tome of his Philosophie de la volont: La symbolique du mal. Already at this stage of the French philosopher offers a large contribution to biblical herme-neutics, since it analyzes the myth and symbols through which evil is confessed and narrated. The second development is the hermeneutics of Ricoeur centered iin the text. For this, he deepens the earlier hermeneutic tradition, in addition to establishing a fruitful dialogue with the structuralists and philosophers of the linguistic turn. The theories of metaphor and narrative are part of this new her-meneutic that does not address the signs of culture by themselves, but in view of a hermeneutics of action of a subject (self) . This paper presents a brief summa-ry of the main elements of hermeneutics ricoeuriana texts, indicating a second time, its developments in biblical exegesis.

    Keywords: Paul Ricoeur, philosophical hermeneutics, biblical hermeneu-tics, the theory of metaphor, narrative theory, hermeneutics of texts.

    Introduo

    A reexo losca de Paul Ricoeur de grande diversidade e complexidade, resistindo a qualquer sistematizao que a rena ao redor de uma nica perspectiva. Com efeito sua hermenu-

    tica dos smbolos, do texto e da ao, sua teoria da metfora e da nar-

    rao, sua reexo sobre o tempo, a histria, a identidade, a memria

    e o esquecimento, suas pesquisas sobre a vontade, o mal, a tica, o si

    ou, ainda, suas contribuies exegese bblica, no traduzem individu-

    almente a obra variada do lsofo francs1. Por isso, no pretendemos

    neste texto oferecer nenhuma chave de leitura do conjunto desta obra,

    nem tampouco apresentar a especicidade de seu aporte literatura ou

    teologia. Contentar-nos-emos em propor uma breve leitura do percurso

    ricoeuriano, recolhendo alguns traos de sua teoria hermenutica da

    hermenutica dos smbolos hermenutica do texto, passando pelas

    teorias da metfora e da narrao apontando, num segundo momento,

    1. Para uma introduo ao conjunto do pensamento de Ricoeur, cf. DOSSE, F. Paul Ricoeur. Le sens dune vie. Paris: La Dcouverte, 1997; GREISCH, J. Paul Ricoeur. Litinrance du sens. Grenoble: Millon, 2011.

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    alguns desdobramentos teolgicos dessa teoria.

    1. Da hermenutica dos smbolos hermenutica dos textos2

    A teoria hermenutica de Ricoeur conheceu duas grandes elabora-

    es, a da hermenutica dos smbolos e a da hermenutica dos textos,

    ambas relacionadas com sua hermenutica da ao. Pensador das me-

    diaes, que passam em geral pelos grandes signos da cultura, como os

    smbolos, os mitos e os textos, o lsofo francs produziu uma reexo

    em constante dilogo com as principais tendncias loscas do sc.

    XX.

    Sua obra inaugural Philosophie de la volont prevista para des-

    dobrar-se num trptico, tendo como primeiro quadro, a eidtica da vonta-

    de, constituda por Le volontaire et linvolontaire; como segundo quadro,

    a emprica da vontade, formada pelos dois volumes de Finitude et culpa-

    bilit: Lhomme faillible e La symbolique du mal; e como terceiro quadro,

    a potica da vontade, que nunca chegou a se formular numa obra espe-

    cca , tem como preocupao de fundo a questo do sujeito (ou do si)

    capaz de um agir que ultrapasse a falha que a partir dele introduz o mal

    no mundo3. De uma leitura fenomenolgica, que estuda as estruturas do

    voluntrio e do involuntrio, Ricoeur passa a uma leitura hermenutica,

    que estuda os smbolos e os mitos que confessam e narram o mal.

    Constitui-se assim sua hermenutica dos smbolos, que se estrutura em

    trs grandes momentos: 1) o da anlise dos smbolos originrios (man-

    cha, pecado e culpabilidade), a partir dos quais a falha que introduz o

    mal no mundo confessada; 2) o da anlise dos mitos que buscam en-

    tender a irrupo do mal na histria (os mitos babilnico, trgico, rco

    2. Esta primeira parte retoma estudo semelhante publicado na revista Teoliterria, 2012, n. 3, embora ento buscssemos mostrar a contribuio da hermenutica de Ricoeur na leitura de textos

    literrios, ilustrando nosso estudo com alguns aspectos da obra de Joo Ubaldo Ribeiro, Viva o Povo Brasileiro.3. Cf. RICOEUR, P. Philosophie de la volont I. Le volontaire et linvolontaire. Paris: Montaigne, 1949; Philosophie de la volont II. T. 1. Finitude et culpabilit. Lhomme faillible. Paris: Montaigne, 1960; Philosophie de la volont II. T. 2. Finitude et culpabilit. La symbolique du mal. Paris: Aubier, 1960.

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    e admico) ou que apontam para sua supresso (mitos escatolgicos

    de redeno e salvao); 3) o da anlise da passagem da simblica

    reexo (gnose, doutrina do pecado original e suas releituras pela tradi-

    o losca no Ocidente). O perodo que se segue levar Ricoeur ao

    estudo de Freud e ao encontro com a crtica do estruturalismo. Ele d-

    se ento conta do conito de interpretaes que ope as perspectivas

    teleolgicas s leituras arqueolgicas4. Face a esse conito, ele prope

    pensar mais e de outra forma, buscando as mediaes que contribu-

    am para uma melhor compreenso do ser humano em sua condio

    histrica5.

    A passagem da fenomenologia hermenutica leva Ricoeur a re-

    ler os principais expoentes da losoa hermenutica, que o conduzir

    hermenutica dos textos. Crtico de Schleiermacher cuja hermenutica

    busca a inteno do autor por detrs do texto , de Dilthey que ope

    compreenso e explicao , de Gadamer que reitera esta oposio

    na dialtica verdade e mtodo , e de Heidegger que segue o ca-

    minho curto em sua hermenutica da facticidade , o lsofo francs

    estabelece os elementos de sua teoria do texto e da ao Do texto

    ao , na qual a noo de distanciao jogar um papel decisivo6.

    Nesse perodo ele escreveu tambm a obra que explora o fenmeno da

    inovao semntica A metfora viva , concebida junto com sua teoria

    da narratividade e da temporalidade Tempo e narrativa 1, 2, 3 , que o

    levar a aprofundar o tema da identidade em relao com a tica O si

    mesmo como um outro 7. Vejamos os principais elementos dessa etapa

    4. Cf. RICOEUR, P. De linterprtation: essai sur Freud. Paris: Seuil, 1965 ; Le conit des inter-prtations. Essais dhermneutique. Paris: Seuil, 1969.5. Ricoeur pensa particularmente na psicanlise (voltada para a arqueologia) e a na fenomenologia

    hegeliana (voltada para a teleologia), embora denomine mestres da suspeita a Freud, Nietzsche

    e Marx.

    6. Cf. RICOEUR, P. Du texte laction. Essais dhermneutique II. Paris: Seuil, 1986. Trad. Portuguesa. Do texto aco. Ensaios de hermenutica II. Porto : Rs, 1989.7. Cf. RICOEUR, P. La mtaphore vive. Paris: Seuil, 1975; Temps et rcit I. Lintrigue et le rcit historique. Paris: Seuil, 1983; Temps et rcit II. La conguration dans le rcit de ction. Paris: Seuil, 1984; Temps et rcit 3. Le temps racont. Paris: Seuil, 1985; Soi-mme comme un autre. Paris: Seuil, 1990.

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    da hermenutica dos textos de Ricoeur.

    a. A funo hermenutica da distanciao: a teoria do texto

    A noo de distanciao joga um papel importante na teoria do texto

    de Ricoeur. Ele organiza sua compreenso de texto em cinco momentos:

    1) a efetivao da linguagem como discurso; 2) a realizao do discurso

    como obra estruturada; 3) a relao entre fala e escrita no discurso e nas

    obras de discurso; 4) a projeo do mundo do texto; 5) o discurso e a

    obra de discurso como mediao para a compreenso de si8.

    Para Ricoeur, a linguagem se realiza primeiro como discurso. o que mostra a dialtica entre lngua enquanto cdigo e acontecimen-to alguma coisa acontece quando algum fala . O discurso aparece a como um evento porque se refere a um mundo e se dirige a um inter-

    locutor. No esse evento, porm, que buscamos entender, pois ele

    fugidio, mas seu signicado, que permanece. Ao entrar no processo da

    compreenso, o discurso se supera, enquanto evento, na signicao.

    A primeira distanciao, portanto, a do dizer no dito. E o que o dito?

    Segundo a teoria dos atos de linguagem9, o ato de discurso constitudo

    por uma srie de atos distribudos em trs nveis: o do ato locucionrio (=

    proposicional); o do ato ilocucionrio (= o que fazemos ao dizer algo); o

    do ato perlocucionrio (= o estmulo causado pelo discurso e seu efeito).

    Esses aspectos do ato de discurso esto codicados segundo paradig-

    mas e podem ser reidenticados. O ato locucionrio, por exemplo, se

    exterioriza em frases que podem ser identicadas e reidenticadas como

    sendo as mesmas frases, embora suscetveis de serem transferidas com

    tal ou tal sentido em outra proposio. O ato ilocucionrio se exterioriza

    graas aos paradigmas gramaticais (modos indicativo, imperativo etc.)

    e aos procedimentos que marcam a fora ilocucionria de uma frase. O

    ato perlocucionrio, prprio dos discursos orais, mostra o que no discur-

    8. Cf. RICOEUR, P. A funo hermenutica da distanciao. In Do texto aco. Op. cit., p. 110.9. Tambm conhecida como Speech-Act, tendo como principais referncias J. L. Austin e J. R. Searle.

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    so estmulo.

    Enquanto exteriorizado, o discurso pode se objetivar numa obra ou num escrito, que mais que a sequncia de uma s frase. De fato, a obra mais que a justaposio de elementos isolados, pois o resultado

    de todo um trabalho de organizao e de composio, que faz dela um

    conjunto organizado e irredutvel em suas partes. Por outro lado, esse

    trabalho de composio deve submeter-se a um conjunto de regras e

    normas, que constituem os gneros literrios, os quais obedecem a

    certos paradigmas estruturadores. Trata-se de modos de produo a

    partir dos quais possvel engendrar um nmero innito de novas obras.

    Um novo tipo de distanciao se opera a, que permite a inscrio e a

    recepo de uma obra numa forma dada. O processo de construo de

    um texto mostra, enm, uma congurao singular e individual, o estilo,

    que o vestgio daquele que o produziu e o distingue de outros textos e

    obras. A noo de autor aparece ento como o correlato da individuali-

    dade da obra mesma.

    a escritura, sobretudo, que transforma um discurso num texto. Ela introduz o fator exterior e material da xao, que salva o acontecimento

    do discurso da destruio, alm da distanciao entre a obra assim pro-

    duzida e seu autor, e entre esta mesma obra, suas origens, sua situao

    de produo, e seus destinatrios imediatos (oral) ou originais (escrito) e

    futuros (leitores). De fato, todo texto suscita um pblico que se estende

    virtualmente a quem sabe ler. Por causa da autonomia provocada pela

    efetuao do discurso na escritura, a situao dialogal no pode ser o

    modelo ideal da interpretao. Nesse sentido, no h relao imediata

    entre o autor e o leitor, j que o primeiro colocado distncia por seu

    prprio texto, que se forja uma autonomia e se abre uma innidade de

    leituras. Esta passagem da palavra ao texto torna, portanto, possvel a

    distanciao (descontextualizao) do texto com relao inteno do

    autor.

    Para Ricoeur, todo texto projeta um mundo, o mundo do texto. O

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    lsofo francs constri esta noo num dilogo com o estruturalismo e

    a losoa da linguagem. O mundo do texto, diz ele, no corresponde

    ao mundo da linguagem ordinria que tem em vista o mundo como

    ser-dado , mas ao da linguagem potica, que capta o mundo como

    poder-ser, re-criao10. O ato de leitura torna possvel a apreenso da

    proposta de mundo que o texto abre ao leitor para que ele possa nele se

    projetar. O mundo do texto aparece ento como um horizonte global,

    uma totalidade de signicaes, que Gadamer denomina a coisa do tex-

    to. A referncia imediata ao mundo desaparece quando um discurso se

    torna texto, mas libera uma referncia de segundo nvel11. A hermenu-

    tica no consiste mais em buscar as intenes escondidas pelo autor por

    detrs do texto, mas em captar o tipo de ser-ao-mundo que o texto lhe

    prope e que pode ser recebido por ele, reconhecendo assim as novas

    possibilidades abertas pelo texto para que o leitor se compreenda e se

    situe em sua realidade cotidiana.

    A apropriao, enm, o ato de recontextualizao pelo qual as ofertas de sentido do mundo do texto so acolhidas na interpreta-

    o de si de um sujeito que doravante se compreende melhor, se com-

    preende de outro modo, ou que comea mesmo a se compreender12.

    Compreender , ento, compreender-se diante do texto, expor-se ao

    texto e receber dele um si expandido pela exposio sua oferta de ser-

    ao-mundo13.

    b. O fenmeno da inovao semntica: a teoria da metfora

    A teoria da metfora de Ricoeur tambm de grande importncia na

    elaborao de sua hermenutica, pois abriu novas perspectivas para a

    leitura de textos poticos e literrios. Ele a elaborou em dilogo com a re-

    trica, desenvolvida por Aristteles, com o estruturalismo, as teorias lite-

    10. Cf. RICOEUR, P. A funo hermenutica da distanciao. Op. cit., p. 122. 11. Idem, p. 121.12. Cf. RICOEUR, P. O que um texto? In Do texto aco. Op. cit., p. 155.13. Cf. RICOEUR, P. A funo hermenutica da distanciao. Op. cit., p. 124.

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    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    rrias e a losoa da linguagem, defendendo a tese de que a metfora

    o paradigma da criatividade na linguagem e um poema em miniatura14.

    Partindo da polissemia, que faz com que os signicados de uma

    palavra possam ir da ambiguidade equivocidade, Ricoeur estuda as

    estratgias que as linguagens ordinria, cientca e potica utilizam para

    combater a no compreenso. A linguagem ordinria, diz ele, possui

    uma polissemia irredutvel, que lhe confere sua capacidade expressiva.

    Para reduzir a equivocidade, ela busca limit-la, o que torna possvel a

    comunicao cotidiana, sem que isso implique a excluso da polissemia.

    A linguagem cientca quer, por sua vez, eliminar toda ambiguidade, vis-

    ta por ela como perniciosa, e busca uma univocidade completa atravs

    de denies e classicaes, que produzem uma linguagem articial,

    embora til nos casos da argumentao. A linguagem potica, enm,

    recorre polivalncia semntica, comum aos textos literrios e met-

    fora, que no s deixam existir a ambiguidade e a equivocidade, mas se

    esforam por cultiv-la.

    A metfora explora a capacidade de as palavras adquirirem novos

    sentidos em contextos diferentes, atravs do choque de signicaes

    literais, que leva ao surgimento de um novo signicado. O texto literrio

    tambm recorre ambiguidade, j que se apresenta como um conjunto

    organizado e cumulativo, que deixa livre o campo a interpretaes varia-

    das. A diferena entre o texto literrio e a metfora que a ambiguidade

    do primeiro se d no nvel da obra, enquanto a da segunda se d no

    nvel da palavra. De fato, o processo metafrico tende a se concentrar

    na extenso mnima da palavra, enquanto o trabalho do texto tende a

    realizar-se na extenso mxima da obra. A metfora por isso uma obra

    em miniatura. Como captar o sentido metafrico, j que no nvel literal,

    ela vista como um absurdo lgico ou uma impertinncia semntica,

    um no sentido? Como fazer emergir a signicao metafrica, j que

    ela no se encontra disposio nas codicaes do lxico? O processo

    14. Cf. La mtaphore vive. Op. cit., p. 339.

  • 211

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    metafrico promove uma toro na linguagem que a faz ultrapassar-se

    e gerar uma inovao semntica ou um aumento icnico do sentido,

    abrindo novas formas de ser-ao-mundo e novos possveis, que so

    suscetveis de balanar a compreenso de si15.

    Ricoeur rel a histria das teorias da metfora, comeando com a

    da retrica aristotlica, para a qual a metfora um artifcio de substitui-

    o de uma palavra literal ou corrente por outra gurada, no aportan-

    do nenhuma inovao semntica. Reduzida ao estado de denominao

    desviante ou de procedimento estilstico decorativo, ela vista como

    gura de estilo ou tropo, que troca as palavras somente estendendo seu

    sentido. Na mesma linha se inscreve a teoria da nova retrica estrutu-

    ralista de Greimas, para a qual a metfora permanece um fenmeno de

    pura ornamentao, ligado palavra e a seus semas constitutivos. Para

    o lsofo francs, necessrio abandonar as teorias de substituio e

    a semitica da palavra e inserir a metfora na semntica do discurso.

    Isso signica que preciso pens-la no a partir de palavras isoladas,

    mas da frase inteira. A inovao semntica se produz ento entre os ter-

    mos da armao metafrica, que se situam numa frase, na qual entram

    em coliso e provocam um absurdo lgico, uma contradio ou uma

    impertinncia semntica16. Ao interpretar esses termos, o que no

    sentido ganha sentido, o absurdo lgico se torna absurdo signicante

    e a contradio passa a ser autocontradio signicante. Essa coliso

    da linguagem rompe a viso ordinria da realidade e as estruturas do

    real, pois inventa e recria o mundo pelo vis de uma co imaginativa.

    Nesse sentido, as metforas vivas produzem um aumento icnico da

    realidade ou do mundo. Para que isso ocorra, porm, a referncia literal

    realidade substituda por uma referncia metafrica, que de segun-

    da ordem.

    Diante da impossibilidade de dizer imediatamente certos aspectos

    15. Cf. RICOEUR, P. Reexion faite: autobiographie intellectuelle . Esprit, 1995, p. 47.16. Cf. RICOEUR, P. Paul Ricoeur on Biblical Hermeneutics. In Semeia, n. 4 (1975), p. 78.

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    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    do real, a estratgia da metfora ento a de recorrer ao ser como17.

    Paradoxalmente, quando a referncia literal se colapsa por inadequa-

    o, sob a presso da co potica, atinge-se o corao mesmo do

    real. No mais o sujeito que domina a linguagem, mas ela que o

    interpela e o reclama, recriando assim seu ser no horizonte de suas in-

    terrogaes fundamentais. Segundo Ricoeur, tal o mundo do texto

    metafrico. A tenso que ele revela (ser/no ser) aponta, todavia, para

    uma tenso mais fundamental ainda, que de tipo ontolgico. Mais que

    a busca de soluo desta tenso, prossegue ele, necessrio mostrar

    que ela nos revela um mundo anterior oposio sujeito/objeto, mundo

    ao qual pertencemos radicalmente e no qual podemos projetar nossos

    possveis mais prprios18. A questo epistemolgica levantada por essa

    tenso nos conduz ao eclipse da referncia primeira ao mundo objetivo

    dos objetos manipulveis e nos situa ao mesmo tempo diante de uma

    nova dimenso do real e da verdade. Mais que adequao entre o que

    visado pela linguagem e a linguagem ela mesma, a verdade brota da

    capacidade de se reconhecer na linguagem (metfora) uma manifesta-

    o do ser.

    c. Os traos temporais da existncia: a teoria narrativa

    Ricoeur sistematiza sua teoria narrativa na obra Tempo e narrativa,

    que se organiza num dilogo triangular entre temporalidade, narrativida-

    de (historiograa e co) e historicidade. Duas teses resumem o projeto

    global desta obra: 1) pela narrao, como pela metfora, algo de novo

    indito surge na linguagem19; 2) O tempo se torna tempo humano na

    medida em que se articula de modo narrativo; a narrao tem sentido na

    medida em que desenha os traos da experincia temporal20.

    A primeira parte de Tempo e narrativa retraa o crculo existente en-

    17. Cf. Reexion faite: autobiographie intellectuelle. Op. cit., p. 47.18. Cf. La mtaphore vive. Op. cit., p. 387.19. Cf. Temps et rcit 1. Op. cit., p. 11.20. Idem, p. 17.

  • 213

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    tre narrao e temporalidade. Duas incurses independentes, mas com-

    plementares, so feitas por Ricoeur na histria da losoa: 1) a das apo-

    rias da experincia do tempo, apresentada por Agostinho no livro XI das

    Consses, onde a discordncia ganha da concordncia, numa anlise

    do tempo feita a partir da alma (distentio animi); 2) a da teoria da intriga

    dramtica, proposta na Potica, de Aristteles, na qual a concordncia

    leva vantagem sobre a discordncia pelo poder de sntese prprio ao

    tecer da intriga (muthos-mimsis).

    Aps essa primeira aproximao entre temporalidade e narrativida-

    de, Ricoeur desenvolve sua compreenso do tecer da intriga (muthos),

    recorrendo teoria da trplice mimsis, tambm de origem aristotlica.

    Mimsis, diz ele, a imitao criadora da experincia temporal e ela

    se articula em trs momentos: mimsis 1 ou pregurao, cuja raiz

    a vida de todos os dias, que temporal e se compreende enquanto tal

    nas experincias de recordao, projeo e ateno; mimsis 2 ou con-

    gurao, que o ato de estruturao da narrao a partir de cdigos

    narrativos internos ao discurso, com comeo, meio e m; mimsis 3 ou

    regurao, que o ato pelo qual o mundo do texto e o mundo do lei-

    tor se encontram no ato de leitura. O arco hermenutico torna-se assim

    completo: ele rene o conjunto das operaes pelas quais uma obra se

    retira do fundo opaco do viver, do agir e do sofrer (mimsis 1), para ser

    dada por um autor (mimsis 2) a um leitor que a recebe e assim muda

    seu agir e seu mundo (mimsis 3)21.

    Ricoeur atribui a mimsis 2, que o desdobrar-se da narrao en-

    quanto relato histrico ou de co, o papel central de sua anlise. Sua

    reexo se estabelece num dilogo crtico com as teorias anti-narrativas

    presentes nos domnios das cincias histricas e literrias, marcadas

    respectivamente por modelos positivistas e estruturalistas. Sua tese

    que a inteligncia narrativa precede todo ato congurante, tanto na his-

    tria quanto na co. Segundo ele, na historiograa mais positivista

    21. Ibidem, p. 86.

  • 214

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    recorre-se a noes como quase intriga, quase personagem e quase

    evento, que mostram o carter altamente analgico dessas noes nar-

    rativas para a histria cientca. O mesmo se d na literatura, que apesar

    da metamorfose que sofreu ao longo da histria, lida por alguns como

    m da arte de narrar ou como ausncia de narrao em sua estrutura

    de fundo, no deixa de se metamorfosear e guarda sempre um resduo

    de diacronia no seio da acronia. Para Ricoeur, a inteligncia narrativa e

    nossa familiaridade com a tradio narrativa so sempre requisitadas. A

    prpria tradio narrativa sedimentou alguns modelos ou paradigmas,

    que so explorados diversamente nos distintos gneros literrios, sendo

    constantemente inovados pela imaginao criadora. O recurso imagi-

    nao se d de modo distinto na historiograa e na co. Esta comporta

    uma maior liberdade, oferecendo um nmero innito de possibilidades.

    De fato, o relato de co funciona como um laboratrio onde a imagi-

    nao testa diversas solues para resolver os enigmas do tempo ou

    outros enigmas da existncia.

    A temtica de mimsis 3, a da regurao, retoma as aporias do

    tempo para se concentrar na questo do leitor, atravs do ato de leitura.

    Ricoeur sustenta que o tempo humano captado na referncia cru-

    zada entre a representncia da historiograa (documentos, arquivos,

    sucesso de geraes, vestgios) e a signicncia da co literria

    (variaes imaginativas, metforas etc.). Ambas se referem ao real,

    mas diferentemente, atravs da imaginao produtora. Por um lado, as

    intrigas ctcias que inventamos ajudam a dar forma a nossa experin-

    cia, criando novos esquemas de inteligibilidade da ao. Esta produtivi-

    dade implica, num primeiro tempo, a suspenso da referncia imediata

    ao real. Nesse momento de suspenso, o texto projeta um mundo que

    simula a experincia vivida e comporta suas prprias guras da exis-

    tncia. o mundo do texto, que se oferece acolhida crtica do leitor

    e entra em confronto com o mundo real, j que pode desestrutur-lo e

    reorganiz-lo, amea-lo ou conrm-lo, ou seja: regur-lo. Por outro

    lado, a histria se assemelha co, pois produz sua referncia, j

  • 215

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    que s atinge o real passado indiretamente, reconstruindo-o atravs da

    imaginao criadora do historiador, que pe em intriga os documentos

    dos quais dispe e lhes d uma nova congurao. Nos dois tipos de

    narrativas existe uma referncia verdade, j que o historiador busca

    a verdade do que realmente aconteceu, enquanto o romancista busca

    narrar o que poderia ter acontecido. Em ambos os casos se pode per-

    ceber uma espcie de dvida com a realidade. De fato, as reconstru-

    es da histria e da co so uma tentativa de restituir aos homens do

    passado o que lhes devido.

    O mundo do texto, dado pela representncia da historiograa e

    pela signicncia da co, possui desta forma um carter revelante,

    pois pe em evidncia traos dissimulados da experincia do leitor; e

    transformante, j que uma vida assim examinada uma vida mudada.

    O ato de leitura constitui, portanto, o lugar indispensvel de interseo

    entre o mundo imaginrio do texto e o mundo efetivo do leitor. Nesse

    sentido, a leitura uma parada no curso da ao e um reenvio ao,

    um lugar onde o leitor interrompe seu percurso e um meio que o faz

    seguir adiante em sua travessia. atravs dela que se opera a transfe-

    rncia da estrutura da congurao narrativa sua regurao, que por

    sua vez transforma a ao humana passada e futura.

    O encontro e o cruzamento entre histria e co do origem no-

    o de identidade narrativa, central na reexo de Ricoeur, pois ela

    que o levar s anlises de O si mesmo como um outro. Segundo o

    lsofo francs, a identidade considerada como uma noo da prtica,

    s se diz narrativamente. S a narrao fornece ao nome prprio de

    um indivduo um suporte permanente para o conjunto de sua vida. Para

    responder questo: quem?, preciso narrar uma histria. A identidade

    narrativa no deve ser tomada no sentido de um mesmo (idem = identi-

    dade substancial), mas no sentido de um si mesmo (ipse = ipseidade). A

    ipseidade assim entendida est em contnua evoluo, ela nunca deixa

    de ser regurada por todas as histrias que o sujeito conta, l ou escuta

    sobre si mesmo ou sobre os outros. Esta identidade , porm, instvel,

  • 216

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    pois no cessa de se fazer e de se desfazer. A noo de identidade nar-

    rativa aplicvel tambm comunidade. o caso, como mostraremos,

    do Israel bblico, que mais que qualquer povo, sempre esteve apegado

    aos relatos que contavam sua histria.

    Apesar de a narrao ser uma das principais mediaes na forma-

    o da identidade narrativa, ela no esgota nem a identidade do sujeito/

    si, nem a de uma comunidade. Outros gneros literrios e outros recur-

    sos da linguagem tambm intervm nesse processo. Por isso, na ltima

    parte de Tempo e narrativa, Ricoeur retoma duas outras grandes aporias

    do tempo, a da disperso e unicao entre passado, presente e futuro,

    e a da relao entre tempo e eternidade. A primeira est na origem das

    losoas da histria, e d ocasio para que o lsofo francs elabore

    sua prpria hermenutica da conscincia ou do agir histrico, pensada

    como relao entre horizonte de espera (que pode ser instrudo pela

    linguagem da utopia), espao de experincia (que recebe seu limite e

    sua fecundidade da linguagem da ideologia), e iniciativa (que faz advir o

    novo no corao da histria atravs do agir do sujeito). A segunda aporia

    indica o carter inescrutvel da referncia a um fundamento do tempo e

    obriga a linguagem a buscar no s na narrao, mas tambm em outras

    formas de linguagem o enigma do outro do tempo. Como veremos nos

    estudos de exegese de Ricoeur, a Bblia no constituda s de textos

    narrativos, mas tambm de textos profticos, sapienciais, hnicos, legis-

    lativos.

    II. Contribuies da hermenutica de Ricoeur exegese

    e teologia

    As relaes entre hermenutica losca e hermenutica bblica es-

  • 217

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    to presentes em vrios textos de Ricoeur22. Segundo ele, existe uma

    relao complexa de incluso mtua entre essas duas hermenuti-

    cas23. A primeira possui um carter mais amplo do que a segunda, trans-

    cendendo seus debates metodolgicos. Sem ocupar-se do conito de

    interpretaes que existe entre os dois mtodos principais da exegese

    histrico-crtico e estruturalista , o lsofo francs mostra a comple-

    mentaridade que existe entre eles, complementaridade que implica sua

    reticao mtua, pois cada um corre o risco de erigir-se em ideologia.

    O mtodo estrutural corre o risco de se tornar ideologia do texto em si e

    o mtodo histrico-crtico de xar-se na fonte, no autor e no destinatrio

    primeiro. A hermenutica bblica deve abordar o texto como retomada de

    uma tradio e a interpretao como retomada do texto, dirimindo as-

    sim as antinomias entre verdade e mtodo, explicao e compreenso,

    e contribuindo na soluo do conito entre a leitura monoltica da ver-

    dade e a perspectiva innita da interpretao. Como veremos a seguir,

    percebem-se nas contribuies de Ricoeur exegese bblica os vrios

    momentos de sua teoria do texto e os diferentes aspectos de sua teoria

    da metfora e da narrao.

    1. O evento da Palavra de Deus

    A Bblia , em primeiro lugar, a realizao escrita da instncia de

    discurso oral que presidiu sua xao. Sua redao o prolongamento

    da primeira distncia aberta entre o ato de discurso e seu contedo.

    Com efeito, o texto bblico uma palavra dirigida por algum para dizer

    alguma coisa sobre a realidade a um destinatrio. Ele instncia de dis-

    curso porque em sua origem se encontra a inteno Palavra de Deus,

    22. Cf. RICOEUR, P. Hermenutica losca e hermenutica bblica. In Do texto aco. Op. cit., p. 125-138; A hermenutica bblica. So Paulo: Loyola, 2006; Penser la bible. Paris: Seuil, 1999. Seguiremos na apresentao que se segue o estudo exaustivo da relao entre hermenutica losca e exegese bblica de Ricoeur feito por AMHERDT, F.-X. Lhermneutique philosophique de Paul Ricoeur et son importance pour lexgse biblique. En dbat avec la New Yale Theology School. Paris: Cerf, 2004.

    23. CF. Hermenutica losca e hermenutica bblica. Op. cit., p. 125.

  • 218

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    que interveio na histria, se fez carne, palavra e livro, e que se d nas

    palavras de Jesus a testemunhas de seu futuro no mundo. O corte pro-

    movido pela escrita torna patente a distino entre evento e sentido j

    presente no advento da Palavra de Deus. Deus encontra o ser humano

    como evento de palavra, pois seu Filho se manifesta como Palavra divi-

    na feita carne, e o querigma original e a pregao da Igreja proclamam

    esta Palavra. O objeto do trabalho de exegetas e telogos a sucesso

    desses quatro discursos a Palavra de Deus, Deus como Palavra em

    Jesus Cristo, a Palavra da pregao primitiva e sua atualizao na pre-

    gao atual buscando assim reconquistar e rearmar a signicao da

    Palavra original que pe em movimento esta sequncia de palavras24.

    Nesse sentido, toda teologia uma teologia da Palavra, pois interpre-

    tao da Palavra divina tal como se apresenta na sucesso histrica das

    vrias formas de discurso acima enumeradas. A hermenutica teolgica

    tem como tarefa compreender a Palavra original como Palavra portadora

    de um novo sentido para hoje.

    Pode-se ento perceber no texto bblico nal uma cadeia de comu-

    nicao, j que por ele uma experincia de vida levada linguagem,

    xada por escrito e restituda palavra viva por diversos atos de discurso

    que a reatualizam25. A efetuao do texto bblico como discurso se insere

    assim na dialtica entre evento e sentido, presente na palavra originria

    do cristianismo: uma primeira distncia existe entre o evento Jesus e a

    proclamao de suas primeiras testemunhas, por um lado, e o sentido

    percebido pelos ouvintes do querigma e tornado disponvel xao por

    escrito, por outro lado26. Graas a esta primeira distncia entre os ou-

    vintes e as testemunhas do evento Jesus Cristo, o sentido adquire uma

    autonomia que o faz inaugurar um percurso ilimitado.

    2. A Bblia como obra literria

    24. Cf. COLLECTIF. Exgse et hermneutique. Paris: Seuil, 1971, p. 301.25. Cf. RICOEUR, P. Nommer Dieu. In tudes thologiques et religieuses 52 (1977), p. 491-492.26. Cf. Penser la Bible. Op. cit., p. 379.

  • 219

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    O discurso bblico se efetuou tambm como obra literria. Afastado

    de sua situao original de evento de palavra, ele se exteriorizou e se

    xou pouco a pouco numa rica diversidade de formas de discurso: nar-

    raes, leis, profecias, ditos sapienciais, hinos, oraes, apocalipses,

    parbolas, frmulas litrgicas, prosses de f etc. Os textos da Bblia,

    tanto do Antigo como do Novo Testamento, se apresentam, portanto ao

    leitor numa grande variedade de composies, de gneros literrios e de

    estilos, sendo obras de linguagem marcadas por um estilo e um modo

    de composio.

    Ricoeur no o primeiro a perceber a diversidade desses ml-

    tiplos gneros literrios na Bblia. A originalidade de sua leitura que

    ela no os considera como simples ferramentas de classicao (taxis),

    mas como meios de produo (prxis e poiesis) pelos quais o discurso

    bblico produzido como uma obra que engendra diversas facetas da

    Revelao divina. Ao se xar numa espcie literria, diz ele, a obra de

    discurso adquire uma autonomia com relao inteno do autor, do

    contexto e do auditrio primitivo. Um espao de jogo ento aberto s

    interpretaes, porque a restituio do evento original de discurso toma

    a forma de uma reconstruo que procede precisamente da estrutura in-

    terna de tal ou tal forma especca de discurso 27. A hermenutica bblica

    do lsofo francs se d ento como primeira tarefa identicar as vrias

    conguraes literrias estveis que, tomadas em conjunto, denem o

    espao de interpretao no interior do qual a linguagem bblica pode se

    compreender. Ele constata que cada tipo de consso de f, de nome-

    ao de Deus e de articulao da temporalidade corresponde a uma

    congurao literria especca. Sem ser exaustivo, nosso autor busca

    no Antigo e no Novo Testamento a imbricao entre a forma lingustica e

    o contedo teolgico de alguns gneros literrios. Ele no se contenta,

    porm, em enumer-los, mas os confronta entre si, mostrando o alcance

    das tenses da surgidas, a circularidade que estabelecem no interior

    27. Cf. RICOER, P. La philosophie et la spcicit du langage religieux. In Revue dhistoire et de philosophie religieuses 55 (1975), p. 17.

  • 220

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    do cnon e o sentido teolgico que da emerge. Vejamos brevemente o

    resultado de sua anlise no corpus do texto bblico.

    a. Gneros literrios no Antigo Testamento

    Para Ricoeur, do Antigo Testamento emergem as seguintes vozes:

    a da narrao, a da profecia, a da lei, a da sabedoria, a do hino e, mais

    raramente, a do apocalipse28.

    A forma narrativa , segundo Ricoeur, predominante no Antigo Testamento. Ela mostra que o Deus da Revelao no um primeiro

    motor abstrato, mas o grande ator da histria, o libertador. Com isso

    ela historiciza os rituais litrgicos e quebra toda construo teolgica

    fundada no numinoso ou no sagrado csmico29. Recorrendo teologia

    das tradies de G. von Rad, o lsofo francs mostra a solidariedade

    que existe entre o tipo de consso de f de Israel e a narrao. O olhar

    do leitor, diz ele, no atrado pelo narrador mas pelos fatos narrados,

    os quais revelam Yahv como o actante ltimo do drama histrico que

    a aliana com seu povo. O sentido da Revelao se articula ento ao

    redor de alguns eventos fundadores no Antigo Testamento: a eleio de

    Abrao, a sada do Egito ou o xodo, a entrada na terra prometida, a un-

    o de Davi. Tais eventos engendram a histria e criam um povo, sendo

    por isso instauradores e instituintes30. Com efeito, o relato aponta para o

    evento ou para os eventos fundadores, como vestgios, marcas, rastros

    de Deus31. Ao contar tais eventos, Israel confessa seu Deus e sua his-

    tria se torna Histria da salvao. Apesar de se referirem ao passado,

    esses eventos tm carter querigmtico. De fato, a narrao pe em in-

    triga o querigma, impedindo-o de toda sistematizao ahistrica ou dog-

    mtica. A consso de f joga o papel de princpio unicador que preside

    28. Cf. Nommer Dieu. Op. cit.29. Cf. RICOEUR, P. Manifestation et proclamation. In CASTELLI, E. (d.). Le sacr. tudes et recherches. Paris : Aubier, 1974, p. 64-66.30. RICOEUR, P. Hermneutique et lide de Rvlation. In COLLECTIF. La Rvlation. Bruxelles: Saint Louis, 1977, p. 19-20; Nommer Dieu. Op. cit., p. 49731. Cf. Hermneutique et lide de Rvlation. Op. cit., p. 21.

  • 221

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    a ltima redao do relato. Ela o guarda de reduzir-se a pura narrao.

    o que mostra, por exemplo, a armao Yahv fez seu povo sair do

    Egito, que assegura a unidade do sentido histrico e querigmtico, e

    fornece narrao a possibilidade de estender-se a grandes conjuntos,

    como a obra do javista, sobre a qual se superps a do deuteronomista

    e a do sacerdotal. O ncleo querigmtico permite ainda que a narrao

    atraia elementos exgenos, no narrativos, como as sagas mticas, as

    lendas, as prescries litrgicas, os preceitos ticos32. O querigma, que

    possui o papel de instncia organizadora do narrativo, exprime a f de

    Israel em um Deus que intervm na histria. A narrao se torna assim

    a carta de fundao de Israel, que se identica com o narrado, com o

    destinatrio e com o actante das narrativas que produziu, encontrando

    nessas narrativas sua identidade narrativa33. Israel proclama ento sua

    f contando sua histria. Ao redor de eventos nucleares se constitui um

    discurso misto, um recitativo feito ao mesmo tempo de narrao hist-

    rica e de consso querigmtica, que se abre celebrao e inaugura

    uma tradio.

    A forma narrativa entra em tenso estrutural e temtica com ou-

    tras formas de discurso, como a proftica. Com efeito, existe o risco de o Deus grande actante da gesta salvca ser absorvido no passado

    do povo e de o acento muito exclusivo na memria apagar a tenso

    da esperana. a que intervm o orculo proftico, que impede uma

    identicao excessiva de Yahv com a histria de Israel. A profecia faz

    irrupo no narrativo, que tende a se esclerosar se no constante-

    mente reatualizado. Ela balana as bases das certezas estabelecidas,

    desconstri a narrativa esvaziada pelo esquecimento, quebra toda segu-

    rana solidamente instalada, desfaz o cosmos, provoca rupturas e abre

    um espao novo de sentido, onde uma nova narrao pode surgir para

    32. Cf. RICOEUR, P. Les incidences thologiques des recherches actuelles concernant le lan-gage. Institut ddutes ocumniques, 1972, p. 64.33. Idem, p. 78.

  • 222

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    uma nova edicao da comunidade34. O orculo proftico cria, portan-

    to, fratura na narrativa anterior para fazer nascer outra, com novo dina-

    mismo. Ele balana o tempo da Histria da salvao, ameaando-a de

    desaparecimento, com o advento do Dia de Yahv, dia de terror e de

    desolao35. No entanto, o tempo do discurso proftico pressupe o tem-

    po dos relatos histricos. A dialtica entre profecia e narrao engendra

    uma inteligncia paradoxal da histria, como simultaneamente fundada

    na rememorao e ameaada pela profecia36. Outra diferena entre pro-

    fecia e narrao que esta fala de Deus na terceira pessoa, enquanto o

    profeta fala em nome de Deus. Ele o nomeia em dupla primeira pessoa,

    como palavra de outro em sua palavra37. O proftico ento o discurso

    do evento de palavra, do testemunho do inteiramente Outro. O risco des-

    sa modalidade de discurso, segundo Ricoeur, o de reduzir a Revelao

    ao conceito estreito de uma escritura soprada ao ouvido, identicando-a

    com a noo de inspirao, concebida como voz por detrs da voz38.

    Cortada da narrao, a profecia pode ainda ser vista como adivinhao

    do futuro. Pressionada pela apocalptica, ela se confunde com a viso

    premonitria do m dos tempos39. Somente associada narrao a pro-

    fecia pode fazer emergir uma nova concepo do tempo, a escatolgica,

    na qual o tempo se torna o ainda no do Dia de Yahv, que tambm

    um Dia de libertao para o povo eleito40. Ligada ao discurso narrativo, a

    profecia metaforiza o conjunto da tradio bblica numa histria da pro-

    messa. Enm, como na narrao, o proftico tambm se combina com

    o querigmtico, assegurando, por um lado, a permanncia da presena

    divina ao longo da Histria da salvao, e suscitando, por outro, um novo

    comeo depois de uma ruptura brutal. Essa dialtica entre o querigma e

    34. Ibidem, p. 91.35. Cf. La philosophie et la spcicit du langage religieux. Op. cit., p. 19.36. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p. 498.37. Idem.38. Cf. Hermneutique et lide de Rvlation. Op. cit., p. 18.39. Idem.40. Cf. Les incidences thologiques des recherches actuelles concernant le langage. Op. cit., p. 82.

  • 223

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    a profecia se encontra igualmente na apocalptica, que projeta para o m

    dos tempos uma sucesso similar de catstrofe e recriao: no momento

    de destruio suceder a ltima interveno salvca de Yahv.

    Esta polaridade entre narrao e profecia no esgota a polifonia

    da Revelao, da qual emerge tambm a voz do discurso prescritivo. Nesse discurso, observa Ricoeur, Deus nomeado como aquele que

    d a Tor instruo . Na medida em que ela me dirigida, eu me

    percebo como designado por Yahv na segunda pessoa: Tu amars o

    Senhor teu Deus41. Um novo tipo de relao se estabelece ento entre

    Deus e o ser humano, uma relao de dependncia. O dom da Tor ,

    no entanto, indissocivel dos eventos salvcos da libertao42. Por isso,

    a narrao convertida em tica pela Tor que se torna a carta de liber-

    tao do Povo salvo. Mais que um imperativo exterior, ela exprime uma

    relao de Aliana amorosa, que engloba o conjunto da vida individual e

    comunitria de Israel. Por isso, um acento unilateral no prescritivo pode

    levar a esquecer o que distingue a Revelao bblica da ontologia grega:

    a designao de Deus como ator de um drama histrico. A instruo

    narrativa da Tor e a teologia histrica do Nome de Deus se opem hie-

    rofania do dolo e manifestao da divindade pela imagem43. Desligado

    dos relatos de libertao, com a palavra proftica e os hinos litrgicos, a

    forma legislativa tende a reduzir a Revelao a um cdigo moral, que se

    dirige vontade e no imaginao. O carter concreto do prescritivo

    ganha preciso ainda se aproximamos o mandamento do apelo profti-

    co. Segundo Ricoeur, da mesma forma que o tu do profeta interpelado

    se torna o eu do porta-voz de Yahv, tambm o tu da interpelao

    tica se torna o eu da responsabilidade44. Para alm do intercmbio

    entre voz proftica e voz tica, diz ele, a dialtica da profecia e da ins-

    truo se prolonga no dinamismo histrico da Tor. Ora ela se difrata

    41. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p. 498-499.42. Cf. Hermneutique et lide de Rvlation. Op. cit., p. 24.43. Cf. Manifestation et Proclamation. Op. cit., p. 64-66. 44. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p. 499.

  • 224

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    numa multido innita de pequenas prescries, ora ela se concentra

    numa nica perspectiva de santidade ou no nico mandamento do amor.

    Nesse sentido, a nova Lei oriunda dos profetas, uma tica segundo

    a profecia45. A nova aliana, inscrita no corao, no proclama preceitos

    suplementares, mas estabelece uma nova qualidade relacional. O dis-

    curso legislativo tambm animado por um movimento temporal, que

    visa a santidade e a perfeio, as quais constituem a dimenso tica da

    Revelao. Ele guarda um dinamismo criador de existncia e de com-

    portamento, e leva a um reajuste constante da existncia individual e

    coletiva, por delidade Aliana e readaptao das instituies.

    A sabedoria, assinala Ricoeur, possibilita o movimento de aprofun-damento da Tor e sua interiorizao para alm da multiplicidade de pre-

    ceitos. O sbio medita sobre a condio humana em geral, atingindo o

    universal para alm do povo eleito. As fontes de seu discurso encontram-

    se no simbolismo do cosmos e da natureza. Como vimos, a profecia

    em geral ganha de toda forma de sagrado natural e csmico no mundo

    hebraico46. No entanto, observa nosso autor, o evento da Palavra per-

    deria em profundidade e em substncia se no conservasse algumas

    ressonncias do numinoso47. Quando se passa da profecia para a sa-

    bedoria a noo de Revelao muda de registro: o profeta reivindica

    a inspirao divina como cauo. O sbio no o faz. Ele no declara

    que sua palavra a palavra de outro. Mas ele sabe que a sabedoria

    o precede e que, de algum modo, por participao sabedoria que

    o homem pode ser dito sbio48. A funo do sbio a de ligar ethos e

    cosmos, a ordem do agir e a ordem do mundo. O simbolismo csmico

    no , portanto, suprimido, mas reinterpretado, deslocado, historiciza-

    do, segundo as exigncias da proclamao. De fato, a sabedoria toca a

    grande variedade de situaes onde o humano atinge suas grandezas

    45. Idem.46. Cf. Manifestation et proclamation. Op. cit., p. 64-65.47. Idem, p. 74.48. Cf. Hermneutique et lide de Rvlation. Op. cit., p. 28.

  • 225

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    (beleza, prosperidade, nascimento) e seus limites (injustia, desastre,

    morte). Sem negar a prioridade da proclamao, Ricoeur prope uma

    dialtica entre o querigmtico e a manifestao do sagrado. Para ele, o

    simbolismo csmico no abolido pela Palavra, mas submetido a uma

    reinterpretao que o utiliza e o modica sob a forma dramtica de uma

    reviravolta. O sbio reete sobre o sentido da existncia em meio ao

    sem sentido do trgico e da injustia. Ele nomeia Deus como ausente e

    silencioso, especialmente na experincia da justia e do sofrimento do

    inocente49. J o paradigma da literatura sapiencial, chegando a amar

    Deus por nada, negando a falsa teologia da retribuio e ganhando a

    aposta feita por Sat no incio do livro50. Como o discurso sapiencial

    se articula com as outras modalidades de discurso? Segundo Ricoeur,

    como a narrao, a sabedoria tambm fala de um desgnio de Deus,

    mas ela se anula diante do impenetrvel deste desgnio. a sabedoria

    de Deus, uma sabedoria que os Provrbios personicam em gura femi-

    nina, que acompanha Deus durante a criao (Pr 8). O sbio encontra

    o profeta, pois a objetividade da sabedoria personicada corresponde

    subjetividade da inspirao proftica. Profecia e sabedoria se encontram

    ainda no discurso escatolgico, convergindo em livros como o de Daniel

    e os do perodo intertestamentrio, que anunciam o Dia de Yahv: ad-

    vento do apocalipse e revelao dos segredos de Deus51.

    O ltimo gnero literrio do Antigo Testamento estudado por Ricoeur

    o das diferentes modalidades da literatura lrica, como os hinos de louvor, as splicas e as aes de graa. Essa literatura afeta, segundo

    ele, as demais formas literrias na medida em que se dirige a Deus em

    segunda pessoa. Deus se torna ento um tu para o tu humano52. No

    contexto do hino, os relatos dos prodgios realizados por Ele, como a

    criao ou o xodo, so transformados em invocao. Sem as splicas

    49. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p. 500.50. Cf. RICOEUR, P. Le mal. Un d la philosophie et la thologie. Genve: Labor et Fides, 2006, p. 22. 43-44.

    51. Cf. Hermneutique et lide de Rvlation. Op. cit., p. 28.52. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p. 500.

  • 226

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    dos salmos, o sofrimento do justo culminaria no mutismo da incompreen-

    so. A sabedoria, que ensina o saber sofrer, se encontra ento elevada

    pelo grito de splica. Na lamentao chega-se a acusar Deus, como no

    grito do salmista: At quando Senhor?, acusao que ilustra a impa-

    cincia da esperana53. Em retorno, a sabedoria contribui para trans-

    formar qualitativamente a reclamao, espiritualizando-a. Ela nos leva a

    descobrir que cremos em Deus, no para explicar a origem do mal, mas

    apesar do mal, em detrimento do mal. A espiritualizao da lamen-

    tao culmina na supresso, quando o sbio, como no exemplo de J,

    renuncia a todos os seus desejos e consegue amar a Deus por nada54.

    b. Gneros literrios no Novo Testamento

    O estudo de Ricoeur sobre a linguagem do Novo Testamento se con-

    centrou, sobretudo, no gnero parablico, a partir do qual ele estudou a

    especicidade da linguagem religiosa, aprofundando tambm os ditos

    apocalpticos e sapienciais de Jesus. Na forma parablica ele desco-

    bre uma aplicao suplementar da categoria textual da obra: os cdi-

    gos narrativos em ao no relato-parbola funcionam ao mesmo tempo

    como constrangimentos paradigmticos e como impulses a uma livre

    gerao, que se benecia do dinamismo estruturante disponvel meta-

    forizao. A parbola para nosso autor uma forma de narrativo-recitati-

    vo e um modelo de querigmatizao da narrao, em continuidade com

    os estudos que ele realizou sobre o Antigo Testamento.

    Segundo Ricoeur a parbola combina trs dimenses intrinseca-

    mente ligadas: 1) uma forma narrativa: a vertente narrao, que ele

    estuda a partir da anlise estrutural e da semntica da narratividade; 2)

    um processo metafrico: a vertente potico-simblica, que ele aborda

    com a ajuda de sua teoria da metfora; 3) um qualicador prprio, que

    provoca a passagem para o referente ltimo da parbola, que por sua

    53. Cf. Le mal. Un d la philosophie et la thologie. Op. cit., p. 42.54. Idem, p. 42-44.

  • 227

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    vez constitui a especicidade mesma da linguagem religiosa, a qual

    igualmente teolgica.

    No primeiro momento do estudo das parbolas Ricoeur retoma algu-

    mas teorias do parablico que privilegiam a vertente da narrao, como

    as de D. O. Via, V. Propp, A. J. Greimas e L. Marin. Segundo ele, para

    algumas dessas teorias uma conexo entre as abordagens literria-es-

    trutural e histrica se revela impossvel e impraticvel. O lsofo francs

    preconiza, porm, o retorno ao cdigo da mensagem pela articulao da

    anlise semitica com a interpretao hermenutica, em funo de trs

    categorias relacionadas s categorias do texto: 1) a parbola efetua-

    da como discurso, que no obliterado pela escritura, graas dialti-

    ca evento/sentido; 2) o gnero literrio parbola no tem um estatuto

    unicamente taxonmico, mas exerce um trabalho de engendramento do

    discurso como obra singularizada. Mais que preocupar-se com o cdigo,

    a hermenutica deve colocar-se ao servio da mensagem; 3) a forma

    narrativa funciona efetivamente como comunicao, cujos sinais se en-

    contram no seio mesmo da narrao e estabelecem um intercmbio en-

    tre um doador e um receptor da parbola.

    No segundo momento de sua anlise Ricoeur arma que a par-

    bola um modo de discurso que aplica forma narrativa um processo

    de metaforizao, segundo a dupla modalidade da inovao semntica

    no nvel do sentido , e da co heurstica no nvel da referncia

    . O relato parablico sofre assim uma transferncia de sentido sob a

    presso de traos metafricos, que o levam a redescrever a realidade

    humana e a visar obliquamente o Reinado de Deus55. O que uma in-

    terpretao metafrica da parbola? Distanciando-se de A. Juelicher,

    que prope uma leitura prxima da retrica da metfora e v a par-

    bola como artifcio de persuaso e de conhecimento, nosso autor se

    aproxima de E. Jngel, percebendo na tenso lingustica presente no

    relato-parbola um processo metafrico. Mas enquanto na metfora o

    55. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p. 501.

  • 228

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    fenmeno da torso advm no nvel da frase, na parbola no nvel do

    conjunto da narrao que intervm a tenso entre a concepo habitual

    da realidade e a histria ctcia que pe em cena a parbola. Os traos

    dessa metaforizao j aparecem no tecer da intriga do relato-parbo-

    la. na ao da narrao, na crise e na soluo que ela prope, que se

    encontram os traos da metaforizao. O que provoca a inconsistncia

    da estrutura narrativa e engendra o dinamismo metafrico o elemento

    de extravagncia. Cada parbola introduz na textura da intriga um epi-

    sdio inesperado, paradoxal, inslito ou escandaloso, de tipo trgico ou

    cmico: a retribuio dos operrios da dcima primeira hora, o abandono

    das 99 ovelhas para encontrar a centsima, a venda de todos os bens

    para comprar o campo com o tesouro, o convite festa feito na rua a

    convidados de substituio56. A excentricidade desses comportamentos

    manifesta a emergncia do extraordinrio. Esses traos de extravagn-

    cia criam a tenso metafrica, geram um excesso de sentido, quebram o

    fechamento da forma narrativa, liberam a abertura do processo metafri-

    co e conduzem transgresso do sentido interno rumo a uma referncia

    externa. o contraste entre o realismo da histria e a extravagncia do

    desfecho que suscita a espcie de deriva pela qual a intriga e sua ponta

    so inesperadamente deportadas ao Inteiramente Outro57.

    O jogo de interferncias metafricas se estende alm do corpus das

    parbolas ao corpus de palavras atribudo pelos Sinpticos a Jesus,

    como ocorre com os provrbios e os ditos escatolgicos. Segundo

    Ricoeur, esses discursos produzem o mesmo efeito que as parbolas:

    apontam para o gurativo Reinado de Deus. Uma mesma lei de extra-

    vagncia est em ao nessas trs modalidades de discurso. Enquanto

    a sabedoria do Oriente Mdio antigo guia o discernimento nas circuns-

    tncias cotidianas da vida, as frmulas proverbiais do Novo Testamento

    desorientam o ouvinte, dissuadindo-o de fazer de sua vida um projeto

    coerente. Elas utilizam ora o paradoxo: quem quer salvar sua vida a

    56. Cf. Manifestation et proclamation. Op. cit., p. 69.57. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., p. 502.

  • 229

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    perder e quem a perde a salvar (Lc 17,33), ora a hiprbole: Amai

    vossos inimigos, orai pelos que vos perseguem (Mt 5,44). Este uso sis-

    temtico do paradoxo ou da hiprbole opera uma intensicao do uso

    do provrbio e abre a uma lgica de uma existncia inteiramente outra58.

    Quanto s expresses escatolgicas como: o Reino de Deus no vem

    de uma maneira visvel. No se dir: ei-lo aqui ou ento ei-lo ali. De

    fato, eis que o Reino de Deus est no meio de vs (Lc 17,20-21), elas

    funcionam com uma estratgia similar. Aqui a prtica apocalptica ha-

    bitual da busca de sinais que subvertida. Uma nova temporalidade

    invade o presente e rompe todo o esquema temporal literal. Tanto os

    provrbios quanto os dizeres escatolgicos entram em interao com as

    parbolas e provocam uma intensicao de sua extravagncia59.

    Ricoeur prope, enm, um passo a mais ao situar o discurso para-

    blico e o conjunto das palavras de Jesus numa interao com a nar-

    rao de seus gestos e aes. As atitudes escandalosas de Jesus ao

    sentar com os pecadores ou ao frequentar as prostitutas, bem como

    seus milagres, provocam uma interrupo no curso ordinrio dos even-

    tos. No se poderia dizer, pergunta-se o lsofo francs, que as par-

    bolas atraem nossa ateno sobre a dimenso milagrosa do tempo, ao

    mesmo tempo em que os relatos de milagres recebem da pregao sua

    dimenso parablica?60 A interssignicao das palavras e das aes

    de Jesus culmina nos relatos da paixo: eles interferem metaforicamente

    com o corpus das parbolas, no numa relao de justaposio, mas de

    interpenetrao simblica. Com efeito, pode-se falar de parbolas do

    Crucicado. De um lado, Jesus proclama Deus em parbolas (ele o

    locutor de histrias parablicas), e do outro, ele proclamado pela Igreja

    como parbola de Deus, ele o heri das narraes metafricas61. O

    Evangelho conta Jesus contando parbolas.

    58. Cf. Manifestation et proclamation. Op. cit., p. 67-68; Nommer Dieu. Op. cit., p. 502.59. Cf. Paul Ricoeur on Biblical Hermeneutics. Op. cit., p. 101-102.60. Idem, p. 103.61. Ibidem, p. 105.

  • 230

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    No terceiro momento de sua anlise Ricoeur aprofunda a especi-

    cidade da linguagem religiosa. Nas duas primeiras etapas, diz ele, a

    parbola foi descrita em termos de forma narrativa deslocada por um

    processo metafrico. Como todo relato ctcio, ela possui um poder de

    inovao semntica e de redescrio da realidade humana. O que ento

    o especco da linguagem bblica com relao linguagem potica?

    O que pode fazer da funo potica o rganon do discurso religioso?

    Segundo o lsofo francs, a originalidade do discurso bblico dada

    pela presena de expresses-enigmas, como a de Reinado de Deus,

    que operam a ruptura do dizer ordinrio, levando a co da narrativa a

    transgredir suas fronteiras ordinrias e provocando a intensicao do

    processo metafrico. Pela irrupo do extraordinrio, do implausvel,

    do inslito, no curso ordinrio da vida, as formas habituais da lingua-

    gem so levadas a seu limite de expressividade. As expresses-enigma

    se tornam ento expresses-limite. Para Ricoeur, o funcionamento da

    linguagem religiosa determinado por aquilo que ela tenta levar lin-

    guagem: o Reinado de Deus. Este se torna o referente-limite de todas

    essas expresses-limite, e pode desta forma conduzir ao innito as di-

    versas modalidades discursivas, apontando ao Inteiramente Outro, ao

    Transcendente. A parbola paradigma da linguagem religiosa porque

    combina uma estrutura narrativa lembrando a ancoragem da lingua-

    gem da f na narrao , um processo metafrico tornando manifes-

    to o funcionamento potico do conjunto da linguagem da f , e uma

    expresso-limite ligada metfora que a torna um condensado da no-

    meao de Deus.

    O referente-limite do discurso parablico a expresso reinado

    de Deus , preside tambm o tipo de experincias que a linguagem

    religiosa pretende regurar. Ricoeur as chama de experincias-limite.

    Com efeito, a fora da revelao do qualicativo introduz em nosso agir

    humano a mesma excentricidade e o mesmo escndalo lgico que na

    intriga narrativa. Nossa experincia cotidiana e nossa vontade de dar um

    sentido global nossa vida so rompidas sem que nos seja prometida

  • 231

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    a nova sistematizao. A insistncia da descontinuidade nesta forma de

    captar a linguagem religiosa mostra, segundo o lsofo francs, a fora

    heurstica dos relatos-parbolas, que funcionam como um modelo de

    desvelamento existencial em trs nveis: ela orienta nossa existncia pela aparente normalidade do relato; ela nos desorienta pela intriga; mas para melhor nos reorientar em direo a novas possibilidades de ser-ao-mundo. Alm da reverso de todo programa, as expresses-

    limite nos introduzem numa outra lgica que a da retribuio. Ao falar

    ao imaginrio mais que ao querer, as parbolas, por sua excentricida-

    de semntica, nos fazem aceder a uma lgica da generosidade e da

    superabundncia, a lgica de Jesus62. Se o incrvel irrompe em nosso

    discurso como em nossa experincia, porque o incrvel enigmtico faz

    parte constitutiva do mundo de nosso discurso e de nossa experincia. A

    linguagem religiosa nos desorienta ento unicamente para nos reorien-

    tar. O referente-ltimo das parbolas, provrbios e ditos escatolgicos

    no o Reinado de Deus, mas a realidade humana em sua totalidade63.

    No nal de seu estudo Ricoeur mostra a relao existente entre a

    linguagem bblica e a linguagem teolgica. Segundo ele, a teologia deve

    articular a linguagem religiosa com a experincia que ela veicula e a

    experincia de toda a humanidade. Mais que recorrer a uma conceptu-

    alizao losca extrnseca, ela deve tirar proveito do exame das po-

    tencialidades conceituais da prpria linguagem religiosa. Com efeito, as

    diferentes formas literrias do discurso bblico so atravessadas por um

    dinamismo simblico que requer interpretao. A parbola, por exemplo,

    se apresenta como uma histria enigmtica, resultado de uma primeira

    interpretao a da comunidade primitiva , que demanda interpreta-

    es ulteriores. Essa necessidade de explicao interna d origem a

    discursos semi-conceptuais intermedirios, como o da literatura did-

    tica, apologtica e dogmtica das primeiras cristologias ou a linguagem

    62. Cf. RICOEUR, P. La logique de Jsus. Romains 5 (criture et prdication 33). In tudes thologiques et religieuses 55 (1980), p. 423.63. Cf. Paul Ricoeur on Biblical Hermeneutics. Op. cit., p. 127.

  • 232

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    paulina da justia de Deus64. Esses discursos balizam a progresso

    que conduz o discurso religioso ao discurso teolgico, e guardam a mes-

    ma lgica da superabundncia divina pelo colapso da lgica ordinria

    que se encontra na parabolizao evanglica. Por isso, a congurao

    polifnica da Bblia-obra requer uma interpretao tambm polifnica.

    3. A categoria escritura

    A terceira categoria da teoria do texto de Ricoeur tematizada em

    sua exegese bblica ao redor do par palavra e escritura. Qual a inci-

    dncia para a teologia da Palavra de Deus o fato de a Escritura ser o

    resultado escrito da dialtica evento sentido? Uma das ocasies em

    que Ricoeur reete sobre isso em seu dilogo com certas modalidades

    de teologia da Palavra. Segundo ele, algumas dessas correntes correm

    o risco de privilegiar exclusivamente o encontro existencial entre o leitor

    e a Palavra de Deus que precede a escritura. O risco consiste em se

    apegar somente no desdobramento do futuro da palavra, privilegiando

    um modelo de imediatidade dialogal entre o eu humano e o tu divino65.

    Edica-se ento uma teologia que faz a economia da encarnao do

    Cristo na Escritura e cede armadilha de querer atualizar imediatamente

    o evento de palavra, curto-circuitando a sequncia palavra-escritura-

    palavra, que constitutiva do querigma originrio66. Outra exigncia da

    teologia da Palavra, continua Ricoeur, assumir a metodologia da abor-

    dagem estrutural que decodica o texto , da leitura fenomenolgica

    que percebe o falar do texto , e da perspectiva ontolgica que faz

    eclodir o dizer da linguagem e sua ancoragem no fundamento englo-

    bante do ser e da existncia67. A Palavra divina s nos atinge nos textos

    64. Cf. RICOEUR, P. Toward a Narrative Theology: Its Necessity, Its Resources, Its Difculties. In WALLACE, M. I. Figuring the Sacred. Religion, Narrative and Imagination. Minneapolis, 1995, p. 247-248.65. Cf. Nommer Dieu. Op. cit., 490-491.66. Cf. RICOEUR, P. vnement et sens. In CASTELLI, E. (dir.). Rvlation et histoire. Paris, 1971, p. 24-25.67. Cf. Exgse et hermneutique. Op. cit., p. 310-315.

  • 233

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    e sua interpretao, e a teologia da Palavra deve ser hermenutica da

    obra escrita68.

    Nas pegadas de Paul Beauchamp, Ricoeur retoma a questo dos

    gneros literrios atravs da relao entre voz e escritura. Ele mostra

    que a trplice estrutura da tradio rabnica Tor, Profetas, Outros

    Escritos corresponde a uma trplice forma de articular palavra e escri-

    tura. Assim, a Tor, que no Pentateuco rene o prescritivo e o narrativo,

    se apresenta como a injuno da Palavra divina que requer a escuta da

    parte do povo, que foi transmitida a uma nica testemunha Moiss

    num encontro de uma particularidade intensa. Esta Palavra gura o ime-

    morial, princpio de todas as leis anteriores e ulteriores. sob a forma de

    escritura que ela transmitida ao povo para que, no quadro da aliana,

    ele a acolha. J o profeta se investe totalmente de sua palavra, que pro-

    nuncia em nome de Yahv, mas que ele s pode proclamar referindo-se

    ao Senhor da Tor escrita, pois somente os escritos recolhem as leis e

    os relatos que contam os feitos de Deus. Alm do mais, sua palavra

    datada, enquanto a da Lei imemorial. Nos Outros Escritos, a dialtica

    entre voz e escrita atinge uma grande complexidade, pois a sabedoria

    ao mesmo tempo sem idade, encontrando-se com a Palavra criadora,

    e cotidiana, aproximando-se do conselho oral. A Bblia hebraica fecha o

    espao no interior do qual circulam essas trs escrituras. Mas o Livro

    fechado ao mesmo tempo aberto: pela sabedoria, a outras naes;

    pela apocalptica, que recorre a uma maneira de escrever hermtica;

    pelo fenmeno da deuterose69, a um cumprimento, fora de seu prprio

    texto, da novidade que anuncia; e, enm, ao fora do texto que o

    povo de Israel, que se reconhece como povo de Deus ao constituir suas

    Escrituras. Com efeito, o povo de Deus se reconhece como tal confes-

    68. Cf. vnement et sens. Op. cit., p. 25.69. Beauchamp v o fenmeno da deuterose no Deuteronmio, onde as leis se tornam a Lei; no Deutero-Isaas, onde as profecias se tornam a Profecia; nos 9 primeiros captulos dos Provrbios, onde os ditos sapienciais se tornam a Sabedoria. Trata-se de um fenmeno de aprofundamento e recapitulao. Cf. BEAUCHAMP, P. Lun et lautre testament. 1. Essai de lecture. Paris : Seuil, 1976, p. 150 s.

  • 234

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    sando sua instaurao por essas Escrituras, tidas como manifestao da

    Palavra de Deus. O crculo no foi rompido: ele foi ampliado ao ponto de

    nos incluir70. A trade das escrituras corresponde no s a um ternrio

    da nomeao e do apelo divino, mas tambm ao ternrio da identidade

    do povo, que se apresenta como uma identidade tico-narrativa estvel

    e fundada na segurana de uma tradio; como uma identidade tica

    abalada, desestabilizada pela histria hostil e submetida alternncia

    de morte e ressurreio; como uma identidade sapiencial, chamada a se

    comunicar com a universalidade das naes. Essa identidade tambm

    o resultado de um processo ilimitado de interpretaes do Livro que elas

    enriquecem71.

    4. Categoria mundo do texto

    A escritura do discurso bblico introduz, enm, a distanciao pela

    qual a coisa do texto destacada de seu locutor, de seu primeiro desti-

    natrio e de sua situao primitiva. Pela escritura, a Palavra comea um

    percurso de sentido uma tradio que se estende at ns, e ela o faz

    atravs da coisa ou do mundo do texto que veicula esta tradio. Ao

    abordar esta quarta categoria Ricoeur mostra o que o texto bblico tem

    de comum com os textos poticos em geral e o que faz sua originalidade.

    Dizer que os textos bblicos projetam um mundo, com a objetividade

    que comporta esta noo, prevenir a hermenutica bblica contra a

    irrupo prematura das categorias existenciais da compreenso subje-

    tiva. Sua primeira tarefa no consiste ento em provocar sentimentos,

    atitudes ou converso no leitor, mas em favorecer o desdobramento da

    proposio de mundo que a Bblia chama Reinado de Deus, novo mun-

    do, nova aliana, corao novo, homem novo. este novo ser objeti-

    vo que conduz o jogo da interpretao. O uso desta categoria interdiz,

    portanto, sua identicao apenas com a deciso existencial. De fato,

    70. Cf. RICOEUR, P. Lenchevtrement de la voix et de lcrit dans le discours biblique. In Lectures 3. Aux frontires de la philosophie. Paris: Seuil, 1994, p. 324.71. Idem, p. 325.

  • 235

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    o horizonte do texto bblico se exprime em registros outros que os da

    relao pessoal eu-tu entre o homem e Deus. As vozes mltiplas da po-

    lifonia bblica aludidas acima se acordam a abrir um espao global, rico

    de dimenses histricas, cosmolgicas, culturais, ticas, comunitrias e

    pessoais. A noo de mundo do texto permite ainda a despsicologizao

    do conceito de inspirao concebido apenas em termos de doao de

    sentido a um escriba pela insuao imediata. o texto e seu mundo

    que so inspirados. Mesmo a Revelao conduzida coisa que o

    texto diz. A Bblia abre para seu leitor uma possibilidade de existncia

    sobre a qual ele no tem nenhum domnio, embora ela seja prometida a

    se tornar seu possvel mais prprio.

    A segunda especicidade do mundo bblico reside no lugar central

    que nele ocupam os referentes Deus e Cristo. Ora, na maneira

    como o novo ser da Bblia se anuncia nos textos que se reconhece sua

    originalidade. Podemos, portanto, reconhecer este livro como Palavra

    de Deus se vamos at o fundo em sua escuta como livro conforme os

    outros. Com efeito, o nome de Deus tem um lugar central no mundo bbli-

    co, seja como poder de coordenao de todos os discursos sobre Deus,

    seja como o ponto de fuga ou o index de incompletude de todas essas

    formas particulares. A nomeao especica ento as Escrituras bblicas

    entre os textos poticos, e nomear Deus, antes de um ato do leitor cren-

    te, primeiro um ato dos textos em seus diversos gneros literrios, que

    atribuem a cada vez uma forma particular a esta nomeao. Os distintos

    modos de discurso e de escritura mostram um rosto mltiplo de Deus,

    que, como vimos, designado de maneira polissmica: nas narrativas,

    como Deus do qual se fala em terceira pessoa, o actante supremo de

    uma gesta salvca pontuada de eventos fundadores; nos textos legis-

    lativos, como um Deus que se d como o Eu que a fonte de uma

    injuno e que requer do tu humano uma palavra de obedincia; no

    conjunto da Tor, como um Deus que est na origem imemorial de todas

    as coisas, da histria e da Lei, que funda a identidade tico-narrativa do

    povo de Israel; na profecia, como um Deus que advm como a voz de

  • 236

    Teoliterria V. 2 - N. 4 - 2012

    um Eu transcendente que duplica o eu humano do profeta, cuja pala-

    vra afronta a ameaa da destruio-luto e a promessa da reconstruo-

    esperana; nos Outros Escritos, como um Deus designado como o sen-

    tido universal, dissimulado por detrs do uxo annimo do cosmos e da

    histria em seu absurdo; no hino, como um Deus que o homem contesta,

    invoca e celebra, como o Tu da lamentao, da splica e do louvor. O

    mesmo se percebe no Novo Testamento, atravs da extravagncia dos

    relatos-parbolas, no paradoxo e na hiprbole das expresses prover-

    biais e na deslocao do tempo das palavras apocalpticas, todos eles

    produzindo a mesma fuga ao innito do referente Deus. Quanto gura

    do Cristo, ela continua, sem substituir, o processo de nomeao divi-

    na inaugurado no Antigo Testamento. O que aporta de novo o referente

    Cristo? Segundo Ricoeur, ele tem o mesmo poder innito de reunio

    e abertura que a palavra Deus, acrescentando o amor capaz, por seu

    sacrifcio, de trinfar sobre a morte. A palavra Cristo acrescenta assim

    palavra Deus uma profundidade de encarnao, segundo uma dupla re-

    lao de amor: o dom gracioso que nos feito em Jesus Cristo, e nossa

    atitude de total reconhecimento diante de Deus.

    O mundo do texto bblico nos oferece tambm uma temporalidade

    plural, que brota do entrecruzamento de temporalidades de natureza

    diferente no seio do grande intertexto das Escrituras. Assim, o tempo

    dos relatos e das leis nos remete anterioridade do irrevogvel, o que

    resulta numa concepo cumulativa da histria, da qual procedem as

    tradies que do comunidade, que conta e se conta, nos relatos de

    libertao e de doao da lei e da terra, uma identidade particular, nar-

    rativa e tica72. A profecia exerce, quanto a ela, um discernimento crtico

    sobre o presente da histria e de sua no conformidade com a tradio

    da Aliana, alm de fazer intervir a promessa de uma renovao sob a

    forma de restaurao criadora do antigo. Os textos da sabedoria, ape-

    sar de parecerem no narrativos, no se desinteressam do tempo. Eles

    conjugam o cotidiano e o imemorial. Os hinos englobam e recapitulam,

    72. Cf. RICOEUR, P. Temps biblique. In Archivio di losoa 53 (1985), p. 29

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    enm, o conjunto das temporalidades, com o hoje e o em todo o tem-

    po dos salmos que reatualizam o presente do el em orao, a criao,

    a salvao, o dom da Lei, as promessas da aliana.

    Concluso

    Este sobrevoo pela hermenutica losca e bblica de Ricoeur nos

    revela sua complexidade e riqueza, oferecendo diferentes pistas para o

    trabalho exegtico, que foi profundamente enriquecido sob sua inspira-

    o, como tambm para a reexo teolgica, ela tambm marcada nas

    ltimas dcadas pela fora heurstica do lsofo francs. o que se

    percebe, no primeiro caso, na renovao atual da exegese, no s mar-

    cada pela oposio entre as correntes histrico-crticas e as correntes

    estruturalistas e literrias, mas que busca mediaes que lhe permitam

    de novo colocar-se escuta do texto. Quanto teologia, j h algum

    tempo se fala de uma virada hermenutica do pensar teolgico, protago-

    nizado entre outros por Claude Geffr, na Frana, ou David Tracy, nos

    USA. Seria interessante perguntar-nos at que ponto a contribuio de

    Ricoeur exegese e teologia tem fecundado os exegetas e telogos

    latino-americanos e brasileiros. No se trata, evidentemente, de seguir-

    mos as novas modas suscitadas no mundo da exegese e da teologia

    em outras paragens, mas, talvez, muito enriqueceria nosso trabalho de

    hermenutica do texto as potencialidades das categorias propostas pelo

    lsofo francs. Mais que a repetio pura e simples de seu pensamen-

    to, como foi feito nesse texto, trata-se de abrir caminhos, aprendendo,

    sem dvida, do grande mestre que foi Ricoeur, mas tambm ousando

    pensar em relao crtica ou mesmo contra ele.

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