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Page 1: A INTERAÇÃO ENTRE A PESQUISA QUALITATIVA E OS

UM CASO DE INTERAÇÃO ENTRE O OLHAR QUALITATIVO E O QUANTITATIVO NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA DE

JOVENS E ADULTOS

Dione Lucchesi de [email protected]

Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas – FE/Unicamp

Introdução

Este artigo se refere a uma das questões teórico-metodológicas suscitadas

durante a pesquisa desenvolvida em parceria com Gilberto da Silva Liberato1 sobre as

relações entre alunos adolescentes2 e adultos, mais velhos3, em aulas de Matemática em

classes do 2o. segmento do Ensino Fundamental e do Ensino Médio da EJA (Educação

de Jovens e Adultos) nas quais houvesse heterogeneidade etária. A questão teórico-

metodológica a qual nos referimos é a possível interação entre um olhar qualitativo e

um olhar quantitativo na pesquisa em Educação Matemática; tínhamos, até então como

excludentes estas duas vertentes investigativas, crença de certa forma confirmada pela

quase inexistência de bibliografia a respeito.

Nossa busca da descrição, compreensão e/ou explicação dos fenômenos

educativos tem nos levado a múltiplas escolhas para a produção de material que será

analisado e para o desenvolvimento da própria análise. Como ressalta Gatti (2002,

p.11), estas escolhas

[...] têm a ver com a teoria que estamos trabalhando ao pesquisar, e/ou com a maneira pela qual selecionamos os dados que observamos e as informações que trabalhamos, e/ou com a lógica que empregamos em todo o desenvolvimento do trabalho. Estes critérios [de escolha] não são únicos nem universais e não há receita pronta para eles.

As questões às quais nos referimos não nos levaram a abandonar nossas posições

filosóficas e/ou ideológicas, estamos, sim, revendo a compatibilidade dos paradigmas de

pesquisa. Temos trabalhado referendados pela classificação assumida por Sánchez

Gamboa (1989) e Bauer, Gaskell & Allum (2002), trazida para a Educação Matemática

por Fiorentini & Lorenzato (2006, p.63), na qual são apresentadas três tendências 1 Constitui-se em seu projeto de Iniciação Científica, financiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), processo nº. 05/50265-4, durante os anos de 2005 e 2006. As reflexões aqui contempladas também foram partilhadas entre ele e a autora do texto.2 O limite inferior da amplitude total foi determinado pela legislação, ficando em 13 anos. Para mantermos uniformidade das tabelas mantivemos este limite nas classes de Ensino Médio nas quais não havia alunos com menos de 16 anos.3 O limite superior da amplitude total foi determinado pelos dados de campo, ficando, nas classes investigadas na primeira parte da pesquisa em 64 anos e na segunda, em 58 anos.

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metodológicas para pesquisa em Educação: a empírico-analítica, a fenomenológico-

hermenêutica e a histórico-dialética4. Estas categorias, como era de se esperar, não são

disjuntas, e assim tínhamos situado, até então, nossas investigações – que têm sido

quase que exclusivamente qualitativas5 – como interpretativas com tendências histórico-

diáleticas, ou seja, na confluência entre as duas categorias. Este posicionamento, de

certa forma, já foi sistematizado em um texto anterior (Carvalho, 2001) no qual

afirmamos:

O modelo teórico de Vygotsky serve de ponto de partida, mas não se presta ao estudo da situação real de sala de aula (p.48, quadro).[...] preferimos chamar nossa construção teórico-metodológica de histórico-cultural. Ou seja, não abandonaremos as características etnográficas, procurando superar as limitações de um estudo exclusivamente psicológico, pois nosso objeto de investigação é pedagógico e requer, para ser compreendido, aportes sociológico, epistemológico, antropológico (p.49).

Mesmo considerando a escassez de bibliografia, pode parecer estranho

trazermos em um artigo de pouco mais de uma dezena de páginas a interlocução de

Sánchez Gamboa (1986) e de Fiorentini & Lorenzato (2006) e de Gatti (2002), pois esta

última, ao contrário de seus colegas, vem trabalhando com pesquisas quantitativas que

de certa forma se enquadram na abordagem classificada como empírico-analítica. Tal

abordagem, de acordo com os dois autores, tem como limitações pressupor a

neutralidade axiológica e a imparcialidade do pesquisador, elementos impossíveis numa

investigação em Educação. Tentando superar essas limitações, temos que nos colocar as

questões que pesquisas com grande número de sujeitos nos suscitam, questões que os

aportes sociológicos inerentes às políticas públicas têm que encarar. É nessa confluência

que Gatti (2002, p. 48, grifo da autora) questiona o abandono dos critérios próprios do

modelo “objetivo”.

Tudo nesse modelo é inválido? É óbvio que não. Onde se localizam os problemas? Podem estar nos fundamentos dos instrumentos, nas formas e perspectivas associadas a seu uso e manipulação. Podem não se situar nos instrumentos em si, mas, em admitir-se que esses instrumentos são

4 Sanches Gamboa (1989) e Fiorentini & Lorenzato (2006) elaboram sua classificação baseada nos aspectos: concepções de realidade, de História, de Educação, de Ciência assumidas pelo pesquisador; relação sujeito-objeto que ele estabelece; como são estabelecidas as categorias de análise; como ele defende o estabelecimento da validade científica; quais as técnicas e os instrumentos de produção de material de análise mais empregados.5 Podemos situar como quantitativa a pesquisa que desenvolvemos para escrever o capítulo intitulado “Alfabetismo, escolarização e Educação Matemática: reflexões de uma professora de Matemática” do livro Letramento no Brasil: habilidades matemáticas cuja organizadora foi Maria da Conceição F. R. Fonseca (São Paulo: Global : Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação : Instituto Paulo Montenegro, 2004, p.107-124).

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neutros e objetivos e, assim interpretá-los, em tomar-se as conclusões como verdades que são absolutizadas e generalizadas sem questionamentos sobre seus limites. Está em não se considerar erros e vieses. Os problemas situam-se na maneira como utilizam-se técnicas que se traduzem como método. Está, pois, nas crenças, no julgamento de que se está medindo os fenômenos e respondendo a questões de modo definitivo e absoluto, sem mesmo considerar que qualquer medida é uma construção abstrata. Ela não é o fenômeno.

Ela ressalta também que essa tradição objetivista que teve início na primeira

metade do século 20, quando mais fortemente se dá a apropriação de certos modelos

das ciências físicas e naturais pelas ciências humanas e sociais (Gatti, 2002, p.46), tem

seu valor e por vezes nos coloca um senso crítico desejável. Outras vezes este

“cientificismo” se manifesta num engessamento improdutivo das pesquisas ou, o que é

pior, na exclusão dos sujeitos envolvidos dos resultados da pesquisa, como tem ocorrido

com as avaliações em larga escala promovidas pelo poder público brasileiro. Freitas

(2005, p.139-140, grifo do autor), por exemplo, discute esta questão:

As novas formas de exclusão [as promovidas pelos ciclos e/ou progressão continuada] não podem ser controladas por decreto ou por simples aumento do controle externo sobre a escola. A questão necessita ser pensada no interior de uma outra concepção de avaliação, por parte da escola e do professor, que permita construir com eles a legitimidade política dos próprios indicadores de avaliação. Acreditamos que é necessário colocar em prática um processo democrático de avaliação institucional de escolas ancorado no projeto político pedagógico delas. É equívoco tentar fazer com que uma avaliação de sistema (tipo SAEB, SARESP) seja referência para a avaliação local da escola. Tais avaliações têm sua própria utilidade no nível de sistema e pouco podem dizer da realidade de uma escola.

Este autor reforça a posição de que não é só uma questão de métodos, de o olhar

ser quantitativo ou qualitativo, mas é a relação que o pesquisador estabelece com os

sujeitos6 e/ou com o objeto de investigação que caracteriza a natureza do estudo em

andamento. Assim, podemos ser rigorosos na coleta e tratamento dos dados sem

assumirmos uma concepção de ciência baseada no processo hipotético-dedutivo

positivista no qual se testa e verifica hipóteses. Também utilizar questionários fechados,

a partir dos quais são construídos tabelas e gráficos, não implica, obrigatoriamente, em

considerar que há uma relação de causa e efeito entre as variáveis e nem em assumir que

6 O artigo de João Batista Gomes Neto e Lia Rosenberg, intitulado “Indicadores de qualidade do ensino e seu papel no sistema nacional de avaliação” (Em Aberto, Brasília, ano 15, n.66, abr./jun. 1995), detalha claramente como o Ministério da Educação (MEC) tem considerado o professor e o projeto político-pedagógico de cada escola ao elaborar suas avaliações em larga escala.

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basta estabelecer uma correlação estatística entre elas para respondermos às nossas

questões.

Bauer, Gaskell & Allum (2002, p.33) nos trazem questões quanto à garantia da

criticidade de uma pesquisa qualitativa:

Tal tipo de enfoque [o histórico-hermenêutico] defende que é necessário compreender as interpretações que os atores sociais possuem do mundo, pois são estes que motivam o comportamento que cria o próprio mundo social. Embora isso seja certamente verdadeiro, não se conclui que o resultado seja necessariamente uma produção crítica. Na verdade, pode-se imaginar uma situação em que tal “entendimento”, da maneira como é construído, sirva de fundamento para o estabelecimento de mecanismos de controle social.

Enfim, somos levados a considerar que, utilizando a metáfora de Fiorentini &

Lorenzato (2005), é possível pesquisar procurando fazer um “filme” histórico-dialético

sem abandonar as vantagens dos instrumentos qualitativos de produção de material de

análise, ou seja, sem nos limitarmos a uma “foto” empírico-analítica, ou mesmo a uma

“radiografia” fenomenológico-hermenêutica. Concordando mais uma vez com Gatti

(2005, p. 54, grifo nosso) quando afirma que

[...] para o pesquisador, a constante vigilância quanto às suas formas de ver e interpretar os fenômenos é absolutamente indispensável. Se criticou-se que os métodos estatísticos deixavam de lado o singular, o diferente, o que não se encaixava no modelo, coerentemente tem-se que exercitar a mesma crítica com relação a qualquer perspectiva teórico-metodológica: O que estou deixando de lado como irrelevante? O que estou deixando de considerar? O que minha forma de analisar não abrange?

Acreditamos, isto sim, que a prontidão do pesquisador em refletir e questionar

sobre as informações produzidas, sua disposição em disponibilizar estas reflexões para

os sujeitos envolvidos são fatores muito mais importantes para a possibilidade de uma

ação emancipatória do que a escolha da técnica empregada (BAUER, GASKELL &

ALLUM; 2002). Vale narrar o desenvolvimento da pesquisa – referente à

heterogeneidade etária em classes da EJA – para que se explicite como e quando

sentimos necessidade da interação entre os olhares qualitativo e quantitativo. Para fins

de organização deste artigo vamos chamar de olhar “das entrevistas semi-estruturadas”

o primeiro utilizado, de olhar “quantitativo” o segundo e aquele da pesquisa recém

iniciada de olhar “etnográfico”.

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A pesquisa surpreende e questiona

A pesquisa cujo projeto aprovado pela Fapesp intitula-se “A relação entre jovens

e adultos nas aulas de Matemática de EJA (Educação de Jovens e Adultos)” tinha, no

primeiro ano de seu desenvolvimento, como questão de investigação: Quais as

conseqüências da heterogeneidade etária percebidas pelos alunos de EJA nas aulas de

Matemática do 2o. segmento de Ensino Fundamental7? Esta questão foi levantada a

partir de conversas com educadores dessa modalidade de ensino e de informações

obtidas na bibliografia (Por exemplo, ARAUJO, 2001 e ANDRADE, 2004). Segundo

esses textos, o ingresso de alunos cada vez mais jovens em cursos destinados à EJA

seria fonte de conflitos escolares. Imaginamos que estes desentendimentos se acirrariam

em aulas de Matemática nas quais as diferenças com relação à cultura escolar se

tornariam mais evidentes como destaca Araújo (2001, p.35) ao afirmar que o aluno mais

velho possui inserções sociais (trabalho, família, participação política, religiosa

comunitária, esportiva, sindical) que com freqüência, criam demandas específicas de

“saberes” matemáticos.

Trabalharíamos com as 22 escolas municipais de Campinas que ofereciam o 2o.

segmento do Ensino Fundamental na modalidade EJA, segundo o site da SE (Secretaria

Municipal de Educação). Avaliamos que seria possível ter como sujeitos toda a

população de alunos utilizando dados censitários da própria SE. Seria uma pesquisa

quantitativa, com as limitações a ela inerentes. Animava-nos a idéia que não existe

análise estatística sem interpretação (BAUER, GASKELL & ALLUM; 2002, p.24) e

esta interpretação seria subsidiada pelas nossas concepções, pelo diálogo com os autores

que escolheríamos e pelas reflexões com os professores de Matemática da EJA

envolvidos. Elaboramos inicialmente um questionário piloto para a aplicação do qual

contamos com a colaboração de dois licenciandos em Matemática da Unicamp que

estagiavam em uma classe municipal da EJA. Planejamos, em seguida, utilizar outro

questionário, somente com questões fechadas, com toda a população, contribuindo com

o banco de dados da SE.

No início de 2005, logo nos primeiros telefonemas para as escolas descobrimos

que estávamos mal informados, pois o site da SE estava desatualizado. Entrando em

7 O Ensino Médio foi introduzido na pesquisa devido ao fato de uma professora atuar também nesse nível.

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contato com a SE soubemos que as escolas que ofereciam EJA, naquele semestre, eram

36, número que poderia se alterar no meio do ano. Considerando a área da cidade de

Campinas e que se tratava de uma Iniciação Científica8, teríamos que estabelecer uma

amostra de escolas para trabalhar. Neste ponto tivemos o apoio do responsável pela EJA

na SE que se comprometeu com o projeto, indicou as escolas que eram mais

representativas dessa modalidade de ensino no município e intermediou nossos contatos

com os diretores e/ou coordenadores pedagógicos.

A data de nascimento dos alunos e, conseqüentemente, suas idades foram

identificadas, por análise documental, nas próprias unidades de ensino. Não estava

disponível na SE nem mesmo o número de alunos da EJA pois este se altera a cada

semestre e não a cada ano como no ensino regular. A seleção das classes nas quais havia

maior heterogeneidade etária foi feita com base nesta análise documental. A pesquisa

sofreu então uma reviravolta metodológica: trabalharíamos com uma amostra

intencional de escolas, fazendo um estudo em profundidade que envolveria diretamente

os professores de Matemática; entrevistaríamos somente os alunos dos extremos da

faixa da pesquisa verifica até aquela data, ou seja, de 13 a 64 anos.

Por um lado, esta transformação nos levou a abandonar a bibliografia mais

“tecnicista” que estávamos consultando (por exemplo, GOODE, 1972) e buscar aportes

teórico-metodológicos mais “qualitativos” (LÜDKE & ANDRÉ, 1986; GONÇALVES,

2003; FIORENTINI & LORENZATO, 20069). De outra parte a mudança nos colocou

perante novos sujeitos de pesquisa: os professores de Matemática das classes nas quais

havia heterogeneidade etária e os daquelas escolas nas quais as classes de EJA haviam

sido montadas por faixa etária, ou seja, eram “artificialmente” homogêneas neste

aspecto. Havíamos planejado solicitar sua contribuição para a análise dos dados, mas

não supúnhamos que fossem nossos interlocutores iniciais, sem a intermediação da SE e

nem de outros educadores da escola. Sendo assim, conseguida autorização da direção

para desenvolver o projeto, os docentes foram imediatamente contatados para que

explicássemos o trabalho que pretendíamos desenvolver, marcássemos uma entrevista

para que nos revelassem o que pensavam sobre o ensino e a aprendizagem de

Matemática na EJA e autorizassem um visita a suas classes para convidar os alunos

mais velhos e adolescentes para serem entrevistados em um momento que não 8 A pesquisa foi desenvolvida em dois anos pois a bolsa foi renovada pela Fapesp, mas na época trabalhávamos com o prazo de um ano.9 O livro ainda não havia sido publicado, mas dispúnhamos de uma cópia do rascunho que havia sido discutido no grupo de pesquisa dos quais os dois fazem parte, o Prapem (Prática Pedagógica em Matemática).

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estivessem em aula. E, como é próprio numa pesquisa deste tipo, eles nos auxiliaram até

a selecionar as pessoas que seriam entrevistadas, procurando evitar transtornos, como

por exemplo, o de relacionamento com Liberato que é jovem e poderia ser mal

interpretado ao convidar, para um encontro “a dois”, uma estudante adolescente.

Realizadas e transcritas as entrevistas com os alunos, passamos a análise do rico

material produzido, centrando a atenção nestes depoimentos, tendo como pano de fundo

as declarações dos professores e as narrativas do diário de campo. Para surpresa nossa,

as declarações dos estudantes contradiziam, de certa forma, a bibliografia. Afirmavam

que a relação entre eles em aulas de Matemática era de “cooperação”, ou seja, havia

uma “ajuda” entre os alunos nas atividades escolares durante as aulas de Matemática.

Descreveram essa cooperação como: explicações dadas quando há entendimento falho;

auxílio aos alunos que têm com mais dificuldade por parte daqueles que têm mais

facilidade; contribuição dos estudantes mais velhos para que os mais novos

compreendessem os benefícios da escolarização. O que contribuiria para este ambiente?

O depoimento de um aluno de 43 anos inseria o professor no contexto:

Principalmente o [nome do professor] no começo ele foi franco: “Quando eu estou explicando eu quero silêncio”. Eu já cheguei a brigar com um neguinho assim ele chegou a ficar vermelho e falar que não e ficar bravo com nós. “Eu avisei. Quando eu estou explicando: o silêncio para a gente aprender. Está todo mundo em silêncio concentrado na Matemática”. Então ele pede silêncio. Mas ele fala: “Não vai fazer daqui um cemitério, vocês têm que se divertir, conversar”. Quando o professor está fazendo a chamada olha o silêncio é uma coisa muito boa que ele fala. Minha relação com os colegas então fica muito boa.

Esperávamos, num trabalho da Iniciação Científica, corroborar as afirmações de

outros pesquisadores e conclui-la com um artigo criticando o aligeiramento da

escolarização dos adolescentes e o incentivo para que eles invadam os espaços dos

adultos mais velhos. Mas não tivemos esta confirmação, parece que os professores de

Matemática daquelas pessoas entrevistadas, de alguma forma vinham revertendo a

situação, instigando um certo tipo de cooperação, e que a diversidade etária pode ser um

fator a ser incorporado no bom desenvolvimento das aulas10.

Sendo assim, propusemo-nos questões que Gatti (2002) considera desejáveis:

“Será que estamos compreendendo a ‘cooperação’ no sentido que os alunos da EJA a

entendem?” “E os professores? Como a entendem? O que fazem em aula para promovê-

10 Continuamos a ter críticas a este incentivo aos estudantes de abreviar a sua escolarização, negando-lhes os oito anos de Ensino Fundamental e/ou três de Ensino Médio. Continuamos tendo críticas a estas medidas que resolvem apenas os problemas estatísticos e confirmam a incapacidade da escola básica brasileira de atender a diversidade e/ou promover uma escolarização de qualidade para os adolescentes, os adultos jovens, e mesmo às pessoas mais velhas...

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la?” “Será que os alunos, pelo clima amistoso que estabelecem com o pesquisador, não

se sentem constrangidos em criticar seus colegas mais novos como ‘maus’ alunos?”

“Será que realmente as dificuldades de escolarização dos alunos mais velhos não

incomodam os adolescentes e eles não mencionam isso na entrevista?” Com estas

preocupações em mente, demos continuidade à pesquisa, com outra questão de

investigação na qual o professor aparece explicitamente: Quais os limites e as

possibilidades da cooperação entre os alunos nas aulas de Matemática, cooperação

essa mediada pelo professor, em classes de EJA nas quais houver heterogeneidade

etária?11 Este envolver o professor de Matemática significou entrevistá-lo para que

desse sua interpretação de quatro depoimentos de alunos (Quadro em Anexo).

A leitura das transcrições das entrevistas contribuiu para nossa percepção de que

a concepção de cooperação para os professores que não era a mesma para os quatro

entrevistados. Dois deles declararam conceber este tipo de relação como uma atividade

de monitoria dos alunos com mais facilidade e/ou mais rápidos com os outros, muitas

vezes, os mais velhos. Uma professora considerava que havia uma proximidade de

linguagem entre os estudantes da EJA que ela não conseguia atingir e aí estaria a

possibilidade de auxílio entre eles. Somente uma docente considerava o trabalho em

pequenos grupos como um recurso didático não só para um bom relacionamento em

aulas de Matemática mas como também para a produção de conhecimento.

Considerando esta diversidade de interpretações e as questões que tínhamos

sobre o constrangimento que a proximidade do entrevistador poderia estar criando com

os alunos avaliamos que as respostas a um questionário anônimo e com questões

fechadas nos dariam informações importantes. Nesta parte da pesquisa privilegiamos

um olhar quantitativo, mas ficamos tranqüilos pois sabíamos que daríamos nossa

interpretação. Fizemos nossas reflexões em parceria com os professores de Matemática

daqueles 227 estudantes e tentamos trazê-los para elaboração e o desenvolvimento de

uma proposta didática de Matemática para EJA12.

Podemos dizer que nossa “interpretação” começa com a escolha dos aspectos

que serão abordados pelas questões do questionário. Também a redação das questões –

que no caso seriam fechadas – e das alternativas foi norteada por nossa concepção de

pesquisa. Sendo assim, para elaborar o questionário utilizamos expressões que 11 Consideramos que esta continuidade foi considerada procedente também pelo Comitê Científico da Fapesp pois a bolsa foi prorrogada por mais um ano.12 O termo “tentamos” não é uma figura de linguagem e sim a indicação das dificuldades, profissionais e pessoais, que os professores enfrentam para participar de projetos diferentes daqueles impostos pelas secretarias de educação quer estaduais, quer municipais.

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apareciam tanto nas entrevistas dos alunos como nas dos professores, procurando dar

uma redação que não comprometesse as regras gramaticais. Assim mesmo a atenção do

aplicador às dúvidas dos estudantes foi fundamental pois eles não estão acostumados a

ser sujeitos de pesquisa de opinião.

Terminada a coleta de dados tomamos duas decisões diretamente relacionada

aos objetivos da pesquisa que caracterizam o “interpretar” durante todo o

desenvolvimento do trabalho investigativo: as questões do questionário que seriam

analisadas13 e a variável que atuaria como controle, a faixa etária. Como desejávamos

“ouvir” o professor nessa análise, separamos os respondentes do questionário por

docente. Inicialmente preparamos tabelas nas quais cada uma das categorias das

variáveis diretamente relacionadas aos objetivos da pesquisa era controlada pela

variável faixa etária. Foram elaboradas 20 tabelas. A partir dessas tabelas, construímos

gráficos que foram alvo de análise. Trouxemos para este artigo uma análise geral, sem

considerar a voz do professor14. Ainda que haja uma parte mecânica nesta elaboração de

tabelas e gráficos e na própria análise quantitativa, as decisões do pesquisador são

decisivas durante todo o processo. É o olhar do investigador – permeado de lentes das

leituras que fez e de seus contatos com os sujeitos – que determina dialeticamente sua

análise.

Analisando as tabelas e os gráficos, pudemos perceber que algumas avaliações

dos alunos com relação aos colegas continuaram otimistas. Destacamos que 215 pessoas

mais novas (95%) consideram seus colegas de faixa etária diferente da sua como “bons”

alunos, ou seja, atentos às aulas de Matemática e desenvolvendo todas atividades que o

professor propõe; já dentre os estudantes mais velhos só 96 (42%) avaliam seus colegas

jovens como “bons” alunos. Parece que a avaliação maciça (184 escolhas, 81%) de que,

na classe, os alunos formam um grupo de muita amizade15 confirma os resultados da

primeira parte da pesquisa. Entretanto, permanece a questão de que 62 estudantes (27%)

de diferentes faixas etárias terem avaliado seus colegas mais jovens como bagunceiros

e barulhentos. Estas pessoas devem ser desconsideradas em aulas de Matemática da

EJA?

13 As questões analisadas foram aquelas nas quais os sujeitos foram convidados a avaliar seus colegas de outras faixas etárias como “alunos de Matemática” e se posicionar sobre como preferiam trabalhar durante as aulas desta disciplina.14 Uma análise mais detalhada dos dados quantitativos consta do relatório de pesquisa de Libertato e será alvo de outro artigo.15 Expressão utilizada nas entrevistas e no questionário de questões fechadas.

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Aliando o questionamento do final do parágrafo anterior àqueles advindos das

diferentes concepções de trabalho conjunto dos professores, elaboramos uma outra

pesquisa norteada pela questão: Quais contribuições, problemas e limitações são

apresentados em aulas de Matemática, de EJA – em classes nas quais houver

heterogeneidade etária – e cujas propostas de trabalho visem uma aprendizagem

cooperativa? Avaliamos que os aspectos que desejamos só serão abordados com um

olhar etnográfico, estudando a situação real de sala de aula. Esta outra investigação já

começou esta sendo desenvolvida em parceria com uma professora da EJA.

Estamos nos colocando, pretensiosamente, a possibilidade de atender às questões

colocadas por Gatti (2002, p. 51, grifo da autora):

Quem discute e analisa essas possibilidades de miscigenação, de parti pris, nomeando-as, ou vislumbrando-as nos dados, em suas análise fazendo um verdadeiro processo hermenêutico com o processo e a trajetória da pesquisa na vertente chamada de estudos qualitativos? O que, do que digo ser fruto da pesquisa, é fala minha, o que e como estou falando no lugar dos meus sujeitos, o que meus interlocutores na investigação de fato falam?

Algumas considerações sobre contribuições, problemas e limitações de cada olhar

Vale retomar que o objetivo da pesquisa quer a mais formal, acadêmica, quer a

dos professores que ensinam Matemática sobre sua própria prática é a busca da

descrição, compreensão e/ou explicação dos fenômenos educativos. Nesta perspectiva,

procuramos destacar algumas contribuições de três olhares – “das entrevistas semi-

estruturadas”, “quantitativo” e “etnográfico” – sem perder de vista os problemas e as

limitações de cada um. Procuraremos explicitar também as habilidades do pesquisador

que na investigação tomada como exemplo se fizeram necessárias para o

desenvolvimento do trabalho de campo e da análise, ou seja, almejamos com este texto

um objetivo pedagógico, tendo presente a formação de pesquisadores.

Além da criatividade, presente em qualquer processo investigativo, desenvolvido

em parceria ou individualmente, algumas habilidades são necessárias para que sejam

realizadas as ações da pesquisa sejam de qualquer natureza. A compreensão e a

explicação que temos até hoje da cooperação à qual os alunos de EJA se referiram

oralmente foi elaborada a partir da capacidade de Liberato em se integrar no contexto

escolar, em estabelecer uma relação pessoal com os alunos durante o período das

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entrevistas. Ele procurou conhecer os arredores das escolas, a comunidade na qual

estavam inseridas, suas estruturas físicas, os funcionários; participou de atividades

esportivas – promovidas pelos próprios alunos nos horários de intervalo – e de refeições

nas cantinas (LIBERATO & CARVALHO, 2006). Lendo seu diário de campo,

lembramos do relato de Luria (1990, p.31):

Como em qualquer pesquisa de campo com população, optamos por reforçar o contato preliminar com a população; tentamos estabelecer relações amistosas de modo que os procedimentos experimentais pudessem ser encarados com naturalidade, sem agressividade. Tivemos sempre o cuidado de evitar apresentações apressadas ou mal preparadas do material dos testes.[...]Nossas sessões experimentais começavam, como regra geral, por longas conversas (algumas vezes repetidas) com os indivíduos na atmosfera tranqüila de uma casa de chá – onde os moradores dos vilarejos passavam a maior parte de seu tempo livre – ou ainda em acampamentos nas pastagens dos vales e montanhas ao redor de fogueiras à noite.

Tínhamos, nesta época, a crença de que esta capacidade de se integrar no

contexto dos sujeitos garantia a produção de material de análise para qualquer pesquisa

em ambientes escolares. Preparando o relatório de pesquisa e o texto para ser

apresentado em um evento (LIBERATO & CARVALHO, 2006), percebemos que esta

atitude do pesquisador garantia sim um profundo respeito pelos sujeitos, mas não a

completude da produção desejada e que ela realmente não existe, é um desejo de

totalidade que tristemente tem que ser abandonado. Resolvemos criar uma distância

com os sujeitos que implicaria em anonimato.

Sendo assim, complementando a compreensão da cooperação referida pelos

alunos de EJA possibilitada pelo olhar das entrevistas semi-estruturadas, tivemos as

explicações advindas de suas escolhas às alternativas do questionário. A interpretação

das tabelas e dos gráficos que pode nos indicar uma objetividade nos remete a decisões

que tomamos desde a referente às alternativas do questionário até aquelas de

cruzamento das variáveis que são definidas a partir dos objetivos da pesquisa. Decisões

que não seriam tão produtivas sem as entrevistas prévias.

Parecia que perante tabelas e gráficos, frente a dados numéricos e com nossa

formação matemática, a análise seria simples e imediata. Não ela exige outra

linguagem, exige conhecimento do tema tratado, sob pena de se tornar um

engessamento improdutivo e não uma abertura para novas investigações.

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Tendo presente a preocupação de “abertura” e não de “controle”, nas análises

com o olhar quantitativo, ao nos depararmos com o fato que os sujeitos avaliaram seus

colegas como “amigos” (81%) e “bons alunos” (69%), consideramos esta interpretação

estatisticamente, ou seja, relativizada ao possível e não ao determinístico. Sendo assim,

os 27% que consideram seus colegas “bagunceiros e barulhentos”, na nossa perspectiva

de pesquisa sobre a situação real de aula de Matemática, não podem ser deixados de

lado por se constituírem em minoria. Provavelmente eles têm muito a dizer sobre um

ensino de Matemática em interação com um professor que considere o trabalho em

grupo como recurso pedagógico para produção de conhecimento matemático e não

simplesmente como sistema de auxílio ao docente num trabalho individual realizado em

conjunto. Resolvemos encarar esta nova investigação, norteados pela questão: Quais

contribuições, problemas e limitações são apresentados em aulas de Matemática, de

EJA – em classes nas quais houver heterogeneidade etária – e cujas propostas de

trabalho visem uma aprendizagem cooperativa?

Referências bibliográficas

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Anexo

1º DepoimentoE: Porque você escolheu o supletivo?A: Eu sou mãe de três filhos. Tenho um filho mais velho que chama Jean que está com 31 anos hoje, a Ane Raquel tem 29 e o Paulo César que tem 27 anos. Os três casaram. Com o casamento da filha que casou esse ano, eu entrei em uma depressão muito grande. Ficava solitária, sozinha... E [antes] a gente viajava muito, porque ela é cantora... E ai me senti muito sozinha e outros problemas familiares que na vida foram acontecendo.. E eu dando umas caminhadas à noite por esse problema de saúde... Ai eu passava em frente da escola e [tinha] aquela vontade de entrar. E eu olhava a sala de aula cheia de gente estudando e ficava com vontade... Mas eu achava que estava velha demais. Pra recomeçar agora. Ai eu encontrava um amigo contava para um parente e eu minha mãe tem 65 anos e minha mãe está estudando, depois de três anos na 4ª série... Uma luta para passar... E graças Deus ela conseguiu esse ano 2º DepoimentoE: Qual sua relação com seus colegas mais novos durante as aulas de Matemáticas?A: Eram duas senhoras eu e mais uma senhora... Que era uma das mais velhas né? Ela saiu por causa [dos mais jovens]. Ela era super inteligente. Ela tirava A quase que em tudo. Ela não suportou a juventude. Porque eles são danadinhos, gostam de barulho. Saiu por causa dos alunos mais novos3º DepoimentoE: Qual a sua relação com seus colegas durante as aulas de Matemática?A: A gente faz muita bagunça com eles... É porque eu estudava à tarde também [como eles]. Agora no supletivo eu tô mais calma. Não faço tanta bagunça assim.4º DepoimentoE: Como é sua relação com os colegas durante as aulas de Matemática?A: Ele [o professor] é assim tão bom que todo mundo, se não entende um vai lá e ensina outro. É tudo bom... Um aluno entendeu mais, vai lá na carteira do outro. E ele [professor] parece que gosta, que ajudemos os amigos.

Quadro – Depoimentos de alunos da EJA

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