pesquisa qualitativa em educação

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REVISÃO DAS TENDÊNCIAS NO DEBATE DA PESQUISA QUALITATIVA E SUAS INFLUÊNCIAS NO CAMPO EDUCACIONAL SILVA, Assis Leão da Doutorando em educação CE/UFPE Núcleo de Planejamento e Política Educacional e-mail: [email protected] RESUMO Focalizando na problemática das multiplicidades de abordagens do campo das metodologias da pesquisa social, o presente trabalho pretende identificar, revisar e analisar a influência da evolução das principais tipologias teórico-conceituais metodológicas da pesquisa qualitativa, por meio de uma breve construção histórica desta área, analisando as suas principais influências e contribuições nos debates do campo das pesquisas educacionais. Aponta as principais dificuldades e avanços na construção dos modelos metodológicos propostos no desenho das pesquisas qualitativas, desvelando que estas são o resultado da dinâmica e complexidade do contexto social. O objetivo do trabalho é realizar uma revisão teórico-conceitual das tendências atuais no campo da pesquisa qualitativa e suas imbricações na área da educação. Constatou-se diante do exposto, que as discussões na área, estão longe de serem esgotas, apresentando diversidade em fragilidades e lacunas. Palavras-chave: Pesquisa social; metodologia qualitativa; pesquisa em educação Introdução O contexto de crises cíclicas do capitalismo tem desenvolvido uma dinâmica ascendente de complexidade do sistema social ao longo do século XX, instigando o debate sobre a credibilidade, perspectivas e limites quanto à adoção de metodologias quantitativas na análise dos diversos problemas sociais. No centro deste debate, verifica-se a adoção cada vez mais recorrente da metodologia qualitativa no desenvolvimento de pesquisas no campo social; já que, são cada vez maiores entre pesquisadores sociais, agências governamentais e de fomento, as percepções dos limites e possibilidades da realização de pesquisas sociais amparadas apenas nos pressupostos da metodologia quantitativa.

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Page 1: Pesquisa Qualitativa em Educação

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REVISÃO DAS TENDÊNCIAS NO DEBATE DA PESQUISA QUALITATIVA E SUAS INFLUÊNCIAS NO CAMPO EDUCACIONAL

SILVA, Assis Leão da

Doutorando em educação – CE/UFPE

Núcleo de Planejamento e Política Educacional

e-mail: [email protected]

RESUMO

Focalizando na problemática das multiplicidades de abordagens do campo das metodologias da

pesquisa social, o presente trabalho pretende identificar, revisar e analisar a influência da evolução das principais tipologias teórico-conceituais metodológicas da pesquisa qualitativa,

por meio de uma breve construção histórica desta área, analisando as suas principais influências

e contribuições nos debates do campo das pesquisas educacionais. Aponta as principais dificuldades e avanços na construção dos modelos metodológicos propostos no desenho das

pesquisas qualitativas, desvelando que estas são o resultado da dinâmica e complexidade do

contexto social. O objetivo do trabalho é realizar uma revisão teórico-conceitual das tendências

atuais no campo da pesquisa qualitativa e suas imbricações na área da educação. Constatou-se diante do exposto, que as discussões na área, estão longe de serem esgotas, apresentando

diversidade em fragilidades e lacunas.

Palavras-chave: Pesquisa social; metodologia qualitativa; pesquisa em educação

Introdução

O contexto de crises cíclicas do capitalismo tem desenvolvido uma dinâmica

ascendente de complexidade do sistema social ao longo do século XX, instigando o

debate sobre a credibilidade, perspectivas e limites quanto à adoção de metodologias

quantitativas na análise dos diversos problemas sociais. No centro deste debate,

verifica-se a adoção cada vez mais recorrente da metodologia qualitativa no

desenvolvimento de pesquisas no campo social; já que, são cada vez maiores entre

pesquisadores sociais, agências governamentais e de fomento, as percepções dos limites

e possibilidades da realização de pesquisas sociais amparadas apenas nos pressupostos

da metodologia quantitativa.

Page 2: Pesquisa Qualitativa em Educação

2

No entanto, o uso da metodologia qualitativa, como forma de superar

determinados limites do método quantitativo ou de substituí-lo, não se apresenta numa

perspectiva de linearidade; sofrendo, durante seu processo de desenvolvimento,

inúmeros avanços, recuos e rupturas quanto à sua adoção; uma vez que, no debate dos

pressupostos teórico-metodológico, na pesquisa social, levantaram-se certas

desconfianças, por parte dos pesquisadores sociais quantitativistas, no que se refere aos

critérios científicos de confiabilidade e validade do método qualitativo e dos impasses

no tocante à perspectiva de complementaridade de ambos os métodos, quantitativo e

qualitativo.

Este debate, para muitos pesquisadores da área social, tem desvelado a

complexidade do processo de sistematização das pesquisas, no tocante à dificuldade em

escolher e legitimar o método de investigação a ser adotado diante do contexto social

em que se vive, exigindo dos pesquisadores maior eficácia no trato do diálogo com os

pressupostos teórico-metodológico das metodologias quantitativo e qualitativo;

sobretudo em áreas de gramáticas fracas, como no caso do campo educacional.

Por essa razão, este artigo tem como objetivo realizar uma revisão das diversas

tendências teórico-metodológicas do campo da pesquisa social que influenciaram

diretamente na construção e desenvolvimento do método qualitativo reconhecendo suas

principais contribuições para a pesquisa em educação. Na execução deste objetivo,

estruturou-se o presente trabalho em quatro partes. Na primeira parte, identificam-se os

argumentos em prol dos métodos quantitativos e qualitativos, debatendo acerca do

desenvolvimento da construção metodológica na pesquisa social; Na segunda,

sistematiza-se o percurso da evolução histórica das tendências em pesquisa qualitativa

analisando seus avanços e limites; Na terceira, identificam-se as principais

contribuições destas tendências na caracterização atual do método qualitativo; Na

quarta, especificam-se as principais contribuições do método qualitativo para a pesquisa

em educação; ao término do trabalho, discorrem-se as considerações finais do tema.

Page 3: Pesquisa Qualitativa em Educação

3

1 A pesquisa social: o método qualitativo versus o quantitativo, argumentos e

contribuições para o debate

O entendimento atual de diversos autores caminha no sentido de que a realização

da pesquisa social implica diretamente na escolha de procedimentos para descrever,

explicar e compreender os fenômenos sociais a partir da fundamentação em teorias

existentes com intuito de desenvolver o método científico (SILVERMAN, 2009). Para

Chizzotti (2006, p.24) “não se pode acreditar que a ciência seja um padrão uno e único,

fixo e imutável para todos os cientistas”, faz-se necessário o entendimento da existência

de diversas vias de investigação, desvelando a variedade de meios de procurar, justificar

e comunicar uma descoberta de que a ciência dispõe.

Richardson et al (2009) advoga que o trabalho de pesquisa deve ser realizado

conforme as técnicas requisitadas para cada método de investigação1. Esses

procedimentos podem ser agrupados em duas amplas classificações, distintas quanto às

sistemáticas adotadas e a forma de abordagem dos problemas, por meio do método

quantitativo e qualitativo. Longe de esgotar as possibilidades de classificação, Guba e

Lincoln (1994) adverte que este tipo de classificação restringe-se a descrição de tipos e

métodos de pesquisas, abarcando inúmeras possibilidades de compreensão da realidade,

descritas e analisadas por Chizzotti (2006) através de várias denominações, a saber:

“paradigmas” (KUHN, 1963), “tradições de pesquisa” (LAUDAN, 1977; JACOB,

1987; CRESWELL, 1998; STRAUSS E CORBIN, 1990; DENZI E LINCOLN, 2000),

“modelfos de pesquisa” (QUELLET, 1994), “programas de pesquisas rivais”

(LAKATOS, 1970), “posturas de pesquisas” (WOLCOTT, 1992).

A literatura acadêmica é farta em construções de definições que a rigor

apresentam as mesmas características acerca do método quantitativo e qualitativo.

Desse modo, apropriamo-nos de Lankshear e Knobel (2008), para definir que o método

quantitativo caracteriza-se pela utilização da quantificação – mensuração – na pesquisa

1 Silva (2003, p.39-45) distingue técnica de método, quando define método como etapas dispostas

ordenadamente para investigação da verdade, no estudo de uma ciência para atingir determinada

finalidade, e técnica como o modo de fazer de forma mais hábil, segura e perfeita alguma atividade, arte

ou ofício. Severino (2007, p.102) afirma: a ciência utiliza-se de um método que lhe é próprio, o método

científico, elemento fundamental do processo do conhecimento realizado pela ciência para diferenciá-la

não só do senso comum, mas também das demais modalidades de expressão da subjetividade humana,

como a filosofia, a arte, a religião. Trata-se de um conjunto de procedimentos lógicos e de técnicas

operacionais que permitem o acesso às relações causais constantes entre os fenômenos.

Page 4: Pesquisa Qualitativa em Educação

4

social nas fases de coleta de informações e no tratamento dos dados através do emprego

de técnicas estatísticas, frequentemente aplicada em estudos do tipo descritivo2,

abordando aspectos amplos de uma dada sociedade; e de Triviños (2008), para definir o

método qualitativo como uma “expressão genérica”, abrangendo diversas atividades de

investigação que podem ser denominadas de específicas, caracterizadas por traços

comuns, objetivando atingir uma interpretação mais aprofundada da realidade através de

descrições detalhadas de situações do cotidiano que expressem as experiências, atitudes,

crenças, pensamentos e reflexões dos sujeitos em seus ambientes sociais.

Segundo Guba e Lincoln (1994) o debate metodológico na pesquisa social tem

direcionado críticas à metodologia quantitativa, pela insistência dos defensores deste

método em manter a concepção positivista de ciência, aplicando os modelos das

ciências naturais às ciências humanas, reduzindo a ciência ao campo do observável

separando os fatos de seus contextos, valorizando-se os métodos quantitativos –

mensuração de dados estatísticos; por enfatizar o dado empírico e sua reificação,

defendendo que os dados são de natureza neutra e objetiva; além de insistir na tese de

uma ciência livre de valores para si evitar distorcer a objetividade da explicação dos

fatos, associando ciência à técnica. Estes argumentos demonstram a concepção de

mundo daqueles que defendem exclusivamente o método quantitativo, visualizando as

pessoas como objetos manipuláveis e a sociedade como uma máquina que pode ser

concertada a todo o instante pelos cientistas sociais.

As discussões metodológicas em pesquisas sociais, além das críticas ao método

quantitativo, têm circunscrito orientações básicas, para o desenvolvimento de pesquisas

na área das ciências humanas e sociais. Por um lado, delimitam as pesquisas

quantitativas como aquelas que privilegiam a relevância dos objetos materiais e a

constância das ocorrências, entendendo a natureza como uniforme e logicamente

organizada, utilizando como instrumentos a matemática e a lógica dedutiva. Por outro,

demarcam as pesquisas qualitativas como aquelas que privilegiam a construção do

conhecimento no contato com a realidade nas distintas interações humanas e sociais,

onde se busca a interpretação do fato, o sentido do evento, por meio da intuição humana

e da inferência interpretativa. (cf. STRAUSS E CORBIN, 2008).

2 Tipo de estudo que busca descobrir e classificar a relação entre as variáveis e investigar a relação das

causas do fenômeno.

Page 5: Pesquisa Qualitativa em Educação

5

Também, o debate metodológico na pesquisa social tem propagado argumentos

para justificar a utilização cada vez mais recorrente do método qualitativo por entender

que este método não emprega, a princípio, um instrumental estatístico como base do

processo de análise de um problema, por não ter como objetivo numerar e mensurar

unidades ou categorias hegemônicas; por possuir uma forma adequada para entender a

natureza de um fenômeno social; possuindo instrumentos para se compreender aspectos

psicológicos cujos dados não podem ser adquiridos por métodos estatísticos e por

mergulhar no cotidiano e ambiente dos sujeitos investigados, tomando como referência

casos, problemas específicos, sendo usados como indicadores do funcionamento das

estruturas sociais. (cf. RICHARDSON et al, 2009).

Outro argumento bastante pertinente e que reforça o uso do método qualitativo é

apresentado por Bauer e Gaskell (2010) acerca da perspectiva de superação do paradoxo

na construção do corpus teórico, onde o espaço é compreendido em duas dimensões:

estrato ou funções e representações, quando afirma

A dimensão horizontal abrange os estratos sociais, funções e categorias que

são conhecidos e são quase que parte do senso comum: sexo, idade, atividade

ocupacional, urbano/rural, nível de renda, religião e assim por diante. Estas

são variáveis segundo as quais os pesquisadores sociais geralmente

segmentam a população [...]. O principal interesse dos pesquisadores

qualitativos é na tipificação da variedade de representações das pessoas no

seu mundo vivencial. As maneiras como as pessoas se relacionam com os

objetos no seu mundo vivencial, sua relação sujeito-objeto, é observada através de conceitos tais como opiniões, atitudes, sentimentos, explicações,

estereótipos, crenças, identidades, ideologias, discurso, cosmovisões, hábitos

e práticas. Esta é a segunda dimensão, ou dimensão vertical de nosso

esquema. Esta variedade é desconhecida e merece ser investigada. As

representações são relações sujeito-objeto particulares, ligadas a um meio

social. O pesquisador social que entender diferentes ambientes sociais no

espaço social, tipificando estratos sociais e funções [...] (p.57).

A citação é longa, mas a consideramos fundamental, para o entendimento da

insistência dos defensores do método qualitativo em estudar as representações sociais

em diversos campos do conhecimento das ciências sociais ao longo das últimas décadas,

sobretudo no campo educacional, como veremos mais adiante. Fica nítido o limite das

relações das variáveis horizontais no entendimento dos problemas sociais. No entanto,

esta argumentação abre espaço para a compreensão de que em determinados objetos

investigados focar em apenas uma das categorias – horizontal ou vertical – não seja

suficiente para se compreender a complexidade da realidade social investigada.

Page 6: Pesquisa Qualitativa em Educação

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Por essa razão, muitos autores, burlando a tradição, têm defendido a articulação3

entre os métodos quantitativos e qualitativos, mesmo cientes de que estes métodos “são

mais que apenas [diferentes] estratégias de pesquisas e procedimentos de coleta de

dados. [E que] esses enfoques representam [...] diferentes referenciais epistemológicos”

no processo de conhecimento dos fenômenos sociais; contudo, entendem que no

desenvolvimento da pesquisa social não há quantificação sem qualificação e não há

análise estatística sem interpretação (BAUER E GASKELL, 2010, p.29). Argumentam

também a favor, por compreenderem que no processo de pesquisa há instâncias de

integração entre ambos os métodos no que se refere ao planejamento da pesquisa, a

coleta de dados e análise da informação obtida (RICHARDSON et al, 2009);

entendendo que a “combinação de métodos pode ser feita por razões suplementares,

complementares, informativas, de desenvolvimento e outras [...]”, e que, “a contagem,

mensuração e até mesmo procedimentos estatísticos podem ser úteis para suplementar,

estender ou testar suas formas de pesquisa”, atestando que esses métodos são

complementares (STRAUSS E CORBIN, 2008, p. 40).

Esses argumentos de longe não esgotam as discussões, mas são considerados

referencias no debate metodológico da pesquisa social acerca do método quantitativo e

qualitativo. Desvelam os contornos do percurso traçado pelo debate em torno dos

procedimentos metodológicos nas pesquisas sociais. Entendemos que a construção

destes argumentos não é externa ao contexto histórico-social. Por essa razão,

passaremos a seguir a tratar da evolução histórica das tendências em pesquisa

qualitativa.

2 A evolução histórica das tendências em pesquisa qualitativa

Triviños (2008) reconhece na evolução histórica das tendências em pesquisa

qualitativa a existência de pelo menos duas dificuldades para se definir o entendimento

3 Há três maneiras segundo Silverman (2009, p. 55) para se articular o método quantitativo e qualitativo:

usar a pesquisa qualitativa para explorar um tema particular visando a montar um estudo quantitativo;

começar com um estudo quantitativo a fim de estabelecer uma amostra de respondentes e de estabelecer

os contornos amplos do campo, e engajar-se em um estudo qualitativo que utilize dados quantitativos para

localizar os resultados em um contexto mais amplo.

Page 7: Pesquisa Qualitativa em Educação

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real do que esta representa. Uma dificuldade encontra-se na abrangência do conceito no

tocante às suas especificidades de ação e dos limites deste campo de investigação; a

outra reside na busca de uma concepção precisa da idéia de pesquisa qualitativa. Essas

dificuldades desvelam as tensões teóricas subjacentes ao campo, marcado

tradicionalmente por rupturas metodológicas e epistemológicas.

(cf. Chizzotti, 2006). Mesmo assim, diante deste percurso sinuoso, diversos autores têm

desenvolvido o esforço de mapear as tendências da pesquisa qualitativa no campo da

pesquisa social, entre eles, Denzi e Lincoln (1994), Vidich e Lyman (1994), Bogdan e

Biklen (1994)4. A rigor estes autores estabeleceram suas delimitações acerca da

pesquisa qualitativa tomando como referência o século XX, momento de maior

expressão deste tipo de pesquisa.

Vidich e Lyman (1994) optando por uma perspectiva ampla e distinta da

demarcação habitual das etapas da pesquisa qualitativa; ultrapassam as barreiras do

século XX e XIX, amparando-se nas disciplinas da antropologia e da sociologia por

meio de um percurso supostamente histórico linear. Apontam como origem da pesquisa

qualitativa o momento do desenvolvimento da “etnografia primitiva” demarcada pela

descoberta do outro; desenvolvendo-se em uma segunda etapa, para um tipo de

“etnografia colonial”, característicos dos viajantes exploradores dos mundos coloniais

dos séculos XVII, XVIII e XIX; desdobrando-se numa terceira etapa, a fase da

“etnografia do índio americano” realizada pela antropologia norte-americana do final do

século XIX e começo do XX; numa quarta etapa, desenvolvida pela “etnografia dos

outros cidadãos”, estudos de comunidades e as etnografias dos imigrantes americanos,

do início do século XX aos anos de 1960; numa quinta etapa, a recorrência dos estudos

sobre a etnicidade e a assimilação, entre os meados do século XX e a década de 1980; e

uma sexta etapa, ainda em andamento, marcada pelas mudanças epistemológicas e

metodológicas propostas pela pós-modernidade.

Bogdan e Biklen (1994), tomando como referencia o campo educacional,

estabeleceram quatro fases fundamentais no desenvolvimento da pesquisa qualitativa.

Esses autores, diferentemente de Vidich e Lyman (1994), restringem a sua delimitação

classificatória aos fins do século XIX e o século XX, adotando uma perspectiva de

4 Ver, também, conforme Chizzotti (2006): Erikson (1986); Kirk e Miller (1986); Le Compte, Millroy e

Preissle (1992).

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análise não linear, mas reconhecendo e identificando os elementos característicos de

cada fase potencialmente capazes de influenciar a maneira como se faz pesquisa

qualitativa atualmente. Para Bogdan e Biklen (1994) as fases da pesquisa qualitativa,

delimitam-se, num primeiro momento ao final do século XIX até a década de 1930,

quando são formulados os primeiros trabalhos qualitativos, adotando como

instrumentos de pesquisa a observação participante, a entrevista com detalhe e/ou

documentos pessoais; num segundo momento, compreende o período da década de

1930 aos anos de 1950, caracterizado por um declive do enfoque qualitativo; num

terceiro período, da década de 1960 influenciado por intensas mudanças sociais

proporciona o ressurgimento dos métodos qualitativos; numa quarta fase, a partir dos

fins dos anos de 1960 e, sobretudo, na década de 1970, a pesquisa qualitativa passa a ser

ascendentemente utilizada por pesquisadores da área de educação, não se restringindo

aos sociólogos.

Denzin e Lincoln (1994) distintamente dos autores citados, porém, tomando

como mesmo norte de referência o século XX, restringem sua classificação a este

período. E semelhantemente a Bogdan e Biklen (1994) não adotam uma perspectiva de

analise linear, delimitando a evolução da pesquisa qualitativa em cinco períodos: o

tradicional (1900-1950), o modernista ou idade do ouro (1950-1970), os gêneros

imprecisos (1970-1986), a crise da representação (1986-1990) e a pós-modernidade

(1990 até o momento atual). Mesmo com possibilidades e enfoques de classificação

distintos, mas apresentando a mesma lógica de delimitação; os autores citados parecem

compartilhar do ponto de vista de que a pesquisa qualitativa tem suas origens nas

práticas desenvolvidas primeiramente pelos antropólogos e posteriormente pelos

sociólogos, nos estudos realizados acerca da vida em comunidades; somente mais tarde

esta perspectiva foi introduzida na investigação do campo educacional.

Com o objetivo de aprofundarmos um pouco mais a discussão, apresentamos a

seguir um quadro sintético, com as principais características das fases da pesquisa

qualitativa, considerando as contribuições dos autores citados, e tomando como

referência a classificação de Denzi e Lincoln (1994), comparando-as com o

desenvolvimento da pesquisa em educação.

Page 9: Pesquisa Qualitativa em Educação

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Tabela 1 – Tendências (fases) da pesquisa qualitativa FASES PERÍODO PESQUISA QUALITATIVA CAMPO EDUCACIONAL

PERÍODO TRADICIONAL

1900-1930

1930-1950

Intensificação dos problemas sociais (crises do capitalismo)

“Movimento dos

levantamentos sociais” desenvolve multimétodos para abordar os problemas sociais articulando o quantitativo e o qualitativo

Surgem as primeiras discussões práticas da

pesquisa qualitativa

Surgimento da antropologia e

a influência da “Escola de Chicago” – estudos etnográficos

Hiato na abordagem

qualitativa

Declínio do departamento de

sociologia de Chicago

A pesquisa educacional era monopolizada pela sociologia e

psicologia da educação

Interesse inexistente nos métodos

qualitativos; grande ênfase da sociologia da educação nos métodos das ciências naturais e na avaliação quantitativa

Pouco interesse da Escola de Chicago pela educação

A pesquisa era restrita a

abordagem quantitativa e experimental (grande influência da psicologia)

Aumento do interesses dos

antropólogos pela educação

PERÍODO MODERNISTA

(IDADE DO OURO)

1950-1970 Intensas mudanças sociais

(auge da Guerra Fria)

Métodos qualitativos

adquirem popularidade, fase áurea, consolida-se como modelo de pesquisa, revigora-

se o debate quali-quanti

Modificações nas disciplinas

de Antropologia e sociologia (Etnometodologia)

Influência do pós-positivismo,

marximo, fenomenologia, hermenêutica e teorias críticas

Emergência dos problemas

educacionais

Certo interesse dos pesquisadores

educacionais e das agências estatais pelo método qualitativo

Aumento das pesquisas

qualitativas no campo

PERÍODO

GÊNEROS IMPRECISOS

1970-1986 Intensificação do debate quali-

quanti

Os pesquisadores

quantitativistas reconhecem relativamente a metodologia qualitativa (Clima de diálogo)

Tensões estilísticas, novas perspectivas emergentes (pós-

estruturalismo (Barthes), neopositivismo (Philips), neomarxismo (Althusser), descritivsmo micro-macro (Geertz), etnometodologia (Garfinkel)

Mesmo na marginalidade, a

pesquisa qualitativa adquiria maior número de adeptos

Interesse crescente das agências

governamentais da perspectiva qualitativa na área de avaliação, surgimento da avaliação institucional

Influência dos paradigmas pós-

positivista e do construtivismo

PERÍODO

CRISE DE REPRESENTAÇÃO

1986-1990 Novos modelos causam a

erosão das normas clássicas na antropologia

Teóricos da educação ainda

discutem as diferenças entre a investigação quantitativa e qualitativa e suas possibilidades de articulação

PERÍODO

PÓS-MODERNIDADE

1990 -... Influência do feminismo e

pós-modernismo

Uso da TIC na análise dos dados

Persistência da tendência de

formalização da análise dos dados nas pesquisas qualitativas

Fonte: Denzi e Lincoln (1994); Bogdan e Biklen (1994)

Page 10: Pesquisa Qualitativa em Educação

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Analisando o quadro e ampliando as discussões acerca destas fases, por meio das

contribuições dos autores citados, pode-se comentar que a primeira fase, o período

tradicional, foi marcada por um contexto histórico que atravessou duas grandes guerras

e uma grande depressão econômica. E este contexto trouxe inúmeras implicações para a

pesquisa social, sobretudo na adoção pelo “movimento dos levantamentos sociais” de

novas técnicas de investigação, com a aplicação das metodologias de “observação

participante” (LePlay, Frederick - FRA), “história de vida” e as “entrevistas exaustivas”

(Mayhew, Henry - ING), para investigar uma realidade social mais complexa. Nesta

fase, destaca-se a tentativa de aplicar o método científico ao estudo dos problemas

sociais, utilizando entrevistas, desenhos e fotografias, articulando a metodologia

quantitativa e qualitativa. Também, com o aparecimento da antropologia e sua

influência na Escola de Chicago, desenvolvem-se os fundamentos para se estudar o

“outro”, criando métodos interpretativos realistas, onde o pesquisador assumia uma

postura empática com o ambiente, as pessoas e o problema. O que marca esta fase é a

ausência de interesse do campo educacional nas discussões e desenvolvimento da

metodologia qualitativa.

A segunda fase, o período modernista, foi enormemente influenciada pelo

contexto da Guerra Fria e por intensas mudanças sociais. Ficou conhecida como o

momento áureo da metodologia qualitativa, assinalando-a como modelo de pesquisa.

Para isso, foram reelaborados os conceitos de objetividade, validade e fidedignidade,

procurando definir a formalização e a análise rigorosa dos estudos qualitativos,

admitindo-se o discurso da falseabilidade, pós-positivista. Várias mudanças ocorreram

nas disciplinas da antropologia e da sociologia contribuindo para que vigorassem os

métodos clínicos de observação participante, a coleta partilhada de dados e a

interpretação participante; a arte de interpretação sobrepuja-se a estatística. Além disso,

o contexto social emergente exigiu uma nova postura dos pesquisadores sociais, frente

aos problemas sociais, as questões de ordem de emancipação humana e transformação

social, revigorando o debate qualitativo versus quantitativo. A popularidade da pesquisa

qualitativa acabou atraindo certo interesse dos pesquisadores educacionais e das

agências governamentais de fomento da pesquisa.

A terceira fase, período dos gêneros imprecisos, foi marcada inicialmente pela

ampliação dos investimentos públicos e privados nas pesquisas. Surgiram novas

orientações e paradigmas de pesquisa com a propagação de métodos e técnicas de

Page 11: Pesquisa Qualitativa em Educação

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pesquisa em todas as áreas do conhecimento5. No campo educacional os investigadores

qualitativos realizaram trabalhos de campo, através de observação participante,

entrevistas em profundidade nos locais de investigação, com os sujeitos ou documentos.

São postas de lado as certezas unívocas da pesquisa em ciência sociais e originam-se

novos temas e problemas de pesquisa, como classe, gênero, etnia, raça e culturas

trazendo novas questões teórico-metodológicas aos estudos qualitativos.

Na quarta fase, período da crise da representação, estruturalismo, pós-

estruturalismo (pós-modernismo) e o feminismo introduzem críticas à autoridade

privilegiada de teorias, certezas, paradigmas, narrativas e métodos de pesquisa. Destes

destacam-se as influências do feminismo, evidenciando os papéis psicossexuais nas

investigações sociais, os tipos de sujeitos a serem estudados; ressignificam as

interpretações das mulheres na sociedade; afetou as questões de ordem metodológica no

tocante a questão do poder na relação de entrevista, desenvolvendo a “etnografia

institucional”, contribuindo para que os pesquisadores qualitativos revissem suas

relações com os sujeitos e reconhecessem as implicações políticas de suas opções

metodológicas. Nesta perspectiva, as pesquisas desvinculam-se dos referenciais

positivistas direcionando o foco de pesquisa para as questões de ordem local,

apreendendo os sujeitos no ambiente natural.

Na quinta fase, o período do pós-modernismo, a ascendência da globalização, do

neoliberalismo e o ressurgimento das teses da “sociedade do conhecimento” e o “fim

das ideologias” influenciaram enormemente a pesquisa qualitativa ressignificando as

metodologias com o entendimento da natureza da interpretação no papel do investigador

como intérprete, enfatizando a interpretação e a escrita como elementos proeminentes

da pesquisa. Vários aspectos são evidenciados, como a posição social do autor da

pesquisa, a onipotência do texto científico, a credibilidade da transcrição objetiva da

realidade, a influência da realidade social sobre o pesquisador, implicando na

compreensão na perspectiva de que a observação é impregnada pela teoria e pelo

comprometimento do sujeito com determinada realidade.

Todas essas fases trouxeram contribuições para o entendimento atual da

pesquisa qualitativa, sendo marcada por rupturas, muitas vezes abruptas, e avanços

significativos. O que tentamos realizar aqui foi um esboço geral destas tendências

5 Estudo de desing, estudo de caso, etnografia (observação participante), fenomenologia

(etnometodologia), teoria fundamentada, método biográfico, método histórico, pesquisa clínica.

Page 12: Pesquisa Qualitativa em Educação

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reduzindo-as a um processo didático de compreensão, mesmo sabendo das dificuldades

de mapeamento. Para um melhor entendimento do que seja a pesquisa qualitativa hoje,

passaremos a seguir, a caracterizar seus principais pressupostos teórico-metodológicos.

3 Características da pesquisa qualitativa

A crescente e recorrente opção dos pesquisadores pelos métodos qualitativos

tem levado a literatura acadêmica a empreender esforços no sentido de identificar as

características peculiares deste método diante do cenário de inúmeras tendências da

pesquisa qualitativa e social. Compreendemos que tais características, permitem, a

princípio, identificar elementos cristalizados desta metodologia ao longo dos debates e

discussões sobre a metodologia qualitativa na pesquisa social. Essa tentativa torna-se

relevante, pelo fato de que entendê-las, significa construir diversas possibilidades de

compreensão e apropriação acerca da lógica de construção das metodologias com o

objetivo de delimitar o rigor, o contexto, os limites, os avanços e perspectivas das

pesquisas sociais.

Neste caso, diversos autores têm apontado que para si fundamentar a opção

quanto ao método a ser utilizado na pesquisa, é necessário entender a natureza do objeto

investigado; dentre estes, destacamos Richardson et al (2009), quando afirma sobre a

pesquisa qualitativa

Os estudos que empregam uma metodologia qualitativa podem descrever a

complexidade e classificar processos dinâmicos vividos por grupos sociais,

contribuir no processo de mudança de determinado grupo e possibilitar, em

maior nível de profundidade, o entendimento das particularidades do

comportamento dos indivíduos. Há, naturalmente, situações que implicam

estudos de conotação qualitativa e, nesse sentido, alguns estudiosos têm

identificado, pelo menos, três: situações em que se evidencia a necessidade de substituir uma simples informação estatística por dados qualitativos [...];

situações em que se evidencia a importância de uma abordagem qualitativa

para efeito de compreender aspectos psicológicos cujos dados não podem ser

coletados de modo completo por outros métodos [...]; situações em que

observações qualitativas são usadas como indicadores do funcionamento de

estruturas sócias. (p.80).

Segundo este autor, os argumentos enunciados desvelam aspectos importantes

da natureza dos objetos que são investigados pela pesquisa qualitativa; no caso dos

Page 13: Pesquisa Qualitativa em Educação

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estudos comparativos estes são tratados a partir de uma abordagem funcionalista para

explicar os elementos culturais característicos de um grupo; no caso de si tratar de

estudos sobre a personalidade, atitudes e motivações; no caso de si tratar da importância

das metodologias de observação qualitativa na explicação do funcionamento das

estruturas sociais, pois podem revelar inesperados resultados, obter informações sobre

fenômenos e problemas novos.

No nosso entendimento, restringir-se à apenas a natureza do objeto não é

suficiente, para se caracterizar a pesquisa qualitativa. É preciso ter ciência de outros

elementos integrantes deste processo. A rigor diversos autores têm buscado a

delimitação e compreensão destes elementos característicos do método qualitativo na

pesquisa social, dentre estes, destacamos: Triviños (2008), Gonzaga (2006) e Bogdan e

Biklen (1994). Dos autores citados, a contribuição mais relevante para o campo, recai

sobre os últimos, por se destacarem historicamente no debate sobre os elementos

característicos da pesquisa qualitativa influenciando inúmeros pesquisadores em todo o

mundo.

Esses autores concordam, enquanto elementos característicos da pesquisa

qualitativa que:

1) A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como fonte direta dos dados e o

pesquisador como instrumento-chave.

2) A pesquisa qualitativa é descritiva.

3) Os pesquisadores qualitativos estão preocupados com o processo e não

simplesmente com os resultados e o produto.

4) Os pesquisadores qualitativos tendem a analisar seus dados indutivamente.

5) O significado é de importância vital na abordagem qualitativa.

A estes elementos, Gonzaga (2006) acrescenta:

6) Na pesquisa qualitativa, o pesquisador vê o cenário e as pessoas a partir de uma

perspectiva holísticas.

7) Os pesquisadores qualitativos são sensíveis aos efeitos que eles mesmos causam

sobre as pessoas que são objetos de seus estudos;

8) Os pesquisadores qualitativos tratam de compreender as pessoas dentro do

marco de referência delas mesmas.

9) O pesquisador qualitativo suspende ou afasta suas próprias crenças, perspectivas

e predisposições, vê as coisas como se estivessem ocorrendo pela primeira vez.

10) Os métodos qualitativos são humanistas.

11) Os métodos qualitativos nos mantêm próximos ao mundo empírico.

12) O pesquisador qualitativo é um artesão, pois é instigado a criar seu próprio

método.

Page 14: Pesquisa Qualitativa em Educação

14

Além destas características, há no campo da pesquisa qualitativa a compreensão

de que esta abordagem é ampla, oferecendo uma variedade de métodos, dos quais

mencionamos alguns, apropriando-nos de Gonzaga (2006, p.75): estudos de caso,

investigação-ação, antropologia cognitiva, análise de conteúdo, investigação holística,

análise conversacional, estudos “Delphi”, pesquisa descritiva, pesquisa direta, análise

do discurso, estudo de documentos, psicologia ecológica, criticismo educativo,

etnografia educativa, etnometodologia, hermenêutica, avaliação interpretrativa, estudos

sobre biografias ou histórias de vida, pesquisa participante, avaliação qualitativa,

interacionismo simbólico, entre outras. Devido às limitações do trabalho, não será

possível reportar comentários a cada tipo de pesquisa enunciado, uma vez que nosso

intuito é o de apenas caracterizar em linhas gerais a pesquisa qualitativa.

No entendimento de Bauer e Gaskell (2010) a maneira como a pesquisa

qualitativa vem sendo delineada ao longo de sua evolução “emblemática”, permitiu

desenvolver algumas possibilidades na elaboração de pesquisas, sobretudo no tocante a

construção do corpus nas ciências sociais, pois “à medida que a pesquisa qualitativa vai

ganhando magnitude crítica, a seleção das entrevistas, dos textos e de outros materiais

exige um tratamento mais sistemático comparável ao da pesquisa por levantamento”

(p.54). Para esses autores, a contribuição da abordagem qualitativa reside no fato de que

é possível ter um entendimento do corpus como um sistema crescente, desde que

observados critérios de relevância, homogeneidade e sincronicidade. Além disso,

lembram e acrescentam a perspectiva histórica, pois os materiais estudados devem ser

escolhidos dentro de um ciclo natural, sincrônicos. A fim de sintetizar as idéias

apresentadas nesta seção, resolvemos trazer em três anexos, um quadro comparativo das

principais características da pesquisa qualitativa. A seguir, abordaremos acerca das

influências destas características da pesquisa qualitativa na pesquisa em educação.

Page 15: Pesquisa Qualitativa em Educação

15

4 O método qualitativo e suas contribuições para a pesquisa em educação

Cada vez mais a pesquisa educacional ao longo das últimas décadas vem sendo

influenciada pela pesquisa qualitativa. Esse fenômeno, por um lado, pode ser explicado

pela razão da adoção e interesse mais recorrentes por parte dos pesquisadores em

educação dos métodos qualitativos em suas pesquisas; e, por outro lado, pelo

reconhecimento dos limites do método quantitativo no trato da interpretação dos

fenômenos educativos, devido às dinâmicas que estes têm adquirido na “sociedade do

conhecimento” e no mundo globalizado.

Bogdan e Biklen (1994) apontam três contribuições da pesquisa qualitativa para

o campo educacional. A primeira refere-se ao fato de que a pesquisa qualitativa tem

sido frequentemente usada em estudos que visam à melhoria da eficácia do trabalho

docente. A segunda refere-se ao fato de que a pesquisa qualitativa vem sendo usada nos

estudos de formação inicial e continuada do professor. A terceira refere-se aos estudos

acerca de métodos qualitativos introduzidos, para facilitar a adequação das novas

propostas curriculares no cotidiano escolar. Essa utilização almeja tornar os agentes –

docentes, técnicos administrativos, gestores, discentes, famílias – mais próximos do

processo educacional, refletindo sobre suas práticas cotidianas.

Também, num contexto mais amplo, a pesquisa qualitativa tem contribuído na

construção de novas abordagens nos estudos acerca do entendimento das políticas

educacionais. A exemplo, vários autores, entre eles, Azevedo (2004), propõem uma

intersecção de abordagens, para se estudar as representações sociais dos envolvidos no

processo educacional. Esta tentativa visa superar, além dos limites do método

quantitativo, as abordagens macro-explicativas das políticas educacionais. Assim, esta

proposta de abordagem de interseção busca entender, através do estudo da política

pública, qual a perspectiva (significado/sentido) de sociedade que os fazedores de uma

política possuem, quando tomam determinadas decisões em relação à definição e

formulação da própria política pública. Procura, também, compreender o referencial

normativo – valores – que é a representação social de toda a sociedade, considerando a

dimensão cognitiva (conhecimento técnico-científico e a representação social dos

fazedores da política), e instrumental (medidas de adotadas para resolver os problemas –

instituições, princípios, normas, critérios...) do fenômeno da política educacional.

Page 16: Pesquisa Qualitativa em Educação

16

Na realidade, a contribuição da pesquisa qualitativa rompe com a abordagem

seqüencial da avaliação das políticas públicas, uma vez que o foco da pesquisa reside na

identificação do referencial normativo; como também na dinâmica que este adquire no

seu processo de implementação quanto às representações sociais na qual os seus

formuladores e implementadores vão apreendendo este processo, entendendo as

políticas como espaços de disputas para inserir suas estratégias na solução dos

problemas indutores destas políticas. Por essa razão, é possível afirmar que esses

autores propõem um percurso metodológico que provoque uma ruptura paradigmática,

migrando de uma análise pautada na neutralidade, adotada pelo pressuposto positivista;

para uma análise baseada numa concepção teórico-analítica, que avance, articulando

além da análise dos aspectos macro e micro das políticas públicas, para a análise dos

sentidos que a ação do Estado adquire neste processo.

Outra contribuição da abordagem qualitativa importante, refere-se ao

delineamento das discussões, formulações e implementação das políticas avaliativas

educacionais no Brasil no contexto das reformas educacionais. No caso da avaliação da

educação superior, as discussões em torno da qualidade deste nível de ensino

potencializaram a avaliação como ferramenta principal da organização e implementação

das reformas que marcaram este período de reestruturação, desencadeando modificações

nos modelos de regulação, gestão e controle da produção acadêmica das IES. (cf.

CATANI, OLIVEIRA E DOURADO, 2004).

Essas reformas constituíram distintas concepções acerca do papel da educação

superior desvelando tensões paradigmáticas6 no campo da avaliação, alterando a

perspectiva de avaliação institucional7. Essas tensões paradigmáticas materializam-se no

embate entre os que defendem os testes estandardizados e padronizados aplicados pelos

6 Essa tensão paradigmática configura a avaliação da educação superior como um campo político, pois é

mais que uma simples confrontação teórica ou meramente acadêmica de grupos em disputa por uma

hegemonia semântica, “um lugar em que se geram, na concorrência entre agentes [...] produtos políticos,

problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos

comuns, reduzidos ao estatuto de consumidores devem escolher” (BOURDIEU, 1989, p. 164). Desse modo, observa-se numa perspectiva a preponderância do controle e verticalização da qualidade

articulado ao desempenho e eficiência do sistema de educação superior, reduzindo o conceito de

avaliação às dimensões de supervisão e controle baseado num processo externo de verificação de cursos e

instituições; e noutra, o exercício de práticas avaliativas constituídas a partir da horizontalização da

qualidade, construídas coletivamente, articulando os processos internos institucionais. 7 Essas tensões desvelam-se nas duas últimas décadas em três momentos distintos da avaliação da

educação superior no Brasil, no Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras

(PAIUB), no Exame Nacional de Cursos (ENC/PROVÃO), e no Sistema Nacional de Avaliação da

Educação Superior (SINAES).

Page 17: Pesquisa Qualitativa em Educação

17

governos, baseados no paradigma objetivista/quantitativista (caracterizado pela

mensuração de desempenho e resultados, com o estabelecimento de hierarquias e

rankings entre as IES, na ênfase ao controle técnico-burocrático e aos instrumentos

elaborados exteriormente, testes de larga escala) e os que defendem a avaliação

realizada pela comunidade acadêmica, baseada no paradigma subjetivista/qualitativo

(caracterizado pela perspectiva formativa, emancipatória, transformadora, com ênfase

ao respeito à identidade institucional e a participação democrática significando os

processos e as atividades da comunidade acadêmica) (DIAS SOBRINHO, 2004;

PEIXOTO, 2004).

Considerações finais

Os argumentos acerca da metodologia qualitativa levantados neste trabalho

desvelam as opções, das quais dispõem os pesquisadores sociais, quanto à construção

metodológica de suas pesquisas. No início, afirmamos que a complexidade da vida

social levou vários pesquisadores a questionarem os métodos quantitativos. Talvez, não

seja apenas esta afirmativa a única parte da verdade; mas, também, o reconhecimento

das limitações humanas em conhecer a realidade social, tenha contribuído

decisivamente para o crescimento e consolidação da abordagem qualitativa nas últimas

décadas e sua adoção no campo educacional.

No entanto, é preciso reconhecer que esta opção, quanto aos desvios do método

quantitativo, não se desenvolveu sem lacunas e obstáculos, mesmo sabendo que

ocorreram inúmeros avanços. Há ainda uma longa estrada a percorrer, pois existe a

persistência da proeminência do método quantitativo na pesquisa social, sobretudo

naquelas ligadas diretamente aos interesses de legitimação do Estado e do mercado. A

forma como as tendências da pesquisa qualitativa foram delineadas no último século,

demonstram os seus limites, dificuldades, as recusas e os avanços por parte dos

pesquisadores sociais na aceitação desta via metodológica.

Sem dúvida, é reconhecido que a pesquisa educacional avançou com as

contribuições do método qualitativo por aproximar pesquisadores dos ambientes de

pesquisa e de eliminar a frieza e “neutralidade” dos dados estatísticos, realizando uma

Page 18: Pesquisa Qualitativa em Educação

18

análise interpretativa de cunho vertical no dizer de Bauer e Gaskell (2010). No entanto,

esses aspectos têm trazido uma carga de maior responsabilidade dos pesquisadores

qualitativos, sobretudo no campo da educação. E realizar a pesquisa qualitativa em

cursos de pós-graduação, que cada vez mais tem seus prazos para a pesquisa reduzidos,

tem se constituído um grande desafio ao campo. Outro aspecto importante, é que cada

vez mais perceptível as possibilidades de articulação entre os métodos quantitativos e

qualitativos nas pesquisas. Por fim, compreendemos que a polêmicas geradas neste

debate estão longe do fim e que a cada momento podem surgir rupturas abruptas no

desenvolvimento metodológico das pesquisas sociais.

REFERÊNCIAS

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SP: Autores associados, 2004.

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imagem e som: um manual prático. Tradução de Pedrinho A. Guareschi, 8ª Ed.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

CATANI, Afrânio Mendes; OLIVEIRA, João Ferreira; DOURADO, Luiz Fernandes.

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superior. In: MANCEBO, Deise; e FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque.

(Orgs.) Universidade: políticas, avaliação e trabalho docente. – São Paulo: Cortez,

2004.

CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

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DIAS SOBRINHO, José. Avaliação ética e política em função da educação como

direito público ou como mercadoria? Educação & Sociedade, Campinas, vol. 25, n. 88

p. 703-725, Especial – Out. 2004. Disponível em <http: //www.cedes.unicamp.br>.

Acesso em: ago. 2007.

GONZAGA, Amarildo Menezes. A pesquisa em educação: um desenho metodológico

centrado na abordagem qualitativa. In: PIMENTA, Selma Garrido; GHEDIN, Evandro;

FRANCO, Maria Amélia Santoro (orgs.). Pesquisa em educação: alternativas

investigativas com objetos complexos. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

Page 19: Pesquisa Qualitativa em Educação

19

GUBA, E; LINCOLN, Y. Competing paradigms in qualitative research. In: DENZIN,

Norman K. et. Al. Handbook of qualitative research. London, 1994.

LANKSHEAR, Colin; KNOBEL, Michele. Pesquisa pedagógica: do projeto à

implementação. Tradução Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 2008.

PEIXOTO, Maria do Carmo de Lacerda. O debate sobre avaliação da educação

superior: regulação ou democratização? In: MANCEBO, Daise; e FÁVERO, Maria de

Lourdes de Albuquerque. (Org.). Universidade: políticas, avaliação e trabalho

docente. – São Paulo: Cortez, 2004.

RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3 ed. São Paulo:

Atlas, 2009.

SILVA, Antônio Carlos Ribeiro de. Metodologia da pesquisa aplicada à

contabilidade: orientações de estudos, projetos, relatórios, monografias,

dissertações, teses. São Paulo: Atlas, 2003.

SILVERMAN, David. Interpretação de dados qualitativos: métodos para análise

de entrevistas, textos e interações. Tradução Magda França Lopes. Porto Alegre:

Artmed, 2009.

STRAUSS, Anselm; CORBIN, Juliet. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos

para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2ª Ed. Tradução Luciane de

Oliveira da Rocha. Porto Alegre: Artmed, 2008.

TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa

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VIDCH, A. J.; LYMAN, S. M. Qualitative methods. Their hitory in sociology and

antropology. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S (orgs.). Handbook of qualitative

research. Londres, Sage, 1994.

Page 20: Pesquisa Qualitativa em Educação

20

ANEXO 01

Quadro 1 – Expressões, conceitos, afiliação teórica e acadêmica da pesquisa qualitativa

Expressões/frases associadas

com a abordagem

Etnográfico; trabalho de campo; dados qualitativos;

interação simbólica; perspectiva interior; naturalista;

etnometodológico; descritivo; observação participante;

fenomenológico; escola de Chicago; documentário;

história de vida; estudo de caso; ecológico

Conceitos-chave associados

com a abordagem

Significado; compreensão de senso comum; pôr entre

parênteses; compreensão; definição da situação; vida

quotidiana; processo; ordem negociada; para todos os

propósitos práticos; construção social; teoria

fundamentada

Afiliação teórica Interação simbólica; etnometodologia; fenomenologia;

cultura; idealismo

Afiliação acadêmica Sociologia; história; antropologia

Fonte: adaptado de Bogdan e Biklen (1994)

ANEXO 02

Quadro 2 – Objetivos, plano, propostas de investigação, dados, amostra, técnicas ou

métodos da pesquisa qualitativa

Objetivos

Desenvolver conceitos sensíveis; teoria fundamentada;

descrever realidades múltiplas; desenvolver a

compreensão

Plano Progressivo, flexível, geral; intuição relativa ao modo

de avançar

Elaboração das propostas de

investigação

Breves; especulativas; sugere áreas para as quais a

investigação possa ser relevante; normalmente escritas

após a recolha de alguns dados; parcas em revisão da

literatura; descrição geral da abordagem

Dados

Descritivos; documentos pessoais; notas de campo;

fotografias; o discurso dos sujeitos; documentos

oficiais e outros

Amostra Pequena; não representativa; amostragem teórica

Técnicas ou métodos Observação; estudo de vários documentos; observação

participante; entrevista aberta

Fonte: adaptado de Bogdan e Biklen (1994)

Page 21: Pesquisa Qualitativa em Educação

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ANEXO 03

Quadro 3 – Relação com os sujeitos, instrumentos, análise dos dados, problemas com o

uso da abordagem qualitativa

Relação com os sujeitos Empatia; ênfase na confiança; igualdade; contato

intenso; o sujeito como amigo

Instrumentos Gravador; transcrição; frequentemente a pessoa do

investigador é o único instrumento

Análise dos dados Contínua; modelos, temas, conceitos; indutivo; indução

analítica; método comparativo constante

Problemas com o uso da

abordagem

Demorada; difícil a síntese dos dados; garantia; os

procedimentos não são estandardizados; dificuldade

em estudar populações de grandes dimensões

Fonte: adaptado de Bogdan e Biklen (1994)