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Associação de Linguística Aplicada do Brasil | Anais Eletrônicos do 10º Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada 1 A inserção dos quilombos nos materiais didáticos de língua portuguesa Ana Fátima Cruz Dos Santos (UNEB/UAB/UFBA) 1i Resumo: A produção de materiais didáticos com conteúdos de Língua Portuguesa ainda expressa uma deficiência quanto ao assunto quilombos e sua relevância na formação linguística brasileira e cultural ao longo dos séculos XIX e XX. A presente pesquisa, educação quilombola em sala de aula, analisa livros didáticos da Editora FTD, três volumes do Ensino Médio do ano de 2008, a fim de observar estes possíveis elementos de educação de quilombos na aquisição de linguagem sob a influência dessas comunidades que envolvia diferentes povos/cor/posição política e que ainda são referência da formação identitária, cultural e de linguagem presentes na contemporaneidade. Sob uma perspectiva crítica cultural utilizando enquanto teoria do método a correlação entre a Linguística Aplicada, os Estudos Culturais, a Antropologia enquanto dispositivos da pesquisa, expõe-se critérios de análise desse material verificando figuras, discursos e citações utilizadas. Sugere-se pontos de discussão em sala de aula a serem utilizados pelo docente de acordo com críticas paradidáticas de outros autores sobre o tema. Conclui-se a ausência de citações ou referências construtivas sobre uma formação educacional quilombola nos livros didáticos analisados da editora FTD e uma gama de materiais publicados pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetismo e Diversidade, mais intenso a partir do ano de 2006. Palavras-chave: língua portuguesa, quilombos, educação, material didático, letramentos. Abstract: The production of teaching materials with content of Portuguese still express a deficiency for that matter Quilombo and its relevance in language training and cultural Brazilian throughout the nineteenth and twentieth century’s. This research, education maroon classroom, analyzes of textbooks Publisher FTD, three volumes of high school in 2008 in order to observe these possible elements of education Quilombos language acquisition under the influence of these communities involving different people / color / political position and is still the reference identity 1 [email protected]

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Associação de Linguística Aplicada do Brasil | Anais Eletrônicos do 10º Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada

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A inserção dos quilombos nos materiais

didáticos de língua portuguesa

Ana Fátima Cruz Dos Santos (UNEB/UAB/UFBA)1i

Resumo: A produção de materiais didáticos com conteúdos de Língua Portuguesa

ainda expressa uma deficiência quanto ao assunto quilombos e sua relevância na

formação linguística brasileira e cultural ao longo dos séculos XIX e XX. A presente

pesquisa, educação quilombola em sala de aula, analisa livros didáticos da Editora

FTD, três volumes do Ensino Médio do ano de 2008, a fim de observar estes

possíveis elementos de educação de quilombos na aquisição de linguagem sob a

influência dessas comunidades que envolvia diferentes povos/cor/posição política e

que ainda são referência da formação identitária, cultural e de linguagem presentes

na contemporaneidade. Sob uma perspectiva crítica cultural utilizando enquanto

teoria do método a correlação entre a Linguística Aplicada, os Estudos Culturais, a

Antropologia enquanto dispositivos da pesquisa, expõe-se critérios de análise desse

material verificando figuras, discursos e citações utilizadas. Sugere-se pontos de

discussão em sala de aula a serem utilizados pelo docente de acordo com críticas

paradidáticas de outros autores sobre o tema. Conclui-se a ausência de citações ou

referências construtivas sobre uma formação educacional quilombola nos livros

didáticos analisados da editora FTD e uma gama de materiais publicados pela

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetismo e Diversidade, mais intenso a

partir do ano de 2006.

Palavras-chave: língua portuguesa, quilombos, educação, material didático,

letramentos.

Abstract: The production of teaching materials with content of Portuguese still

express a deficiency for that matter Quilombo and its relevance in language training

and cultural Brazilian throughout the nineteenth and twentieth century’s. This

research, education maroon classroom, analyzes of textbooks Publisher FTD, three

volumes of high school in 2008 in order to observe these possible elements of

education Quilombos language acquisition under the influence of these communities

involving different people / color / political position and is still the reference identity

1 [email protected]

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formation, cultural and language present in contemporary times. From a critical

perspective on cultural theory while using the method the correlation between Applied

Linguistics, Cultural Studies, Anthropology as research devices, sets up criteria for

the analysis of this material checking figures, speeches and quotes used. It is

suggested points of discussion in the classroom to be used by the teacher according

teachingout criticism of other authors on the subject. We conclude the absence of

quotes or references over a constructive educational maroon these textbooks

analyzed the publisher FTD and a range of materials published by the Department of

Continuing Education, Literacy and Diversity stronger from the year 2006.

Keywords: Portuguese, Quilombo, education, teaching material, literacy.

(...), o quilombo representa um instrumento vigoroso no processo de

reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior

auto-afirmação étnica e nacional.

(NASCIMENTO, Beatriz. 2008, p.91)

1. Introdução

Não é mais estranho nem diferente tratar de educação para as Relações

étnico-raciais na educação básica brasileira. Tratar sobre a intervenção de políticas

afirmativas que contribuem para uma dinâmica de ensino antirracista e de acesso a todos é

ainda um desafio para todas as modalidades de ensino. Para um país em que discriminar

pessoas alegando a cor da sua pele vem a ser uma desculpa para explicitar o seu mau

caráter é um ato repudioso, discriminatório e merece medidas punitivas de acordo com a

legislação brasileira. Contudo, infelizmente observamos como um ato rotineiro e mantido por

muitos racistas no país da “Democracia Racial”. Neste ensaio, manifestamos o outro lado do

jogo: as lutas e conquistas relacionadas a uma educação para a diversidade e igualdade de

condições de aprendizagem.

Apresentamos neste texto alguns conceitos relevantes para discutirmos educação

dentro e fora da sala de aula: letramento, cultura e identidade. Dispomos as perspectivas

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de letramento segundo Kleiman (2005) e Ana Lucia Silva Souza (2011) e a relevância de se

problematizar a educação como ensino global e pós-colonial (MIGNOLO, 2008). E por fim,

considerações dos estudos culturais (Hall, 2003) para explicitar o lugar da identidade na

pós-modernidade e os deslocamentos culturais possibilitados pelo movimento da

globalização. É do lugar de pesquisadores, críticos culturais e educadores que buscamos

uma sociedade que entenda as diferenças (raciais, de classe e gênero) e as respeite rumo a

relações saudáveis e possíveis de mudança.

É preciso recordar que a educação escolar traduz, em um determinado espaço

cercado pelos muros enrijecidos ou decorados com grafites-liberdades, as imagens da

sociedade em que se situa as identidades cambiantes de seus moradores-passageiros

(porteiros, cozinheiras, diretores, professores, estudantes, pais). A escola é um espelho que

reflete diferentes cenários, diferentes vivências, diversidade em todos os modos de

ensino-aprendizagem. Não tem como ser incolor, não possuir as amostras socioculturais do

universo lá fora. Afinal, ela deve ser um ambiente que filtra essas radiações de energias

artísticas, sociais, culturais, históricas e educativas.

2. Materiais didáticos e formação de sujeitos

Muitos recursos são apresentados para apontar as vivências do ambiente-escola e

seus Currículos-Babel: o tratamento entre os profissionais e educandos na escola; o respeito

à ritualidade da merenda escolar em levar à boca de tudo um pouco, retratando e

contemplando os costumes e referências da culinária da comunidade/sociedade; os

materiais didáticos que apontam ilustrações, palavras e construções discursivas da política e

história da cidade, do país, do mundo, dos séculos de muito passado e presente.

Aprofundemos criticamente este último elemento citado: os materiais didáticos.

Desde o lápis até o data-show, tudo é material didático para uma sala de aula e uma

educação que vença as barreiras da intolerância e do colonialismo de nossas mentes. Em

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específico, o livro didático é o recurso mais explorado dentro e fora da escola sinalizando

roteiros de estudos, referências e conteúdos-verdades. E no material, deve-se apresentar os

diversos letramentos possíveis para a educação da pessoa humana e estimular seu

desenvolvimento crítico.

É preciso compreender a importância da pesquisa, em qualquer tipo de área do

conhecimento, como um modo de construir a vida social, dar sentido a mesma levando em

conta à pluralidade do conhecimento. É sobre isto que a epígrafe no início deste texto quer

apontar: um olhar atento a determinadas instituições ideológicas, políticas e sociais que

existem no Brasil e o torna um Estado plural e sinônimo de resistência negra. Ao passo que

observamos as relações interpessoais, notamos também que as identidades têm atingido um

estágio fluido. As identidades são globais e locais ao mesmo tempo; dão sentido a um mundo

multifacetado e com referência ao simbólico assim como ao cultural.

Precisamos, diariamente, aprender a desaprender. Compreender o processo de

aprendizagem enquanto contínuo. É um pouco do que nos diz Moita Lopes (2006, p. 86)

sobre esta contemporaneidade que nos desafia a produzir conhecimentos e "colaborar para

que se abram alternativas sociais com base nas e com as vozes dos que estão à margem".

Junto a essas vozes destacamos os remanescentes de quilombo não apenas no Brasil, mas

em todo o mundo.

Os estudos sobre as relações étnico-raciais têm se intensificado a cada dia não

apenas para garantir os direitos das comunidades excluídas pelo colonialismo –

comunidades indígenas e quilombolas brasileiras -, mas também para disponibilizar

alternativas teórico-práticas de caráter didático-pedagógico voltadas para a consolidação de

uma "cultura escolar cotidiana de reconhecimento e respeito as diversidades, as

peculiaridades e ao repertório cultural do povo negro, sem hierarquizá-los" (ROCHA, 2006,

p.24).

A dimensão étnico-racial e a prática pedagógica vêm a ser uma aliança rumo à

interdisciplinaridade e à construção de novos referenciais com o auxilio das Leis 10.639/2003

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que institui o ensino de História e Cultura africana e afro-brasileira nas escolas assim como a

11.645/2008 na aplicação do ensino de história e cultura indígena. As conquistas dos

movimentos sociais e étnico-raciais envolvidos validaram a promoção de materiais voltados

para a descolonização linguística na educação. Como? A partir da edição de livros e outros

materiais educativos que ilustram as vivências dessas comunidades - afro e indígenas -

contribuindo de forma decisiva para o desenvolvimento da autoestima desses povos.

A globalização está diretamente envolvida no processo educacional e cultural, uma

vez que define os meios comunicacionais usados pelos usuários da linguagem (oral e

escrita) assim como os conceitos cambiantes nas leituras sobre linguagem, cultura e

sociedade pós-moderna. Contudo, a globalização tem se tornado ainda mais descentralizada

(GIDDENS, 2000 apud MOITA LOPES, 2006), envolvendo diversas culturas e a imbricação

de umas com as outras. Ou seja, a homogeneização cultural tenciona com a ideia de

heterogenização cultural transformando o sentido de cultura derivante para o sentido de

manifestações culturais autônomas, que ressignificam a tradição e enfrentam os padrões

coloniais. Conforme Moita Lopes:

Azelene Kaingáng baseou seu argumento em seu posicionamento como

indígena, mostrando que historicamente os indígenas brasileiros têm lutado

pela manutenção das fronteiras nacionais. São esses discursos que entendo

como questionadores da lógica ocidentalista. (MOITA LOPES, 2006, p.88)

Pensar sobre o letramento para além de aprender a ler e escrever, para além da

alfabetização, nos permite desenvolver as habilidades para o aprendizado com a vivência, a

interação com demais indivíduos no mundo, aprender com outras culturas (SOUZA, 2011).

Em específico, a Educação Escolar Quilombola, já citada no Estatuto da Igualdade

Racial (2010) e nas Diretrizes Curriculares Quilombolas para a Educação Básicaii, tem suas

questões singulares e tratamento ímpar quando o assunto é educação em quilombos rurais

e/ou quilombos urbanos (comunidades que recebem quilombolas para trabalhar ou estudar).

A SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, junto a

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sugestões do Movimento Negro e demais, elabora materiais de orientações e ações

educativas relacionadas às questões étnico-raciais em que as especificidades dos costumes,

tradições e elementos culturais quilombolas são mencionados como relevantes no processo

de ensino-aprendizagem pós-colonial.

Para tal, a desobediência epistêmica deve ser praticada e a educação quilombola

faz isto: leva para a sala de aula outras linguagens fora do padrão curricular de demais

instituições escolares, logo, leva a sua sociedade novos letramentosiii a sua maneira. Saber

a origem do conceito de quilombo (Kilombo – para Angola e seus reinos descendentes)iv, sua

natureza política, militar e econômica, suas diferenças e singularidades culturais já é uma

revolução de signos linguísticos e simbólicos.

As comunidades quilombolas têm suas práticas sociais e com elas exercem a

cidadania e reinventam suas tradições. Essa educação diferenciada, que respeita as

diferenças e a cultura local também forma seus estudantes criticamente sobre as questões

de territorialidade, a geopolítica de sua população (econômica e política), a história dos

quilombolas e seus modos de resistências. A educação na diáspora africana tem sua

particularidade a partir do momento que se referencia em diferentes povos, manifestações

culturais e relação da educação com a religiosidade (HALL, 2003). As políticas de Ações

Afirmativas vão intensificar o trabalho que alguns educadores, em especial educadores

negros, vinham traçando para uma educação à Diversidade. Uma educação que respeite

essas referências ancestrais das populações afro-diaspóricas que permeiam a história e

cultura brasileira.

Faz-se necessário conhecer e apontar intelectuais negros de diferentes tempos que

se preocuparam com o combate aos diversos níveis de racismo e discriminação racial,

levando a cultura enquanto uma ferramenta relevante nesse processo educativo e cidadão.

Ter o conceito de cultura definido caracteriza um limite importante no direcionamento dessas

políticas afirmativas.

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3. Conceito de cultura e a identidade negra brasileira

A compreensão do que seja cultura auxilia na construção do pensamento crítico

sobre a sociedade e suas formações discursiva, e consequentemente, formações de sujeitos

políticos. Uma das abordagens sobre o conceito de cultura parte da premissa que o estudo

dos fenômenos culturais pensado como o estudo do mundo sócio histórico, abrange o campo

de significados - constituição significativa e a contextualização social das formas simbólicas

(THOMPSON, 1995). O cultivo dos animais, da agricultura estaria alimentando também o

cultivo da mente e a partir desse ponto, o Homem fomentaria sua cultura baseada nas

contextualizações das formas simbólicas.

Além do pensamento de Thompson com sua análise estruturalista sobre a cultura,

Malinovsky (1975) nutria a ideia de cultura a partir do Homem enquanto um animal, um ser

biológico cujo objetivo é se reproduzir. Ou seja, a cultura tem um papel funcional, constitui-se

de sistema. Porém, o autor frisa uma interferência de mão dupla: o Homem é moldado pelo

ambiente cultural e o mesmo também sobre a influência do Homem. Com base nesse

pensamento, por anos muitos cientistas sociais associavam a cultura a uma identidade em

evolução, mas como um veículo essencialista, com traços que eram transmitidos de geração

a geração.

Contudo, mesmo afirmando o lado simbólico da cultura, seu conceito na

pós-modernidade associou-se a liquidez do mundo globalizado. Contemplando que as

nações modernas são híbridas socialmente, também são híbridas culturalmente, e logo, não

podemos ter identidade culturais fixas, nem funcionais. Em consonância com Hall (2001,

p.32-46), as “identidades culturais estão fragmentadas”, e portanto, transitam uma “crise” que

vale a pena refletirmos sobre as diferentes culturas relacionadas às diversas construções

identitárias que assumimos e carregamos em nossas ações, leituras e atitudes políticas.

É válido relacionar o conceito de cultura apresentado por Durval Muniz de

Albuquerque Jr. (2007) que trata a cultura enquanto elemento móvel em qualquer sociedade,

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ligada diretamente a ideia de identidade, porém, interpelando esta última enquanto um

conceito não único. Ou seja, não existe uma identidade cultural firmada: somos todos

repletos de identidades culturais multifacetadas e precisamos compreender a reinvenção

contínua da tradição no mundo pós-moderno e pós-colonial (o mundo que tentamos construir

todos os dias fora dos ideais de dominação colonial).

Enquanto comunidades negras, os quilombos têm representado no Brasil um

arsenal de conhecimento econômico, cultural e político que merecem reverência e promoção

de seus letramentos na formação educativa brasileira (ver materiais elaborados pela SECAD

com o auxílio de escolas quilombolas e sua prática pedagógica nas comunidades situadas

em Minas Gerais e Goiás). A memória, a história, a identidade negra e seus traços culturais

mantêm o aquilombamento vivo e dão suporte a práxis escolar, ambos em eterno movimento

e ressignificação.

4. Livros didáticos de língua portuguesa: “cadê” a Educação para as Relações

Étnico-raciais?

Analisamos, em 2010, três volumes do livro didático Linguagem em Movimento, da

Editora FTD, destinados ao Ensino Médio do ano de 2008. No período da análise, o objetivo

da pesquisa era averiguar em livros didáticos de língua portuguesa uma concretização dos

pré-requisitos da Lei 10.639/2003 instituindo o ensino de história, línguas e culturas africanas

e afro-brasileiras em sala de aula e discutir exemplos de posturas pedagógicas que valorizem

a diversidade étnico-racial. (ZOGHBI, SANTOS, 2012, p.463). Este trabalho resultou em

uma resenha em parceria com a pesquisadora em Linguística Aplicada Denise Zoghbi.

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Imagem 1 Imagem 2 Imagem 3

Conferimos ao fim da leitura crítica que existe uma preocupação institucional em

efetivar as propostas de práticas sociais e educativas que respeitem a diversidade étnica,

racial e socioeconômica, porém, as editoras, a exemplo a FTD, ainda expõem a resistência

deste país racista e não legitimam a produção literária de autores negros afro-brasileiros. Ou

então, não contextualizam (Exceto Aluísio Azevedo, Machado de Assis, Olavo Bilac) os

autores e suas criações. As imagens nesses livros (os três volumes estudados)

referenciavam muito mais o negro na fase da escravidão portuguesa no Brasil enquanto

subalterno, alienado, do que a pessoa negra enquanto líder, científico, produtor cultural.

Em contraponto, a SECAD elaborou alguns materiais didáticos para serem

encaminhados às escolas quilombolas v . Dentre eles encontram-se duas revistas em

quadrinhos as quais possuem anos, edições e autores diferentes, contudo, todos publicados

no Brasil e voltados ao público infanto-juvenil. Faremos observações quanto ao teor das

histórias, as imagens ou ilustrações de seus personagens, além do formato da edição do

material.

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5. Quilombos em quadrinhos

O gibi “Quilombos: Espaço de Resistência de crianças, jovens, mulheres e homens

negros” (Imagem 4), publicado em 2010, foi criado pela REDEH - Rede de Desenvolvimento

Humano - e editado pela SECAD, apresenta histórias relacionadas à população quilombola

existente no território brasileiro. Toda a revista envolve narrativas de comunidades

quilombolas cujos pesquisadores são estudantes de uma escola quilombola local que fazem

um tour nas demais comunidades a fim de coletar as narrativas fundadoras locais. A primeira

história relata sobre o Quilombo Campinho da Independência, localizado no sul do estado do

Rio de Janeiro. Estão envolvidos enquanto protagonistas crianças da comunidade

mencionada. A professora e os demais personagens são todos negros e não há marcas de

estereotipagem nem marcas preconceituosas (Imagem 5).

A segunda história é sobre o Quilombo de Santana. Há a presença de uma anciã

para contar as especificidades do local. Aponta a relevância de projetos de ONGs e do

governo federal para manter a história do local viva e presente. Os demais quadrinhos vão

perpassar pelos quilombos São José da Serra, Caveiras/Botafogo, Quilombo da Rasa e, por

fim, Quilombo da Fazenda Machadinha onde são rememoradas comidas típicas da

localidade, a cultura do Jongo, o Fado, além da extinção do Cantador de Reis. Toda a

pesquisa resulta em uma revistinha em quadrinhos (logo uma metalinguagem da própria

obra), com as principais histórias coletadas. Na contracapa é apresentado um mapa do

estado carioca com a localização dos territórios quilombolas locais.

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Imagem 4 Imagem 5

“Minas de Quilombos” (imagem 6), lançado em 2010, é o segundo gibi e faz parte de

uma coletânea de materiais paradidáticos editados também pela SECAD para serem

aplicados em escolas quilombolas que trabalham com a educação básica. Também criado

pela REDEH, vem a narrar histórias dos quilombos de Minas Gerais, cujo ambiente de

contação é uma sala de aula, porém, com a presença de personagens de outros grupos

étnico-raciais – negros e brancos. Traz como atrativo no início da história um relato sobre a

revistinha em quadrinhos “Quilombos: Espaço de Resistência de crianças, jovens, mulheres

e homens negros”.

A partir dessa provocação, a professora da escola quilombola vai instigando seus

alunos a procurarem saber mais sobre a comunidade em que vivem e sua relevância

histórica. Traz à baila aspectos linguísticos e culturais partilhados pelos africanos que ali

foram escravizados. Novamente há a menção de anciãos para auxiliarem no domínio da

história local. Ao fim possui um mapa do estado de Minas Gerais com a referência dos

quilombos citados.

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Imagem 6

Assim como o quadrinho “Quilombos”, o “Minas de Quilombos” também se torna

uma revistinha em quadrinhos com base na primeira produção que incentiva os estudantes

da segunda escola a reverenciarem as comunidades quilombolas do entorno e conversarem

com seus anciãos sobre a origem dos lugares.

6. Considerações finais

A leitura das diferentes práticas de letramento entre os quilombolas é um sinal de

uma releitura sobre o processo de ensino-aprendizagem e cultura dentro e fora das escolas.

Compreender a educação como um conjunto de estratégias linguísticas e, portanto,

socioculturais, para uso da linguagem sem discriminações por região, nem raça superior ou

inferior. Faz-se necessário afirmar que a elaboração crescente de materiais didáticos e o

desenvolvimento crescente de pesquisas sobre as comunidades quilombolas têm contribuído

para uma visão mais ampla e significativa da trajetória de luta e resistência dos mesmos.

Os livros didáticos apontam através da linguagem verbal as variadas possibilidades

de nós falarmos de nós por nós mesmos. É a comunicação dos quilombolas registrada no

material didático para além desta geração, para além dos frutos dos nossos filhos da terra em

uma diáspora africana e negra. É a reescrita da história de nossos ancestrais com a língua

que também nos pertence. De maneira crítica a produção cultural se faz presente em textos

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cujos protagonistas são os próprios quilombolas, fomentando demais manifestações e fluxos

culturais de dentro de um território para demais comunidades quilombolas que vêm a

educação enquanto ferramenta de mudança social.

Notas

i Graduada em Letras, com habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas (UNEB); especialista em

Docência do Ensino Superior (UniJorge); Mestranda em Crítica Cultural/ Letras (UNEB) cuja pesquisa

objetiva a formação continuada de professores em escolas de quilombos rurais no Recôncavo Baiano).

É tutora a distância de curso de Formação de Professores em Estudos de História e Culturas

Afro-brasileiras (UAB/UFBA) ii Ver Cartilha – Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola: algumas

informações. Câmara de educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE). Brasília-DF.

2011. iii Segundo Angela Kleiman (2005), letramento é uma prática de linguagem coletiva e colaborativa

(sociocultural) que usa a língua escrita e a oralidade como meios de aprendizado continuo e para

todos. A leitura é uma das ferramentas e o professor, um dos agentes de letramento iv Outras formas de se chamar o agrupamento de negros fugidos da escravidão fora de África:

Quilombo e Mocambo (Brasil); Cumbe (Venezuela); Palenque (Colômbia e Cuba). (MOURA, Clóvis;

1993). v Ver Estórias Quilombolas. Glória Moura (Org.). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da

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[cartilha quilombola - pdf] Câmara de educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE).

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