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A IGREJA [CATÓLICA] EM ÉPOCA DE TRANSIÇÃO (1950-2010): A INSTITUIÇÃO DO SUL PERDEU O NORTE 1 Adenilson Ferreira de Souza 2 RESUMO O presente artigo analisa a história da Igreja [Católica] no Brasil entre os anos de 1950 e 2010. No âmbito internacional, compõe-se o cenário o contexto pós-II Guerra Mundial, os embates da Guerra Fria e seus desdobramentos e a derrocada do socialismo. Na arena política regional, a revolução cubana e os movimentos anti-revolucionários ganham força nas Américas. No plano, o curto período republicano pós 45, o golpe de 1964 e o AI-5. Olhar crítico para o passado da Instituição nos permite identificar o período em questão [1950-2010] como era de transição. Entre os indicadores de mudança encontram-se: a alteração das prioridades político-pastorais da Igreja; o esforço de negação das “Conclusões” do Concílio Ecumênico Vaticano II e de desestruturação da Teologia da Libertação; a capitalização de atores, entidades e movimentos conservadores. À semelhança das grandes revoluções, de desdobramentos imprevisíveis, a incerteza caracteriza uma época em transformação. Entretanto, espera- se dos eventos em curso o acúmulo de determinado tipo de capital [político, social, cultural, econômico etc.]. O período delimitado para análise se divide em dois momentos distintos: o primeiro, de acúmulo de tais capitais [1950-1980] e, o segundo, de degenerescência de seu comportamento sociopolítico [1980-2010]. Nesse quadro, a “Igreja do Sul” perdeu o norte. 1 Artigo apresentado no II Fórum de Pós-Graduandos em Ciência Política - evento organizado pela Universidade Federal de São Carlos (São Paulo) -, entre os dias 20-22 de julho de 2011. 2 Doutorando em Ciência Política da UFMG. Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Minas. Bacharel em Filosofia e Teologia pela FAJE e Licenciado em História pela UNICAP-PE; ade-nilson- [email protected].

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A IGREJA [CATÓLICA] EM ÉPOCA DE TRANSIÇÃO (1950-2010):

A INSTITUIÇÃO DO SUL PERDEU O NORTE1

Adenilson Ferreira de Souza2

RESUMO

O presente artigo analisa a história da Igreja [Católica] no Brasil entre os anos de

1950 e 2010. No âmbito internacional, compõe-se o cenário o contexto pós-II Guerra

Mundial, os embates da Guerra Fria e seus desdobramentos e a derrocada do socialismo.

Na arena política regional, a revolução cubana e os movimentos anti-revolucionários

ganham força nas Américas. No plano, o curto período republicano pós 45, o golpe de

1964 e o AI-5. Olhar crítico para o passado da Instituição nos permite identificar o

período em questão [1950-2010] como era de transição. Entre os indicadores de

mudança encontram-se: a alteração das prioridades político-pastorais da Igreja; o

esforço de negação das “Conclusões” do Concílio Ecumênico Vaticano II e de

desestruturação da Teologia da Libertação; a capitalização de atores, entidades e

movimentos conservadores. À semelhança das grandes revoluções, de desdobramentos

imprevisíveis, a incerteza caracteriza uma época em transformação. Entretanto, espera-

se dos eventos em curso o acúmulo de determinado tipo de capital [político, social,

cultural, econômico etc.]. O período delimitado para análise se divide em dois

momentos distintos: o primeiro, de acúmulo de tais capitais [1950-1980] e, o segundo,

de degenerescência de seu comportamento sociopolítico [1980-2010]. Nesse quadro, a

“Igreja do Sul” perdeu o norte.

1 Artigo apresentado no II Fórum de Pós-Graduandos em Ciência Política - evento organizado pela

Universidade Federal de São Carlos (São Paulo) -, entre os dias 20-22 de julho de 2011.

2 Doutorando em Ciência Política da UFMG. Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Minas.

Bacharel em Filosofia e Teologia pela FAJE e Licenciado em História pela UNICAP-PE; ade-nilson-

[email protected].

Introdução

O objetivo central do artigo é analisar a história da Igreja [Católica] no Brasil

entre os anos de 1950 e 2010. O período em questão [1950-2010], a considerar as

transformações ocorridas no interior da Instituição, com desdobramentos para a

sociedade brasileira, caracteriza-se como uma era de transição.

Sem lugar à dúvida, em qualquer associação ou organização política, mudança

significativa no perfil do grupo que a lidera resulta em alteração no rumo e estratégias

de sua atuação em dimensões mais amplas. Importa ressaltar que a mudança de perfil do

grupo que lidera a Igreja nas últimas três décadas altera substancialmente as prioridades

da Instituição que: abandona a zona rural e, por conseguinte, reserva especial atenção

aos setores médios e populares dos grandes centros urbanos; a Teologia da Libertação

que, ao mesmo tempo, oferece o conteúdo teológico e menos doutrinal à ação social de

seus membros mais engajados, recebe duro golpe em sua espinha dorsal com o

surgimento de grupos mais espiritualizantes, a exemplo da Renovação Carismática, ou

com o renascimento de grupos tradicionais, inclusive com o aval do papa João Paulo II.

Embora a Igreja seja considerada, de modo recorrente, uma organização

eminentemente religiosa, os pesquisadores contemporâneos [especialmente, os

historiadores, os cientistas políticos e das religiões, entre outros] não ignoram sua

dimensão política. A Igreja é, em virtude de sua natureza e estrutura, uma organização

política. No caso brasileiro, a Igreja participa de forma decisiva do processo de

redemocratização do país e do esforço de desenvolvimento buscado no início da

segunda metade do século XX. Convém assinalar ainda que, em geral, seus

pronunciamentos produzem ecos em todo o mundo, não nos importando aqui o aspecto

de sua tendência ideológica.

Entre os anos de 1950 e 1980, a Igreja no Brasil se mostra envolvida nos campos

social e político. No plano político, parcela da Igreja - através da ação do grupo

progressista -, se orienta para apoiar as forças sociais [sindicalização rural, as ligas

camponesas, o Movimento de Educação de Base (MEB), a Ação Católica, a Ação

Popular, o Movimento Operário etc.] que trabalham no sentido da realização de

transformações sociais. A sua ação, porém, desenvolve-se no sentido de legitimar o

projeto social dos setores mais progressistas.

Nos últimos 30 anos (1980-2010), assiste-se, no entanto, à morte sucessiva dos

mais expressivos líderes políticos da Igreja, a exemplo de dom Adriano Hipólito, dom

Helder Camara, dom Cândido Padim, apenas para citar alguns. Além disso, outras

tantas personagens foram neutralizadas [como dom Valdir Calheiros, dom Luciano

Mendes de Almeida dom Pedro Casaldáliga], mediante aposentadoria ou transferências

de dioceses [por vezes adotada como forma de ostracismo] pela Santa Sé.

Alguns críticos da Instituição, e me insiro entre eles, consideram que a Igreja

encontra-se órfão no Brasil. Isto é, a Instituição carece de um grupo de membros (leigos

e eclesiásticos) habilidosos, competentes e “carismáticos”, inclusive para coordenar as

atividades desenvolvidas por uma de suas principais entidades no Brasil: a CNBB.

Nesse quadro, ou em decorrência dele, verifica-se o fenômeno dos padres cantores,

desprovidos de carisma, em perspectiva weberiana, bem como dos instrumentais

teóricos e técnicos exigidos por sua profissão: o saber filosófico, teológico, sociológico,

administrativo, da psicologia social e não menos importante da própria religião.

A partir do exposto, faz-se mister saber que a Igreja [Católica] possui alguns

componentes reveladores de sua identidade. Embora sem oferecer uma distinção

suficientemente clara desses componentes, Thomas Bruneau, em O catolicismo

brasileiro em época de transição, evidencia quatro componentes distintos: “a

mensagem”, “a instituição”, a “Igreja nacional”3 e a “Igreja Universal”

4 (da qual é parte

a “Igreja nacional”). Essas duas últimas dimensões se entendem como “relações”. Em

palavras do próprio Thomas Bruneau, “as duas relações são as da Igreja nacional com a

Santa Sé, ou centro da Igreja Universal, e com o Estado, dentro de cujas fronteiras a

Igreja está localizada” (BRUNEAU, 1974, p. 14).

Imposta salientar que, todo e qualquer estudo sobre a Igreja deve levar ainda em

consideração a dimensão de seu discurso e de sua prática. Em outros termos, nem

sempre seus discursos são efetivados, assim como nem sempre suas práticas resultam de

discurso previamente articulado. Além disso, nem sempre a corrente (ou as correntes)

responsável pela elaboração do discurso incumbe-se de sua implementação.

3 Thomas Bruneau, como se pode constatar, faz uso da expressão “Igreja nacional”. Com efeito, salvo

algumas raras exceções, tais como: Portugal, no tempo de Marquês de Pombal (séc. XVIII) e Inglaterra

(desde Henrique VIII), não coincide com a realidade falar estritamente em “Igreja nacional”, quando o

que se observa historicamente é a Igreja em âmbito nacional.

4 A expressão “Igreja Universal” também precisa ser redefinida, pois abriga imprecisão e ambiguidade. A

aplicação da expressão “Igreja Universal” à Igreja Católica em âmbito internacional pode, no mínimo

proporcionar ocasião de confusão, em nível de interpretação, com a “Igreja Universal do Reino de Deus”.

Assim, convém adotar a expressão Igreja Católica em âmbito transnacional ou internacional.

1. A revolução como símbolo de uma geração

Na política internacional, a ocorrência da II Guerra Mundial (1938-1945) “acelera

a crise do colonialismo político e, por conseguinte, o processo de descolonização

mediante lutas de libertação nacional. Os movimentos de libertação nacional ganham

força na Ásia, mas, sobretudo, na África”. Além disso, assiste-se ao “declínio da Europa

como centro da política mundial e da diplomacia de equilíbrio de poder” (SOUZA,

2010, p. 27). Ao término do conflito, a geopolítica mundial organiza-se sob sistema

bipolar, centrado nas formações socioeconômicas capitalistas e socialistas. Faz-se

necessário contabilizar entre os desdobramentos do fim da II Guerra, a consolidação da

hegemonia política, militar e econômica dos Estados Unidos da América (EUA).

Entretanto, a composição do Bloco Soviético no leste europeu, sob sistema

socialista em via de implantação do comunismo, força as potências europeias e os EUA

a conviverem com o diferente, a dividir interesses, força, poder e influenciar sobre as

demais nações do globo. Nesse quadro, desenvolve-se estratégia política que se

convencionou chamar de Guerra Fria. Nesse período, não se registra nenhum conflito

armado no interior dos blocos. Isso não quer dizer que não houve guerra no mundo; o

que se quer afirmar é que essas guerras se deslocaram para as periferias dos blocos

(Coreia em 1950, Vietnã em 1954, Vietnã entre 1965-1975), desenhadas apenas como

áreas de influências dos mesmos5. Alguns especialistas em Relações Internacionais, a

exemplo de Rob Walker (2005; 2006), que defendem a existência de áreas não

influenciáveis por qualquer uma das superpotências.

A II Guerra desenrola-se no entorno da geopolítica européia. Nesse contexto, os

EUA assiste, porém, não passivamente, ao declínio da Europa enquanto se prepara para

consolidar sua hegemonia. A indústria norte-americana agora o lugar de responsável por

mais da metade da produção do mundo. O pós Guerra, no entanto, caracteriza-se por

enorme euforia particularmente dos povos europeus, pois revela um mundo em

possibilidade. Decretado o fim do conflito, não se sai prioritariamente em busca de

culpados, mas em concentrar esforços na criação de alternativas eficientes para a

reconstrução dos países europeus arrasados em suas estruturas.

5 Sobre o comportamento dos EUA e da URSS durante o período da “Guerra Fria” recomenda-se a leitura

de HOBSBAWM, Eric. Guerra Fria. In: HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX –

1914-1991, p. 223-252.

O cenário internacional do pós-II Guerra assiste a outras alterações. “Em nível

mundial observa-se a formação de novos regimes socialistas, como resultado da

participação soviética na guerra” (VIZENTINI, 2004, p. 116). Se a guerra permite a

expansão qualitativa e quantitativa do capitalismo norteamericano, o crescimento do

socialismo dá-se mais em termos extensivos. A União Soviética (URSS) ascende à

condição de superpotência e, internacionalmente, seus adversários tiveram que aceitar a

sua existência. A partir de então, percebe-se sistema internacional bipolarizado e sob

influência das duas superpotências (EUA e URSS)6.

A estratégia de “Guerra Fria” representa opção por confronto ideológico, mais

do que econômico, entre os EUA e a URSS. Em termos objetivos, a peculiaridade da

Guerra Fria se mostra na inexistência quase absoluta de perigo iminente de guerra

mundial. O historiador Eric Hobsbawm atribui à “balança de poder desigual” condição

para a manutenção da paz entre as superpotências:

Os governos das duas superpotências aceitaram a distribuição global de

forças no fim da II Guerra, que equivalia a equilíbrio de poder desigual. A

URSS controlava parte do globo, ou sobre ela exercia predominante

influência e não tentava ampliá-la com o uso de força militar. Os EUA

exerciam controle e predominância sobre o resto do mundo capitalista, além

do hemisfério norte e oceanos, assumindo o que restava da velha hegemonia

imperial das antigas potências coloniais (HOBSBAWM, 2001, p. 224).

Assim que a URSS adquire armas nucleares (1949) e bomba de hidrogênio (1953)

- sempre tempos depois dos EUA -, as duas superpotências claramente abandonam a

guerra como instrumento da política. “Ambos usaram ameaça nuclear em algumas

ocasiões: os EUA para acelerar as negociações de paz na Coréia e no Vietnã (1953,

1954), a URSS para forçar a Grã-Bretanha e a França a retirar-se de Suez em 1956”

(HOBSBAWM, 2001, p. 227). Os britânicos conseguem bombas próprias em 1952,

com o objetivo de afrouxar sua dependência dos EUA; os franceses e os chineses na

década de 1960. Nas décadas de 1970 e 1980, outros países conseguem a capacidade de

fazer armas nucleares, notadamente Israel, África do Sul e provavelmente a Índia, mas

essa proliferação nuclear só se torna problema internacional sério após o fim da ordem

bipolar de superpotências em 1989.

Embora o aspecto mais óbvio da Guerra Fria seja o confronto militar e a frenética

corrida armamentista no Ocidente, não é esse o seu grande impacto. As guerras sempre

produzem consequências para os Estados mais fracos mesmo quando não envolvidos

6 Há autores em Relações Internacionais, à semelhança de Rob Walker (2005; 2006), que defendem a

existência de áreas não influenciáveis por qualquer uma das superpotências (EUA e URSS).

diretamente no conflito. A Guerra Fria também produz consequências para os países

subdesenvolvidos. Embora não tenha conseguido impedir a eclosão dos movimentos de

libertação nacional na África e Ásia, estabiliza estado de coisas essencialmente

provisórias. A Alemanha, dividida, constitui-se em exemplo mais óbvio dessa realidade.

No âmbito regional, a década de 1950 inaugura o período de profundas

inquietações políticas nas Américas7. Em 1959, Cuba decide sustentar no arco de uma

revolta armada a sua pretensão de reforma estrutural do Estado. Os desdobramentos do

movimento revolucionário implantam um regime socialista bem à sombra dos EUA. A

implantação do socialismo na Ilha - que, em princípio, não se figura na pauta do

movimento revolucionário -, resulta mais da resistência dos EUA aos postulados do

movimento do que uma real simpatia deste com o regime soviético. O movimento que

se pretendia antioligárquico se torna antiimperialista, e rompe com o próprio

capitalismo, para o qual se volta no final da primeira década do século XX, mediante

“reforma do Estado” sob o signo da abertura de mercado.

A solução cubana repercute na maioria dos países da região, para os quais a

possibilidade de transformação social não mais dependia de adaptações do modelo de

desenvolvimento capitalista, mas da ruptura com o capitalismo. Neste sentido, houve

importante mudança no comportamento de setores da esquerda latinoamericana, de

modo que suas mobilizações não mais correspondem às tradicionais. A exemplo do que

ocorre em Cuba, o interesse por reforma do Estado toma conta das sociedades

latinoamericanas. Obviamente, os Estados Unidos não permanecem impassíveis a esses

movimentos.

Em janeiro de 1962, ocorre a reunião da Organização dos Estados Americanos

(OEA), em Punta del Este, na qual se decreta o bloqueio continental à Revolução

Cubana. Ainda em 1962, os militares peruanos antecipam-se à posse do populista Haya

de la Torre e ocupam o poder; em 1963, golpe militar derruba o governo do moderado e

confiável Juan Bosch, na República Dominicana; em 1964, caem os também populistas

João Goulart do Brasil e Paz Estenssoro da Bolívia; em 1965, as tropas da OEA,

capitaneadas pelos EUA, intervêm e impedem uma restauração democrática na

República Dominicana; em 1966, as Forças Armadas ocupam o poder na Argentina; em

1968, novamente os militares assumem o governo no Peru; em 1973, chega ao fim a

7 No Brasil, na década de 1960, o tema da revolução emerge como símbolo de toda uma geração de

intelectuais, a exemplo de FURTADO, Celso. A Pré-Revolução Brasileira, 1964; PRADO JR., Caio. A

Revolução Brasileira, 1966. FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil, 1974.

experiência socialista chilena com o sangrento assalto ao poder por Pinochet; também

no mesmo ano, deixa o Uruguai de ser a “Suíça da América Latina”; em 1976, mais

uma vez os militares ocupam o governo argentino após curto interregno de governantes

civis. Se somarmos a estes os países latinoamericanos onde as antigas oligarquias

mantinham-se graças às Forças Armadas, podemos constatar que “na década de 70

apenas o México, a Colômbia e a Venezuela não haviam apelado para golpes militares

como solução para seus problemas” (GUAZZELLI, 2004, p. 28).

No âmbito da política doméstica, os movimentos sociais e políticos por reformas

do Estado se chocam com o movimento conservador da direita, que decide por uma

estabilidade autoritária. Logo, a solução encontrada se efetiva no o golpe civil-militar de

1964, cuja expressão maior de violência e injustiça se percebe nas estruturas sociais,

políticas e econômicas do país. Desde então, com incalculável apoio do serviço de

inteligência dos EUA, “elaboraram-se programas de treinamento para militares,

incrementou-se o auxílio técnico e material para as Forças Armadas e, especialmente,

ideologizou-se a contra-insurgência na Doutrina de Segurança Nacional, que fazia da

oposição interna o alvo das Forças Armadas” (PINHEIRO, 1986, p. 587). Constata-se a

primazia do tema da Segurança Nacional, quer em perspectiva doméstica (isto é, o

subversivo representava risco à ordem, à estabilidade nacional), quer regional (ou seja,

países como a Argentina, de maior poder militar ofensivo passou a ser visto como

potencial ameaça à soberania nacional), acima inclusive dos direitos liberais e de

expressões democráticas (SOUZA, 2010, p. 36).

Em oposição à investida dos governos militares contra as formas de expressões

democráticas, e, antes mesmo destas, dos direitos fundamentais, posicionam-se

instituições como a OAB e a Igreja Católica, e entidades como o movimento estudantil

e a CNBB. Convém afirmar que nenhuma delas, através de seus membros, apóia

unânime ou homogeneamente a alteração do regime de governo do democrático para o

autoritário. Na contramão do AI-5, juristas como Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e

Evandro Lins e Silva concediam hábeas corpus às petições de advogados que defendem

concidadãos detidos equivocadamente sob o signo da segurança nacional. A Igreja, no

entanto, divide-se politicamente. Parcela da Igreja considerada “progressista”, cujo

principal representante é a pessoa de dom Helder Pessoa Camara (1909-1999), passa a

tecer duras críticas ao governo, desde sua política econômica até sua estratégia de

segurança.

2. A Igreja [Católica] 8

em época de transição (1950-1980)

O período entre os anos de 1950 e 1980 caracteriza-se como uma era de transição.

Os eventos sociais, políticos, religiosos, econômicos e culturais se sucedem num ritmo

sem precedentes na história recente do Brasil. Os movimentos sociais se organizam e

expandem-se. A instabilidade política dos anos 50 cede lugar a período de “ordem

estabelecida” ou de “desordem institucionalizada” dos governos militares (1964-1985).

A Igreja inaugura a década de 1950 com a criação da Conferência Nacional dos Bispos

do Brasil (CNBB), em 1952. A entidade teve o seu estatuto aprovado em 1958. A

Igreja Internacional9 por sua vez abre a década de 1960 com o maior evento de sua

história contemporânea, o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). O curto

período de crescimento econômico (1968-1974) fora considerado por Celso Furtado

como “o mito do desenvolvimento econômico” (FURTADO, 1974). Na verdade, os

governos do período apenas valorizam o forte potencial do mercado interno.

No que diz respeito à Igreja institucional no Brasil, esta desempenha novo papel

de apoio aos elementos de modernização na sociedade em geral. Entretanto, estudando a

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961, percebe-se claramente que a

Igreja não se coloca monológica nesse novo papel, e as disputas internas em torno do

Movimento de Educação de Base (MEB), do sindicalismo rural, da Ação Católica,

sinalizam que há algo menos do que unanimidade na questão da missão na mudança

social. Contudo, alguma coisa fora do comum ocorre na Igreja do Brasil, que a coloca à

frente de qualquer outra Igreja, salvo a do Chile, e essa atuação sem precedentes fora

desencadeada pela CNBB.

A CNBB pode ser definida como a entidade de representação de toda a hierarquia,

e na qual cada membro da mesma se vê representado. No início do século XX, os mais

expressivos bispos do Brasil, a exemplo de dom Arcoverde, dom Leme e dom Jaime,

8 A expressão Igreja Católica denota uma realidade mais ampla do que o termo Instituição é capaz de

abarcar. Ora, há muitos fieis que participam ativamente da Igreja, porém, por uma ou mais razões, não

são contabilizados como membros da Instituição. A participação na Instituição pressupõe, ainda que

potencialmente, a condição de receber ou assistir a todos os sacramentos.

9Adoto a expressão “Igreja internacional” em substituição a “Igreja universal”, pois esta pode reservar

algumas imprecisões ou ambiguidades, na tentativa de dizer algo acerca da identidade da Igreja Católica

(Apostólica) Romana. A expressão Igreja internacional poderá ser entendida ainda, em usos futuros, em

relação à Igreja em âmbito nacional. Além disso, o uso da expressão Igreja internacional pretende

diferenciar a Igreja Católica da Igreja fundada por Edir Macedo, sob o nome estendido de Igreja

Universal do Reino de Deus, porém, conhecida popularmente por Igreja Universal.

cardeais do Rio, bem como outros membros estratégicos da hierarquia, são oriundos do

Sul ou do Sudeste. Através da CNBB, os bispos do Nordeste se tornaram os mais

estratégicos e proeminentes. A lista seguinte mostra que a maioria dos bispos dirigentes

da CNBB vem do Nordeste: “Helder Camara (CE); Carlos Carmelo Mota (MG); Carlos

Coelho (PB); Luiz Mousinho (PE); José Delgado (PB); José Távora (PE); Eugênio

Sales (RN); Fernando Gomes (PB) e Manuel Pereira (PE)” (BRUNEAU, 1974, p. 198).

Dentre os nove bispos, oito são do Nordeste, um do Sudeste, e nenhum do Sul. A

predominância dos bispos do Nordeste é ainda mais significativa se compararmos o seu

coeficiente com a totalidade da hierarquia. Os dados para 1966 mostram total de 178

bispos nascidos no Brasil. Há mais 65 de naturalidade estrangeira, mas são

relativamente pouco importantes em termos de participação, de política eclesiástica.

Nos oito Estados do Nordeste (excluindo a Bahia que por razões históricas funciona de

modo diferente) há total de 35 bispos, ou seja, cerca de 19% da hierarquia nascida no

país. Minas Gerais, com 43 bispos, compreende 24% do total. O Sul, com o Rio Grande

do Sul, Santa Catarina e Paraná, tem 36 bispos, que perfazem cerca de 20% do total.

É evidente que a vasta maioria da CNBB e dos bispos preocupados com o

problema social vem do Nordeste, em proporção substancialmente mais alta do que se

podia prever. A CNBB compôs a base da nova abordagem de influência da Igreja -

composta por dom Helder e outros bispos do Nordeste da mesma mentalidade - de

forma que a Ação Católica, ao mesmo tempo em que serve de estímulo para a CNBB,

só pode evoluir por causa dela.

A interação entre os militantes da Ação Católica e os bispos da CNBB, de

perspectiva progressista, era recíproca:

Ajudavam-se mutuamente na formulação do novo modelo de influência. A

CNBB financiava a ACB e eram os membros desta organização que, em

grande parte, trabalhavam nos projetos da Igreja. O fato da CNBB existir foi

decisivo para a ACB. Anteriormente, a Ação Católica seguia o modelo

italiano, sob a jurisdição direta dos bispos locais. Agora, a Ação Católica era

nacional, diretamente afiliada à nova Conferência Nacional dos Bispos, de

quem recebia a mandato. Era no plano nacional que se realizavam os

encontros, se estabeleciam as diretrizes, se distribuíam os recursos, etc. E

tudo isso sob a direção do grupo restrito e progressista da CNBB que, ele

mesmo, se beneficiava das perspectivas nacionais (BRUNEAU, 1974, p.

199).

A Ação Católica tinha assim mais autonomia do que jamais tivera antes, podendo

responder às solicitações do meio segundo suas próprias orientações e prioridades. Mais

tarde, quando surgiram os problemas entre a ACB e os bispos, muitos deles vieram

perceber a importância do plano nacional para a ACB. Apesar da aprovação (ou

desaprovação) oficial dos novos objetivos e comportamento da Ação Católica, todos

concordavam em que a perspectiva nacional, sob a direção da CNBB, foi estratégica em

permitir – e mesmo encorajar – a evolução da ACB para uma organização ativa de

vanguarda10

.

No final dos anos 1950 e início da década de 1960, inicia-se no Brasil o

deslocamento de alguns setores da Igreja (isto é, parcela da hierarquia eclesiástica e dos

leigos), no sentido de maior aproximação com os grupos marginalizados (camponeses e

operários), como as forças sociais que se mobilizam em prol de transformações das

estruturas sociais. Inicia-se então a ruptura do núcleo duro da Instituição. Os setores que

se deslocam, passam da defesa da “estabilidade social” a critica sociopolítico da

realidade econômica brasileira, e do próprio modo de atuação da Igreja.

Pierre Bigo e Fernando Bastos de Ávila se questionam “por que a Igreja se

interessa pelo social?”. Para Bigo e Ávila, “a resposta é simples: porque o social é um

campo da atividade humana, do ser do homem, e nada do que é humano é indiferente à

Igreja. Ela é „perita em humanidade‟” (BIGO & ÁVILA, 1982, p. 9).

Não obstante, a hipótese de que a existência da miséria tenha estimulado mudança

de comportamento da Igreja se mostra pouco convincente em face da ação dos próprios

miseráveis, dentro de situação em conflito. Desse modo, não se trata de estratégia da

velha Igreja para ampliar suas dimensões, “capital político”, poder de influência e

manobra, mas de ação exógena a promover transformação de mentalidade e de

preferências no interior de nova Igreja no país, a “Igreja da Libertação”.

Não nos é possível afirmar, isento da possibilidade de erro, se o comportamento

do clero fora influenciado pela Teologia da Libertação nascente e em fase de

consolidação ou se a Teologia da Libertação surge a partir da reflexão da comunidade11

,

a partir de um novo comportamento da Igreja, inclusive hierárquica, mais comprometida

com a dimensão social das pessoas, fieis ou não. A preocupação com o humano é posta

em relevo sem no entanto abrir mão da dimensão religiosa, transcendente e

institucional. Trata-se da constituição de uma gramática do “humanismo teocêntrico”. O

10

A pesquisa do CERIS confirma a observação de que a ACB desvencilhou-se do contato direto com os

bispos diocesanos locais - de quem esperavam receber assessoria, orientação e encorajamento, porém, por

vezes, ignorada - para ocupar espaço nacional.

11 A definição do elemento causador [se a produção teológica ou se a realidade das comunidades] exige o

desenvolvimento de um estudo mais específico sobre o assunto. No escopo dessa pesquisa, limitamo-nos

a assegurar que esses fatores atuam numa dinâmica de mútua causalidade.

teórico brasileiro de maior expressão do “humanismo teocêntrico” é o Pe. Henrique

Cláudio de Lima Vaz; e o mais expressivo propagador desse humanismo no Nordeste é

dom Helder Pessoa Camara.

A queda do socialismo resulta em inúmeras implicações para a política. No caso

da esquerda política brasileira, o golpe civil-militar frustrou, se é que detinha, qualquer

projeto de implantação do regime bolchevista no país. O regime autoritário no Brasil

durou tempo o suficiente para que a esquerda revolucionária assistisse a derrocada do

regime soviético, e abandonasse o seu intento de revolução socialista. Na década de

1970, oitenta e cinto por cento dos membros da hierarquia da Igreja no Brasil se

mostrava favorável à deflagração de revolução socialista.

A Igreja no Brasil se encontra informada acerca das consequências, para ela, da

implantação do regime na Europa Oriental, ainda assim está disposta a pagar o preço na

América, apostando que pudesse ter um tratamento diferente se participasse do processo

revolucionário. O silêncio diante da injustiça que assolava [e grassa] a região, esse sim,

poderia lhe custar o lugar que sempre imagina ter por “direito natural”, que certamente

lhe seria subtraído pelo governo revolucionário.

Não nos é possível averiguar se a Igreja acertara em seu cálculo, pois o governo

revolucionário não veio, e o que veio - o regime autoritário - não lhe permitiu participar

intensamente do governo. Há, no entanto, um cálculo que a Igreja nunca se predispôs a

fazer, qual seja, o de suas perdas com a derrocada do regime socialista soviético. A

Igreja enfrentara a maior de suas crises recentes.

A grande expectativa da Igreja, ou melhor, da parcela da Igreja que apoiava a

esquerda política em seu projeto revolucionário recaia sobre a esperança de que a URSS

resolvesse [ou ao menos amenizasse] suas grandes contradições internas, que se

traduziam em entraves ao desenvolvimento.

No Brasil, a Igreja enfrenta o seu principal inimigo, o regime militar, de quem

uma parcela se aparta desde meados de 1964, e do qual a maioria se distancia e faz

oposição desde 1968, quando da promulgação do Ato Institucional n 5 (AI-5). A

redemocratização do país, em 1985, desperta grandes esperanças na Igreja, contudo, os

seus grandes líderes se encontram esgotados. O tempo havia colocado a todos fora de

combate. O melhor diagnóstico da situação permite afirmar que, o tempo havia aplacado

neles o espírito revolucionário.

3. A “Igreja do Sul” perdeu o Norte

A Igreja [Católica] da América do Sul pode ser definida, em razão de sua

organização e expressão regional, como a “Igreja do Sul”12

. A expressão “Igreja do Sul”

pretende substituir o chamamento de “Igreja latinoamericano” por entender que este

sustenta uma carga preconceituosa imputada pelas Igrejas e sociedades dos EUA e da

Europa. A Igreja no Brasil é representativa da “Igreja do Sul”.

A dimensão política da sociedade brasileira exige maior envolvimento da Igreja,

de forma crescente e contínua, na arena de participação política13

. Por vezes, solicita-se

a participação da Igreja em determinados fóruns de debate no intento de diversificar os

discursos e aumentar a representatividade, característica fundamental da experiência

democrática. A participação ativa promove o exercício da escolha, e este implica

decisão política.

A Igreja católica nas últimas três décadas [1980-2010] encontra-se desnorteada.

Lamenta, sem sucesso, a falta de uma forte ideologia. A derrocada do socialismo

representa mais do que a simples queda pacífica14

do Império soviético. Para a Igreja, a

dissolução do Império soviético simboliza o fim de uma de suas principais ideologias

nos últimos tempos.

Para a Igreja do Sul, a dificuldade de consolidação do comunismo na União

Soviética representa mais do que uma simples experiência mal sucedida, significa sim o

fim de uma utopia, cultivada e suportada a custo de muitas vidas e sonhos. De modo

que, assim que se constata a impossibilidade do comunismo mediante processo de

desestruturação do socialismo soviético, a Igreja do Sul desorientada perdera o seu

mastro, leme e norte.

A Igreja do Sul perde o seu mastro, cuja expressão maior se encontra na ideologia

socialista. Com a queda de Nikita Kruschev, ascende ao poder Leonid Brejnev (1964-

12

Adoto a expressão “Igreja do Sul”, para referir-se à Igreja espalhada pela América do Sul, por entender

que a “expressão latinoamericana” veicula, para além de mera percepção linguística, uma concepção [ou

melhor, uma compreensão] preconceituosa imputada pelos europeus e “norte-americanos” [entendidos

como a Igreja do Norte] contra os povos [e suas culturas] da América do Sul.

13

O judaísmo antigo, com o qual o cristianismo se relaciona e de quem é ao mesmo tempo herdeiro e

devedor, caracterizava-se por uma forte interrelação com o mundo político. Eventos como a escravidão

no Egito, o exílio da Babilônia, o retorno à “terra prometida” narram experiências resultantes de

deliberações políticas unilaterais desfavoráveis a Israel.

14

Nenhum sovietólogo, da Europa Ocidental ou dos EUA, previra a dissolução do Império soviético de

maneira pacífica. Entre os anos de 1960 e 1989, era quase unânime a convicção de que a queda do regime

soviético envolveria muita tensão, e provavelmente até conflito bélico.

1982), cujo governo retoma internamente o centralismo político-administrativo,

reprimindo as dissidências. No plano econômico, a URSS de Brejnev não só perdera

ritmo produtivo, diminuindo as taxas de crescimento, como também envolvia-se cada

vez menos no comércio mundial. Para efeito de comparação, o PIB soviético, que

crescera 5,7% ao ano na década de 1970, foi declinando para chegar a 2% na primeira

metade dos anos 80, época do final do governo Brejnev.

A Brejnev sucederam curtos governos da velha guarda soviética: Iúri Andropov

(1982-1984) e Konstantin Tchernenko (1984-1985), que mantiveram a deterioração

política interna e externa e os elevados custos na manutenção da guerra do Afeganistão.

À morte de Tchernenko seguiu-se o governo de Mikhail Gorbatchev (1985-1991),

responsável por profundas alterações na União Soviética. No plano interno, Gorbatchev

deu início, com sua política de abertura, à mais ampla reforma econômica e política da

União Soviética, que se irradiou para os demais países que compunham o bloco

comunista. O ponto alto na política interna foi o fim do monopólio do Partido

Comunista soviético, o que possibilitou o retorno do multipartidarismo e a instauração

de eleições diretas para 1994. As mudanças políticas, entretanto, estimularam, nas

quinze repúblicas que compunham a URSS, crescentes movimentos nacionalistas, os

quais buscavam, não raramente, a independência e colocavam em risco a própria

existência da URSS.

As dificuldades econômicas soviéticas expunham o bloco a crescentes críticas.

Enquanto se multiplicam as dissidências internas, no plano internacional ganha fôlego a

ofensiva anticomunista do governo Donald Reagan. A partir de 1987, Gorbatchev assina

com Reagan acordos de eliminação dos mísseis de médio e curto alcance, localizados na

Europa e na Ásia, além de entendimento sobre questões que abrangiam desde direitos

humanos até problemas regionais das superpotências.

Em agosto de 1991, membros da burocracia conservadora afastaram Gorbatchev

do poder, no intuito de reverter o quadro político-econômico da União Soviética, que

beirava o descontrole. O golpe final contra Gorbatchev deu-se em dezembro daquele

mesmo ano, quando a Rússia de Bóris Yeltsin, presidente da principal república

Soviética, a Rússia, e líder dos ultra-perestroikistas, juntamente com Ucrânia e Bielarus

assinaram o Acordo de Minsk (capital de Bielarus), proclamando o fim da Uniao

Soviética e a criação da Comunidade de Estados Independentes (CEI).

Após a derrocada do socialismo no Leste europeu e, por conseguinte, o fim da

União Soviética, cada um dos ex-países socialistas enfrenta crises econômicas e

políticas. A abertura de seus mercados ao capitalismo internacional e a desmontagem da

ordem socialista favoreceram a emergência de uma nova elite econômica, em grande

parte descendente das criticadas elites burocráticas que ocupavam os altos cargos

administrativos do período anterior.

A Igreja internacional, e não apenas a Igreja do Sul, perde o seu leme, isto é, as

“Conclusões” do Concílio Ecumênico Vaticano II, sendo este o maior e mais expressivo

evento da Igreja no século XX. O papa João XXIII, que amadurecera sozinho a ideia de

novo Concílio, surpreendera a todos com o anúncio de sua decisão em janeiro de 1959

[o último Concílio, o Vaticano I, ocorreu em 1870, portanto, a mais de um século

antes]. Toda a Igreja, e não apenas a hierarquia, bem como a opinião pública

internacional se mostrou perplexa diante do anúncio. A perplexidade de todos

assentava-se sob determinadas convicções: 1) que João XXIII, escolhido para o cargo

para garantir à Igreja uma tranquila transição, era considerado velho para encaminhar

temas contraditórios e resolver questões polêmicas; 2) o clima de “guerra fria”, ainda

que permitisse a abertura do Evento, não assegurava a perspectiva de desenvolvimento e

conclusão dos trabalhos; 3) o anúncio se tratava de um novo concílio, o “Vaticano II”, e

não de conclusão de temas abertos e trabalhos incompletos do Vaticano I, em 1870.

Em outubro de 1962, o papa João XXIII celebra solenemente a abertura do

Concílio. Nos primeiros meses de 1963, as condições de saúde do Papa

progressivamente se agravavam, embora sem impedi-lo de seguir de perto os trabalhos

das comissões e de inclusive publicar a encíclica Pacem in terris. O junho desse mesmo

ano, João XXIII faleceu, e seu sucessor, o cardeal João Batista Montini, o papa Paulo

VI, elogiou os esforços de seu antecessor e determinou a continuação do Concílio,

contrariando o interesse da ala conservadora da Igreja. Paulo VI encerrara o Concílio

em 1965. O Vaticano II legava à Igreja Decretos como Ad gentes – sobre a atividade

missionária da Igreja, e Unitatis redintegratio – sobre o ecumenismo; Declarações

como Dignitatis humanae – sobre a liberdade religiosa; e Constituições como Dei

Verbum – sobre a Revelação de Deus, Gaudium et spes – sobre a Igreja no mundo,

Lumen gentium – sobre a Igreja, Sacrosanctum Concilium – sobre a liturgia.

Embora considerado um papa dinâmico, criativo, Paulo VI mantivera ao seu redor

lideranças que faziam forte oposição à implementação das “Conclusões” do Vaticano II.

Se bem aproveitadas, tais “Conclusões” poderiam ter orientado a Igreja na formulação

de suas novas estratégias missionárias e de envolvimento na política internacional. As

Conferências Gerais do Episcopado Latinoamericano e do Caribe (CELAM),

sobretudo a II e III, a de Medellín, na Colômbia em 1968, e Puebla de los Angeles, no

México em 1979, respectivamente -, se orientadas para esse fim, teriam logrado êxito.

A Santa Sé, entidade representativa da Igreja internacional, e não precisamente a

Igreja europeia, se recusa a se deixar guiar pelo seu leme – as “Conclusões” do

Concílio. O retraimento fora a postura adotada pela Igreja do Norte, que passara a

considerar uma ameaça [inclusive de comunismo] a tudo o que fosse endereçado a ela

pela Igreja do Sul. Para aquela parcela da Igreja, tornara-se difícil, tarefa quase

impossível, aproveitar as “Conclusões” do Concílio em parte. Logo, a solução

encontrada fora recusá-lo no todo. Sendo aquela parcela da Igreja representativa na

Santa Sé, empenhara-se no boicote das “Conclusões” do Concílio, quando da tentativa

de implementação das mesmas pelas Igrejas locais15

. A Igreja do Sul, nos anos

subsequentes ao Concílio, promovera a revisão das antigas reflexões e práticas cristãs,

opção que resultara na formação da Teologia da Libertação.

O papa Paulo VI, que coordenou o Concílio, em Assembleia Extraordinária da

Conferência Episcopal Latinoamericana e do Caribe (CELAM), em Mar del Plata, na

Argentina, em 1966, assegura que: “a Igreja pode contribuir para difundir o ideal de

integração, despertando nos cristãos a convicção de que os próprios destinos nacionais

somente serão alcançados dentro da solidariedade internacional, formando uma

consciência supranacional (CELAM, 1966, p. 13).

A Igreja do Sul fora obrigada a distanciar-se do governo [salvo raros casos, a

exemplo da Argentina] desde a elevação ao Executivo federal de representantes das

Forças Armadas. Entretanto, a Instituição permanecera envolvida nas questões

socioeconômicas, a ponto de defender que o processo de desenvolvimento e integração

da América do Sul devia ser por ela estimulado. Haja vista, ninguém pode resolver,

isoladamente, os problemas da sociedade internacional, nem sequer de nossa América.

A preparação, tanto para a participação política como para a defesa da justiça, requer o

empenho da hierarquia. Não obstante, aos leigos competia “a responsabilidade inadiável

da ação social e política, capaz de dar às comunidades nacionais aquele poder supremo

sem o qual se tornam impossíveis as reformas profundas da estrutura social” (CELAM,

1973, p. 44). Os desequilíbrios econômicos e sociais bem como a instabilidade política

põem em risco a paz no Continente.

15

As dioceses são entidades e instâncias administrativas legitimamente constituídas pela Igreja, segundo

o modelo de organização hierárquico vigente. Na prática, existem são as Igrejas locais das quais as

dioceses são expressão simbólica de unidade pastoral regional.

A Igreja do Sul, por diversas razões, perde o seu norte. Em outros termos, a Igreja

do Sul se desorienta, quando vê distanciar a perspectiva da libertação que havia criado a

partir da ideologia socialista. Como consequência, a maior parcela dos que compõem a

hierarquia da Igreja [os presbitérios (diocesanos e religiosos), os religiosos e as

religiosas, e os membros de institutos diocesanos], em número até então desconhecido,

abandona as suas funções ministeriais, os seus trabalhos e residências, e ruma por um

dos três caminhos: 1) o bar, para aliviar as frustrações e decepções; 2) o abandono do

celibato para dar-se a casamento; e, por fim, 3) aliar-se ao governo.

A opção de ir ao bar simboliza ato de perda das esperanças, da mais absurda

desilusão. Trata-se de embriagar-se até o esquecimento de suas escolhas passadas, do

passado em expectativas de libertação socioeconômicas, das reflexões

comprometedoras e alienadoras do presente. Em suma, do escondimento si mesmo

como sujeito fracassado, inclusive por ter conduzido a outros por um caminho pelo qual

não se pode mais retornar, nem sequer recuperar fragmentos de determinadas

experiências, que se integralmente implementadas podiam lograr algum êxito.

Nos bares, entre outros lugares, muitos membros da hierarquia [é impossível

apresentar um número preciso e definitivo] decidem abandonar o celibato16

. O

abandono do celibato não os impunha o casamento como uma nova condição necessária

de vida. Ainda assim, muitos decidem se casar. O efeito manada produzido pelo

abandono do celibato aprofunda a crise na Igreja, em particular na Igreja do Sul.

Entre aqueles que abandonam o celibato, alguns se aliam ao governo na esperança

de reformar o Estado vigente. A Integração ao corpo político e à burocracia do Estado

para promover as transformações necessárias constitui-se na solução mais evidente.

Assumi-se publicamente o fracasso de suas convicções e oficializa-se o fim do sonho de

uma revolução socialista na América do Sul. No Brasil, o exemplo é frei Betto.

Contudo, logo se decepciona com o governo ao constatar o seu alto grau de corrupção.

A esquerda que chega ao governo, desacostumada com o poder, se perde diante de

tantas possibilidades a fazer. Então, decide reproduzir os atos dos antigos governos, isto

é, lutar com as mesmas armas, adotar os mesmos métodos, até apaixonar-se do poder.

16

O abandono do celibato denota uma realidade mais ampla e complexa do que o abandono do

sacerdócio. Embora ambos tenham implicação socioreligiosa, enquanto o abandono do sacerdócio

expressaria, numericamente, apenas um pequeno número dos ordenados, o abandono do celibato inclui

não somente os ordenados mas também os consagrados e as consagradas, sujeitos/as ao voto de castidade.

4. Época da degenerescência política da Igreja no Brasil (1980-2010): morrem seus

líderes políticos e ressurgem os cantores.

As últimas três décadas de catolicismo no Brasil (1980-2010) reúnem um

conjunto de práticas que caracteriza o período de degenerescência política da Igreja no

país. Assim, a época que poderia ter sido fértil para a Instituição não passa de um

grande e frustrante engessamento, em termos de imobilismo, daquilo que havia sido

chamado de tempo de agiornamento. Com a morte de João XXIII, ondas sucessivas de

papas conservadores impedem o movimento de abertura que a Igreja Internacional

ensaia a partir do Concílio Vaticano II. Embora Paulo VI tenha representado grandes

esperanças para a Igreja, nada fez, e o cargo o permitia fazer, para aproximar a Igreja da

sociedade internacional.

Com a escolha de João Paulo II, assiste-se a movimento ambíguo: se por um lado

o papa se dispõe a maior abertura, sem precedente na história da Igreja, a dialogar com a

sociedade [a debater publicamente sobre diversos temas polêmicos e de manipulação

sensível pela Instituição; a deixar-se filmar de férias em sua casa de campo; a

pronunciar-se sobre questões diplomáticas, com implicações éticas e humanas

delicadas, como a contribuição ou não da Igreja com a política nazista de Hitler; a

visitar inúmeros países nem sempre de maioria católica.

Por outro lado, a postura demasiadamente defensiva da Igreja a dificulta de ousar

significativas mudanças em seu interior. Embora alguns historiadores da Igreja

defendam, para alguns Concílios, o caráter de revolucionário, insisto que sempre que os

seus idealizadores e colaboradores ousaram tal fim, os dirigentes da Instituição trataram

de amenizar o fluxo de seus desdobramentos, a exemplo do que ocorreu com o Vaticano

II. Enquanto um grupo de bispos, padres e leigos discutia sobre os métodos,

instrumentos e meios mais eficazes de implementação das principais “Conclusões” do

Vaticano II, outros representantes da Instituição, inclusive no interior da Santa Sé,

agiam incansavelmente para impedir o avanço de tal empreitada.

A década de 1980 constitui-se em época de desorientação da Igreja. O inimigo

contra o qual a Igreja nos últimos anos luta tem uma identidade inconfundível – é a

violência do governo autoritário. Contudo, a violência do regime não se restringe ao uso

excessivo da força, a qual se soma a ausência de programas sociais. O desenvolvimento,

ou melhor, o crescimento econômico do país durante os sucessivos governos militares

não contempla o desenvolvimento de todos, mas concentra a renda nas mãos dos que

detinham os meios de produção, assim como nas mãos dos que manipulavam o capital

no mercado financeiro, a exemplo dos donos de bancos. Os pobres aguardavam pela

hora em que se iria “dividir o bolo”.

Com o advento da redemocratização, a inércia toma conta da Igreja, que parece

não saber para onde se mover. A recente experiência de apoio concedido pela

Instituição ao governo golpista, que logo frustrara suas expectativas e interesses, havia

possibilitado à Igreja, senão muitos, ao menos um aprendizado, a saber: que

determinada distância do governo civil, ainda que democrático, permitia-lhe

desenvolver suas atividades e defender os seus diversos interesses na arena política

nacional, e de posicionar-se livre e criticamente em relação a ele. De modo que, a

pretensão de uma estreita aproximação com o Estado colocava em questão a sua própria

identidade. O inimigo da Igreja [e da parcela sociedade brasileira não beneficiada pelo

regime] fora derrotado, a instituição mergulha numa espécie de paralisia. O horizonte de

suas possibilidades pastorais mostra-se ofuscado, indefinido, porém, com uma

vantagem - indeterminado.

Nesse contexto de indeterminação, a Igreja passa a assistir o desencadear da

história. O Estado força o seu distanciamento da administração pública. Os seus fieis

mergulham numa onda às segas em direção à secularização. Os meios de comunicação

empenham-se em expor as crises da Instituição, a exemplos dos casos de pedofilia, num

esforço sem precedente de reduzir sua influência sobre a sociedade brasileira. Algumas

iniciativas de trabalho sociais são sustentadas por alguns padres por intermédio de

doações de amigos e de membros de suas respectivas comunidades. Os antigos

orfanatos, de onde se originaram inúmeros padres e freiras, sedem lugar a creches e

casas lares.

Em geral a Igreja se coloca de forma indiferente em relação aos grandes dramas

da sociedade brasileira contemporânea. É verdade que também ela, por meio de sua

hierarquia, confronta-se com o fenômeno da globalização17

. De acordo com Octavio

Ianni, em A era da globalismo, “a globalização do mundo expressa um novo ciclo de

expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance

global” (IANNI, 2001, p. 11). A “irresistível ascensão do neoliberalismo como

ideologia da globalização capitalista nas últimas duas décadas do século passado”

17

Para uma compreensão preliminar da globalização desde uma abordagem mais teórica, passando por

uma descrição do processo de sua formação, até ancorar em uma análise mais complexa do fenômeno da

globalização, sugere-se a leitura de IANNI, Octavio. Teorias da Globalização, 1999; IANNI, Octavio. A

era da globalismo, 2001; IANNI, Octavio. A sociedade Global, 1992.

(BORON, 2009, p. 137), isto é, do século XX, impõe uma série de questões à

humanidade, aos países em desenvolvimento, e por que não à Igreja.

O Anuário da CNBB não nos oferece sequer uma relativa precisão acerca do

número de padres envolvidos em movimentos sociais, e, se o faz, contabiliza apenas os

representantes de comissões e grupos. Nesse caso, a medida adotada para o registro nem

de longe corresponde com a realidade. Para as décadas de 60 e 70, período que coincide

com o regime autoritário no Brasil bem como com o surgimento e a consolidação das

Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o número de líderes religiosos envolvidos em

questões sociopolíticas supera, sem risco de equívoco, a 70% do total. Nos últimos 15

anos, o número de padres políticos aumenta, mas de forma insignificante, se comparado

com o total da população.

O envolvimento desses padres em questões sociais e políticas os expunham à

violência no campo, dos grandes latifundiários, dos coronéis pelo Nordeste, e dos

grileiros de terras no Norte do país; assim como à violência do regime civil-militar de

1964. A partir da segunda metade da década de 1950, com o surgimento e a expansão

das Ligas Camponesas18

pelo Nordeste, com o surgimento do Movimento Sem-Terra

(MST) na década de 80, com a intensificação do problema agrário no Norte do país, em

particular no Pará, o interior do país se torna um barril de pólvora, a dar sinais de

explosão a todo instante. Nos anos 80, muitos padres foram assassinados no Norte do

país, outros tantos sofreram ameaças. Recentemente, o símbolo mais representativo

dessa violência são as constantes ameaças feitas ao bispo de Boa Vista, em Roraima,

por causa da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol.

Nos anos de 1980, a sociedade brasileira ruma em direção à redemocratização. A

Igreja, no entanto, caminha em direção a processo de centralização. O símbolo de maior

expressão desse quadro, para a Igreja no Brasil, tem sua origem na escolha de João

Paulo II para o papado. A estratégia de estreitamente da relação com a Igreja no Brasil,

o maior país católico do mundo, oculta em parte os seus reais interesses. Entre os anos

de 1980 e 2005, João Paulo II inibe o pensar e, em consequência, a produção intelectual

dos teólogos da Libertação. O papa investe incisivamente contra a reflexão teológica de

Frei Betto, intimado a depor junto à Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma.

18

O surgimento e o processo de expansão das Ligas Camponesas pelo Nordeste, bem como o mito de

Francisco Julião, o idealizador dessa organização na zona rural, podem ser encontrados a partir da leitura

de CALLADO, Antônio. Os Industriais da Seca e os “Galileus” de Pernambuco, 1960; BRUNEAU,

Thomas. O catolicismo brasileiro em época de transição, 1974.

Um estudo mais específico sobre o comportamento da Santa Sé em relação à

Igreja Católica no Brasil pode nos evidenciar a relação entre o esforço de

desmobilização da Teologia da Libertação (TdL)19

e o reavivamento de antigos

movimentos e grupos conservadores da Igreja. No esforço de desmobilização da TdL, a

Santa Sé ignora a expansão dos movimentos neopentecostais no país. A Igreja europeia,

uniforme em suas insígnias, atomista em seu pensar, hierárquica em sua organização,

centralizadora em sua administração, conservadora em seu agir atenta sem

constrangimento contra essa nova perspectiva de análise teológica na América Latina.

A Teologia da Libertação empreende, não sem esforço heróico de alguns

teólogos20

, revisão profunda da tradição teológica cristã, de modo crítico e analítico da

realidade humana na América Latina, à luz do Deus libertador. Trata-se de novo jeito de

“fazer” teologia para uma “nova Igreja” que se constrói a partir das exigências de uma

profunda libertação que antecipa mesmo a libertação do Reino de Deus (SOUZA, 2010,

p. 123).

Importa ressaltar que, para além das diferenças e especificidades das abordagens,

os teólogos da libertação expressam unanimidade acerca de uma questão, a saber, “antes

de fazer Teologia é preciso fazer libertação. Sem essa pré-condição a Teologia da

Libertação equivale a literatura” (SOUZA, 2010, p. 123). No interior dessa dialética de

teoria (da fé) e práxis (da caridade) que atua a Teologia da Libertação. Assim, a

Teologia da Libertação consiste em “refletir criticamente à luz da experiência cristã de

fé sobre a práxis dos homens, principalmente dos cristãos, em vista da libertação

integral dos homens” (BOFF, 1976, p. 42). A libertação integral do ser humano diz da

condição do homem todo e de todos os homens, que abrange simultaneamente as

instâncias econômica (da pobreza real), política (das opressões sociais e das

administrações arbitrárias) e religiosa (do pecado).

A defesa da libertação dentro de Continente imerso em situação de opressão não

pode terminar senão em gestos de libertação. A situação de miséria imposta ao povo

19

Além da Teologia da Libertação (TdL), o Movimento de Educação de Base (MEB) e o Método Paulo

Freire de Alfabetização despertam especial atenção dos governos militares, quer na esfera federal quer

nos âmbitos estaduais, porque tais movimentos e método caracterizam-se pelo despertar da consciência

do indivíduo de sua condição de explorado e oprimido para a liberdade. Convém ressaltar que a parcela

conservadora da Igreja no Brasil também temia o MEB e o método de educação de Paulo Freire, por

munir o indivíduo de consciência crítica.

20

Os teóricos de maior relevância na literatura da teologia da Libertação são: Gustavo Gutiérrez, do Peru;

Leonardo Boff, José Comblin, José Oscar Beozzo, Ivone Gebara, do Brasil; Sergio Torres, Ronaldo

Munõz, do Chile; Enrique Dussel, do México; Jon Sobrino, de El Salvador; Juan Luis Segundo, do

Uruguai.

sulamericano não é resultado de determinismos, mas de injustiças. Para Libanio, “o

desenlace dessa realidade se mostra difícil, pois implica a superação de interesses em

jogo. A reflexão sobre o processo de libertação iniciada pela Teologia da Libertação

veio despertar-nos desse sono ingênuo” (LIBANIO, 1976, p. 138).

A América do Sul é, nas décadas de 1960 e 1970, o lugar teológico privilegiado

em virtude dos desafios urgentes que coloca à fé cristã em termos de reflexão e ação.

Um dos maiores teóricos da teologia da libertação, Gustavo Merino Gutiérrez, percebeu

que: “procurar a libertação do subcontinente vai mais além da superação da dependência

econômica, social e política. Consiste, mais profundamente, em ver o devir da

humanidade como processo de emancipação do homem” (GUTIÉRREZ, 1975, p. 121).

Nesse sentido, a teologia da libertação optou por aquele tipo de análise do

subdesenvolvimento, denominador comum entre os países da região, como sistema de

dependência dos centros imperiais. Historicamente a América do Sul viveu na

dependência21

, de sucessivos centros hegemônicos. A saída dessa situação consiste num

processo de ruptura dos laços de dependência e, por conseguinte, na elaboração e

implementação de projeto de libertação nacional auto-sustentado, de modo a considerar

processo de integração regional.

Acresce ainda que na América do Sul as forças repressoras detêm o poder e

tornaram quase impossível a possibilidade de emergência de um movimento organizado

de libertação. De acordo com Leonardo Boff, “diante do regime geral de cativeiro,

muitos, embora aceitem a teoria da dependência, propõem uma mudança do sistema por

meio de mudanças no sistema”. Sendo assim, “urge viver e pensar a partir de uma

situação de cativeiro; deve-se elaborar uma verdadeira teologia do cativeiro. Esta não é

uma alternativa à teologia da libertação; é uma nova fase sua, dentro e a partir de

regimes repressivos” (BOFF, 1976, p. 34; 39).

Também com relação à Doutrina Social da Igreja (DSI) a Teologia da Libertação

tem uma relação estreita. Na medida em que a DSI oferece as grandes orientações para a

ação social dos cristãos, a Teologia da Libertação procura, de algum modo, integrar

essas orientações em sua síntese e ação. Não se trata de alimentar uma relação de

resistência, concorrência ou discriminação. Os teólogos da Teologia da Libertação se

esforçam por compreender a teologia e a Igreja numa articulação da fé como práxis.

21

A “teoria da dependência” resulta de formulação compartilhada atribuída a dois intelectuais da

Universidade de São Paulo (USP). CARDOSO, F. H.; FALETTO, E. Dependência e Desenvolvimento na

América Latina. Ensaio de Interpretação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

Os grandes líderes da Igreja, entre os anos de 1950 e 1980 [dom Helder Camara,

dom Adriano Hipólito, dom Valdir Calheiros, dom Aloísio Lorscheider, dom Eugênio

Sales, dom Paulo Evaristo Arns, dom José Maria Pires (dom Pelé), dom Marcelo

Cavalheira, dom Pedro Casaldáliga] se não morreram, ao menos já receberam a

aposentadoria, e poucos ainda se encontram em atividade, a exemplo de dom Pelé. No

contexto do regime militar, surgem outros líderes [Pe. Lima Vaz, Pe. Luis Sena, Pe.

Almery Bezerra, Frei Carlos Josafá, frei Tito, frei Ivo, Leonardo Boff, Pe. José

Comblin] igualmente representativos de uma Igreja politicamente influente e

participativa. Esses líderes assistem à morte da Igreja que construíram pelos seus pares.

A partir dos anos de 1980, a grande maioria dos bispos escolhidos pelo papa João

Paulo II renunciam - outros não tinham do que renunciar - ao que carregam na cabeça

[isto é, a inteligência, a ousadia, o desejo de renovação] para tão somente sustentar algo

sobre a cabeça [quer dizer, uma mitra], símbolo do poder. O poder é para si, o serviço

deve ser feito, pelo outro, desprovido de poder. À semelhança do que concluirá Jarbas

Passarinho quanto da deliberação crucial pela instituição do Ato Institucional n. 5 (AI-

5): “às favas a consciência”. Esses homens mitrados disputam poder nas arenas em que

seus interesses se encontram diretamente implicados, e em arenas nas quais representam

interesses de outrem, desde que nestas últimas esses interesses não sejam conflitantes

com os seus.

Espera-se dos “atuais líderes” da Igreja a realização de milagres: que administrem

paróquias com parcos recursos financeiros, e em muitos casos também na carência de

recursos humanos; que implementem programa de evangelização suficientemente capaz

de conter a evasão de fieis da Igreja católica para as Igrejas neopentecostais. De alguns

deles pede-se o impossível, isto é, que renunciem a sua principal fonte de renda: as

Igrejas centrais, pelas quais circulam muitos fiéis e dinheiro, nas quais se celebram os

casamentos da elite religiosa e muitos outros sacramentos rentáveis. [Entre outras

possibilidades, reside aqui origem da riqueza de muitos padres, que compram fazendas,

carros importados, fazem turnê pela Europa]. Em contrapartida, justiça seja feita, de

Norte a Sul do país, alguns vivem na pobreza.

O símbolo de maior degenerescência política da Igreja no Brasil nos é

representado pelos padres cantores. “Evangelizar o espírito” como se corpo não tivesse

o sujeito da evangelização. Não nos é preciso esforço extraordinário para concluir que

outros interesses perpassam a exposição midiática de tais figuras, a exemplo do

interesse em compartilhar do comércio lucrativo de CD‟s, DVD‟s, e demais acessórios.

4. Considerações finais

Nos últimos 60 anos (1950-2010), a Igreja [Católica] no Brasil vive dois períodos

distintos: o primeiro (1950-1980), de uma Igreja envolvida nos grandes problemas

sociais e políticos do Brasil [a questão agrária, a sindicalização rural, a oposição ao

regime civil-militar de 1964]; o segundo (1980-2010) de momento neopentecostal da

Igreja com forte desestruturação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

A experiência socialista na União Soviética representa a materialização de uma

ideologia para os países que buscam uma alternativa ao modelo capitalista de

desenvolvimento econômico. Entretanto, a desestruturação do regime soviético significa

o fim de uma utopia, pela qual se pode sonhar, lutar, gastar a vida, morrer.

O regime civil-militar no Brasil é contemporâneo à experiência de socialismo no

Leste europeu. O golpe de 1964 é interpretado por muitos historiadores e cientistas

sociais como estratégia para se conter o avanço do comunismo para a América do Sul,

depois de encontrar espaço de realização na Ilha Caribenha de Cuba. No campo ou na

cidade, a violência do regime [por sua ação ou omissão] afeta a Igreja e aqueles que

com ela se relacionam. É o caso da morte de Pe. Rodolfo, Je. Bosco Bounier, Pe.

Henrique, Marighela, e através das prisões, torturas e desaparecimentos de milhares de

pessoas.

A considerar o comprometimento social e político dos líderes contemporâneos da

Igreja no Brasil, todos, salvo raríssima exceção, morrerão acima da média de qualquer

outro cidadão brasileiro, estimativa atualmente definida em 72 anos de idade para as

mulheres e 68 para os homens. Os padres cantores, esses sim, chegarão aos 100 anos, a

diluir nos corações qualquer sentimento de indignação quanto aos grandes desafios da

sociedade brasileira; morrerão tranqüilos, informados, no leito de morte, de que

contribuíram no esforço de levar o amor ao próximo; morrerão consolados por terem

emocionados, com suas músicas carentes de tudo, inúmeras multidões. Levarão para o

túmulo ao menos uma inquietação, causada pela incerteza da existência de Deus, pois se

este existir, e demonstrar interesse em seus “talentos” e fortuna, certamente lhes

“perguntará” pelo pouco interesse na distribuição de suas rendas bem como pelo pouco

engajamento político de libertação de seus semelhantes colocados à margem. O Espírito

de Deus se tornou light, sem qualquer expressão humana, indiferente diante dos dramas

sociais e dos entraves políticos da humanidade.

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