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A IGREJA [CATÓLICA] EM ÉPOCA DE TRANSIÇÃO (1950-2010):
A INSTITUIÇÃO DO SUL PERDEU O NORTE1
Adenilson Ferreira de Souza2
RESUMO
O presente artigo analisa a história da Igreja [Católica] no Brasil entre os anos de
1950 e 2010. No âmbito internacional, compõe-se o cenário o contexto pós-II Guerra
Mundial, os embates da Guerra Fria e seus desdobramentos e a derrocada do socialismo.
Na arena política regional, a revolução cubana e os movimentos anti-revolucionários
ganham força nas Américas. No plano, o curto período republicano pós 45, o golpe de
1964 e o AI-5. Olhar crítico para o passado da Instituição nos permite identificar o
período em questão [1950-2010] como era de transição. Entre os indicadores de
mudança encontram-se: a alteração das prioridades político-pastorais da Igreja; o
esforço de negação das “Conclusões” do Concílio Ecumênico Vaticano II e de
desestruturação da Teologia da Libertação; a capitalização de atores, entidades e
movimentos conservadores. À semelhança das grandes revoluções, de desdobramentos
imprevisíveis, a incerteza caracteriza uma época em transformação. Entretanto, espera-
se dos eventos em curso o acúmulo de determinado tipo de capital [político, social,
cultural, econômico etc.]. O período delimitado para análise se divide em dois
momentos distintos: o primeiro, de acúmulo de tais capitais [1950-1980] e, o segundo,
de degenerescência de seu comportamento sociopolítico [1980-2010]. Nesse quadro, a
“Igreja do Sul” perdeu o norte.
1 Artigo apresentado no II Fórum de Pós-Graduandos em Ciência Política - evento organizado pela
Universidade Federal de São Carlos (São Paulo) -, entre os dias 20-22 de julho de 2011.
2 Doutorando em Ciência Política da UFMG. Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Minas.
Bacharel em Filosofia e Teologia pela FAJE e Licenciado em História pela UNICAP-PE; ade-nilson-
Introdução
O objetivo central do artigo é analisar a história da Igreja [Católica] no Brasil
entre os anos de 1950 e 2010. O período em questão [1950-2010], a considerar as
transformações ocorridas no interior da Instituição, com desdobramentos para a
sociedade brasileira, caracteriza-se como uma era de transição.
Sem lugar à dúvida, em qualquer associação ou organização política, mudança
significativa no perfil do grupo que a lidera resulta em alteração no rumo e estratégias
de sua atuação em dimensões mais amplas. Importa ressaltar que a mudança de perfil do
grupo que lidera a Igreja nas últimas três décadas altera substancialmente as prioridades
da Instituição que: abandona a zona rural e, por conseguinte, reserva especial atenção
aos setores médios e populares dos grandes centros urbanos; a Teologia da Libertação
que, ao mesmo tempo, oferece o conteúdo teológico e menos doutrinal à ação social de
seus membros mais engajados, recebe duro golpe em sua espinha dorsal com o
surgimento de grupos mais espiritualizantes, a exemplo da Renovação Carismática, ou
com o renascimento de grupos tradicionais, inclusive com o aval do papa João Paulo II.
Embora a Igreja seja considerada, de modo recorrente, uma organização
eminentemente religiosa, os pesquisadores contemporâneos [especialmente, os
historiadores, os cientistas políticos e das religiões, entre outros] não ignoram sua
dimensão política. A Igreja é, em virtude de sua natureza e estrutura, uma organização
política. No caso brasileiro, a Igreja participa de forma decisiva do processo de
redemocratização do país e do esforço de desenvolvimento buscado no início da
segunda metade do século XX. Convém assinalar ainda que, em geral, seus
pronunciamentos produzem ecos em todo o mundo, não nos importando aqui o aspecto
de sua tendência ideológica.
Entre os anos de 1950 e 1980, a Igreja no Brasil se mostra envolvida nos campos
social e político. No plano político, parcela da Igreja - através da ação do grupo
progressista -, se orienta para apoiar as forças sociais [sindicalização rural, as ligas
camponesas, o Movimento de Educação de Base (MEB), a Ação Católica, a Ação
Popular, o Movimento Operário etc.] que trabalham no sentido da realização de
transformações sociais. A sua ação, porém, desenvolve-se no sentido de legitimar o
projeto social dos setores mais progressistas.
Nos últimos 30 anos (1980-2010), assiste-se, no entanto, à morte sucessiva dos
mais expressivos líderes políticos da Igreja, a exemplo de dom Adriano Hipólito, dom
Helder Camara, dom Cândido Padim, apenas para citar alguns. Além disso, outras
tantas personagens foram neutralizadas [como dom Valdir Calheiros, dom Luciano
Mendes de Almeida dom Pedro Casaldáliga], mediante aposentadoria ou transferências
de dioceses [por vezes adotada como forma de ostracismo] pela Santa Sé.
Alguns críticos da Instituição, e me insiro entre eles, consideram que a Igreja
encontra-se órfão no Brasil. Isto é, a Instituição carece de um grupo de membros (leigos
e eclesiásticos) habilidosos, competentes e “carismáticos”, inclusive para coordenar as
atividades desenvolvidas por uma de suas principais entidades no Brasil: a CNBB.
Nesse quadro, ou em decorrência dele, verifica-se o fenômeno dos padres cantores,
desprovidos de carisma, em perspectiva weberiana, bem como dos instrumentais
teóricos e técnicos exigidos por sua profissão: o saber filosófico, teológico, sociológico,
administrativo, da psicologia social e não menos importante da própria religião.
A partir do exposto, faz-se mister saber que a Igreja [Católica] possui alguns
componentes reveladores de sua identidade. Embora sem oferecer uma distinção
suficientemente clara desses componentes, Thomas Bruneau, em O catolicismo
brasileiro em época de transição, evidencia quatro componentes distintos: “a
mensagem”, “a instituição”, a “Igreja nacional”3 e a “Igreja Universal”
4 (da qual é parte
a “Igreja nacional”). Essas duas últimas dimensões se entendem como “relações”. Em
palavras do próprio Thomas Bruneau, “as duas relações são as da Igreja nacional com a
Santa Sé, ou centro da Igreja Universal, e com o Estado, dentro de cujas fronteiras a
Igreja está localizada” (BRUNEAU, 1974, p. 14).
Imposta salientar que, todo e qualquer estudo sobre a Igreja deve levar ainda em
consideração a dimensão de seu discurso e de sua prática. Em outros termos, nem
sempre seus discursos são efetivados, assim como nem sempre suas práticas resultam de
discurso previamente articulado. Além disso, nem sempre a corrente (ou as correntes)
responsável pela elaboração do discurso incumbe-se de sua implementação.
3 Thomas Bruneau, como se pode constatar, faz uso da expressão “Igreja nacional”. Com efeito, salvo
algumas raras exceções, tais como: Portugal, no tempo de Marquês de Pombal (séc. XVIII) e Inglaterra
(desde Henrique VIII), não coincide com a realidade falar estritamente em “Igreja nacional”, quando o
que se observa historicamente é a Igreja em âmbito nacional.
4 A expressão “Igreja Universal” também precisa ser redefinida, pois abriga imprecisão e ambiguidade. A
aplicação da expressão “Igreja Universal” à Igreja Católica em âmbito internacional pode, no mínimo
proporcionar ocasião de confusão, em nível de interpretação, com a “Igreja Universal do Reino de Deus”.
Assim, convém adotar a expressão Igreja Católica em âmbito transnacional ou internacional.
1. A revolução como símbolo de uma geração
Na política internacional, a ocorrência da II Guerra Mundial (1938-1945) “acelera
a crise do colonialismo político e, por conseguinte, o processo de descolonização
mediante lutas de libertação nacional. Os movimentos de libertação nacional ganham
força na Ásia, mas, sobretudo, na África”. Além disso, assiste-se ao “declínio da Europa
como centro da política mundial e da diplomacia de equilíbrio de poder” (SOUZA,
2010, p. 27). Ao término do conflito, a geopolítica mundial organiza-se sob sistema
bipolar, centrado nas formações socioeconômicas capitalistas e socialistas. Faz-se
necessário contabilizar entre os desdobramentos do fim da II Guerra, a consolidação da
hegemonia política, militar e econômica dos Estados Unidos da América (EUA).
Entretanto, a composição do Bloco Soviético no leste europeu, sob sistema
socialista em via de implantação do comunismo, força as potências europeias e os EUA
a conviverem com o diferente, a dividir interesses, força, poder e influenciar sobre as
demais nações do globo. Nesse quadro, desenvolve-se estratégia política que se
convencionou chamar de Guerra Fria. Nesse período, não se registra nenhum conflito
armado no interior dos blocos. Isso não quer dizer que não houve guerra no mundo; o
que se quer afirmar é que essas guerras se deslocaram para as periferias dos blocos
(Coreia em 1950, Vietnã em 1954, Vietnã entre 1965-1975), desenhadas apenas como
áreas de influências dos mesmos5. Alguns especialistas em Relações Internacionais, a
exemplo de Rob Walker (2005; 2006), que defendem a existência de áreas não
influenciáveis por qualquer uma das superpotências.
A II Guerra desenrola-se no entorno da geopolítica européia. Nesse contexto, os
EUA assiste, porém, não passivamente, ao declínio da Europa enquanto se prepara para
consolidar sua hegemonia. A indústria norte-americana agora o lugar de responsável por
mais da metade da produção do mundo. O pós Guerra, no entanto, caracteriza-se por
enorme euforia particularmente dos povos europeus, pois revela um mundo em
possibilidade. Decretado o fim do conflito, não se sai prioritariamente em busca de
culpados, mas em concentrar esforços na criação de alternativas eficientes para a
reconstrução dos países europeus arrasados em suas estruturas.
5 Sobre o comportamento dos EUA e da URSS durante o período da “Guerra Fria” recomenda-se a leitura
de HOBSBAWM, Eric. Guerra Fria. In: HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX –
1914-1991, p. 223-252.
O cenário internacional do pós-II Guerra assiste a outras alterações. “Em nível
mundial observa-se a formação de novos regimes socialistas, como resultado da
participação soviética na guerra” (VIZENTINI, 2004, p. 116). Se a guerra permite a
expansão qualitativa e quantitativa do capitalismo norteamericano, o crescimento do
socialismo dá-se mais em termos extensivos. A União Soviética (URSS) ascende à
condição de superpotência e, internacionalmente, seus adversários tiveram que aceitar a
sua existência. A partir de então, percebe-se sistema internacional bipolarizado e sob
influência das duas superpotências (EUA e URSS)6.
A estratégia de “Guerra Fria” representa opção por confronto ideológico, mais
do que econômico, entre os EUA e a URSS. Em termos objetivos, a peculiaridade da
Guerra Fria se mostra na inexistência quase absoluta de perigo iminente de guerra
mundial. O historiador Eric Hobsbawm atribui à “balança de poder desigual” condição
para a manutenção da paz entre as superpotências:
Os governos das duas superpotências aceitaram a distribuição global de
forças no fim da II Guerra, que equivalia a equilíbrio de poder desigual. A
URSS controlava parte do globo, ou sobre ela exercia predominante
influência e não tentava ampliá-la com o uso de força militar. Os EUA
exerciam controle e predominância sobre o resto do mundo capitalista, além
do hemisfério norte e oceanos, assumindo o que restava da velha hegemonia
imperial das antigas potências coloniais (HOBSBAWM, 2001, p. 224).
Assim que a URSS adquire armas nucleares (1949) e bomba de hidrogênio (1953)
- sempre tempos depois dos EUA -, as duas superpotências claramente abandonam a
guerra como instrumento da política. “Ambos usaram ameaça nuclear em algumas
ocasiões: os EUA para acelerar as negociações de paz na Coréia e no Vietnã (1953,
1954), a URSS para forçar a Grã-Bretanha e a França a retirar-se de Suez em 1956”
(HOBSBAWM, 2001, p. 227). Os britânicos conseguem bombas próprias em 1952,
com o objetivo de afrouxar sua dependência dos EUA; os franceses e os chineses na
década de 1960. Nas décadas de 1970 e 1980, outros países conseguem a capacidade de
fazer armas nucleares, notadamente Israel, África do Sul e provavelmente a Índia, mas
essa proliferação nuclear só se torna problema internacional sério após o fim da ordem
bipolar de superpotências em 1989.
Embora o aspecto mais óbvio da Guerra Fria seja o confronto militar e a frenética
corrida armamentista no Ocidente, não é esse o seu grande impacto. As guerras sempre
produzem consequências para os Estados mais fracos mesmo quando não envolvidos
6 Há autores em Relações Internacionais, à semelhança de Rob Walker (2005; 2006), que defendem a
existência de áreas não influenciáveis por qualquer uma das superpotências (EUA e URSS).
diretamente no conflito. A Guerra Fria também produz consequências para os países
subdesenvolvidos. Embora não tenha conseguido impedir a eclosão dos movimentos de
libertação nacional na África e Ásia, estabiliza estado de coisas essencialmente
provisórias. A Alemanha, dividida, constitui-se em exemplo mais óbvio dessa realidade.
No âmbito regional, a década de 1950 inaugura o período de profundas
inquietações políticas nas Américas7. Em 1959, Cuba decide sustentar no arco de uma
revolta armada a sua pretensão de reforma estrutural do Estado. Os desdobramentos do
movimento revolucionário implantam um regime socialista bem à sombra dos EUA. A
implantação do socialismo na Ilha - que, em princípio, não se figura na pauta do
movimento revolucionário -, resulta mais da resistência dos EUA aos postulados do
movimento do que uma real simpatia deste com o regime soviético. O movimento que
se pretendia antioligárquico se torna antiimperialista, e rompe com o próprio
capitalismo, para o qual se volta no final da primeira década do século XX, mediante
“reforma do Estado” sob o signo da abertura de mercado.
A solução cubana repercute na maioria dos países da região, para os quais a
possibilidade de transformação social não mais dependia de adaptações do modelo de
desenvolvimento capitalista, mas da ruptura com o capitalismo. Neste sentido, houve
importante mudança no comportamento de setores da esquerda latinoamericana, de
modo que suas mobilizações não mais correspondem às tradicionais. A exemplo do que
ocorre em Cuba, o interesse por reforma do Estado toma conta das sociedades
latinoamericanas. Obviamente, os Estados Unidos não permanecem impassíveis a esses
movimentos.
Em janeiro de 1962, ocorre a reunião da Organização dos Estados Americanos
(OEA), em Punta del Este, na qual se decreta o bloqueio continental à Revolução
Cubana. Ainda em 1962, os militares peruanos antecipam-se à posse do populista Haya
de la Torre e ocupam o poder; em 1963, golpe militar derruba o governo do moderado e
confiável Juan Bosch, na República Dominicana; em 1964, caem os também populistas
João Goulart do Brasil e Paz Estenssoro da Bolívia; em 1965, as tropas da OEA,
capitaneadas pelos EUA, intervêm e impedem uma restauração democrática na
República Dominicana; em 1966, as Forças Armadas ocupam o poder na Argentina; em
1968, novamente os militares assumem o governo no Peru; em 1973, chega ao fim a
7 No Brasil, na década de 1960, o tema da revolução emerge como símbolo de toda uma geração de
intelectuais, a exemplo de FURTADO, Celso. A Pré-Revolução Brasileira, 1964; PRADO JR., Caio. A
Revolução Brasileira, 1966. FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil, 1974.
experiência socialista chilena com o sangrento assalto ao poder por Pinochet; também
no mesmo ano, deixa o Uruguai de ser a “Suíça da América Latina”; em 1976, mais
uma vez os militares ocupam o governo argentino após curto interregno de governantes
civis. Se somarmos a estes os países latinoamericanos onde as antigas oligarquias
mantinham-se graças às Forças Armadas, podemos constatar que “na década de 70
apenas o México, a Colômbia e a Venezuela não haviam apelado para golpes militares
como solução para seus problemas” (GUAZZELLI, 2004, p. 28).
No âmbito da política doméstica, os movimentos sociais e políticos por reformas
do Estado se chocam com o movimento conservador da direita, que decide por uma
estabilidade autoritária. Logo, a solução encontrada se efetiva no o golpe civil-militar de
1964, cuja expressão maior de violência e injustiça se percebe nas estruturas sociais,
políticas e econômicas do país. Desde então, com incalculável apoio do serviço de
inteligência dos EUA, “elaboraram-se programas de treinamento para militares,
incrementou-se o auxílio técnico e material para as Forças Armadas e, especialmente,
ideologizou-se a contra-insurgência na Doutrina de Segurança Nacional, que fazia da
oposição interna o alvo das Forças Armadas” (PINHEIRO, 1986, p. 587). Constata-se a
primazia do tema da Segurança Nacional, quer em perspectiva doméstica (isto é, o
subversivo representava risco à ordem, à estabilidade nacional), quer regional (ou seja,
países como a Argentina, de maior poder militar ofensivo passou a ser visto como
potencial ameaça à soberania nacional), acima inclusive dos direitos liberais e de
expressões democráticas (SOUZA, 2010, p. 36).
Em oposição à investida dos governos militares contra as formas de expressões
democráticas, e, antes mesmo destas, dos direitos fundamentais, posicionam-se
instituições como a OAB e a Igreja Católica, e entidades como o movimento estudantil
e a CNBB. Convém afirmar que nenhuma delas, através de seus membros, apóia
unânime ou homogeneamente a alteração do regime de governo do democrático para o
autoritário. Na contramão do AI-5, juristas como Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e
Evandro Lins e Silva concediam hábeas corpus às petições de advogados que defendem
concidadãos detidos equivocadamente sob o signo da segurança nacional. A Igreja, no
entanto, divide-se politicamente. Parcela da Igreja considerada “progressista”, cujo
principal representante é a pessoa de dom Helder Pessoa Camara (1909-1999), passa a
tecer duras críticas ao governo, desde sua política econômica até sua estratégia de
segurança.
2. A Igreja [Católica] 8
em época de transição (1950-1980)
O período entre os anos de 1950 e 1980 caracteriza-se como uma era de transição.
Os eventos sociais, políticos, religiosos, econômicos e culturais se sucedem num ritmo
sem precedentes na história recente do Brasil. Os movimentos sociais se organizam e
expandem-se. A instabilidade política dos anos 50 cede lugar a período de “ordem
estabelecida” ou de “desordem institucionalizada” dos governos militares (1964-1985).
A Igreja inaugura a década de 1950 com a criação da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB), em 1952. A entidade teve o seu estatuto aprovado em 1958. A
Igreja Internacional9 por sua vez abre a década de 1960 com o maior evento de sua
história contemporânea, o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). O curto
período de crescimento econômico (1968-1974) fora considerado por Celso Furtado
como “o mito do desenvolvimento econômico” (FURTADO, 1974). Na verdade, os
governos do período apenas valorizam o forte potencial do mercado interno.
No que diz respeito à Igreja institucional no Brasil, esta desempenha novo papel
de apoio aos elementos de modernização na sociedade em geral. Entretanto, estudando a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961, percebe-se claramente que a
Igreja não se coloca monológica nesse novo papel, e as disputas internas em torno do
Movimento de Educação de Base (MEB), do sindicalismo rural, da Ação Católica,
sinalizam que há algo menos do que unanimidade na questão da missão na mudança
social. Contudo, alguma coisa fora do comum ocorre na Igreja do Brasil, que a coloca à
frente de qualquer outra Igreja, salvo a do Chile, e essa atuação sem precedentes fora
desencadeada pela CNBB.
A CNBB pode ser definida como a entidade de representação de toda a hierarquia,
e na qual cada membro da mesma se vê representado. No início do século XX, os mais
expressivos bispos do Brasil, a exemplo de dom Arcoverde, dom Leme e dom Jaime,
8 A expressão Igreja Católica denota uma realidade mais ampla do que o termo Instituição é capaz de
abarcar. Ora, há muitos fieis que participam ativamente da Igreja, porém, por uma ou mais razões, não
são contabilizados como membros da Instituição. A participação na Instituição pressupõe, ainda que
potencialmente, a condição de receber ou assistir a todos os sacramentos.
9Adoto a expressão “Igreja internacional” em substituição a “Igreja universal”, pois esta pode reservar
algumas imprecisões ou ambiguidades, na tentativa de dizer algo acerca da identidade da Igreja Católica
(Apostólica) Romana. A expressão Igreja internacional poderá ser entendida ainda, em usos futuros, em
relação à Igreja em âmbito nacional. Além disso, o uso da expressão Igreja internacional pretende
diferenciar a Igreja Católica da Igreja fundada por Edir Macedo, sob o nome estendido de Igreja
Universal do Reino de Deus, porém, conhecida popularmente por Igreja Universal.
cardeais do Rio, bem como outros membros estratégicos da hierarquia, são oriundos do
Sul ou do Sudeste. Através da CNBB, os bispos do Nordeste se tornaram os mais
estratégicos e proeminentes. A lista seguinte mostra que a maioria dos bispos dirigentes
da CNBB vem do Nordeste: “Helder Camara (CE); Carlos Carmelo Mota (MG); Carlos
Coelho (PB); Luiz Mousinho (PE); José Delgado (PB); José Távora (PE); Eugênio
Sales (RN); Fernando Gomes (PB) e Manuel Pereira (PE)” (BRUNEAU, 1974, p. 198).
Dentre os nove bispos, oito são do Nordeste, um do Sudeste, e nenhum do Sul. A
predominância dos bispos do Nordeste é ainda mais significativa se compararmos o seu
coeficiente com a totalidade da hierarquia. Os dados para 1966 mostram total de 178
bispos nascidos no Brasil. Há mais 65 de naturalidade estrangeira, mas são
relativamente pouco importantes em termos de participação, de política eclesiástica.
Nos oito Estados do Nordeste (excluindo a Bahia que por razões históricas funciona de
modo diferente) há total de 35 bispos, ou seja, cerca de 19% da hierarquia nascida no
país. Minas Gerais, com 43 bispos, compreende 24% do total. O Sul, com o Rio Grande
do Sul, Santa Catarina e Paraná, tem 36 bispos, que perfazem cerca de 20% do total.
É evidente que a vasta maioria da CNBB e dos bispos preocupados com o
problema social vem do Nordeste, em proporção substancialmente mais alta do que se
podia prever. A CNBB compôs a base da nova abordagem de influência da Igreja -
composta por dom Helder e outros bispos do Nordeste da mesma mentalidade - de
forma que a Ação Católica, ao mesmo tempo em que serve de estímulo para a CNBB,
só pode evoluir por causa dela.
A interação entre os militantes da Ação Católica e os bispos da CNBB, de
perspectiva progressista, era recíproca:
Ajudavam-se mutuamente na formulação do novo modelo de influência. A
CNBB financiava a ACB e eram os membros desta organização que, em
grande parte, trabalhavam nos projetos da Igreja. O fato da CNBB existir foi
decisivo para a ACB. Anteriormente, a Ação Católica seguia o modelo
italiano, sob a jurisdição direta dos bispos locais. Agora, a Ação Católica era
nacional, diretamente afiliada à nova Conferência Nacional dos Bispos, de
quem recebia a mandato. Era no plano nacional que se realizavam os
encontros, se estabeleciam as diretrizes, se distribuíam os recursos, etc. E
tudo isso sob a direção do grupo restrito e progressista da CNBB que, ele
mesmo, se beneficiava das perspectivas nacionais (BRUNEAU, 1974, p.
199).
A Ação Católica tinha assim mais autonomia do que jamais tivera antes, podendo
responder às solicitações do meio segundo suas próprias orientações e prioridades. Mais
tarde, quando surgiram os problemas entre a ACB e os bispos, muitos deles vieram
perceber a importância do plano nacional para a ACB. Apesar da aprovação (ou
desaprovação) oficial dos novos objetivos e comportamento da Ação Católica, todos
concordavam em que a perspectiva nacional, sob a direção da CNBB, foi estratégica em
permitir – e mesmo encorajar – a evolução da ACB para uma organização ativa de
vanguarda10
.
No final dos anos 1950 e início da década de 1960, inicia-se no Brasil o
deslocamento de alguns setores da Igreja (isto é, parcela da hierarquia eclesiástica e dos
leigos), no sentido de maior aproximação com os grupos marginalizados (camponeses e
operários), como as forças sociais que se mobilizam em prol de transformações das
estruturas sociais. Inicia-se então a ruptura do núcleo duro da Instituição. Os setores que
se deslocam, passam da defesa da “estabilidade social” a critica sociopolítico da
realidade econômica brasileira, e do próprio modo de atuação da Igreja.
Pierre Bigo e Fernando Bastos de Ávila se questionam “por que a Igreja se
interessa pelo social?”. Para Bigo e Ávila, “a resposta é simples: porque o social é um
campo da atividade humana, do ser do homem, e nada do que é humano é indiferente à
Igreja. Ela é „perita em humanidade‟” (BIGO & ÁVILA, 1982, p. 9).
Não obstante, a hipótese de que a existência da miséria tenha estimulado mudança
de comportamento da Igreja se mostra pouco convincente em face da ação dos próprios
miseráveis, dentro de situação em conflito. Desse modo, não se trata de estratégia da
velha Igreja para ampliar suas dimensões, “capital político”, poder de influência e
manobra, mas de ação exógena a promover transformação de mentalidade e de
preferências no interior de nova Igreja no país, a “Igreja da Libertação”.
Não nos é possível afirmar, isento da possibilidade de erro, se o comportamento
do clero fora influenciado pela Teologia da Libertação nascente e em fase de
consolidação ou se a Teologia da Libertação surge a partir da reflexão da comunidade11
,
a partir de um novo comportamento da Igreja, inclusive hierárquica, mais comprometida
com a dimensão social das pessoas, fieis ou não. A preocupação com o humano é posta
em relevo sem no entanto abrir mão da dimensão religiosa, transcendente e
institucional. Trata-se da constituição de uma gramática do “humanismo teocêntrico”. O
10
A pesquisa do CERIS confirma a observação de que a ACB desvencilhou-se do contato direto com os
bispos diocesanos locais - de quem esperavam receber assessoria, orientação e encorajamento, porém, por
vezes, ignorada - para ocupar espaço nacional.
11 A definição do elemento causador [se a produção teológica ou se a realidade das comunidades] exige o
desenvolvimento de um estudo mais específico sobre o assunto. No escopo dessa pesquisa, limitamo-nos
a assegurar que esses fatores atuam numa dinâmica de mútua causalidade.
teórico brasileiro de maior expressão do “humanismo teocêntrico” é o Pe. Henrique
Cláudio de Lima Vaz; e o mais expressivo propagador desse humanismo no Nordeste é
dom Helder Pessoa Camara.
A queda do socialismo resulta em inúmeras implicações para a política. No caso
da esquerda política brasileira, o golpe civil-militar frustrou, se é que detinha, qualquer
projeto de implantação do regime bolchevista no país. O regime autoritário no Brasil
durou tempo o suficiente para que a esquerda revolucionária assistisse a derrocada do
regime soviético, e abandonasse o seu intento de revolução socialista. Na década de
1970, oitenta e cinto por cento dos membros da hierarquia da Igreja no Brasil se
mostrava favorável à deflagração de revolução socialista.
A Igreja no Brasil se encontra informada acerca das consequências, para ela, da
implantação do regime na Europa Oriental, ainda assim está disposta a pagar o preço na
América, apostando que pudesse ter um tratamento diferente se participasse do processo
revolucionário. O silêncio diante da injustiça que assolava [e grassa] a região, esse sim,
poderia lhe custar o lugar que sempre imagina ter por “direito natural”, que certamente
lhe seria subtraído pelo governo revolucionário.
Não nos é possível averiguar se a Igreja acertara em seu cálculo, pois o governo
revolucionário não veio, e o que veio - o regime autoritário - não lhe permitiu participar
intensamente do governo. Há, no entanto, um cálculo que a Igreja nunca se predispôs a
fazer, qual seja, o de suas perdas com a derrocada do regime socialista soviético. A
Igreja enfrentara a maior de suas crises recentes.
A grande expectativa da Igreja, ou melhor, da parcela da Igreja que apoiava a
esquerda política em seu projeto revolucionário recaia sobre a esperança de que a URSS
resolvesse [ou ao menos amenizasse] suas grandes contradições internas, que se
traduziam em entraves ao desenvolvimento.
No Brasil, a Igreja enfrenta o seu principal inimigo, o regime militar, de quem
uma parcela se aparta desde meados de 1964, e do qual a maioria se distancia e faz
oposição desde 1968, quando da promulgação do Ato Institucional n 5 (AI-5). A
redemocratização do país, em 1985, desperta grandes esperanças na Igreja, contudo, os
seus grandes líderes se encontram esgotados. O tempo havia colocado a todos fora de
combate. O melhor diagnóstico da situação permite afirmar que, o tempo havia aplacado
neles o espírito revolucionário.
3. A “Igreja do Sul” perdeu o Norte
A Igreja [Católica] da América do Sul pode ser definida, em razão de sua
organização e expressão regional, como a “Igreja do Sul”12
. A expressão “Igreja do Sul”
pretende substituir o chamamento de “Igreja latinoamericano” por entender que este
sustenta uma carga preconceituosa imputada pelas Igrejas e sociedades dos EUA e da
Europa. A Igreja no Brasil é representativa da “Igreja do Sul”.
A dimensão política da sociedade brasileira exige maior envolvimento da Igreja,
de forma crescente e contínua, na arena de participação política13
. Por vezes, solicita-se
a participação da Igreja em determinados fóruns de debate no intento de diversificar os
discursos e aumentar a representatividade, característica fundamental da experiência
democrática. A participação ativa promove o exercício da escolha, e este implica
decisão política.
A Igreja católica nas últimas três décadas [1980-2010] encontra-se desnorteada.
Lamenta, sem sucesso, a falta de uma forte ideologia. A derrocada do socialismo
representa mais do que a simples queda pacífica14
do Império soviético. Para a Igreja, a
dissolução do Império soviético simboliza o fim de uma de suas principais ideologias
nos últimos tempos.
Para a Igreja do Sul, a dificuldade de consolidação do comunismo na União
Soviética representa mais do que uma simples experiência mal sucedida, significa sim o
fim de uma utopia, cultivada e suportada a custo de muitas vidas e sonhos. De modo
que, assim que se constata a impossibilidade do comunismo mediante processo de
desestruturação do socialismo soviético, a Igreja do Sul desorientada perdera o seu
mastro, leme e norte.
A Igreja do Sul perde o seu mastro, cuja expressão maior se encontra na ideologia
socialista. Com a queda de Nikita Kruschev, ascende ao poder Leonid Brejnev (1964-
12
Adoto a expressão “Igreja do Sul”, para referir-se à Igreja espalhada pela América do Sul, por entender
que a “expressão latinoamericana” veicula, para além de mera percepção linguística, uma concepção [ou
melhor, uma compreensão] preconceituosa imputada pelos europeus e “norte-americanos” [entendidos
como a Igreja do Norte] contra os povos [e suas culturas] da América do Sul.
13
O judaísmo antigo, com o qual o cristianismo se relaciona e de quem é ao mesmo tempo herdeiro e
devedor, caracterizava-se por uma forte interrelação com o mundo político. Eventos como a escravidão
no Egito, o exílio da Babilônia, o retorno à “terra prometida” narram experiências resultantes de
deliberações políticas unilaterais desfavoráveis a Israel.
14
Nenhum sovietólogo, da Europa Ocidental ou dos EUA, previra a dissolução do Império soviético de
maneira pacífica. Entre os anos de 1960 e 1989, era quase unânime a convicção de que a queda do regime
soviético envolveria muita tensão, e provavelmente até conflito bélico.
1982), cujo governo retoma internamente o centralismo político-administrativo,
reprimindo as dissidências. No plano econômico, a URSS de Brejnev não só perdera
ritmo produtivo, diminuindo as taxas de crescimento, como também envolvia-se cada
vez menos no comércio mundial. Para efeito de comparação, o PIB soviético, que
crescera 5,7% ao ano na década de 1970, foi declinando para chegar a 2% na primeira
metade dos anos 80, época do final do governo Brejnev.
A Brejnev sucederam curtos governos da velha guarda soviética: Iúri Andropov
(1982-1984) e Konstantin Tchernenko (1984-1985), que mantiveram a deterioração
política interna e externa e os elevados custos na manutenção da guerra do Afeganistão.
À morte de Tchernenko seguiu-se o governo de Mikhail Gorbatchev (1985-1991),
responsável por profundas alterações na União Soviética. No plano interno, Gorbatchev
deu início, com sua política de abertura, à mais ampla reforma econômica e política da
União Soviética, que se irradiou para os demais países que compunham o bloco
comunista. O ponto alto na política interna foi o fim do monopólio do Partido
Comunista soviético, o que possibilitou o retorno do multipartidarismo e a instauração
de eleições diretas para 1994. As mudanças políticas, entretanto, estimularam, nas
quinze repúblicas que compunham a URSS, crescentes movimentos nacionalistas, os
quais buscavam, não raramente, a independência e colocavam em risco a própria
existência da URSS.
As dificuldades econômicas soviéticas expunham o bloco a crescentes críticas.
Enquanto se multiplicam as dissidências internas, no plano internacional ganha fôlego a
ofensiva anticomunista do governo Donald Reagan. A partir de 1987, Gorbatchev assina
com Reagan acordos de eliminação dos mísseis de médio e curto alcance, localizados na
Europa e na Ásia, além de entendimento sobre questões que abrangiam desde direitos
humanos até problemas regionais das superpotências.
Em agosto de 1991, membros da burocracia conservadora afastaram Gorbatchev
do poder, no intuito de reverter o quadro político-econômico da União Soviética, que
beirava o descontrole. O golpe final contra Gorbatchev deu-se em dezembro daquele
mesmo ano, quando a Rússia de Bóris Yeltsin, presidente da principal república
Soviética, a Rússia, e líder dos ultra-perestroikistas, juntamente com Ucrânia e Bielarus
assinaram o Acordo de Minsk (capital de Bielarus), proclamando o fim da Uniao
Soviética e a criação da Comunidade de Estados Independentes (CEI).
Após a derrocada do socialismo no Leste europeu e, por conseguinte, o fim da
União Soviética, cada um dos ex-países socialistas enfrenta crises econômicas e
políticas. A abertura de seus mercados ao capitalismo internacional e a desmontagem da
ordem socialista favoreceram a emergência de uma nova elite econômica, em grande
parte descendente das criticadas elites burocráticas que ocupavam os altos cargos
administrativos do período anterior.
A Igreja internacional, e não apenas a Igreja do Sul, perde o seu leme, isto é, as
“Conclusões” do Concílio Ecumênico Vaticano II, sendo este o maior e mais expressivo
evento da Igreja no século XX. O papa João XXIII, que amadurecera sozinho a ideia de
novo Concílio, surpreendera a todos com o anúncio de sua decisão em janeiro de 1959
[o último Concílio, o Vaticano I, ocorreu em 1870, portanto, a mais de um século
antes]. Toda a Igreja, e não apenas a hierarquia, bem como a opinião pública
internacional se mostrou perplexa diante do anúncio. A perplexidade de todos
assentava-se sob determinadas convicções: 1) que João XXIII, escolhido para o cargo
para garantir à Igreja uma tranquila transição, era considerado velho para encaminhar
temas contraditórios e resolver questões polêmicas; 2) o clima de “guerra fria”, ainda
que permitisse a abertura do Evento, não assegurava a perspectiva de desenvolvimento e
conclusão dos trabalhos; 3) o anúncio se tratava de um novo concílio, o “Vaticano II”, e
não de conclusão de temas abertos e trabalhos incompletos do Vaticano I, em 1870.
Em outubro de 1962, o papa João XXIII celebra solenemente a abertura do
Concílio. Nos primeiros meses de 1963, as condições de saúde do Papa
progressivamente se agravavam, embora sem impedi-lo de seguir de perto os trabalhos
das comissões e de inclusive publicar a encíclica Pacem in terris. O junho desse mesmo
ano, João XXIII faleceu, e seu sucessor, o cardeal João Batista Montini, o papa Paulo
VI, elogiou os esforços de seu antecessor e determinou a continuação do Concílio,
contrariando o interesse da ala conservadora da Igreja. Paulo VI encerrara o Concílio
em 1965. O Vaticano II legava à Igreja Decretos como Ad gentes – sobre a atividade
missionária da Igreja, e Unitatis redintegratio – sobre o ecumenismo; Declarações
como Dignitatis humanae – sobre a liberdade religiosa; e Constituições como Dei
Verbum – sobre a Revelação de Deus, Gaudium et spes – sobre a Igreja no mundo,
Lumen gentium – sobre a Igreja, Sacrosanctum Concilium – sobre a liturgia.
Embora considerado um papa dinâmico, criativo, Paulo VI mantivera ao seu redor
lideranças que faziam forte oposição à implementação das “Conclusões” do Vaticano II.
Se bem aproveitadas, tais “Conclusões” poderiam ter orientado a Igreja na formulação
de suas novas estratégias missionárias e de envolvimento na política internacional. As
Conferências Gerais do Episcopado Latinoamericano e do Caribe (CELAM),
sobretudo a II e III, a de Medellín, na Colômbia em 1968, e Puebla de los Angeles, no
México em 1979, respectivamente -, se orientadas para esse fim, teriam logrado êxito.
A Santa Sé, entidade representativa da Igreja internacional, e não precisamente a
Igreja europeia, se recusa a se deixar guiar pelo seu leme – as “Conclusões” do
Concílio. O retraimento fora a postura adotada pela Igreja do Norte, que passara a
considerar uma ameaça [inclusive de comunismo] a tudo o que fosse endereçado a ela
pela Igreja do Sul. Para aquela parcela da Igreja, tornara-se difícil, tarefa quase
impossível, aproveitar as “Conclusões” do Concílio em parte. Logo, a solução
encontrada fora recusá-lo no todo. Sendo aquela parcela da Igreja representativa na
Santa Sé, empenhara-se no boicote das “Conclusões” do Concílio, quando da tentativa
de implementação das mesmas pelas Igrejas locais15
. A Igreja do Sul, nos anos
subsequentes ao Concílio, promovera a revisão das antigas reflexões e práticas cristãs,
opção que resultara na formação da Teologia da Libertação.
O papa Paulo VI, que coordenou o Concílio, em Assembleia Extraordinária da
Conferência Episcopal Latinoamericana e do Caribe (CELAM), em Mar del Plata, na
Argentina, em 1966, assegura que: “a Igreja pode contribuir para difundir o ideal de
integração, despertando nos cristãos a convicção de que os próprios destinos nacionais
somente serão alcançados dentro da solidariedade internacional, formando uma
consciência supranacional (CELAM, 1966, p. 13).
A Igreja do Sul fora obrigada a distanciar-se do governo [salvo raros casos, a
exemplo da Argentina] desde a elevação ao Executivo federal de representantes das
Forças Armadas. Entretanto, a Instituição permanecera envolvida nas questões
socioeconômicas, a ponto de defender que o processo de desenvolvimento e integração
da América do Sul devia ser por ela estimulado. Haja vista, ninguém pode resolver,
isoladamente, os problemas da sociedade internacional, nem sequer de nossa América.
A preparação, tanto para a participação política como para a defesa da justiça, requer o
empenho da hierarquia. Não obstante, aos leigos competia “a responsabilidade inadiável
da ação social e política, capaz de dar às comunidades nacionais aquele poder supremo
sem o qual se tornam impossíveis as reformas profundas da estrutura social” (CELAM,
1973, p. 44). Os desequilíbrios econômicos e sociais bem como a instabilidade política
põem em risco a paz no Continente.
15
As dioceses são entidades e instâncias administrativas legitimamente constituídas pela Igreja, segundo
o modelo de organização hierárquico vigente. Na prática, existem são as Igrejas locais das quais as
dioceses são expressão simbólica de unidade pastoral regional.
A Igreja do Sul, por diversas razões, perde o seu norte. Em outros termos, a Igreja
do Sul se desorienta, quando vê distanciar a perspectiva da libertação que havia criado a
partir da ideologia socialista. Como consequência, a maior parcela dos que compõem a
hierarquia da Igreja [os presbitérios (diocesanos e religiosos), os religiosos e as
religiosas, e os membros de institutos diocesanos], em número até então desconhecido,
abandona as suas funções ministeriais, os seus trabalhos e residências, e ruma por um
dos três caminhos: 1) o bar, para aliviar as frustrações e decepções; 2) o abandono do
celibato para dar-se a casamento; e, por fim, 3) aliar-se ao governo.
A opção de ir ao bar simboliza ato de perda das esperanças, da mais absurda
desilusão. Trata-se de embriagar-se até o esquecimento de suas escolhas passadas, do
passado em expectativas de libertação socioeconômicas, das reflexões
comprometedoras e alienadoras do presente. Em suma, do escondimento si mesmo
como sujeito fracassado, inclusive por ter conduzido a outros por um caminho pelo qual
não se pode mais retornar, nem sequer recuperar fragmentos de determinadas
experiências, que se integralmente implementadas podiam lograr algum êxito.
Nos bares, entre outros lugares, muitos membros da hierarquia [é impossível
apresentar um número preciso e definitivo] decidem abandonar o celibato16
. O
abandono do celibato não os impunha o casamento como uma nova condição necessária
de vida. Ainda assim, muitos decidem se casar. O efeito manada produzido pelo
abandono do celibato aprofunda a crise na Igreja, em particular na Igreja do Sul.
Entre aqueles que abandonam o celibato, alguns se aliam ao governo na esperança
de reformar o Estado vigente. A Integração ao corpo político e à burocracia do Estado
para promover as transformações necessárias constitui-se na solução mais evidente.
Assumi-se publicamente o fracasso de suas convicções e oficializa-se o fim do sonho de
uma revolução socialista na América do Sul. No Brasil, o exemplo é frei Betto.
Contudo, logo se decepciona com o governo ao constatar o seu alto grau de corrupção.
A esquerda que chega ao governo, desacostumada com o poder, se perde diante de
tantas possibilidades a fazer. Então, decide reproduzir os atos dos antigos governos, isto
é, lutar com as mesmas armas, adotar os mesmos métodos, até apaixonar-se do poder.
16
O abandono do celibato denota uma realidade mais ampla e complexa do que o abandono do
sacerdócio. Embora ambos tenham implicação socioreligiosa, enquanto o abandono do sacerdócio
expressaria, numericamente, apenas um pequeno número dos ordenados, o abandono do celibato inclui
não somente os ordenados mas também os consagrados e as consagradas, sujeitos/as ao voto de castidade.
4. Época da degenerescência política da Igreja no Brasil (1980-2010): morrem seus
líderes políticos e ressurgem os cantores.
As últimas três décadas de catolicismo no Brasil (1980-2010) reúnem um
conjunto de práticas que caracteriza o período de degenerescência política da Igreja no
país. Assim, a época que poderia ter sido fértil para a Instituição não passa de um
grande e frustrante engessamento, em termos de imobilismo, daquilo que havia sido
chamado de tempo de agiornamento. Com a morte de João XXIII, ondas sucessivas de
papas conservadores impedem o movimento de abertura que a Igreja Internacional
ensaia a partir do Concílio Vaticano II. Embora Paulo VI tenha representado grandes
esperanças para a Igreja, nada fez, e o cargo o permitia fazer, para aproximar a Igreja da
sociedade internacional.
Com a escolha de João Paulo II, assiste-se a movimento ambíguo: se por um lado
o papa se dispõe a maior abertura, sem precedente na história da Igreja, a dialogar com a
sociedade [a debater publicamente sobre diversos temas polêmicos e de manipulação
sensível pela Instituição; a deixar-se filmar de férias em sua casa de campo; a
pronunciar-se sobre questões diplomáticas, com implicações éticas e humanas
delicadas, como a contribuição ou não da Igreja com a política nazista de Hitler; a
visitar inúmeros países nem sempre de maioria católica.
Por outro lado, a postura demasiadamente defensiva da Igreja a dificulta de ousar
significativas mudanças em seu interior. Embora alguns historiadores da Igreja
defendam, para alguns Concílios, o caráter de revolucionário, insisto que sempre que os
seus idealizadores e colaboradores ousaram tal fim, os dirigentes da Instituição trataram
de amenizar o fluxo de seus desdobramentos, a exemplo do que ocorreu com o Vaticano
II. Enquanto um grupo de bispos, padres e leigos discutia sobre os métodos,
instrumentos e meios mais eficazes de implementação das principais “Conclusões” do
Vaticano II, outros representantes da Instituição, inclusive no interior da Santa Sé,
agiam incansavelmente para impedir o avanço de tal empreitada.
A década de 1980 constitui-se em época de desorientação da Igreja. O inimigo
contra o qual a Igreja nos últimos anos luta tem uma identidade inconfundível – é a
violência do governo autoritário. Contudo, a violência do regime não se restringe ao uso
excessivo da força, a qual se soma a ausência de programas sociais. O desenvolvimento,
ou melhor, o crescimento econômico do país durante os sucessivos governos militares
não contempla o desenvolvimento de todos, mas concentra a renda nas mãos dos que
detinham os meios de produção, assim como nas mãos dos que manipulavam o capital
no mercado financeiro, a exemplo dos donos de bancos. Os pobres aguardavam pela
hora em que se iria “dividir o bolo”.
Com o advento da redemocratização, a inércia toma conta da Igreja, que parece
não saber para onde se mover. A recente experiência de apoio concedido pela
Instituição ao governo golpista, que logo frustrara suas expectativas e interesses, havia
possibilitado à Igreja, senão muitos, ao menos um aprendizado, a saber: que
determinada distância do governo civil, ainda que democrático, permitia-lhe
desenvolver suas atividades e defender os seus diversos interesses na arena política
nacional, e de posicionar-se livre e criticamente em relação a ele. De modo que, a
pretensão de uma estreita aproximação com o Estado colocava em questão a sua própria
identidade. O inimigo da Igreja [e da parcela sociedade brasileira não beneficiada pelo
regime] fora derrotado, a instituição mergulha numa espécie de paralisia. O horizonte de
suas possibilidades pastorais mostra-se ofuscado, indefinido, porém, com uma
vantagem - indeterminado.
Nesse contexto de indeterminação, a Igreja passa a assistir o desencadear da
história. O Estado força o seu distanciamento da administração pública. Os seus fieis
mergulham numa onda às segas em direção à secularização. Os meios de comunicação
empenham-se em expor as crises da Instituição, a exemplos dos casos de pedofilia, num
esforço sem precedente de reduzir sua influência sobre a sociedade brasileira. Algumas
iniciativas de trabalho sociais são sustentadas por alguns padres por intermédio de
doações de amigos e de membros de suas respectivas comunidades. Os antigos
orfanatos, de onde se originaram inúmeros padres e freiras, sedem lugar a creches e
casas lares.
Em geral a Igreja se coloca de forma indiferente em relação aos grandes dramas
da sociedade brasileira contemporânea. É verdade que também ela, por meio de sua
hierarquia, confronta-se com o fenômeno da globalização17
. De acordo com Octavio
Ianni, em A era da globalismo, “a globalização do mundo expressa um novo ciclo de
expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance
global” (IANNI, 2001, p. 11). A “irresistível ascensão do neoliberalismo como
ideologia da globalização capitalista nas últimas duas décadas do século passado”
17
Para uma compreensão preliminar da globalização desde uma abordagem mais teórica, passando por
uma descrição do processo de sua formação, até ancorar em uma análise mais complexa do fenômeno da
globalização, sugere-se a leitura de IANNI, Octavio. Teorias da Globalização, 1999; IANNI, Octavio. A
era da globalismo, 2001; IANNI, Octavio. A sociedade Global, 1992.
(BORON, 2009, p. 137), isto é, do século XX, impõe uma série de questões à
humanidade, aos países em desenvolvimento, e por que não à Igreja.
O Anuário da CNBB não nos oferece sequer uma relativa precisão acerca do
número de padres envolvidos em movimentos sociais, e, se o faz, contabiliza apenas os
representantes de comissões e grupos. Nesse caso, a medida adotada para o registro nem
de longe corresponde com a realidade. Para as décadas de 60 e 70, período que coincide
com o regime autoritário no Brasil bem como com o surgimento e a consolidação das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o número de líderes religiosos envolvidos em
questões sociopolíticas supera, sem risco de equívoco, a 70% do total. Nos últimos 15
anos, o número de padres políticos aumenta, mas de forma insignificante, se comparado
com o total da população.
O envolvimento desses padres em questões sociais e políticas os expunham à
violência no campo, dos grandes latifundiários, dos coronéis pelo Nordeste, e dos
grileiros de terras no Norte do país; assim como à violência do regime civil-militar de
1964. A partir da segunda metade da década de 1950, com o surgimento e a expansão
das Ligas Camponesas18
pelo Nordeste, com o surgimento do Movimento Sem-Terra
(MST) na década de 80, com a intensificação do problema agrário no Norte do país, em
particular no Pará, o interior do país se torna um barril de pólvora, a dar sinais de
explosão a todo instante. Nos anos 80, muitos padres foram assassinados no Norte do
país, outros tantos sofreram ameaças. Recentemente, o símbolo mais representativo
dessa violência são as constantes ameaças feitas ao bispo de Boa Vista, em Roraima,
por causa da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol.
Nos anos de 1980, a sociedade brasileira ruma em direção à redemocratização. A
Igreja, no entanto, caminha em direção a processo de centralização. O símbolo de maior
expressão desse quadro, para a Igreja no Brasil, tem sua origem na escolha de João
Paulo II para o papado. A estratégia de estreitamente da relação com a Igreja no Brasil,
o maior país católico do mundo, oculta em parte os seus reais interesses. Entre os anos
de 1980 e 2005, João Paulo II inibe o pensar e, em consequência, a produção intelectual
dos teólogos da Libertação. O papa investe incisivamente contra a reflexão teológica de
Frei Betto, intimado a depor junto à Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma.
18
O surgimento e o processo de expansão das Ligas Camponesas pelo Nordeste, bem como o mito de
Francisco Julião, o idealizador dessa organização na zona rural, podem ser encontrados a partir da leitura
de CALLADO, Antônio. Os Industriais da Seca e os “Galileus” de Pernambuco, 1960; BRUNEAU,
Thomas. O catolicismo brasileiro em época de transição, 1974.
Um estudo mais específico sobre o comportamento da Santa Sé em relação à
Igreja Católica no Brasil pode nos evidenciar a relação entre o esforço de
desmobilização da Teologia da Libertação (TdL)19
e o reavivamento de antigos
movimentos e grupos conservadores da Igreja. No esforço de desmobilização da TdL, a
Santa Sé ignora a expansão dos movimentos neopentecostais no país. A Igreja europeia,
uniforme em suas insígnias, atomista em seu pensar, hierárquica em sua organização,
centralizadora em sua administração, conservadora em seu agir atenta sem
constrangimento contra essa nova perspectiva de análise teológica na América Latina.
A Teologia da Libertação empreende, não sem esforço heróico de alguns
teólogos20
, revisão profunda da tradição teológica cristã, de modo crítico e analítico da
realidade humana na América Latina, à luz do Deus libertador. Trata-se de novo jeito de
“fazer” teologia para uma “nova Igreja” que se constrói a partir das exigências de uma
profunda libertação que antecipa mesmo a libertação do Reino de Deus (SOUZA, 2010,
p. 123).
Importa ressaltar que, para além das diferenças e especificidades das abordagens,
os teólogos da libertação expressam unanimidade acerca de uma questão, a saber, “antes
de fazer Teologia é preciso fazer libertação. Sem essa pré-condição a Teologia da
Libertação equivale a literatura” (SOUZA, 2010, p. 123). No interior dessa dialética de
teoria (da fé) e práxis (da caridade) que atua a Teologia da Libertação. Assim, a
Teologia da Libertação consiste em “refletir criticamente à luz da experiência cristã de
fé sobre a práxis dos homens, principalmente dos cristãos, em vista da libertação
integral dos homens” (BOFF, 1976, p. 42). A libertação integral do ser humano diz da
condição do homem todo e de todos os homens, que abrange simultaneamente as
instâncias econômica (da pobreza real), política (das opressões sociais e das
administrações arbitrárias) e religiosa (do pecado).
A defesa da libertação dentro de Continente imerso em situação de opressão não
pode terminar senão em gestos de libertação. A situação de miséria imposta ao povo
19
Além da Teologia da Libertação (TdL), o Movimento de Educação de Base (MEB) e o Método Paulo
Freire de Alfabetização despertam especial atenção dos governos militares, quer na esfera federal quer
nos âmbitos estaduais, porque tais movimentos e método caracterizam-se pelo despertar da consciência
do indivíduo de sua condição de explorado e oprimido para a liberdade. Convém ressaltar que a parcela
conservadora da Igreja no Brasil também temia o MEB e o método de educação de Paulo Freire, por
munir o indivíduo de consciência crítica.
20
Os teóricos de maior relevância na literatura da teologia da Libertação são: Gustavo Gutiérrez, do Peru;
Leonardo Boff, José Comblin, José Oscar Beozzo, Ivone Gebara, do Brasil; Sergio Torres, Ronaldo
Munõz, do Chile; Enrique Dussel, do México; Jon Sobrino, de El Salvador; Juan Luis Segundo, do
Uruguai.
sulamericano não é resultado de determinismos, mas de injustiças. Para Libanio, “o
desenlace dessa realidade se mostra difícil, pois implica a superação de interesses em
jogo. A reflexão sobre o processo de libertação iniciada pela Teologia da Libertação
veio despertar-nos desse sono ingênuo” (LIBANIO, 1976, p. 138).
A América do Sul é, nas décadas de 1960 e 1970, o lugar teológico privilegiado
em virtude dos desafios urgentes que coloca à fé cristã em termos de reflexão e ação.
Um dos maiores teóricos da teologia da libertação, Gustavo Merino Gutiérrez, percebeu
que: “procurar a libertação do subcontinente vai mais além da superação da dependência
econômica, social e política. Consiste, mais profundamente, em ver o devir da
humanidade como processo de emancipação do homem” (GUTIÉRREZ, 1975, p. 121).
Nesse sentido, a teologia da libertação optou por aquele tipo de análise do
subdesenvolvimento, denominador comum entre os países da região, como sistema de
dependência dos centros imperiais. Historicamente a América do Sul viveu na
dependência21
, de sucessivos centros hegemônicos. A saída dessa situação consiste num
processo de ruptura dos laços de dependência e, por conseguinte, na elaboração e
implementação de projeto de libertação nacional auto-sustentado, de modo a considerar
processo de integração regional.
Acresce ainda que na América do Sul as forças repressoras detêm o poder e
tornaram quase impossível a possibilidade de emergência de um movimento organizado
de libertação. De acordo com Leonardo Boff, “diante do regime geral de cativeiro,
muitos, embora aceitem a teoria da dependência, propõem uma mudança do sistema por
meio de mudanças no sistema”. Sendo assim, “urge viver e pensar a partir de uma
situação de cativeiro; deve-se elaborar uma verdadeira teologia do cativeiro. Esta não é
uma alternativa à teologia da libertação; é uma nova fase sua, dentro e a partir de
regimes repressivos” (BOFF, 1976, p. 34; 39).
Também com relação à Doutrina Social da Igreja (DSI) a Teologia da Libertação
tem uma relação estreita. Na medida em que a DSI oferece as grandes orientações para a
ação social dos cristãos, a Teologia da Libertação procura, de algum modo, integrar
essas orientações em sua síntese e ação. Não se trata de alimentar uma relação de
resistência, concorrência ou discriminação. Os teólogos da Teologia da Libertação se
esforçam por compreender a teologia e a Igreja numa articulação da fé como práxis.
21
A “teoria da dependência” resulta de formulação compartilhada atribuída a dois intelectuais da
Universidade de São Paulo (USP). CARDOSO, F. H.; FALETTO, E. Dependência e Desenvolvimento na
América Latina. Ensaio de Interpretação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
Os grandes líderes da Igreja, entre os anos de 1950 e 1980 [dom Helder Camara,
dom Adriano Hipólito, dom Valdir Calheiros, dom Aloísio Lorscheider, dom Eugênio
Sales, dom Paulo Evaristo Arns, dom José Maria Pires (dom Pelé), dom Marcelo
Cavalheira, dom Pedro Casaldáliga] se não morreram, ao menos já receberam a
aposentadoria, e poucos ainda se encontram em atividade, a exemplo de dom Pelé. No
contexto do regime militar, surgem outros líderes [Pe. Lima Vaz, Pe. Luis Sena, Pe.
Almery Bezerra, Frei Carlos Josafá, frei Tito, frei Ivo, Leonardo Boff, Pe. José
Comblin] igualmente representativos de uma Igreja politicamente influente e
participativa. Esses líderes assistem à morte da Igreja que construíram pelos seus pares.
A partir dos anos de 1980, a grande maioria dos bispos escolhidos pelo papa João
Paulo II renunciam - outros não tinham do que renunciar - ao que carregam na cabeça
[isto é, a inteligência, a ousadia, o desejo de renovação] para tão somente sustentar algo
sobre a cabeça [quer dizer, uma mitra], símbolo do poder. O poder é para si, o serviço
deve ser feito, pelo outro, desprovido de poder. À semelhança do que concluirá Jarbas
Passarinho quanto da deliberação crucial pela instituição do Ato Institucional n. 5 (AI-
5): “às favas a consciência”. Esses homens mitrados disputam poder nas arenas em que
seus interesses se encontram diretamente implicados, e em arenas nas quais representam
interesses de outrem, desde que nestas últimas esses interesses não sejam conflitantes
com os seus.
Espera-se dos “atuais líderes” da Igreja a realização de milagres: que administrem
paróquias com parcos recursos financeiros, e em muitos casos também na carência de
recursos humanos; que implementem programa de evangelização suficientemente capaz
de conter a evasão de fieis da Igreja católica para as Igrejas neopentecostais. De alguns
deles pede-se o impossível, isto é, que renunciem a sua principal fonte de renda: as
Igrejas centrais, pelas quais circulam muitos fiéis e dinheiro, nas quais se celebram os
casamentos da elite religiosa e muitos outros sacramentos rentáveis. [Entre outras
possibilidades, reside aqui origem da riqueza de muitos padres, que compram fazendas,
carros importados, fazem turnê pela Europa]. Em contrapartida, justiça seja feita, de
Norte a Sul do país, alguns vivem na pobreza.
O símbolo de maior degenerescência política da Igreja no Brasil nos é
representado pelos padres cantores. “Evangelizar o espírito” como se corpo não tivesse
o sujeito da evangelização. Não nos é preciso esforço extraordinário para concluir que
outros interesses perpassam a exposição midiática de tais figuras, a exemplo do
interesse em compartilhar do comércio lucrativo de CD‟s, DVD‟s, e demais acessórios.
4. Considerações finais
Nos últimos 60 anos (1950-2010), a Igreja [Católica] no Brasil vive dois períodos
distintos: o primeiro (1950-1980), de uma Igreja envolvida nos grandes problemas
sociais e políticos do Brasil [a questão agrária, a sindicalização rural, a oposição ao
regime civil-militar de 1964]; o segundo (1980-2010) de momento neopentecostal da
Igreja com forte desestruturação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
A experiência socialista na União Soviética representa a materialização de uma
ideologia para os países que buscam uma alternativa ao modelo capitalista de
desenvolvimento econômico. Entretanto, a desestruturação do regime soviético significa
o fim de uma utopia, pela qual se pode sonhar, lutar, gastar a vida, morrer.
O regime civil-militar no Brasil é contemporâneo à experiência de socialismo no
Leste europeu. O golpe de 1964 é interpretado por muitos historiadores e cientistas
sociais como estratégia para se conter o avanço do comunismo para a América do Sul,
depois de encontrar espaço de realização na Ilha Caribenha de Cuba. No campo ou na
cidade, a violência do regime [por sua ação ou omissão] afeta a Igreja e aqueles que
com ela se relacionam. É o caso da morte de Pe. Rodolfo, Je. Bosco Bounier, Pe.
Henrique, Marighela, e através das prisões, torturas e desaparecimentos de milhares de
pessoas.
A considerar o comprometimento social e político dos líderes contemporâneos da
Igreja no Brasil, todos, salvo raríssima exceção, morrerão acima da média de qualquer
outro cidadão brasileiro, estimativa atualmente definida em 72 anos de idade para as
mulheres e 68 para os homens. Os padres cantores, esses sim, chegarão aos 100 anos, a
diluir nos corações qualquer sentimento de indignação quanto aos grandes desafios da
sociedade brasileira; morrerão tranqüilos, informados, no leito de morte, de que
contribuíram no esforço de levar o amor ao próximo; morrerão consolados por terem
emocionados, com suas músicas carentes de tudo, inúmeras multidões. Levarão para o
túmulo ao menos uma inquietação, causada pela incerteza da existência de Deus, pois se
este existir, e demonstrar interesse em seus “talentos” e fortuna, certamente lhes
“perguntará” pelo pouco interesse na distribuição de suas rendas bem como pelo pouco
engajamento político de libertação de seus semelhantes colocados à margem. O Espírito
de Deus se tornou light, sem qualquer expressão humana, indiferente diante dos dramas
sociais e dos entraves políticos da humanidade.
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