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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016 Trabalho apresentado no GT IMAGEM E IMAGINÁRIOS MIDIÁTICOS, no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016. www.compos.org.br / page 1/25 / Nº Documento: 4D3D342B-B11F-4B3A-A247-B4D8895F7FE4 A ideia de saúde imaginária no reality show de reprogramação corporal, uma análise de Medida Certa e Além do Peso The idea of imaginary health on reality show of body reprogramming, an analysis of Medida Certa and Além do Peso Patrícia Monteiro Cruz Mendes I / Cristina Teixeira Vieira de Melo II I Doutoranda, PPGCOM - UFPE. Contato: [email protected] II Doutorado, PPGCOM - UFPE. Contato: [email protected] Resumo: O artigo busca compreender como o imaginário midiático utiliza a associação entre cuidados com o corpo e responsabilização dos indivíduos para produzir uma ideia de saúde atrelada à aparência, chamada aqui de “saúde imaginária”. Utiliza-se o conceito de biopolítica e as teorias do imaginário para o estudo do material empírico: os reality shows Medida Certa e Além do Peso, veiculados pela TV Globo e TV Record, respectivamente. Propõe-se um modelo de análise centrado em três categorias: 1) corpo sem formas, baseado no imaginário social sobre os riscos da gordura/sedentarismo à saúde; 2) modelagem midiática dos corpos, enfatizando os esforços em busca dos pesos e medidas da saúde imaginária; e 3) corpo prêt-à-porter, destinado à apresentação de um corpo-imagem pronto para exposição/consumo. Palavra chave: Saúde, Imaginário, Biopolítica, Televisão, Reality show Abstract: The article seeks to understand how media imagery uses the association between body care and accountability of individuals to produce a health idea tied to appearance, called here "imaginary health." We use the concept of biopolitics and the imaginary theories to the study of empirical material: reality shows Medida Certa and Além do Peso, broadcast by TV Globo and TV Record, respectively. We propose a focused analysis model into three categories: 1) body without forms, based on the social imaginary of the risks of fat/inactivity to health; 2) media modeling of the bodies, emphasizing the efforts in search of weight and health measures; and 3) prêt-à-porter body, for the presentation of a body-image ready for exposure/consumption. Keywords: Health, Imaginary, Biopolitics, TV, Reality show 1. Introdução O personagem Argan, de “O doente imaginário”, não tem sintomas de doenças, porém, se percebe à beira da morte. Mobiliza toda a família, um rol de médicos e torna-se ele próprio um profissional da saúde para curar sua desordem. Nessa peça, Moliére (2009) ilustra exemplarmente como a doença imaginária movimenta uma série de cuidados reais,

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Trabalho apresentado no GT IMAGEM E IMAGINÁRIOS MIDIÁTICOS, no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de2016.

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A ideia de saúde imaginária no reality show de reprogramaçãocorporal, uma análise de Medida Certa e Além do Peso

The idea of imaginary health on reality show of bodyreprogramming, an analysis of Medida Certa and Além do Peso

Patrícia Monteiro Cruz Mendes I / Cristina Teixeira Vieira de Melo II

I Doutoranda, PPGCOM - UFPE. Contato: [email protected]

IIDoutorado, PPGCOM - UFPE. Contato: [email protected]

Resumo: O artigo busca compreender como o imaginário midiático utiliza aassociação entre cuidados com o corpo e responsabilização dos indivíduos paraproduzir uma ideia de saúde atrelada à aparência, chamada aqui de “saúdeimaginária”. Utiliza-se o conceito de biopolítica e as teorias do imaginário parao estudo do material empírico: os reality shows Medida Certa e Além do Peso,veiculados pela TV Globo e TV Record, respectivamente. Propõe-se um modelo deanálise centrado em três categorias: 1) corpo sem formas, baseado no imagináriosocial sobre os riscos da gordura/sedentarismo à saúde; 2) modelagem midiáticados corpos, enfatizando os esforços em busca dos pesos e medidas da saúdeimaginária; e 3) corpo prêt-à-porter, destinado à apresentação de umcorpo-imagem pronto para exposição/consumo.

Palavra chave: Saúde, Imaginário, Biopolítica, Televisão, Reality show

Abstract: The article seeks to understand how media imagery uses the associationbetween body care and accountability of individuals to produce a health idea tiedto appearance, called here "imaginary health." We use the concept of biopoliticsand the imaginary theories to the study of empirical material: reality showsMedida Certa and Além do Peso, broadcast by TV Globo and TV Record,respectively. We propose a focused analysis model into three categories: 1) bodywithout forms, based on the social imaginary of the risks of fat/inactivity to health;2) media modeling of the bodies, emphasizing the efforts in search of weight andhealth measures; and 3) prêt-à-porter body, for the presentation of a body-imageready for exposure/consumption.

Keywords: Health, Imaginary, Biopolitics, TV, Reality show

1. Introdução

O personagem Argan, de “O doente imaginário”, não tem sintomas de doenças, porém,

se percebe à beira da morte. Mobiliza toda a família, um rol de médicos e torna-se ele

próprio um profissional da saúde para curar sua desordem. Nessa peça, Moliére (2009)

ilustra exemplarmente como a doença imaginária movimenta uma série de cuidados reais,

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Trabalho apresentado no GT IMAGEM E IMAGINÁRIOS MIDIÁTICOS, no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de2016.

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fazendo com que o sujeito gaste tudo o que possui em busca da saúde perfeita, estado que

jamais alcança, pois, como se imagina doente, é incapaz de se vê de outra maneira. Passados

quatro séculos, esse texto serve como analogia para se pensar como, na contemporaneidade,

mais do que a doença, é a “saúde imaginária” que mobiliza uma série de cuidados e

investimentos físicos, financeiros e emocionais.

Na perspectiva assumida aqui, a saúde é um constructo imaginário, que, hoje em dia,

chega aos sujeitos especialmente através da mídia. A decisão de abandonar um vício, fazer

uma dieta ou praticar uma atividade física está baseada em notícias e propagandas

divulgadas pelos meios de comunicação, responsáveis por disseminar esses e tantos outros

imaginários.

De fato, num cenário em que a obesidade é um problema global e a indústria da saúde é

uma das que mais crescem no mundo, tornou-se urgente e conveniente para os meios de

comunicação divulgar informações sobre um estilo de vida mais saudável. Em

consequência, vive-se um “boom informativo sobre saúde” (TABAKMAN, 2013). Nesse

contexto, ter uma vida saudável é, como já se assinalou, cada vez mais, efeito de uma

modelagem midiática.

Mas que noção de saúde o imaginário midiático constrói? Que tipos de imagens estão

associadas à ideia de vida saudável? De que maneira as tecnologias do imaginário incitam e

conformam corpos, desejos e condutas? Quais as estratégias empregadas nesse processo?

Para responder a tais questões, utilizam-se as teorias do imaginário e a noção foucaultiana

de biopolítica como aparato de análise. Enquanto o biopoder situa a saúde em termos de

uma métrica dos pesos e medidas; utilizando o saber biomédico para acentuar e confirmar

seu discurso; o imaginário, afetado por imagens de corpo da cultura da boa forma, vincula,

por um lado, magreza/saúde/beleza, e, por outro, gordura/doença/feiura, sem que,

necessariamente, tais coisas se equivalham.

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Uma das sínteses do imaginário durandiano mais repetidas, é de que o imaginário

corresponde à uma resposta diante da angústia existencial quanto à passagem do tempo. Nas

análises do corpus, ver-se-á que esta aflição é ampliada diante da relação entre obesidade e

doença. Durand define o imaginário como “o conjunto das imagens e relações de imagens

que constitui o capital pensado do homo sapiens” (DURAND, 2012, p.18). No entender do

autor, as imagens não são dadas, prontas ou acabadas, como um conhecimento a ser

repassado hereditariamente. Toda imagem é portadora de um sentido que está associado

diretamente à significação imaginária.

O formismo maffesoliano é uma das vias teóricas utilizadas neste estudo. Segundo

Maffesoli (2010), as formas têm o sentido de aparências e estas, por sua vez, permitem

compreender as diversas modulações do contemporâneo, onde há uma saturação da

imagem. O autor defende que as aparências, as imagens, a teatralidade da vida cotidiana, o

visível, permitem compreender a profundidade do social. Nesse contexto,

a estética difratou-se no conjunto da existência. Nada mais permanece incólume. Ela

contaminou a política, a vida da empresa, a comunicação, a publicidade, o consumo e, é

claro, a vida cotidiana [...] do quadro de vida até a propagando do design doméstico, tudo

parece se tornar obra de criação, tudo pode se compreender como a expressão de uma

experiência estética primeira. (MAFFESOLI, 2010, p.12).

Para Maffesoli, a estética corresponde a “experimentar junto emoções, participar do

mesmo ambiente, comungar dos mesmos valores, perder-se, enfim, numa teatralidade geral,

permitindo, assim, a todos esses elementos que fazem a superfície das coisas e das pessoas,

fazer sentido” (MAFFESOLI, 2010, p.143). Também para Sodré e Paiva (2002), o

fenômeno estético corresponde ao sensível, ou seja, à “faculdade humana de sentir”:

Para além da obra, o campo social é afetado pelas aparências sensíveis, não

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necessariamente instaladas na ordem do real, mas também do possível e do imaginário.

Somos afetados todo o tempo por volumes, cores e ritmos, assim como por narrativas e

frases. O sensível é esse rumor persistente que nos compele a alguma coisa, sem que nele

possamos separar real de imaginário, sem que possamos, portanto, recorrer a estruturas e

leis para definir a unidade do mundo, pois o que aí predomina é a deriva contínua de um

estilo (SODRÉ; PAIVA, 2002, p. 38).

A compreensão de uma estética vinculada ao “sentir” conecta-se ao surgimento de uma

nova ética que valoriza a comunicação. Nesse contexto, o corpo ganha proeminência.

Segundo Maffesoli (2010), o corpo é uma “máquina de comunicar”,

Porque está presente, ocupa espaço, é visto, favorece o tátil. A corporeidade é o

ambiente geral no qual os corpos se situam uns em relação aos outros; sejam os corpos

pessoais, os corpo metafóricos (instituições, grupos), os corpos naturais ou os corpos

místicos. É, portanto, o horizonte da comunicação que serve de pano de fundo à

exacerbação da aparência (Idem, p. 117).

Essa nova importância assumida pelo corpo estimula um desejo de produzir a si mesmo

como espetáculo. Diferentemente de Debord (1997), Mafesoli enxerga um aspecto positivo

no espetáculo das imagens midiáticas, pois, elas retirariam as pessoas da solidão,

produzindo vínculo social, construindo uma experiência comum. O pensamento de

Maffesoli está em acordo com a teoria da complexidade de Morin (2002), para quem a

estética não é simplesmente a qualidade própria das obras de arte, e sim um fator de relação

humana.

Se tudo é contaminado pela estética, a hipótese defendida aqui é a de que a saúde é,

antes, uma experiência estética, possibilitada pelas tecnologias do imaginário. Produzida e

disseminada pelo imaginário midiático, a saúde atende a uma experiência estética,

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revelando que, por trás de uma biopolítica do corpo, há uma ética se mostrando, nas formas

das aparências. Isto é, a estética da saúde amplificada pelos meios de comunicação serve

cada vez mais ao consumo do olhar, revelando de que forma a imaginação midiática

entende como deve ser visto o gordo e o magro, o doentio e o saudável, girando em torno de

uma aparência teatralizada.

O corpo (saudável) atende, sobretudo, a uma ética da estética, voltada a despertar as

sensibilidades, os gostos, as realidades e os imaginários buscando consumir imagens

(corporais) adornadas ao consumo das tecnologias do imaginário. Tendo em vista o fator

estético tão primordial no cotidiano, relacionado ao sentir (particular) e ao experimentar em

comum (experiência coletiva), este corpo que consome a si mesmo, e que também entra no

mercado para ser consumido, assim se coloca não mais pela força de um controle

disciplinar, mas pela sedução do espetáculo audiovisual, que age primariamente sobre o

imaginário e sobre as subjetividades. 

2. Caracterização dos corpora de análise

O reality show de reprogramação corporal serve como lócus privilegiado para

investigar de que maneira as imbricações entre saúde/aparência formam a ideia de “saúde

imaginária”. Situado entre a ficção e os efeitos de realidade, ele coloca imaginário e real em

sintonia, tomando a vida como produto da encenação midiática. Além disso, o reality show

sacia dois anseios que os meios de comunicação procuram resolver: informar e entreter.

Fernanda Bruno aponta que o biopoder da mídia voltado à vida e à saúde dos indivíduos

busca mais responsabilizar do que normalizar: “a função deles é informar mais que curar. A

gestão de si, do corpo e da saúde implica, portanto, o contato e o acesso à informação, e não

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mais uma relação de produção ou desvelamento da verdade” (BRUNO, 2006, p.73). Se as

instituições disciplinares criavam mecanismos para vigiar e punir os indóceis, as tecnologias

do imaginário, apoiando-se em instrumentos mais refinados, centrados na produção de uma

estética (de um gosto ou sentimento em comum), cercam o público por todos os lados com

uma perspectiva de dever de informação e de responsabilidade de gerir o corpo.

Já do ponto de vista da recepção, o reality show aguça o desejo do público de ser

imagem e de consumir imagem, na perspectiva de que os meios de comunicação

potencializam, na atualidade, o desejo arcaico de estar em comunhão em torno de uma

mesma comunidade de destino (MAFFESOLI, 2012). Vale registrar ainda que, na década de

2000, a proliferação dos reality shows coincide com o crescimento da cobertura de saúde na

mídia, sobretudo no jornalismo.

Os reality shows Medida Certa e Além do Peso, veiculados, respectivamente, pelas

emissoras TV Globo e TV Record, constituem o corpus de análise dessa investigação. Nos

dois não há confinamento. Como reality shows de “reprogramação corporal”, ambos

utilizam personagens (famosos ou anônimos) que estão com quilos a mais para levar o

público a diminuir pesos e medidas corporais, ganhando massa muscular e resistência física

e, por fim, sendo mensageiros da boa saúde.

2.1 Além do Peso

O Além do Peso é a versão brasileira do Cuestión de Peso, produção original da

Endemol Argentina.  Inicialmente, esteve vinculado ao Programa da Tarde, sendo exibido

de segunda a sexta-feira, com duração em torno de 30 minutos. Com a extinção do

Programa da Tarde, passou a ser veiculado no semanal matutino Hoje em Dia. As suas

cinco temporadas tiveram duração variadas, de três a seis meses. A primeira temporada

ocorreu entre setembro e dezembro de 2013. Pela primeira temporada passaram 11

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participantes. A segunda temporada estreou em janeiro de 2014; o período de veiculação

extrapolou os três meses e se estendeu até julho de 2014, com a participação de13 pessoas.

Apenas três dias após o encerramento da segunda temporada, a Record iniciou a exibição da

terceira fase do quadro. Pela primeira (e única) vez o reality trabalhou com duplas. Quatro

duplas participaram da disputa. A quarta temporada ocorreu de fevereiro a junho de 2015. A

quinta temporada foi veiculada de outubro a dezembro de 2015, com uma novidade: pela

primeira vez pessoas famosas (mas sem tanta visibilidade pública) foram as personagens,

que contou com cantores, ex-BBB, ex-paquita, entre outros.

Em Além do Peso, durante 12 horas, do café da manhã até à noite, a rotina dos

participantes é acompanhada pela equipe de produção. O material é gravado pela equipe do

programa (geralmente o treino físico ou alguma dinâmica psicológica) e apresentado no

estúdio, sob a forma de reportagem. Não há uso de vídeo-diário ou câmera amadora, nem de

repórter e narração em off. A impressão que se tem é a de que os participantes estão agindo

espontaneamente quando, na verdade, são parte de uma narrativa montada pela direção do

programa. O programa investe bastante nos comentários sobre as matérias. Ao vivo, os

apresentadores conduzem estas cenas, chamando os participantes envolvidos na gravação ou

discutindo o assunto com especialistas. Uma característica peculiar do Além do Peso é que

participantes eliminados têm a chance de voltar à competição por meio de votação popular.

Os personagens de Além do Peso são, em sua maioria, obesos. O programa aborda a

obesidade dentro da chave do grotesco. Os corpos sem formas são expostos à exaustão,

corroborando o argumento de que,

Os feios, os disformes, os miseráveis, os discriminados – seres tendencialmente

colocados na lata de lixo do esteticamente correto – são exibidos como conformações

dissipativas da imagem humana. Neles, a periferia pode reconhecer-se; deles a elite pode

distinguir-se: a televisão é o lugar da síntese. Mas o homo festivus é inevitavelmente

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“grotescus” (SODRÉ; PAIVA, 2002, p. 141).

Em função desse tipo de tratamento que os participantes de Além do Peso recebem, a

noção de grotesco está sendo utilizada aqui para referenciá-los.

2.2. Medida Certa

Totalizando até o momento cinco edições, Medida Certa compõe a programação do

dominical Fantástico. Cada temporada tem a duração de três meses e os episódios giram em

torno de 10 a 21 minutos. Em três das cinco temporadas o quadro utilizou celebridades

como personagens. Na temporada de estreia, em 2011, os apresentadores-jornalistas Zeca

Camargo e Renata Ceribelli, à época, acima do peso ideal, figuraram como personagens.

Um ano depois três crianças comuns protagonizaram a versão mirim do reality, o

“Medidinha Certa” (incluindo uma criança abaixo do peso). Ainda em 2012, a temporada

Medida Certa – O Fenômeno foi “estrelada” pelo ex-jogador de futebol Ronaldo.  Em 2013,

teve início a quarta temporada: Medida Certa – A disputa, caracterizada como uma

competição entre duplas de famosos: de um lado, a cantora Petra Gil e o humorista Fábio

Porchat; do outro, os cantores Gaby Amarantos e César Menotti. A quinta edição voltou a

investir em pessoas comuns, mas com uma “madrinha” famosa no comando, a atriz e

comediante Fabiana Karla, que também se submeteu ao programa de emagrecimento. Dessa

vez, 70 voluntários de um condomínio no bairro do Butantã, na Zona Oeste de São Paulo,

distribuídos em dois times (Laranja e Azul) disputaram quem perderia mais medidas em três

meses.

Os participantes de Medida Certa são aqui classificados como “olimpianos”, já que, no

geral, são celebridades que participam do quadro. A análise desenvolvida neste artigo se

centra nas temporadas protagonizadas pelos famosos.

Além do Peso e Medida Certa são expressões distintas, mas não contraditórias do

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imaginário midiático sobre saúde. Ambos tomam, da vida comum ou do olimpo midiático,

figuras sem formas que exemplificam, pela imagem, quem está mais ou menos ameaçado

fisicamente e, assim, partem da materialidade do corpo para iniciar um percurso de

remodelação da imagem. Esta, por sua vez, funciona como um atestado de verdade que,

aliada a certas informações sobre os riscos da obesidade, indica onde e como se deve agir.

É, portanto, no seio dessa ética da estética que faz sentido correr “junto” com as

celebridades em busca da “medida certa” ou se identificar com os dramas das pessoas

obesas em suas limitações que podem ser as mesmas de milhares de brasileiros.

3. Categorias de análise

As narrativas televisuais de Medida Certa e Além do Peso seguem uma curva dramática

que vai da apresentação dos personagens e seus conflitos até o desenlace feliz e vitorioso ao

final.

Incialmente, os corpos flácidos, disformes, gordos, desproporcionais, que se está

chamando de “corpo sem formas”, seja de grotescos ou olimpianos, são apresentados como

prova de um modo de viver que negligencia a saúde. Investiga-se a história e estilo de vida

dos participantes para responder à pergunta: o que faz um corpo engordar? Nesse momento,

mostra-se como os hábitos pouco saudáveis trazem riscos à saúde.

Num segundo momento, aciona-se toda a sorte de informações e põe-se em operação

uma série de estratégias com vistas à reprogramação corporal. Nesta etapa, chamada de

modelagem midiática dos corpos, vê-se o reality show firmando-se como um formato

biopolítico por excelência (Feldman, 2007), apto a corrigir as distorções (internas ou

externas), a formatar os erros, eliminar as desordens e otimizar o funcionamento do corpo.

Partindo de uma relação linear de causa-efeito entre moderação alimentar, aptidão física

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e saúde, o Medida Certa opera a modelagem dos corpos sem considerar fatores mais

complexos como as particularidades psicossociais. O corpo é entendido como uma máquina

cujos gostos, desejos, vontades e formas devem ser ajustados, mediante moderação, esforço

e sacrifício. Especialmente em Além do Peso, a lógica da punição e do prêmio permeia essa

categoria. Quem não atinge as metas é eliminado. Quem engorda é punido. Quem emagrece

é premiado.

Nesse momento de transformação dos corpos, entram em cena duas estratégias de

modelagem corporal: a reeducação alimentar e a atividade física. Paralelamente, a balança a

fita métrica e o espelho se destacam como instrumentos de controle. Os corpos disformes

passam pelas “mãos” dos profissionais especializados na (re)forma do corpo com base num

incessante combate aos fatores de risco e na prevenção das doenças (ainda que virtuais).

Após a modelagem midiática, o corpo está docilizado e, por isso, apto ao consumo da

cultura de massa. Chega-se ao corpo prét-à-porter. Nesta fase, vê-se o quanto biopoder

midiático atua atrelado ao imaginário social, produzindo uma imagem pronta para ser

exposta/consumida midiaticamente e compartilhada socialmente. Tal biopolítica não

domestica pela força, mas seduz pelo encanto das imagens de um corpo reprogramado que

se torna ícone do imaginário da saúde, da beleza, do bem-estar, da felicidade. Nesse

contexto, a complexidade da saúde se resume à apresentação de uma imagem corporal,

centrando-se naquilo que pode ser visto, filmado (ou fotografado) e veiculado. Isto reforça a

assertiva de Maffesoli (2007), para quem a imagem é uma das formas de modulação da

estética, confirmando que “o homem é menos criador de imagens, que forjado por elas”.

Afora a percepção da linha narrativa forjada pelos dois realities shows para mostrar a

trajetória dos diferentes corpos expostos nas telas, as noções de imaginário, imaginação e

imagem orientam as relações entre saúde e corpo assumidas neste trabalho. Parte-se do

pressuposto de que o corpo é imaginário (inserido em uma época), é imaginação (produz

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sentidos e deslocamentos) e imagem (representação). Com base na lógica acima exposta,

propõe-se o modelo de análise sintetizado abaixo, que serve de base para os comentários

feitos na sequência:

Categoria 1: Corpos sem formas. Temática: corpo é imaginário. Característica: Parte da

situação inicial de um corpo disforme, considerando a associação gordura e fatores de risco

que circula no imaginário social.

Categoria 2: Modelagem midiática dos corpos. Temática: corpo é imaginação.

Característica: Aciona a reprogramação corporal partindo de uma imaginação de saúde

como efeito de autocontrole, sacrifícios e moderação.

Categoria 3: Corpos prét-à-porter. Temática: corpo é imagem. Característica:

Conquista-se uma imagem de corpo que é ícone de uma ética da estética.

4. Um Olimpo de deuses disformes

O episódio de estreia de Medida Certa busca demonstrar por que as celebridades estão

fora da “medida certa” com base em dois imaginários fortemente arraigados ao padrão

corporal: o comportamento familiar e a relação com o mundo do trabalho. 

Alguns participantes aparecem ora na cozinha, preparando a refeição, ora reunidos em

torno de uma mesa cercada de parentes. Tais cenas retomam o imaginário sobre as

sociedades arcaicas, que reservavam tempo para as refeições em família. Na atualidade,

preparar e compartilhar a refeição é algo cada vez mais raro. As pessoas recorrem aos

alimentos industrializados, restaurantes à quilo ou fast food.  

Recuperando a mitificação da vida em família e da comida como expressão de amor,

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Medida Certa veicula o estereótipo que associa sobrepeso às preferências alimentares,

geralmente determinadas pela mãe. Neste ponto, a tradição surge como algo a ser observado

com cuidado. Caso as relações afetuosas e familiares contribuam para deformação da saúde

(e principalmente do corpo) devem ser reavaliadas, e o indivíduo deve trazer para si a

responsabilidade de suas escolhas alimentares.

Se, por um lado, a família aparece como o lugar dos “desvios” alimentares; por outro,

ela é mostrada como lugar da normalização dos corpos, indicando os códigos que definirão

o proibido e o tolerável. Por exemplo, Gilberto Gil, com as proibições alimentares que

impunha para a filha Preta Gil na infância, assume o papel da autoridade paterna de

controle.

Ainda no primeiro bloco do programa de estreia, a mídia, que antes alastrou o

diferencial de Preta Gil e Gaby Amarantos como referência de beleza das “mais cheinhas”,

agora, apoiada no discurso do cuidado com a saúde, enfatiza que as cantoras precisam entrar

na medida certa. Não é difícil de entender a mudança deste discurso. Sabe-se que o fardo

das imposições de um corpo perfeito pesa muito mais sobre a mulher, sobretudo em se

tratando de cantoras que utilizam o corpo como um veículo fundamental da carreira. Vê-se

que que, potencializando a herança genética e o estilo de vida “nada saudável”, mas também

o sonho, a busca pela felicidade e a luta contra a balança, Medida Certa investe na

reprogramação corporal como causa e efeito de uma insatisfação com a aparência.

No segundo bloco do programa, ancorado no par informação-responsabilização,

Medida Certa se apoia no discurso do risco para demonstrar que a falta de controle na

alimentação e o sedentarismo tem provocado danos à saúde das celebridades. A

racionalidade científica se volta para uma medicalização das aparências.

5. O corpo sem forma dos grotescos

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A história de vida também é a grande pauta do programa de estreia de Além do Peso. O

padrão alimentar da família, o estilo de vida sedentário, mudanças no corpo em função de

gravidez e uma série de problemas emocionais (traumas, frustrações, perdas) são apontados

como as causas da obesidade.

Nas imagens que antecedem a entrada ao vivo dos personagens em estúdio, eles

aparecem distantes e solitários. Os enquadramentos da câmera os mostram à sombra, à

margem. O olhar é de contemplação, a trilha é lenta e triste. A obesidade é retratada como

uma fobia que exclui socialmente suas vítimas. Os relatos abordam o quanto a obesidade

impacta no dia a dia, impedindo atividades simples como passar na catraca dos ônibus,

abaixar-se para calçar um sapato, levantar bruscamente, comprar roupas em lojas.

A estética do grotesco predomina. Os sujeitos são mostrados à moda das atrações dos

circos de anomalia humana da Idade Média (Vigarello, 2012), em que seres disformes são a

atração e provocam riso e choro, garantindo o entretenimento. Dobras, banhas e flacidez

ocupam a tela. As mulheres aparecem de top e os homens sem camisa. Pouca roupa para

muita gordura. Os participantes são apresentados como pessoas ávidas por comer. As

imagens revelam mãos apressadas em direção a pratos abarrotados, garfadas cheias de

comida, bocas bem abertas, olhos quase fechados. Enfim, o que se vê na tela são figuras

enormes e alvoroçadas, de apetite irrefreável e comportamento animalesco. A comida os

desumaniza.

Em determinado momento, entra em cena o espelho, inimigo implacável que reflete um

olhar acusador sobre a gordura. As imagens expõem exageradamente o corpo. A barriga é

mostrada no mínimo em dois ângulos: de frente para a câmera e de perfil. Por vezes, o

enquadramento começa fechado na barriga e depois vai abrindo até o rosto do participante

aparecer, sempre com ar triste, tenso, angustiado e, acima de tudo, constrangido. Alguns

choram diante do que veem. Nada mais teatral do que colocar um espelho como instrumento

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de aferição da obesidade e oferecer esta imagem a pessoas que lidam com o repúdio da

autoimagem, agora publicizada. Obrigados a olharem o corpo inteiro no espelho – o que

muitos dizem não fazer há anos -, os participantes rejeitam a própria imagem. Numa

inversão do mito narcísico, eles alimentam aspectos negativos sobre a aparência de si

mesmos. O espelho dá o mesmo veredicto a todos: é impossível se sentir bonito estando

gordo.

Funcionando como um instrumento de verdade, o espelho é um árbitro implacável das

aparências grotescas destinadas ao juízo do olhar, espécie de juiz que dá uma sentença aos

transgressores da boa aparência. Como “o espelho não mente”, ele se torna um aliado das

imagens televisuais que tentam rastrear a alma dos participantes, decepados em sua

autoestima, mas também dispostos a unir os pedaços e se (re)compor. O consumo de uma

nova aparência é tanto o anseio dos participantes quanto a resposta oferecida pelo programa.

Assim, produção da aparência e subjetividade caminham juntas.

Logo de saída, Além do Peso medicaliza os participantes. Os problemas relacionados ao

excesso de peso, tratados como risco à saúde em Medida Certa, em Além do Peso toma ares

de tragédia anunciada e autodestrutiva. Sendo a obesidade mórbida um assunto de

“calamidade pública”, o risco traduz-se numa imaginação antecipada da morte. O

personagem Eduardo, embora não chegue a mencionar qualquer problema de saúde, se

pergunta: “será que eu vou morrer gordo?”. A doença virtualmente instalada faz supor que o

fim está próximo. Ao colocar o futuro como uma dúvida, o medo imaginário descontrói os

aspectos positivos do presente. O reality suscita um sentimento de compaixão em favor de

pessoas cujo futuro está ameaçado pela obesidade.

Ao acentuar o risco de morte prematura, Além do Peso incentiva novas práticas de

cuidado. Os personagens assumem a culpa extraída de uma moral social, que diz: “você é

gordo porque falhou em administrar sua vida”. Imaginando a morte, os participantes podem

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acionar um maior controle da vida, até então negligenciada. Mortificando os desejos e

recusando as paixões da carne, os participantes do programa iniciam a via-crúcis rumo à

salvação. Este é o enredo dramático de Além do Peso.

6. Pesagens e métricas: o cálculo da saúde imaginária

A justiça que rege Além do Peso e Medida Certa toma a pesagem do corpo como

indício das boas e más ações. Assim, o dever do participante é equilibrar a alimentação

moderada com a atividade física regular, a fim de garantir sua permanência no jogo. O bom

jogador é aquele que aparece mais magro a cada semana (Além do Peso) e, sobretudo, na

pesagem final (Medida Certa). A causa maior (objetivo), que é a saúde, estaria na dianteira

de todos os esforços (deveres) da reprogramação, centrada em “comer melhor” e “se

exercitar com mais regularidade”.

O simbolismo da balança lembra a abordagem de Foucault (2004) acerca dos aparelhos

encarregados de vigiar o corpo nas sociedades modernas. Em Medida Certa, o instrumento

atende a três requisitos: mostrar o peso inicial (estreia), registrar se está havendo queima de

gordura (no primeiro mês ou nos primeiros 45 dias) e comprovar se o participante conseguiu

entrar na “medida certa” (episódio final). Nesse programa, as pesagens ocorrem no

consultório médico, resguardando uma suposta privacidade (agora exteriorizada) dos

olimpianos para o espaço das consultas, logicamente acompanhadas pelas câmeras. Apenas

no final do reality a balança é colocada no estúdio do Fantástico, para comprovar o novo

peso, ao vivo.

Em Além do Peso, a balança também aparece no consultório médico, mas brilha mesmo

no estúdio, onde está presente em três dos cinco dias de veiculação do programa. A

pesagem eliminatória ocorre às segundas e sextas-feiras, embaladas por trilhas sonoras que

denotam suspense e ampliam o terror sobre os participantes. Ao subir na balança, o

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personagem fica no centro do estúdio, em frente à plateia e de costas para os demais

colegas. O peso é antecipado ao público por um monitor inserido no vídeo, mas o

participante só tem conhecimento quando o apresentador anuncia o resultado. O participante

que não atinge a meta é automaticamente eliminado, ou seja, vale a lógica do “quem perde

ganha” de The biggest loser[1].

A chamada “pesagem de risco” ocorre normalmente às quintas-feiras, com o intuito de

conferir se os participantes estão próximos ou distantes da meta estipulada na segunda-feira

referente ao peso que devem apresentar na sexta-feira. Após o registro da balança, os

competidores que estão longe da meta devem usar uma camiseta preta, na qual está escrito:

“peso de risco”. O personagem que está no “peso de risco” tem menos de vinte e quatro

horas para intensificar os treinos e tentar atingir a meta. O biopoder exercido por Além do

Peso dissemina a ideia de que o veredicto da balança é sempre justo e definitivo: quem

engorda, não pode prosseguir.

Nos dois programas, outro importante aparelho utilizado para fiscalizar se os

participantes estão emagrecendo é a fita métrica. As imagens expõem com detalhes aquilo

que é um dos objetos mais venerados nesta sociedade de consumidores do corpo: a barriga.

Levantar a camisa, medir o abdome, contar e celebrar cada baixa no percentual de gordura

reforçam os apelos da saúde imaginária.

A lógica da fita métrica e da balança funciona com uma razão bem definida: perder

centímetros, diminuir o peso e definir o corpo. No jogo das medições, quem foi

ridicularizado pode ser reconhecido (Além do Peso); e quem já é reconhecido pode ser

ridicularizado com uma finalidade agregadora (Medida Certa). Além desses instrumentos,

também em ambos os programas entram em ação os responsáveis por comandar o

espetáculo: os formadores ou programadores da saúde imaginária.

7. Os formadores da saúde imaginária

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Como se destinam a tratar os “erros” já identificados pela balança, a fita métrica e o

espelho, Além do Peso e Medida Certa utilizam maciçamente o conhecimento de

especialistas em Saúde e Educação Física (educadores físicos, nutricionistas, psicológicos,

endocrinologistas) para explicar aos leigos como opera a “engenharia” do corpo humano em

busca de formatar e corrigir as “falhas”, potencializando o “sistema” que conduz à

reprogramação corporal. Os especialistas funcionam como “formadores” de um novo corpo.

Eles imaginam o que desejam criar e, utilizando as referências do imaginário social,

reproduzem a “fôrma” e os valores mais caros associados à saúde imaginária.

Em Além do Peso um especialista é pouco para tanta gordura a eliminar e tanto

transtorno a tratar. A voz legitimadora não é apenas de uma autoridade primordial, como

Márcio Atalla, em Medida Certa, mas de uma “equipe multidisciplinar”, formada por

preparador físico (Alexandre Bró), nutricionista (Bianca Naves), nutrólogo, na primeira

temporada (Thiago Volpi) ou endocrinologista nas temporadas seguintes (Rosa Rahmi) e

psicólogo/a (Vanessa Carminatti, na primeira fase, e Alessandro Vianna, nas demais).

Esses profissionais estão presentes em todos os programas, são os porta-vozes do saber

biomédico, direcionam as opções alimentares e os exercícios físicos; aproximam-se dos

personagens de modo afetuoso, mas, ao mesmo tempo, cheio de autoridade.

8. Do prazer à guerra: duas biopolíticas da forma

Em Medida Certa, o preparador físico Márcio Atalla utiliza o discurso da regularidade

no lugar daquele da atividade física intensiva. A regularidade está sintetizada em torno de

duas ênfases: 1ª) ensinar a cultura da atividade física como algo prazeroso e divertido e 2ª)

combater o “problema” nacional do sedentarismo atrelando aptidão física à promoção da

saúde.

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A cada semana o reality investe em uma prática diferenciada, das mais caseiras às mais

sofisticadas: vôlei, futebol, remo, boxe, pular corda, musculação, natação, hidroginástica,

tênis, entre outras. Vinculado à promoção da saúde, o esporte é explorado como produto do

estilo de vida ativo e da promoção da saúde.

A mistura lazer e movimento, é um discurso bastante aceitável para celebridades que

dormem pouco, viajam muito e não tem hora certa para fazer as refeições. Além do mais,

“qualquer um” pode pular corda, descer e subir as escadas de um prédio e colocar o corpo

em movimento. Diante de tão ampla oferta de exercícios, cada pessoa tem a oportunidade (a

responsabilidade) de escolher a prática que mais combina com suas preferências e gostos.

Quando Medida Certa cria todas as possibilidades para que, em casa, na academia, no

hotel, no parque, os famosos possam praticar alguma atividade física, a meta do

emagrecimento incendeia a mente do público: “querer é poder”; “só não se movimenta

quem não quer”; “magreza/beleza é uma questão de escolha”. Estes discursos são altamente

sedutores, porque, arraigados a eles, há imagens de pessoas que, assim como os famosos,

estão “priorizando” em suas vidas o cuidar de si.

Nesse sentido, a Caminhada Medida Certa multiplica o milagre da reprogramação. A

biopolítica utilizada para promover uma cultura do exercício aos participantes do programa

toma ares de política social, o controle do corpo privado se estende ao corpo público. A

saúde imaginária desloca-se do corpo individual para o coletivo. Nesse contexto, o antigo

estereótipo do telespectador passivo no sofá é substituído por um indivíduo ativo, que não

só busca as informações (na TV, nos aplicativos, nos blogs e sites), mas se responsabiliza

por si, exercitando-se.

Em Além do Peso, os exercícios corporais estão situados em outro campo: o da

exaustão física. Tomando o imaginário do exercício como uma batalha, sobressai-se no

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programa todo um palavreado associado ao discurso bélico. O imaginário do combate e da

guerra permeiam as reportagens. Para emagrecer, é necessário utilizar “táticas” militares,

comandadas com o rigor de um “sargento”. O preparador físico Alexandre Bró incorpora

esta imagem e se coloca como o oficial militar responsável por comandar a tropa de

“soldados” que forma o seu “exército”. Com palavras de ordem próprias desse universo, o

“sargento” Bró pergunta ao seu exército: “Vocês vieram aqui pra quê”? Ao que a tropa,

posicionada em frente ao preparador, responde: “Pra emagrecer!” O treino tem o objetivo de

“levar os participantes à exaustão”, uma estratégia comum em todas as temporadas, na

véspera da pesagem eliminatório da sexta-feira.

O educador físico é o pai imaginário que repreende (“castiga”) com a intensidade dos

exercícios, a partir de uma norma rígida e inegociável (colocar “na linha’), no entanto, por

mais contraditório que pareça, toda essa autoridade e zelo excessivos resultam de um “amor

incondicional”. Tal sentimento tem um poder milagroso de minimizar as más impressões

dos gritos e gestos autoritários, por vezes desrespeitoso, em nome de um sentimento paterno

que justificaria os excessos. Esta estratégia de Além do Peso encontra eco na imaginação

dos participantes, acentuando a mística que a mídia cria em torno dos especialistas que

conduzem à saúde imaginária. Os obesos submetem seu corpo a um esforço militar para

então serem valorizados e amados incondicionalmente. Segundo Chevalier e Gheerbrant, “a

dor diante do sacrifício consentido não tem de ser renegada” (2009, p. 798). No imaginário

religioso, o sofrimento tem como compensação uma esperança no porvir.

Vale frisar ainda que na biopolítica das formas corporais, imagens que expressam apoio

e solidariedade são utilizadas como modo de destacar uma espécie de paliativo para o

sofrimento implicado na sofrida ditadura da malhação. O abraço coletivo salienta uma

espécie de harmonia e cumplicidade, apagando qualquer conflito entre o imaginário militar,

durão e até obcecado que o preparador mostra durante os treinos, com aquele que agora se

revela: o de pai imaginário, que disciplina (como também faz o sargento), castiga e acima

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de tudo ama incondicionalmente. Neste tribalismo posto em cena pela televisão, o que vale

é ir ao encontro, é estar junto, equilibrando o peso da gordura com a leveza da partilha de

um sentimento em comum, o que demonstra a ética da estética em pleno funcionamento

(MAFFESOLI, 2012).

9. Comer sob prescrição

Na atual fase do biopoder, em que a norma foi substituída pelo risco e a verdade pela

informação (BRUNO, 2006), a ideia de moderação surge para dar conta de uma passagem

do dever para a responsabilização. Segundo Vaz (2006), combinar moderação e prazer é um

dos nexos associados ao discurso dos fatores de risco.

Nos dois programas, “moderação” é a palavra-chave quando se fala de reeducação

alimentar. Os hábitos alimentares, diretamente associados aos medos de engordar,

funcionam como pistas de como cada pessoa cuida (ou não) de si mesma. Nesse contexto, o

papel do nutricionista é fundamental, educando para novos modos de se alimentar.

No caso do Medida Certa, procura-se diferenciar as restrições alimentares indicadas aos

famosos (reeducação) das práticas radicais de emagrecimento (dietas). A expressão

“reeducação alimentar” mascara a direção estética da moral da boa forma, já que a seleção

entre alimentos proibidos e permitidos incide diretamente sobre as aparências.

Em Além do Peso, os participantes são submetidos a uma dieta rígida. Em um dos

episódios[2], eles recebem uma caixa apresentada como um “presente” na qual está o prato

preferido de cada um. Quando confrontados com a caixa-presente, o apresentador Britto

Júnior indaga à nutricionista: “isso é presente, doutora Bianca, ou é tortura?”, ao que ela

responde: “Depende do ponto de vista, Britto. Mas a pergunta que eu faço inicialmente é:

quem está gostando de emagrecer aqui?”. Diante do questionamento da nutricionista, todos

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os participantes levantam as mãos afirmativamente, transmitindo unanimidade e adesão,

num tribalismo próprio da decisão de emagrecer em grupo. Juntos, encontram um sentido

maior para a trajetória que estão desbravando no reality show. Como os membros de uma

mesma tribo, eles estão ali não para disputar, e sim para compartilhar experiências e dividir

provações.

O apresentador Britto Júnior ainda afirma que o “presente” pode despertar o monstro

que cada participante carrega. Neste momento, a associação entre obesidade e grotesco se

mostra mais uma vez: “a tensão do limite (ou da reversibilidade) entre o homem e o animal”

(SÓDRE e PAIVA, 2002, p.61). Mitologicamente o monstro combina características

humanas e animalescas e é um dos arquétipos que atravessam todas as culturas, indicando

os medos que devem ser domados, visto que eles ameaçam suas vítimas pelo poder e força

que têm. E o que se espera dos “monstros” que habitam os obesos? Espera-se que eles sejam

eliminados de vez. Domesticados a partir das técnicas dos “formadores” da modelagem

midiática, os monstros foram sacrificados nas provas de fogo da atividade física e da

moralidade alimentar. No lugar deles, surge um ser humano saudável, civilizado, autônomo,

capaz de gerir o próprio corpo e dominar a mente (EHRENBERG, 2010).

10. O tribalismo dos corpos prêt-à-porter

Nos episódios finais dos programas analisados, a ênfase está em mostrar os ganhos

obtidos durante o período de reprogramação corporal: um corpo mais próximo do padrão

almejado pela saúde imaginária, que permite aos sujeitos se subjetivarem de outra maneira.

Isso vale para grotescos e olimpianos. Ambos viram ícone de uma época que transforma o

corpo em imagem, em peças de propaganda.

Voltados para a apresentação e o consumo de si como imagem, os corpos prêt-à-porter

potencializam o imaginário dessa época, altamente encantada com as luzes do ver e do ser

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visto. De fato, nos reality de reprogramação corporal tudo funciona a serviço da arte de

mostrar. Nesse sentido, a ideia de corpo como “máquina de comunicar” é alargada ao

máximo, pois, o corpo individual se desloca, se reprograma, se refaz, se anima em um corpo

social. Reflexo de seu criador (os meios de comunicação), esse novo corpo individual

acentua seu pertencimento ao imaginário social, pois, foi gestado, antes, na imaginação. Ou

seja, a saúde imaginária domestica os corpos individuais, porém o grande objetivo é o corpo

social, as medidas coletivas, o controle biométrico de uma sociedade.

Da emissão no fluxo televisual às possibilidades de interação, o tempo inteiro os

programas querem ampliar o alcance do imaginário sobre a saúde, indo das lutas e vitórias

dos participantes (individuais) para as do público. Diante disso, enquadrando a participação

por meio da sedução das imagens, o reality show firma-se como um totem poderoso, que

não apenas insere os iniciados no percurso da modelagem midiática, mas também alcança as

necessidades daqueles que estão separados pelo tempo ou pelo espaço da emissão televisual.

Multiplica o dever de cuidar do corpo, mas também amplia a ética da estética, simbolizando

a identificação em torno de um imaginário comum: a saúde ideal.

O simples fato de aderir (ou assistir) ao reality show coloca o participante (e o público)

em sintonia com o tribalismo pós-moderno: as pessoas decidem emagrecer juntas e,

dispersando-se no grupo, se desprendem dos tormentos da escolha, ficam isentas da

responsabilidade de trilhar sozinhas – e pesadas – os rumos da vida sedentária. O convite da

reprogramação (modelagem) implica numa adesão, na formação de novos vínculos

propiciados nas ambiências das tecnologias do imaginário.

Para Silva, as tecnologias do imaginário cristalizam o trajeto antropológico na vida

social, funcionando num espaço de contradições.

As tecnologias do imaginário são dispositivos (Foucault) de intervenção, formatação,

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interferência e construção das “bacias semânticas” que determinarão a complexidade

(Morin) dos “trajetos antropológicos” de indivíduos ou grupos. Assim, as tecnologias do

imaginário estabelecem “laço social” (Maffesoli) e impõem-se como o principal mecanismo

de produção simbólica da sociedade do espetáculo” (Debord). (SILVA, 2012, p.20,21).

Antes de apresentar as conclusões deste texto, vale registrar pequenas diferenças entre

os dois programas em seus episódios finais: Medida Certa ilustra o imaginário da

pós-modernidade que confere ao corpo a razão moralizadora da aparência ideal. Quando o

programa induz Ronaldo a provar o blazer como forma de mostrar, na prática, o mérito do

emagrecimento, vê-se a ênfase que o programa dá a aparência, subjacente à reprogramação.

Além do Peso parece ir na direção do ideal platônico. Embora uma abordagem relativa à

beleza ainda se faça presente, busca-se uma autonomia da alma em relação ao corpo. A

beleza já não depende tanto das banhas ou da flacidez, ainda à vista, mas do que está “por

dentro”.

11. O vai e vem de corpos insubordinados

Para abordar as relações entre corpo, saúde, aparência, os reality show de

reprogramação corporal articulam a realidade da vida cotidiana às técnicas do espetáculo

televisual, nutrindo-se de estratégias como uma tópica da subjetividade exteriorizada

(BRUNO, 2013), uma biopolítica do corpo (FOUCAULT, 2013), e uma aliança entre a

promoção da saúde e os fatores de risco (VAZ, 2006). Agindo assim, eles combinam, num

só discurso, toda uma compreensão acerca do paradoxo padrão de corpo x vida saudável,

utilizando as aparências como formas formantes e fundantes (MAFFESOLI, 2010) de um

conhecimento sobre o que é e como obter saúde na vida cotidiana.

Tratando o corpo humano com uma lógica de reprogramação, Além do Peso e Medida

Certa fazem supor que “qualidade de vida” é produto de certas relações centradas em retirar

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(da “memória do corpo”) “hábitos ruins” e inserir hábitos bons, resultando no alcance da

“medida certa”. Mas, não custa alertar que, tão fugaz quanto os meses de reprogramação, é

a disposição de se manter na “medida certa”.

Tomando como referência os exemplos aqui analisados, é bom lembrar que, por vezes,

a promessa de vida saudável de olimpianos e grotescos se diluiu com o retorno à vida

cotidiana fora da medição e da mediação televisual. O corpo cumpriu seu destino na

narrativa televisual e depois se desfez. Finalizada a pressão de estar sob o controle das

câmeras, dos especialistas e acompanhados por milhões de brasileiros, alguns engordaram

após o reality show. Isso mostra que “reprogramar” corpos humanos não é algo tão

instrumental e linear, pois, nem sempre eles respondem exemplarmente a lógica racional de

causa e efeito. Há sempre a possibilidade de se deparar com bugs em corpos

insubordinados.

Notas

[1] A relação perda (de peso) e ganho (de dinheiro, beleza, saúde) é o mote desse reality show, criado em 2004 pela TVnorte-americana NBC. No Brasil foi chamado de “O Grande Perdedor”, veiculado pelo SBT.

[2] Além do Peso, 30/01/2014.

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