castoriadis, cornelius - a instituição imaginária da sociedade

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CORNELIUS CASTORIADIS

A INSTITUI<;Ao IMAGINARIADA SOCIEDADE

Traducao de Guy ReynaudRevisao tecnica - Luis Roberto Salinas Fortes

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III. A INSTITUIC;AO EO IMAGINARIO:PRIMEIRA ABORDAGEM

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A instituiciio : a vlsao econcmlco-funcional

A alienacao nao e nem a inerencia ahistoria, nem a existencia da ins-tituicao como tal. Mas a alienacao surge como uma modalidade da rela-eao com a instituicao e, par seu intermedio, da relacao com a hist6ria. ~esta modalidade que precisamos elucidar, e para isso, melhor compreen-der 0 que e a instituicao .

Nas sociedades historicas, a alienacao aparece como encarnada naestrutura de c1asse e 0 dominio por parte de uma minoria, mas na verda-de ela u Itrapassa esses traces. A superacao da alieriacao pressupoe evi-dentemente a elirninacao do domlnio de toda classe particular, mas vaialern desse aspecto. (Nao que as classes possam ser eliminadas e a aliena-cao subsistir .•ou ° inverse; mas as classes s6 serao efetivamente elimina-das, ou impedidas de renascer, paralelamente a superacfio do que consti-tui a alienacao propriamente dita). Vai alem, porque a alienacao existiuem sociedades que nao apresentavam uma estrutura de c1asse, nem rnes-mo uma importante diferenciacao social; e porque n uma sociedade dealienacao, a pr6pria classe dominante esta em situacao de alienacao: suasinstituicoes njio tern com ela a relacao de pura exterioridade e de instru-mentalidade que lhe atribuem as vezes marxistas ingenues: ela nao podemistificar 0 restante da sociedade com sua ideologia sem mistificar-se a simesma ao rnesmo tempo. A alienacao apresenta-se de inicio como alie-naca o da sociedade as suas instituicoes, como autonomizacdo das institui-

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coes com relucilo :\ sociedude. 0 que t! que se uutonomiza ussirn, por que 'ecomo - cis 0 que se trata de cornpreender.

Estas coristatacoes levam a um questionamento da visjlo corrente dainstituicao, a qual charnaremos de visflo cconornico-funcionul'. Referi-mo-nos a visao que quer explicar tanto a existencia da instituicao comosuas caracterlsticas (ideal mente, ate as minimos detalhes) pelafun"ao que!a instituicao preenche na sociedade e as circunstsncias dadas, par seu pa-pel na economia de conjunto da vida social 1. Pouco importa, do nossoponto de vista, que esta funcionalidade possua urn aspecto "causalista"ou "finalista"; igualmente poueo importa 0 processo de nascimento e desobrevivencia da instituicdo. Quer se diga que os homens, tendo Com-preendido a necessidade de que tal funcao Fosse preenchida, criararnconscientemente 'uma instituicao adequada; ou que a instituicao tendosurgido "por acaso" mas sendo Funcional tenha sobrevivido e permitidoque a sociedade considerada sobrevivesse, ou que a sociedade tendo nc-cessidade de que tal funcao Fosse preenchida, apoderou-se do que encon-trava encarregando-o desta funcao: ou entilo que Deus, a razao, a logica

. da hist6ria organizaram e continuam organizando as socicdades e as ins-tituicoes que lhes correspondem - colocamos a en rase em uma e a mesmacoisa,' a funcionalidade, 0 encadeamento sem falha dos meios e dos finsou das causas e efeitos no plano geral, a estrita correspondencia entre ostraces da instituicao e as necessidades "reais" da sociedade considerada,em resumo, sobre a circulacao integral e ininterrupta entre urn "real" eum "racional-funcional",

I Assim, segundo Bronislaw Malinowski. 0 de que se Irata c da.i. "explicacilo dos fatesantropologicos em todos os nlveis de desenvolvimento por sua fun ••ao, pelo papel que de-sempenharn no sistema. e pela maneira pel a qual esse sistema e ligado ao meio natural... Avisiio funeionalista da cultura insiste pois no principio de que em cada tipo de civilizacao,cada costume, objeto material, ideia e crenca preenche uma funcao vital, tem uma tarefapor realizar, representa uma parte indispensavcl no interior de urn todo que funciona(within a working whole)". "Antropology". Encylopaedia Britanica, suppl. vol. I, New Yorkand London. 1936, p. 132-133. Vcr tarnbern A.R. Radclifc-Brown, Structure and Function ill

Primitive Society, London, Cohen and Wesi, 1952. (tr. fro Structure et fonction dans la socie-te primitive, Paris, Ed. de Minuit, \969).

2 ~ finalmenle tarnbem a visao marxista, para a qual as instituicoes represcntam a cadavez os meios adequados pelos quais a yida social se organiza para adaptar-se as exigenciesda "infra-estrutura". Esta visao e amenizada por diversas consideracoes: a) A dinamica so-cial assenta-se no fato de que as instituicoes nao se adaptnm autornauca e cspontaneamcntea evolucao da tecnica, existe passividade, mercia e "atraso " recorrente das instituicoes emrela"iio a infra-estrutura (que deve ser cada vez rompido por uma evolucao); b) Marx via cla-r arnente a autonomizacao das instilui"oes como n essencia da alienacao - mas possuia final-mente uma visao "Iunclonal" da propria alienacao: c) as exigencias da logica propria dainstituicao, as quais podern separar-se da Iuncionalidadc, nao cram ignoradas; mas sua rea-lacao com as exigencias do sistema social cada vez considcrado, e principalmente com "asnccessidades de dornlnio da classc exploradora" permancce obscura, ou entfio e integrada(como na analise da cconomia capitalista por Marx) na funcionalidade contraditoria do sis-tema, Volturemos mais adiante a esscs diversos pontos. A crftica do funcionalismo formula-da n as paginas seguintes. e que se situa em outro nivel, tarnbern Ii valida para 0 rnarxisrno.

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Nao contestarnos a visao funcionalista na medida em que chama'nossa atencao para 0 fato evidente, mas capital, de que as instituiceespreenchem funcoes vitals sem as quais a existencia de uma sociedade e in-conceblvel. Mas a contestamos na medida em que pretende que as insti-tuicoes se limitem a isso, e que sejarn perfeitamente compreenslveis a par-.tir deste pape\. .

Lembremos, em primeiro lugar, que a contrapartida negativa da vi-sao contestada indica qualquer coisa de incompreensfvel para esta pro-pria visao: 0 grande nurnero de casos em que constatamos, nas socieda-des dadas, funcoes que "nao sao preenchidas" (em bora pudessem se-lono nlvel dado de desenvolvimento historico), com conseqilencias as vezesmen ores, outras vezes catastroficas, para a sociedade em q uestao •.

Contestamos a visao funcionalista, sobretudo. devido ao vazioque apresenta naquilo que deveria ser para ela 0 ponto central: quais sacas "necessidades reais" de uma sociedade, que as instituicoes se destina-dam a servir J? Nilo sera evidente que, desde que abandonamos a compa-nhia dos macacos superiores, os grupos humanos constitulram outras ne-cessidades que nao apenas as biol6gicas? A visilo funcionalista s6 poderealizar seu programa se ela se outorga urn criterio da "realidade" das ne-cessidades de uma sociedade; de onde 0 tomaria? Conhecemos as necessi-dades de urn ser vivo, do organismo biologico, e as suas func;oes, corres-pondentes; mas 0 organismo biol6gico nao e mais que a totalidade dasfuncoes que cumpre e que 0 fazem viver. Urn cachorro come para viver,mas tambern podemos dizer que vive para comer: viver, para ele(e para aespecie cachorro) riao e senao comer, respirar, reproduzir-se etc. Masisso nada significa para urn ser humano, nem para uma sociedade. Umasociedade s6 pode existir se uma serie de funcoes silo constanternentepreenchidas (prcducao, gestacao e educacao, gestae da coletividade, re-solucao dos litlgiosr etc.), mas ela nilo se reduz 56 a isso, nem suas manei-ras de encarar seus problemas sac ditadas uma vez por todas por sua"natureza"; ela inventa e define para si mesma tanto novas maneiras de,responder as suas necessidades, como novas necessidades. Voltaremoslongamente a esse problema.

Mas 0 que deve fornecer 0 ponto de partida de 'nossa pesquisa ve amaneira de ser sob a qual se constitui a instituicjlo - a saber, 0 simbolico.

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• As destruicoes 'hfst6ricas "iniernas" de sociedades dadas - Roma, Bizilncio etc. - for-necern os contra-exemplos da visao funcionalista. Em outre contexto, ver 0 caso do! She-rente e 05 dos Bororo descritos por Claude Levi-Strauss, Anthropologie structural, p, 137-139 e p. 141 (niio-runcionalidade dos clas).

3 Assim, diz Malinowski: "A rum;ao signilica sempre a satisfac;ao de uma necessidade","The Functional Theory", em A Scientific Theory of Culture, Chapel Hill. N,C., 1944, p.159,

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A institul~io e 0 slmb6lico

Tudo 0 que se nos apresenta, no mundo social-historico, esta indis-sociavelmente entrelacado com 0 simb6lico. Nfio que se esgote nele. Osatos reais, individuais ou coletivos - 0 trabalho, 0 consumo, a guerra, 0

a mor, a natalidade - os inumeraveis produtos materiais sem os quais ne-nhuma sociedade poderia viver um so memento, nao.sao (nem sernpre,niio diretamente) sfmbolos. Mas uns e outros sac imposslveis fora deurna rede simb6\ica.

Encontramos primeiro 0 simb6lico, e claro, na linguagem. Mas 0 en-contramos igualrnente, num outro grau e de uma outra maneira, nas ins-.rituicoes. As instituicoes nao se reduzem ao simb6lico, mas elas s6 podemexistir no sirnbolico, sao impossfveis fora de um simb6lico em segundograu e constituern cada qual sua rede simb61ica. Urna organizacao dadada econornia, urn sistema de direito, um poder instituido, uma religijioexistern socialmente como sistemas simb6licos sancionados. Eles consis-tern em ligar a sfmbolos (a significantes) significados (representacoes, or-dens, injuncces ou incitacoes para fazer ou nao fazer, conseqilencias, -significacoes, no sentido ample do termo *) e faze-los valer como tais, OU

seja a torriar esta ligacao mais ou menos forcosa para a sociedade ou 0

grupo considerado. Um titulo de propriedade, um ato de venda e urnsimbolo do "direito", social mente sancionado, do proprietario de proce-der a urn nurnero indefinido de operacoes sobre 0 objeto de sua proprie-dade, Urna folha de pagarnento e 0 simbolo do direito do assalariado deexigir uma quantidade estabeleeida de cedulas que sac 0 simbolo do di-reito de seu possuidor de dedicar-se a uma variedade de atos de cornpra,cada urn deles vindo a ser, por sua vez, simbolico. 0 proprio trabalho queesta na origem desta folha de pagamento, embora eminentemente realpara seu sujeito e em seus resultados, e constantemente pereorrido poroperacoes simb61icas (no pensamento daquele que trabalha, nas instru-!;oes que recebe, etc.). E ele pr6prio se torna sirnbolico Hio logo, reduzidoprimeiro a horas e minutos afetados por tais coeficientes, ele entra na ela-boracao contabil da folha de pagamento ou do balance "resultados deexploracao" da empresa; quando tam bern, em caso de litigio, ele verupreencher as premissas e conclusoes do silogismo juridico que decidira.As decisoes dos planificadores da economia sac sim bolicas (sem e comironia). As sentencas do tribunal sao simb6licas e suas conseqilencias 0

'sao quase que integralmente, ate 0 gesto do carrasco que, real por exee-lencia, e imediatamente t arnbern sirnbolico em outro nlvel,

Toda visao funcionalista conhece e deve reconhecer 0 papel do sim-bolismo na vida social.

Mas e 56 raramente que ela reconhece sua irnporta ncia - e tende, en-tlio, a Iimita-la. Ou 0 simbolismo e visto como simples revestimento neu-

• "Significante" e "significado" sao tornados aqui e a seguir lat issinio .H'I/XII.

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tro, como instrumento perfeitamente adequado a exprcssao de um eon-teudo preexistente, da "verdadeira substdncia" de relacoes socials, quenem acrescenta nem diminui nada. Ou entao a existencia de uma "logicapropria" do sirnbolisrno e reconhecida, mas esta 16gica e vista exclusiva-mente como a insercao do simbolico em uma ordem racional, que impoesuas conseqllencias, quer as desejernos ou nao 4. Finalmerrte, dentro dessavisao, a forma esta sernpre a service do fundo, e 0 fundo e "real-racional" .. Mas nilo e assim na realidade, e isso destr6i as pretensoes in-terpretativas do funcionalismo.

Tomemos 0 exern plo da religiao, esta instituicao tao importante emtodas as sociedades historicas. Ela semprc comporta (nao discutiremosaqui os casos extremes) urn ritual. Consideremos a religiao mosaica. Adefinicao de seu ritual do culto (no sentido mais amplo) comporta umaproliferacao sem fim de detalhes; esse ritual, estabelecido com muitomais detalhes e precisilo do que a Lei propriamente dita I, decorre direta-mente de mandamentos divinos e por isso alias todos os seus detalhes saocolocados no mesmo plano .. 0 que determina a especificidade destes de-talhes? Por que silo todos colocados no mesmo plano?

A primeira pergunta, s6 podemos dar uma serie de respostas par-ciais. Os detalhes sac em parte determinados em referenda a realidade ouao conteudo (num templo fechado sao necessaries candelabros; tal ma-deira ou metal eo rnais precioso na cultura considerada, digno, entao, deser utilizado - mas ja nesse caso aparece 0 slrnbolo e toda sua problemati-ca da metafora direta ou por oposicao: nenhum diamante e suficie.ite-mente precioso para a tiara do Papa, mas 0 Cristo lavou ele mesm.: ospes dos Apostolos). Os detalhes possuern uma referencia, nao funcional,mas simb6lica, ao conteudo (seja da realidade, seja do irnaginario religio-so: 0 candelabro tem sete lampadas). Os detalhes podem enfimser deter-minados pelas implicacoes ou consequencias logico-racionais das consi-deracoes precedentes.

Mas estas consideracoes nao permitem interpretar de maneira satis-fat6ria e integral um ritual qualquer. Primeiro, elas sempre deixam rest-duos; no quadruple entrelacarnento cruzado do funcional, do simb61ico ede suas consequencias, os furos .silo mais numerosos que os pontos

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4 "Em um Estado moderno e precise nile somente que 0 direito corresponds a situacaoeconemica geral e seja sua expressao, mas ainda que seja sua expressao sistematica, a qualnile se inflige urn desmentido pr6prio por suas contradicces internas. E, para obter exito,ele reflete cada vez rnenos lielmente as realidades econcmicas". Fr. Engels, carta a ConradSchmidt de 27 de outubro de 1890. (Repr. in K.M., F.E., Etudes philosophiques, op. ell. p.158).

5 No txodo, a Lei e formulada em quatro capltulos (20 a 23) porern 0 ritual e as diretri-zes concernentes Ii. construcao do Tabemaculo ocupam onze (25 a 30 e 36 a 40). As injun-cees concernentes ao ritual retornam alias permanentemente; cr. Levitico, I a 7; Numeros,4,7-8, 10, 19.28,29 etc. A construcao do Tabernacu!o e tarnbern descrita com uma granderiqueza de detalhes em varias passagens nos Iivros hist6ricos.

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cobertos. Em seguida, elas postulam que a relacao sirnbolica e simples enatural. quando na verdade ela coloca problemas imensos: para comecn-o fato de que a "escolha" de um slm bolo nao e nunea nem absolutamenteinevitavel, nem puramente aleat6ria. Um sfmbolo nem se irnpoe comuma necessidade natural, nem pode privar-se em seu teor de toda refe-rencia ao real (somente em alguns ram os da maternatica se poderia ten tar

-encontrar slmbolos totalmente "convencionais" - mas uma convenc:;aoque valeu durante algurn tempo deixa de ser pura convencao). Enfim,nada permite determinar es fronteiras do simb6lico. Ora, do ponto de vis-ta do ritual, e a materia que e indiferente, ora e a forma, ora nenhuma dasduas: fixamos a materia de tal objeto, mas nao de todos; 0 mesmo se daem relacao a forma. Um certo tipo de igreja bizantina e em forma decruz; acreditamos compreender (mas somos obrigados a perguntar-noslogo, porque todas as igrejas eristils nilo 0 silo). Mas esse motivo da cruz,que poderia ser reproduzido em outros elementos e subelementos da ar-quitetura e da decoracao da igreja nile 0 e: ele e retomado em certosnlveis, mas em outros nlveis encontramos outros motivos, e existern ain-da nlveis total mente neutros, simples elementos de suporte ou de preen-chimento. A escolha dos pontos de que se apodera 0 simbolismo para in-formar e "sacramentar" em segundo grau a materia do sagrado pareceem grande parte (nem sempre) arbitraria. A fronteira passa quase porqualquer Iugar; existe a nudez do templo protestante e a selva luxuriante·de certos templos hindus; e de repente, hi onde 0 simbolismo parece ter-seapoderado de cad a milfmetro de materia, como em alguns pagodes noSiao, percebe-se que, ao mesmo tempo, esvaziou-se de conteudo, que setornou essencialmente simples decoracao 6.

Em suma, um ritual nao e um processo racional- e isso permite res-ponder a segunda pergunta que fizemos: por que todos os detalhes sao co-locados no mesmo plano? Se um ritual Fosse urn processo racional, po-der/amos encontrar nele a distincao entre 0 essencial e 0 secundario, ahierarquizacao propria a toda rede raciona\. Mas n urn ritual nao existenenhum meio de diferenciar, at raves de quaisquer consideracoes de con-teudo, 0 que importa muito e a que importa men os. A colocacao no mes-mo plano, do ponto de vista da irnportancia, de tudo 0 que cornpoe um

.ritual e precisamente 0 indicador do carater ndo racional do seu conteu-do. Dizer que nao pode haver graus no sagrado, e urna outra maneira dedizer a mesma coisa: tudo aquilo de que 0 sagrado se apoderou e igual-mente sagrado (e isso vale tarnbern para os rituais das neuroses obsessi-vas ou das perversoes),

. Mas os funcionalistas, marxistas ou nao, nao gostam muito da reli-giao, que tratam sernpre como se fosse, do ponto de vista sociol6gico,

6 lsso e uma consequencia desta lei fundamental segundo a qual todo simbolismo ediacrhico ou age "por diferenca": urn signo so pode emcrgir como signo sobre 0 fundo dealguma coisa que ndo e signo ou que e signa de outra coisa. Mas isso n50 permite detcrrni-nar concretamentc por onde deve passar a fronteira de cada vez.

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uma pseudo-superestrutura, urn eplfenorneno dos cpifenomenos. Vcja-mos entao uma instituicao seria como a direito, diretamente ligada a"substancia" de toda sociedade, que e, segundo dizem, a econornia, e quenenhuma relacao tem com fantasmas, candelabros e beatices, e sim comessas reais e solidas relacoes sociais que se exprirnern na propriedade, nastransacoes e nos cantatos. No direito, deverlarnos poder mostr ar que 0

simbolisma esta a service do conteudo e s6 deste se afasta na medida emque a racionalidade 0 forca. Deixernos tarnbern de lado estes bizarros pri-mitivos com que nos enchem os ouvidos e entre os quais, alias, seria rnui-to diflcil diferenciar as regras propriamente jurldicas das outras. Tome-rnos uma sociedade hist6rica e reflitamos.

Diremos, entao, que em determinada etapa da evolucdo de uma so-ciedade hist6rica surge necessariamente a instituicao da propriedade pri-vada, pois esta corresponde ao modo fundamental de producao. Umavez estabe1ecida a propriedade privada, uma serie de regras devern ser fi-xadas: os direitos do proprietario deverao ser definidos, as violacoes des-tes sancionadas, os casos limites definidos (uma arvore cresce na linha di-vis6ria entre dois terrenos; a quem pertencem os frutos?) Na medida emque a sociedade dada se desenvolva economicamente, que 'as trocas semultipliquem, a transrnissao livre da propriedade (que no inlcio njlo e demodo algum natural e nao e necessariamente reconhecida, principalmen-te para os bens imoveis) deve ser regulamentada, a transacao que a efetuadeve ser formalizada, deve adquirir uma possibilidade de verificacao que'minimize os posslveis litlgios, Assirn, nesta lnstituicao que permanece umeterno monumento de r acionalidade, de economia e de funcionalidade,equivalente institucional da geometria euclidiana - referirno-nos ao direi-to romano - se elaborara durante os dez seculos que vao da Lex Duode-cim Tabularum ate a codificacao de Justiniano, est a verdadeira floresta,mas bem organizada e bem construfda, de regras que estao a service dapropriedade, as transacoes e os contratos. E, tomando esse direito em suaforma final, poderemos mostrar para cada paragrafo do Corpus que a re-gra que ele contern ou esta a service do funcionamento da economia au erequerida por outras regras que 0 estao.

Poderemos rnostra-lo - e nada terernos mostrado quanto ao nossoproblema. Pois nao somente no momento em que 0 direito romano chegaa isso, as r azoes de ser desta funcionalidade elaborada recuam, sofrendoa vid a econornica urn a regressilo desde 0 III seculo de nossa era;de tal rnaneira que, no que concerne ao direito patrimonial, a codificacaode Justiniano aparece como um monumento inutil e em grande parte re-dundante relativamente a situacao real de sua epoca ', Niio somente essedireito, elaborado na Rorna dos consules e dos Cesares, encontrara, de

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7, Est a funcionalidade excessiva, redundante, e de fat o uma disfuncionalidude e os impe-radores bizantinos serao obrigados em diversas' ocasioes a reduzir a codificacao exagcradade Justiniano, resumindo-a. .

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maneira paradoxal, sua funcionalidadc em m uitos paises europeus apartir da Renascenca, e permanecera 0 Germeines Recht da Alemanha ca-pitalista ate 1900 (0 que se explica, ate certo ponte, por sua extrema "ra-cionalidade", portanto, universalidade). Mas, sobretudo, enfatizando afuncionalidade do direito rornano, escamotearemos a caracteristica do-·minante de sua evolucao durante dez seculos, justamente aquilo que fazdele urn fascinante exernplo do tipo de relacoes entre a instituicao e a"realidade social subjacente": esta evolucao foi um longo esforco para al-cancar precisamente esta funcionalidade, a partir deum estado que estava longe de possui-la. No inlcio, 0 direito romano e urn conjunto rudi-mentar de regras rlgidas, onde a forma esmaga 0 fundo num grau que ul-trapassa de longe 0 que poderiam justificar as exigencias de todo direitocomo sistema formal. Para citar urn s6 exemplo, alias central, 0 que e 0

nucleo funcional de toda transacao, a vontade e a intencao das partescontratantes, desempenha durante muito tempo um papel inferior em re-Iacjio a lei; 0 que domina, eo ritual 8 da transacao, 0 fato de que tais pala-vras foram pronunciadas, tais gestos realizados. S6 gradualmente se ad-rnitira que 0 ritual s6 pode ter efeitos legais, na medida em que a verda-deira vontade das partes os visava, Mas 0 corolario sirnetrico desta pro-posicao, a saber, que a vontade das partes pode constituir ohrigacoes in-dependentemente da forma que adquire sua expressao, 0 principio que eo fundamento do direito das obrigacoes moderno e que exprime verda-deiramente seu carater funcional: pacta sunt servanda, jamais sera re- .conhecido 9. A licao do direito romano, considerado em sua evolucao his-t6rica real, nao e a funcionalidade do direito, e sim a relativa independen-cia do formalismo ou do simbolismo em relacao a funcionalidade, no ini-cio; em seguida, a conquista lenta, e jamais integral, do sim bolismo pelafuncionalidade.

A ideia de que 0 simbolismo e perfeitamente "neutro" ou entao - 0

que vern a ser 0 mesmo - totalmente "adequado" ao funcionamento dosprocessos reais e inaceitavel e, a bem dizer, sem sentido.

a simbolismo nao pode ser nem ncutro, nem totalmente adequado,primeiro porque nao pode tomar seus sign os em qualquer lugar, nempode tomar quaisquer signos. Isso e evidente para 0 indivlduo que encon-tra sempre diante de si uma linguagem ja constitufda ", e que se atribui

8. A palavra ritual irnpoe-se aqui, visto que 0 tegumento rcligioso.das transacoes no co-rneco e inconresravel.

9. "Ex nudo pacta inter elves R omanos actio nan nascitur". Sabre as acrobacias pelasquais cs pretores conseguiram abrandar consideravelmerite esta regra, mas sem jamais ou-sar descarta-Ia completamentc. podemos ver qualquer hist6ria do direito romano, p. ex. R.von Mayr, Romisch e Rechtsgeschichte, Leipzig (Goschenverlag), 1913. vel. 11,2, II, p. 81-82, vel. IV, p. 129 etc.

10. "He. urna eficacia do si&-nificante que escapa a toda explicacdo psicogenetica, poisessa ordern significante, sirnbolica, 0 sujeito nilo a introduz, e sirn a encontra". JacquesLacan, Scruina rio 1956-1957. relatorio por J. B. Pontalis, Bulletin de psychologie, vol. X. n97, abril 1957, p. 428.

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um scntido "privado" e especial a tal palavra, tal expressao, njlo 0 fazdentro de uma liberdade ilimitada mas deve 'apoiar-se em algurna coisaque "ai se encontra". Mas isso e igualmente verdadeiro para a sociedade,embora de uma maneira diferente. A sociedade constitui sernpre sua or-dem simb61ica num sentido diferente do que 0 individuo pode fazer. Masessa .constituicao nao e "livre". Ela tarnbern deve tomar sua materia no"que ja existe": Isso e primeiro a natureza - e como a natureza nao e urncaos, como os objetos naturals sac ligados uns aos outros, isso acarretaconseqliencias. Para uma sociedade que conhece a existencia desse ani-mal,o leao significa a forca. Imediatamente, ajuba assume para ela umaimportancia sirnbolica que provavelmente nunca teve para os esquim6s.Mas isso tarnbern c a hist6ria. Todo sirnbolismo se edifica sobre as ruinasdos ediflcios sirnbolicos precedentes, utilizando seus materiais - mesmoque seja s6 para preencher as fundacoes de novos temples, como 0 fize-ram as atenienses ap6s as guerras medicas, Por suas conexoes naturais ehist6ricas virtualmente ilimitadas, 0 significante ultrapassa sempre a liga-Cao rigida a urn significado preciso, podendo conduzir a lugares total-mente inesperados. A constituicao do simbolismo na vida social e hist6ri-ca real nao tem qualquer ligacao com as definicoes "fechadas" e "trans-parentes" dos simbolos ao longo de urn trabalho m atem atico (0 qualalias jamais pode fechar-se sobre si p r6prio).

Um belo exernplo, que concerne ao mesmo tempo ao simbolismo dalinguagem e ao da instituicao e 0 do "Soviete dos cornissarios do povo".Trotsky relata em sua autobiografia que quando os bolchevistas toma-ram 0 poder e formaram urn governo, foi preciso encontrar urn nomepara 0 mesrno. A designacao de "rninistros" e "Conselho dos ministros"nao agradava absolutamente a Lenine, porque Icmbrava os ministrosburgueses e seu desempenho. Trotsky propos os term os "comissarios dopovo" e, para 0 Gover no, em seu conjunto, "Soviete dos cornissarios dopovo". Lenine ficou encantado - ele achava a expressao "terrivelmenterevolucionaria" - e esse nome foi adotado. Criava-se uma nova lingua-gem e, acreditava-se, novas instituicoes, Mas ate que ponto tudo isso eranovo? a nome era novo; e existia, em tendencia pelo menos, urn novoconteudo social a exprirnir: os Sovietes 180 estavam, e era de acordo com asua maioria que os bolchevistas haviarn "tornado 0 poder" (que no mo-mento tarnbern nao passava de um nome). Mas no nlvel intermediarioque iria revelar-se decisivo, 0 da instituicao em sua natureza simb61icaem segundo grau, a encarriacao do poder num colegio fechado, inarnovi-vel, cume de um aparelho administrativo distinto dos administrados - nes-se nivel, ficava-se de fato nos ministros, tornava-se a f'orrna ja criada pelosreis da Europa Ocidental desde 0 firn da Idade Media. Lenine, que osacontecimentos haviam forca do a interromper a redacao do Estado e aRevolucdo onde ele dernonstrava a inutilidade e a nocividade de urn go-verno e de uma adrninistracao separados das massas organizadas, taologo encontrou-se dianle do vazio criado pel a revolucao, e apesar da pre-senca das novas instituicoes (os Sovietes) .s6 soube recorrer a forma insti-

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tucional que ja existia na hist6ria. Ele niio queria 0 nome "Conselho derninistros", mas era urn Conselho de ministros que ele queria - e ele 0 te-ve, no final. (f: claro que isso vale tarnbern para os outros dirigentes bol-chevistas e para 0 essencial dos mernbros do partido). A revolucao criavauma nova linguagem e tinha coisas novas a dizer; mas os dirigentes que-dam dizer com palavras novas coisas antigas.

Mas esses simbolos,esses significantes, ja quando se trata da lingua-gem e infinitamente mais quando se trata das instituicoes, nao sao total-mente subjugados pelo "conteudo" que supostamente tern que veicular,mas tarnbern por uma outra razao. E que eles pertencem a estruturasideais que Ihes sao proprias, que se inserem em relacoes quase-racionais ", A sociedade se depara constantemente com 0 fato de que urnsistema simb6lico qualquer deve ser manejado com coerencia; quer ele 0

seja ou nao,. surge dai uma serie de consequencias que se irnpoem, querten ham ou nao sido conhecidas e desejadas como tais. .

FreqUentemente parecemos acreditar que esta logica simbolica, e aordem racional que em parte Ihe corresponde, nao colocam problemaspara a teoria da hist6ria. Na verdade, colocam imensos problemas. Urnfuncionalista pode considerar como natural. que, quando uma sociedadese da urna instituicao, ela se da ao mesmo tempo, como possiveis todas asrelacoes simbolicas e racionais que esta instituicao traz ou engendra - ouque, de toda maneira, s6 haveria contradicao ou incoerencia entre os"fins" funcionais da instituicao e os efeitos de seu funcionamento real,cada vez que uma regra e estabelecida, sendo garantida a coerencia decada uma de suas inumeras consequencias com 0 conjunto das outras re- .

. gras ja existentes e com os fins conscientes ou "objetivarnente" persegui-.dos, Basta enunciar c1aramente esse postulado para constatar seu caraterabsurdo; ele significa que 0 Esplrito absoluto preside 0 nascirnento ou amodlflcacao de cada instituicao que aparece na hist6ria (0 fato de que 0imaginamos presente no pensarnento dos que criam a iristituicao ou es-condido na forca das coisas nada muda) 11.

II. Quase racionais: racionais em grande parte, mas como no uso social (e nao cientffico)do simbolismo 0 "deslocarnento" e a "condensacao" como dizia Freud (a rnetafora e a me-to nimia, como diz Lacan) estao constantemente presentes, nao pod em os identificar pura csimplesmente a 16gica do simbolismo social com uma "logica pura", nem mesmo com a 10-giea do discurso lucido,

12. - Evidentemente Ii precise ser urn esplrito simples, como Einstein, para escrever: "Eurn verdadeiro milagre que possarnos realizar, sem encontrar grandes dificuldades, esse tra-balho (de recobrir uma superflcie lisa de marrnore por uma rede de retas que formam qua-dr a dos iguais, como nas coordenadas cartesian as ... ) (Fazendo isso) ndo tenho mais a possi-bilidade de ajustar os quadeilateros de tal modo que suas diagonals sejam iguais. Se elas asao por simesm as, isto e urn favor especial que me concede a superflcie do marrnore c as pe-quenas regras, favor esse que 56 pode me provocar uma surpresa agradavel." Relativity,London (Methuen). 1960, p. 85. As difcrentes tendencias deterministas, nas "ciencias 50-

ciais", ha muito tcmpo ultrapassaram esses espantos infantis.

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o ideal da interpreta«ao economico-funcional e de que as rcgr as ins-tituidas devern aparecer, seja como funcionais, seja como real au logica-mente imp!icadas pelas regras funcioriais. Mas esta impiicacao reul ou 16-gica nao e dada de sald a , ela nao e automaticamente homcgenea il 16gicasimb6lica do sistema. 0 exernplo do direito romano ai esta para m ost rarque uma sociedade (dominada por predilecjio pel a 16gica jurldica, comodemonstrou 0 even to) levou del. seculos para descobrir essas irnplicacoese submete-Ihes aproximativamente ao simbolismo do sistema. A conquis-ta da logica simb6lica das instituicoes e sua "racionaliza~ao" progrcssivasao elas mesmas processos hist6ricos (e relativamente recentes). Entre-mentes, tanto a compreensao pela sociedade da 16gica de suas institui-coes, como a sua nilo-compreensao sac fatores que pesarn muito em suaevolucao (sem mencionar suas conseqilencias sabre a acao dos hornens,grupos, classes etc.; quase que a metade da gravidade da dcpressao inicia-da em 1929 deveu-se as reacoes "absurdas" dos grupos dirigentes). Aevolucao desta cornpreensao nao e em si passive! de uma interpretaciio"funcional". A existencia, e a a udiencia, de M. Rueff em 1965 desafiatoda explicacao funcional e mesmo raciorial " .

Considerado agora "em si pr6prio", 0 racional das instituicoes naoconhecido e njio desejado como tal pode ajudar 0 funcional; e pode tam-bern ser-lhe adverso. Se e violenta e diretamente adverso. a instituicilodesmoronaria imediatamente (0 papel-moeda de Law). Mas pode se-lode maneira insinuante, lenta, curnulativa - e 0 conflito s6 aparecc entao

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13. ~ em si mesmo urn imen~o problema, saber ale que ponto (e por que) os homens agemcada vez, "racionalmenle" com respeito a situacao real e instltuciorial. Cr. Max Weber,Wlrtschaft und Gesellschaft, Tubingen (Mohr) 1956, I, p. 9-10. Mas mesmo a diferenca queWeber estabelece, entre 0 desenrolar efetivo de urna ac;~o e seu desenrolar idcal-tfplco na hi-potese de urn cornportarnento perfeitamente racional, deve ser precisada: ha u distdncia en-tre 0 dcsenrolar efetivo de uma acao en "racionalidade positive" (no sentido em que fala-mos de "direito positive") da aocicdade considcrada no memento considcrado, ou seja, °grau de comprcnsfio ao qual est a sociedade chegou, refcrente a 16gica de seu pr6prio funcio-narnento; e ex isle a distancia entre esta "racionalidadc positiva" e uma racionalidade sirn-plcsmente concernente a esse mesmo sistema institucional. A tecnica keynesiana da utiliza-~iio do orcamento para regular 0 equilibrio economico era tilo va lida em 18.60 como em1960. Mus nao tcm muito sentido irnpular aos dirigentes capitalistas anteriores a 1930 urncomportamento "irracional", quando, diante de uma depressilo, eles agiram ao contrariodo que a sltuacao teria exigido; eles agiam de modo geral, de acordo com aquilo que era a"racionalidade positiva" de sua sociedade, A evolucao desta "racionalidade positiva" le-vanta urn problema complexo que nao podemos abordar aqui; simplesrnente lembremosque e irnposslvel reduzi-la a urn puro e simples "progresso cientlfico", na medida em que osinteresses e as situacoes de classe, como tarnbern ospreconceitos e as ilusoes "gratuitas" quese originam do irnaginario al representant urn papel essencial. A prova e que ainda hoje,trinta anos apes a forrnulacao e a difusao das ideias keynesianas, frac;oes substanciais e asvezes rnajoritarias dos grupos dorninantes defendem com obstinacao concepcoes caducas(como 0 estrito equilibria o rcarnentario ou a volta do padrilo-ouro) cuja aplicacao, maiscedo ou mais tarde, rnergulharia 0 sistema numa crisc.

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no fim de um certo tempo. As crises de superprcducao "normais" do ca-pitalismo classico pertencem essencialmente a esse caso ",

Mas 0 caso mais impression ante e 0 mais significative 6 aquele emque a racionalidade do sistema institucional 6 por assim dizer "indiferen_te" quanta it sua funcionalidade, 0 quenao impede de ter conseqilenciasreais. Certamente, existem regras institucionais, positivas, que nao Con-tradizem as outras, mas tarnbern delas nao decorrern, e sao estabelecidassem que possarnos dizer porque foram preferidas a outras igualmentecornpatlveis com 0 sistema /J. Mas existe sobretudo um grande numerode conseqilencias logicas das regras estabelecidas as quais nao foram ex-plicitadas no inlcio e que njlo deixam de representar um papel real navida social. Elas contribuem por conseguinte para "forrnar" esta de urnmodo que nao era exigido pela funeionalidade das relacoes sociais, quetarnbem nao a contradiz, mas que pode levar a sociedade a uma das va-rias direcoes que a funcionalidade deixava indeterminadas ou criar efci-tos queagem de volta sobre esta (a Boisa de Valores representa, em rela-cao ao eapitaIismo industrial, essencialmente um desses casos).

Este aspecto liga-se a esse Ienorneno importante, que ja menciona-mos a prop6sito do ritual: nada permite determinar a priori 0 lugar poronde passara a fronteira do simb6Iico, 0 ponto a partir do qual 0 simb6Ii-co invade 0 funcional. Niio podemos fixar nem 0 grau geral de simboliza-c;ao, variavel segundo as culturas 16, nem os fatores que fazem com que asimbolizacao se exerca corn.uma intensidade particular sobre tal aspectoda vida da sociedade considerada.

Tentamos indicar as razces pelas quais a ideia de que 0 simbolismoinstitucional seria uma expressao "neutra" ou "adequada" da funcionaIi-dade, da "substancia" das relacoes sociais subjacentes e inaceitavel. Masa bem dizer esta ideia 6 sem sentido. Ela postula uma tal substancia queseria preconstitulda em relacao as instituicoes; ela estabelece que a vidasocial tern "alguma coisa a exprirnir" que ja e plenamente real antes mes-

14. Elas nao traduzcm, como Marx pensava, "contradicoes internas insuperavcis" (ef.no numero 31 de S. ou 8 .. ,Le mouvement revolutionnaire sous de capitalismo moderne", p. 10a 81, para a crltica desta concepcdo), mas 0 fato de que, durante muito tempo, a classe capi-talista estava ultrapassada pela logica de suas proprias instituicoes cconornicas. Ver a notaanterior.

15. Um exernplo evidente e 0 das penns fixadas pelas leis pcnais. Se podernos. ale certoponto, interpretar a cscalu de gravidade dos delitos e dos crimes estabelecida por cada socie-dade, e evidente que a cscala das penas correspondentes com porta. quer seja precisa ou irn-precisa, urn elemento de arb/trio nao racionalizavel - pelo menos desde que abandonamos alei de taliao. Que a lei preveja tal pena para tal roubo qualificado ou 0 proxenetisrno, nao enem 16gico nern absurdo; e arbitrario. Ver tarnbem mais adiantc a discussiio sobre a Lei 010-saica.

16. S6 podemos pensar, por exernplo, na oposicao entre a extrema riqucza do simbolis-mo referente a "vida corrente" na maior parte das culturas asiaticas tradicionais e sua rela-tiva frugalidade nas culturas europeias; ou ainda a variabilidadc da fronteira que separa 0direito e os costumes. nas diversas sociedades histor icas.150

mo da lingua na qual sera expressa, Mas e imposslvel captar um "conteu-do" da vida social que seria prirnario e "se daria" uma expressao nas ins-tituicoes independentemente delas; esse "conteudo" (diferentemente doque como momenta parcial e abstrato, separado depois), so e definivelem uma estrutura, e est a comporta sempre ainstituicao. As "relacoes so-ciais rea is" de que se trata sao sempre instituldas, nao porque tenharnuma vestimenta juridica (elas podem muito bem nao te-las em certos ca-50S), mas porque foram estabelecidas como maneiras de fazer universais,simbolizadas e sancionadas. Isso, e clare, tarnbem 6 valido, talvez mesmosobretudo, para as "infra-estruturas", as relacoes deproducao. A relacaopatrao-escravo, servo-senhor, proletario-capitalista, assalariados-burocracia ja e uma instituicao e nao pode aparecer como relacao socialsem se institucionalizar imediatamente.

No rnarxisrno, existe urna ambigilidade a respeito disso, decorrentede nao estar elucidado 0 conceito de instituicao (mesmo se a palavra nlioe utilizada). Tomadas em sentido estrito, as instituicces pertencem asu-perestrutura" e seriam determinadas pela "infra-estrutura". Esta visiio eem si propria insustentavel como tentamos mostrar mais acima. Alerndisso, se a aceitassernos, deveriamos ver as instituicoes como "Iorrnas"servindo e exprimindo urn "conteudo" ou uma substancia da vida so-.cial.ja estruturado antes dessas instituicoes, do contrario esta determina-c;ao destas por aquela nao teria sentido. Esta substancia seria a "infra-es-trutura", que como a palavra indica ja esta estruturada. Mas como podeestar estruturada, se nao esta institulda? Se a "economia", por exemplo.·determina o'~direito"; se as relacoes de producao determinam as formasde propriedade, isso significa que as relacoes de producao podem ser.compreendidas como articuladas e ja 0 sac efetivamente "antes" (logica erealmente) de sua expressao juridica, M as as relacoes de producao articu-ladas na escala social (nao a relacao de Robinson Crusoe com Sexta-feira) significam ipso facto uma rede, ao mesmo tempo real e sim bolicaque sanciona ela pr6pria - por conseguinte, uma instituicilo ". As clas-ses ja estao nas relacoes de producao, quer sejarn ou njio reconhccidascomo tais por esta instituicao "em segundo grau" que e a direito - Foi 0

que tentamos mostrar anteriormente a prop6sito da burocracia e da pro-priedade "nacionalizada" na U.R.S.S. II. A relacao burocracia-proletariado, na V.R.S.S .. 6 instituida enquantorelacao de classe, produ-tivo-econornico-social, mesmo 'se nao 6 instituida como tal e expressa-mente do ponto de vista juridico (como alias nunca 0 foi, em nenhum

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17. Do mesmo modo, ternos as yens a impressao de que alguns psicossociolog os con-ternporaneos esquecem que 0 problema da burocracia ultrapassa em muito a simples dife-renciacao de papeis no grupo elementar, rnesrno se a hurocracia ai encontra um correspon-dentc indispensavel.

18. "Les rapports de production en Russie", in La Socieii bureoucratique I. l.r, p. 205-282.

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pals, a relacao burguesia-proletariado como tal}. Por conseguinle, 0problema do simbolismo institucional c de sua relativa autonomia corn re-lacao as funcoes de instituicao surge ja no nivel das relacoes de produc;ao,ainda mais da eeonomia no sentido estrito, e ja nesse nlvel uma visao sim-pies mente funcionalista e insustentavel, E preciso njio confundir 'estaanalise com a crltica de certos neokantianos, como R. Stammler, contrao marxismo, baseada na ideia da prioridade da "forma" da vida social(que seria 0 direito) em relacao a sua "materia" (a economia). Esta criticaparticipa da mesrna ambiguidade que a visao marxista que deseja comba-ter. A pr6pria economia s6 po de existir como instituicao e isso nao impli-ea necessariamente uma "forma juridica" independente. Quanto a rela-cao entre a instituicao e a vida social que al se desenvolve, nao pode servista como uma relacao de forma a materia no sentido kantiano, e dequalquer maneira nao como implicando uma "anterioridade" de umaquanto a outra. Trata-se de momentos em uma 'estrutura - que nao e nun-ca rlgida, e jamais identica de uma sociedade a outra ".

Tambern nao podemos dizer, evidentemente, que 0 simbolismo insti-tucional "determina" 0 conteudo da vida social. Existe aqui uma relacaoespecifica, sui generis, que desconhecemos e deformamos ao querer cap-ta-la como pura causacao ou puro encadeamento de sentido, como liber-dade absoluta ou deterrninacao completa, como racionalidade transpa-rente ou sequencia de fatos brutos.

A sociedade constitui seu simbolismo, mas njio dentro de uma liber-dade .total. 0 simbolismo se crava no natural e se crava no hist6rico (ao

.que ja estava la); participa, enfim, do racional. Tudo isto faz com quesurjam encadeamentos de significantes, relacoes entre signiticantes e sig-nificados, conexoes e consequencias, que nao eram nem visadas nem pre-vistas. Nem livremente escolhido, nem imposto a sociedade considerada,nem simples instrumento neutro e medium transparente, nem opacidadeimperietravel e adversidade irredutivel, nem senhor da sociedade, nem es-cravo flexivel da funcionalidade, nem meio de participacao direta e com-pleta em uma ordem racional, 0 simbolismo determina aspectos da vidada sociedade (e nilo sornente os que era suposto determinar) estando aomesmo tempo, cheio de interstlcids e de graus de Iiberdade.

Mas essas caracterlsticas do simbolismo, se indicam 0 problema queconstitui, de cada vez, para a sociedade, a natureza sirnbolica de suas ins-tituicoes, nilo fazem disso urn problema insoluvel, e nao sac suticientespara explicar a autonornizacao das instituicoes relativamente a socieda-de. Por mais que encontremos na historia uma autonornizacao do sirnbo-lismo, esta njic e urn fato ultimo,e nao se explica por si propria. Existe

19. V. Rudolf Stamrnrnler, Wirtschaft und Recht nach der materialistishen Geschlchysauf-fassung, 59 ed., Berlin (de Gruyter), 1924, particularrnente p. 108 a 151 e 177 a 211. Vcr tam-bern a severa critica de Max Weber. nos Gesammelte Aufsdt ze ZIIr Wissenschaft slehere.

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uma utilizacfio imediata do sirnbolico, onde 0 sujeito pede se deixar do-minar por este. mas existe tarnbern uma utilizacao lucida ou refletida.Mesmo se esta ultima nunca pode ser garantida a priori (nao se podeconstruir uma Iinguagem, nem mesmo urn algoritmo, no interior do qualo erro seja "mecanicamente" impossivel), ela se realiza, mostrando assima via e a possibilidade de uma outra relacao on de 0 sirnbolico nao e maisautonomizado e pode adequar-se ao conteudo. Uma coisa e dizer quenao podemos escolher uma linguagern em uma liberdade absoluta, e quecada linguagem se apodera do que "deve ser dito". Outra coisa e acredi-tar que somos fatalmente dominados pela Iinguagem e que so podemosdizer a que ela nos leva a dizer. Nilo podemos jamais sair da linguagem,mas nossa mobilidade na linguagem nlio tern limites e nos permite tudoquestionar, inclusive a propria Iinguagem e nossa relacao com ela". 0mesmo ocorre em relacdo ao simbolismo institucional - exceto evidente-mente que 0 grau de complexidade e neste caso incomparavelmente maiselevado. Nada do que pertence propriamente ao sirnbolico impoe fatal-mente 0 dorninio de um simbolismo autonomizado das instituicoes sobrea vida social; nada, no pr6prio simbolisrno institucional, exc1ui seu usolucido pela sociedade - sendo tarnbem neste caso evidente que nfio e

if possivel conceber instituicoes que impecarn "por construcao", "mecani-'. camente" a sujeicao da sociedade a seu simbolismo. Ha rnovimento his-

t6rico real, em nosso cicio cultural greco-ocidental, de conquista prcgres-siva do simbolismo, tanto nas relacoes com a Iinguagem como nas rela-90es com as instituicoes 10. Mesmo os govern os capitalistas aprenderamtinalmente a utilizar-se mais ou menos corretarnente, sob determinadospontos de vista, da "linguagem" e do simbolismo econornicos, .a dizer 0

que querem dizer por meio de credito, do sistema fiscal etc. (0 conteudodo que dizem e evidentemente outra coisa). lsso por certo nao implicaque qualquer conteudo seja exprimivel em qualquer Iinguagem; 0 pensa-mento musical de Tristiio nao podia ser dito na linguagem do Cravo bemtemperado, a dernonstracao de urn teorema rnatematico, mesmo simples,nao e p ossivel na linguagem do quotidiano. Uma nova sociedade criaracertamente um novo simbolismo institucional eo simbolismo institucio-nal de uma sociedade autonorna tera pouca relacao com 0 que conhece-mos ate aqui.

o dominio do simbolismo das instituicoes nao colocaria, portanto,problemas essencialmente diferentes dos do domlnio da linguagem (abs-traindo no momento sua "carga" material- classes, armas, objetos etc.),se nao existisse outra coisa. Um simbolismo e dorninavel, salvo na medi-da em que remete, em ultima instancia, a algo que ndo e simb6lico. 0que ultrapassa 0 simples "progresso n a racionalidade"; 0 que permite ao

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• Ver a segunda parte deste livre, particularmente os capitulos V e Vl l: tarnbern "Le di-ciblc et I'indicible", l 'Arc, n9 46 (49 trimestre 1971), p. 67 a 79.

20. Cr. 0 que dissernos mais acirn a sabre direito romano.

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simbolismo institucional nao 0 desviar passageiramente, para logo ser re-tornado (como pode tambern fazer 0 discurso lucido), mas sirn a utoriorni,zar-se; 0 que, finalmente, Ihe fornece seu suplemento essencial de deter-rninacao e de especificacao, nao faz parte do sirnbolico.

o slmbolico e 0 imagimirio

As detcrrninacoes do simb6lico que acabamos de descrever naoesgotarn sua substancia, Subsiste um cornponente essencial e para os nos-50S propositos, decisivo: eo componente imaginario de todo simbolo e detodo simbolismo, em qualquer nivel que se situem, Relembremos 0 senti-do corrente do termo irnaginario, 0 qual, por agora, nos bastara: falamosde irn aginario quando queremos falar de alguma coisa "inventada" -quer se trate de uma invencao "absoluta" ("uma historia imaginada emtodas as suas partes"), ou de um deslizamento, de urn deslocamento desentido, on de slrnbolos ja disponiveis sac investidos de outras significa-:Goes que nao suas significacoes "normals" ou "canonicas" ("0 que voceesta imaginando", diz a mulher ao homem que recrimina urn sorriso tro-cado por ela com urn terceiro). Nos dois casos, e evidente que 0 imagina-rio se separa do real. que pretende colocar-se ernseu lugar (uma mentira)ou que nao pretende faze-to (um romance).

As profundas e obscuras relacces entre 0 sirnbolico e 0 imaginarioaparecem imediatamente serefletirnos sobre 0 seguinte fato: 0 irnaginariodeve utilizar 0 simb6lico, nao somente para "exprimir-se", 0 que e obvio,mas para "existir", para passar do virtual a qualquer coisa a mais. 0 deli-rio rnais elaborado bem como a fantasia mais secreta e mais vaga san fei-tos de "imagens" mas estas "imagens" hi estfio como ·representando outracoisa; possuern, portanto, uma funcao simbolica. Mas tambern, inversa-mente, 0 simbolismo pressupoe a capacidade imaginaria. Pois pressupoea capacidade de ver em uma coisa 0 que ela nflo e, de ve-la diferente doque e. Entretanto, na medida em que 0 imaginario se reduz finalmente itfaculdade origin aria de por ou de dar-se, sob a forma de representacao,uma coisa e uma relacao que nao siio (que njio sao dadas na percepcao oununca 0 foram), falaremos de um imaginario ultimo ou radical, comoraiz comum do irnaginario efetivo e do sirnbolico 21. E finalmente a ca-pacidade elementar e irredutivel de evocar uma imagern 2'.

21. Podcriamos ten tar diferenciar na terminologia 0 que denominamos 0 imagiruirio ulti-mo ou radical, a capacidade de fazer aparecer como imagem algurna coisa que nao e. e naofoi, de seus produtos que poderiamos designar como 0 imoginado. Mas a forma gramaticaldesse terrno podeprestar-se a confusao e nos preferimos .falar de irnaginario efetivo.

22. "0 homem e esta noite, este nada vazio que contern tudo em sua simplicidade: umariqueza com urn numero infinito de representacoes, de irnagens. nenhuma das quais surgeprecisamentc a seu espirito ou que nao cstiio sempre prcsentes. £:: a noire. a inlerioridade danatureza que aqui existe: 0 Si puro. Em representacnes fantasticas e noite em voila: aqui sur-ge ent ao uma cabeca ensanguentada, ·11ium outre rosto br anco: e desapareccrn turnbern

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A influencia decisiva do imaginario sobre 0 sirnbolico pode ser com-preendida a partir da seguinte consideracao: 0 simbolismo supoe a capa-cidade de estabelecer um vinculo permanente entre dois termos, de rna-neira que um "representa" 0 outro. Mas e somente nas etapas muito de-senvolvidas do pensamento racional lucido que estes tres .elementos (0significante, 0 significado e seu vinculo sui generist sac mantidos como si-multaneamenle unidos, e distintos, numa relacao ao mesmo tempo firniee flexlvel. Em outra etapas, a relacao simb61ica (cujo uso "correto" supoea funcao irnaginaria e seu dominio pel a funcao racional) retorna, ou me-lhor, perrnanece desde 0 inlcio la onde surgiu: no vfnculo rfgido (a maiorparte do tempo, sob a forma de identificacao, de participacao ou de cau-sacao) entre 0 significante e 0 significado, 0 simbolo e a coisa, ou seja, noimaginario efetivo.

Se dissernos que 0 simb6lico pressupoe 0 irnaginario radical e nele seapoia, isso nao significa que 0 simb61ico seja, global mente, apenas 0 irna-ginario efetivo em seu conteudo. 0 simb6lico comporta, quase sempre,um componente "racional-real": 6 que representa 0 real ou 0 que e in-dispensavel para 0 pensar ou para 0 agir. Mas este componente e tecidoinextricavelmente com 0 componente irnaginario efetivo - e isso coloca,tanto para a teoria da hist6ria como para a politica, um problema cssen-cia!'

Esta escrito no Nilmeros (/5,32-36), que os judeus tendo descobertourn homem que trabalhava no Saba, 0 que era proibido pela Lei, con-duziram-no perante Moises. A Lei nao fixava nenhuma pena para atransgressao;mas 0 Senhor manifestou-se a Moises, exigindo que 0 ho-mem fosse lapidado - e ele 0 foi.

E dificil nao ficar chocado neste caso - como, alias, freqiientementequando percorremos a Lei mosaica - pelo carater desmesurado da pena,pela ausencia de vinculo necessario entre 0 fato (a transgressfio) e a con-sequencia Co conteudo da penal. 0 aprcdrcjarneruo njio e 0 unico meio delcvar as pessoas a respeitarem 0 Saba, a instituicilo (a penal ultrapassaclaramente 0 que exigiria 0 encadeamento racional das causas c dos efei-tos, dos meios e dos fins. Se a razjio e. como dizia Hegel. a operacao con-forme a uma Iinalidade. mostrou-se 0 senhor r azoavel, neste ex ernplo?Lembremos que 0 proprio Senhor e irnaginario. Por tras da Lei, que e"real", uma instit uicflo social efetiva, rnantern-se 0 Senhor irnaginarioque apresenta-se como sua fonte e sancao final. A existencia imaginariado Senhor e racional? Dir-se-a que numa etupa da evolucao das socieda-des humanas, a instituicao de urn irnaginar io investido de mais realidade

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bruscamenle. E est a noite que percebernos quando olhurnos urn homem nos olhos: uma noi-te que se lorna terrivel: e a noire do rnundo que enuio nos cncarn. 0 p oder de t irar desta noit e0.1 imagens, all de al abandona-las. Ie isso t ofatu de colocar-se u si prnprio, a conscirncia inte-rior. (J actio. II cisdo", Hegel. Jenenser Real pbllosaphie (1805-1806). (Apreseruurno s esse frag-mento na truducao de K. Papaioannou. Hegel, Purios. 1962, p. 180),

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do que 0 real - Deus e mais genericarnente um irnaginario religioso - e"conforme as finnlidudes" da sociedude, decorre de condicoes reais epreenche uma funcfio essencial. Tentaremos mostrar, numa perspectivnmarxista ou freudiana (que no caso presentc nao somente nao se ex-cluern, mas se completam) que esta sociedade produz necessariamente es-te imaginario, esta "ilusao", como dizia Freud falando da religiao, daqual ela necessita para seu funcionamento. Estas interpretacoes sao ver-dadeiras e preciosas. Mas encontram seu limite nas perguntas: Por que eno imagindrio que uma sociedade deve procurar 0 complemento necessa-ria para sua ordem? Porque encontramos. no nucleo deste irnaginario eatraves de todas as suas expressoes, alga de irredutivel ao funcional, quee como um investimento inicial do mundo e de si mesrno pela sociedadecom um sentido que nao e "ditado" pelos fatores reais porquanto e antesele que confere a esses fatores reais tal importflncia e tal lugar no universoque constitui para si mesma a sociedade - sentido que reconhecernos aomesmo tempo no conteudo e no cstilo de sua vida (e que nao esta taoafastado do que Hegel chamava de "esplrito de urn povo")? Porque, detodas as tribos pastorais que erraram no segundo rnilenio antes de nossaera no deserto entre Tebas e a Babilonia, sornente uma escolheu expedirao Ceu urn Pai inorninavel, severo e vingativo, fazendc dele 0 unico cria-dor e 0 fundamento da Lei e introduzindo assim 0 monoteismo na histo-ria? E por que, de todos os povos que fundaram cidades na bacia mediter-riinea, sornente um decidiu que existe uma lei impessoal que se irnpoe ateaos Deuses, estabeleceu-a como consubstancial ao discurso coerente e .quis fundamentar sobre esse Logos as relacoes entre os horn ens, inven-tan do, assim, e em mesmo gesto, filosofia e democracia? Como explicarque tres mil anqs depois, soframos ainda as conseqiiencias do que sonha-ram as Judeus e os Gregos? Por que e como este irnaginario, uma vez esta-belecido, ocasiona consequencias proprius, que vao alern de seus "moti-vos" funcionais e mesmo as vezes os contrariam, que sobrevivem durantemuito tempo apos as circunstancias que os fizerarn nascer - que final-mente mostram no imaginario um fator autonomizado da vida social?

Seja 0 caso da religiao rnosaica instituida. Como toda religiao, elaesta centrad a num imaginario. Enquanto religijio, deve instaurar ritos;enquanto instituicao, deve cercar-se de sancoes, Mas ela nao pode existirnem como religiao, nem como instituicao, se, em volta do imagindrio cen-tral, nao corneca a proliferacao de um imagindrio secunddrio. Deus criouo mundo em sete dias (seis mais urn). Por que sere? Podemos interpretar 0

num ero sete a maneira freudiana; poderiamos eventualmente tarnbernaludir a fatos ou a costumes produtivos quaisquer. 0 fato e que uma de-

·termina<;uo terrestre (talvez "real", mas talvez ja irnaginariu) exportadapara 0 Ceu.: e reimportada sob a forma de sagr acao da semana. 0 seti-mo dia torna-se agora dia da adoracao de Deus e de repouso obrigatorio.Oaf cornecarn a decorrer inurneras conseqiiencias. A primeira foi 0 ape-drejamento daquele pobre diabo, que apanhava gravetos no deserto nodia do Senhor. Entre as mais recentes, mencionemos ao acaso 0 nlvel da156

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taxa de mais-valia 2), a curva da frequencia dos coitos nas sociedadescristas que apresenta maxim as peri6dicas cada sete dias e 0 tedio mortaldos domingos ingleses.

Seja, em outro exemplo, 0 caso das cerimenias de "passagern", de"confirrnacjlo", de "iniciacao" que marcam a entrada de uma c1asse deidade de adolescentes na c1asse adulta; cerirnonias que representam umpapel tao imporlante na vida social de todas as sociedades arcaicas e cu-jos restos nao insignilicantes subsistern nas sociedades modern as. Nocontexto a cada vez dado, essas cerimonias fazem aparecer um importan-te componente funcional-economico, e silo urdidas de mil maneiras coma "16gica" da vida da sociedade considerada ("Iogica amplamente naoconsciente", e claro). E necessario que a ascensao de uma serie de indivl-duos it plenitude de seus direitos seja marcada publica e soleriemente (nafalta de estado civil, diria um funcionalista prosaico), que uma "certifica-cao" tenha lugar, que para 0 psiquismo do adolescente esta etapa crucialde sua maturacao seja assinalada por uma Festa e urna prova. Mas emtorno desse nucleo - seriamos quase tentados a dizer, como em rclacaoas ostras de perolas: em torno desta impureza - cristaliza uma sedirnenta-cao incontavel de regras, de atos, de rites, de slmbolos, em suma, de com-ponentes repletos de elementos rnagicos, e, mais geralmente, imaginaries,cuja justificacao relativamente ao nucleo funcional e cada vez mais me-diata, e finalmente nula. Os adolescentes devem jejuar tal numero dedias, e so comer tal tipo de comida, preparada por tal categoria de mulhe-res, passar por tal prova, dormir em tal cabana ou nao dormir tal num erode noites, usar tais ornainentos e tais emblemas etc.

o etnologo, auxiliado por consideracces marxistas, freudianas ououtras, tentara a cada vez oferecer uma interpretacao d a cerimonia emtodos os seus elementos. E faz hem - se 0 faz bem. E e logo evidente quenao podemos interpretar a cerirnonia por uma reducao direta ao seu as-pecto funcional (assim como nilo interpretamos uma neurose dizendoque ela se relaciona com a vida sexual do sujeito); a funcao e sempre maisou menos a mesma, portanto, incapaz de explicar a inverosslmil abun-diincia de detalhes e de cornplicacoes quase sempre diferentes. A interpre-tacao cornportara uma serie de reducoes indiretas a outros componentes,onde encontraremos novamente um elemento funcional e outra coisa(por exemplo a cornposicao da refeicao dos adolescentes au a categoriadas mulheres que a prepararilo serao ligados a estrutura dos clas ou aopattern alimentar da tribo, que por sua vez serao reportados a elementos"reais", mas tarnbern a fenornenos toternicos, a tabus atingindo tais ali-mentos etc.). Essas reducoes sucessivas encontram cedo ou tarde seu li-mite, e isso sob duas formas: os elementos ultirnos sac sirnbolos, de cuja

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tJ:ll 23. Evidenternente teria sido muito mais adequado Ii "logica" do capitalisrno adotar um

calendario de "decadas" com 36 ou 37 dins de descanso por ano do que manter as scmannse os 52 domingos.

157,

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constituicao 0 imaginario nfio e nem separavel nem isolavel; as sfntesessucessivas desses elementos, as "totnlidudes parciais", das quais silo fei-tas a vida e a estruturu de uma sociedadc, us "figuras" onde ela se deixaver para ela propria (as clds, as cerirnonias, as momentos da religiao, asformas das relacoes de autoridade etc.) possuern ellis proprius um senti-do indivislvel como se procedesse de uma operacao originaria que 0 esta-beleceu desde 0 infcio - e esse sentido, doravante ativo como tal, se situanum nlvel diferente do de qualquer deterrninacao funcional.

Esta dupla acao pode ser vista mais facilmente nas culturas mais "in-tegradas", qualquer que seja 0 modo desta integracao. Ela pode ser vistano totemismo onde um slmbolo "elernentar" e ao mesmo tempo princi-pio de organizacao do mundo e fundamento d a existencia da tribo. Elapode ser vista na cultura grega, onde a religiiio (inseparavel da cidade edas organizacao social-politica) encobre com seus slrnbolos cada elernen-to da natureza e das atividades humanas e confere ao mesmo tempo umsentido global ao universo e ao lugar dos homens neste 24. Ela apareceate mesmo na sociedade capitalista ocidental, onde, como veremos, a"desencanto do mundo" e a destruicao das formas anteriores do imagi-nario paradoxalmente ocorreram junto corn aconstituicao de um novoirnaginario, centrado no "pseudo-racional" e englobando ao mesmo tem-po os "elementos ultirnos" do mundo e sua organizacao total.

o que dizemos concerne 0 que podemos denominar de irnaginariocentral de cada cultura, quer se situe no nlvel dos slrnbolos elementaresou de urn sentido global. Evidentemente existe alern disso 0 que pede-rnos chamar de irriaginario periferico, nao menos importante em seusefeitos reais, mas do qual nao trataremos aqui. Ele corresponde a uma se-gunda ou enesirna elaboracao irnaginaria dos slmbolos, a sucessivas ca-madas de sedirnentacao. Urn leone e um objeto simb6lico de um irnagina-rio - mas e investido de uma outra significacao irnaginaria quando osfieis raspam a pintura e a tornarn como medicamento. Uma bandeira eum simbolo com funcao racional, sinal de reconhecimento e de reuniao,que se torna rapidamente aquilo pelo qual podemos e dcvemos- matar-

24. Evoquernos para facilitar 0 exernplo certamentc mais banal: a deusa "da terra", adeusa-terr a, Demeter. A etim ologia rnais provavcl (outras Iorarn tambern propostas; cf.Liddcll-Scou, Greek-English Lexicon. Oxford 1940) e Ge-Meter, Gain-Meter. terra-rnae.Gaia e uo mesmo tempo 0 nome da terra e da prirncira deusa, que, com Urano, esta na ori-gem da linhagem dos deuses. A terra e desde 0 inlcio vista como deusa origin aria, nada indioca que cia jamais tenha sido vista como "objeto". Esse terrno que denota a terra, conota aomesmo tempo as "propriedades", ou antes as formas de ser essenciais da terra: feeunda enutriente. l:: a que tarnbem conota 0 significante mtie. A ligacao, au melhor a idcntificacaodos dois significados: 'Ferra-Mae, e evidente. Esse primeiro momento imaginario e indisso-ciavel do outro: que a Terra-Mae e uma divindade, e antropomorfn - necessaria mente. pos-10 que e Mae! 0 cornponente irnaginario do slmbolo particular e da rnesma substancia, seassirn podemos dizer, que 0 imaginarlo global desta cultura - 0 que II(Js ehamamos de di-vinizacao antropom6rfica das forcas da natureza.

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nos eo que provoca arrepios ao tango da coluna vertebral dos patriotasque assist em ao desfile militar.

A visao moderna da instituicao que reduz sua significacao ao funcio-nal, e so parcialrnente correta. Na medidaem que sc aprescnta como a'verdade sobre 0 problema da instituicao, e s6 projecao. Ela projeta sobre'0 conjunto da hist6ria uma ideia tomada de>ernprestimo nao propria-mente da realidade efetiva das instituicocs do mundo capitalista ociden-tal (que sempre foram e sao, apesar do enorme movimento da "racionali-zacao", s6 parcialmente funcionais), mas aquilo que esse mundo gostariaque suas instituicces fossem. Visoes ainda mais recentes, que s6 queremver ria instituicao 0 sirnbolico (e 0 identificam com 0 racional) represen-tam tarnbern uma verdade somente parcial e sua generalizacao conternigualmente uma projecflo.

As visces antigas sobre a origem "divina" das instituicoes eram, emseus involucres mlticos, bem mais verdadeiras. Quando S6foc\es 11 falavade leis divinas, mais fortes e mais duraveis do que as feitas pela rnjio dohomem (e. como por acaso, trata-se no caso precise da proibicao do in-cesto que Edipo violou) ele indicava uma fonte da instituicao para alernda consciencia lucida dos homens como legisladores. b esta mesma ver-dade que sustenta 0 mito da Lei dada a Moises por Deus - por um paterabsconditus, por um invisivel indesignavel. Alem da atividade conscientede institucionalizacao, as instituicces encontraram sua fonte no imagine-rio social. Este imaginario deve-se entrecruzar com 0 simbolico. do con-trario a sociedade nao teria podido "reunir-sc", e com 0 econornico-funcional, do contrario ela nao teria podido sobreviver. Ele pode colo-car-sc, e necessariamente coloca-se tarnbern a seu service: existe, certa-mente, uma funcdo do imaginario da instituicao, embora ainda aquiconstatemos que 0 efeito do imaginario ultrapasse sua funcao: nao e "fa-tor utirno" (alias nfio 0 procuramos) - mas sem ele, a deterrninacao dosimbolico como a do funcional, a especificidade e a unidade do prirneiro,a orientacao e a finalidade do segundo permanecem incompletas e final-mente incompreensiveis.

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A alienacao e 0 Imaglnarlo

A instituicao e uma rcdesimbolica, socialmente sancionada, onde secombinam em proporcoes e em relacoes variaveis um componente fun-cional e um componente irnaginario. A alienacao e a autonornizacao e adorninancia do memento imaginario na instituicao que propicia a auto-nornizacao e a dorninancia da instituicao relativamente a sociedade. Esta

25. "". As leis mais elevadas, nascidas no eter celeste, das quais 56 Olimpo e 0 pai, quenfio foram engendradas pela natureza mortal dos homens, e que nenhum esquecimcnto ja-mais adormecera; porque nelas jaz um grande deus, que nunca envelhece". Edipo Rei. R6~·871.

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autonomizacao da instituicao exprirne-se e encarna-se na materialidadeda vida social, mas supoe sempre tarnbern que a sociedade vive suas rela-coes com suas instituicoes a maneira do irnaginario, ou seja, nao reconhe_ce no imeginario das instituicoes seu pr6prio produto.

Isso Marx 0 sabia. Marx sabia que "0 Apolo de Delfos 'era na vidados gregos uma forca 'tao real quanta qualquer outra". Quando de falavado fetichismo da mercadoria e mostrava sua irnportancia para 0 funcio-namento efetivo da economia capitalista, ele ultrapassava evidentementea visilo sirnplesrnente econernica e reconhecia 0 papel do imaginario 16.

Quando enfatizava que a lernbranca das geracoes passadas pesa forte-mente na consciencia dos vivos, ele indicava ainda essa forma particulardo imaginario que e 0 passado vivido como presente, os fantasmas maispoderosos do que os homens de carne e osso, 0 morto que se apodera dovivo, como gostava de dizer. E quando Lukacs diz, em outro contexto,voltando a Engels, que a consciencia mistificada dos capitalistas e a con-dicao do funcionamento adequado da econornia capitalista, .em outraspalavras, que as leis 86 podem realizar-se "utilizando" as ilusoes dos in-divlduos, ele mostra ainda num imaginario especlfico uma das condicoesda funcionalidade.

Mas esse papel do imaginario era visto por Marx como urn papel ll.mitado, precisamente como papel funcional, como elo "nao-econemicn"na cadeia "economica". Isto porque ele pensava poder liga-lo a uma defi-ciencia provis6ria (urn provis6rio que ia da pre-historia ao comunismo)da hist6ria como economia a nao-maturidade. Ele estava pronto a reco-nhecer 0 poder das criacoes imaginaries do homem - sobrenaturais ousociais - mas esse poder era para ele somente 0 reflexo de sua importan-cia real. Seria esquernatico e simples dizer que para Marx a alienacao se-ria somente urn outro nome da penuria, mas e finalmente verdade que emsua concepcao da historia, tal como e formulada nas obras de maturida-de, a penuria e a condicao necessaria e suficiente da alienacao 17.

26 .••... A relacao social dcterminada existente entre os proprios homens ... a dquire aqui aseus olhos a forma fantasmagorica duma relacao entre objetos. Precisarnos recorrer as re-gi3es nebulosas do mundo religioso para encontrar alguma coisa analoga. La os prcidutosdo cerebro humane parecern anirnados de uma vida propria e parecem constituir entidadesindependentes, em relacao entre elas e com os homens. 0 mesrno se da no mundo das mer-cadorias, dos produtos do trabalho humano . .t: i;so que eu chamo 0 Ietichismo que se ligaaos produtos do trabalho desde que figurem como rnercadorias ...•• E mais alern: "0 valor ...transforms cad a produto do trabalho em urn hieroglifo social". Le Capital ed. Costes, I, p.57 e 59; Ed. de la Pleiade, I, p. 604 s, (Voltarernos mais adiante sobre ~s implicacoes do "fe-tichismo da mercadoria").

27. ~ este certamente 0 ponto de vista das obras de maturidade: "0 reflexo religiose domundo real 56 pede desaparecer no dia em que as condicoes da vida cotidiana pratica dohomem trabalhador apresentem relaIW3esclaramente racionais dos horn ens entre si e com anatureza. 0 ciclo da vida social, ou seja, do processo material da producao s6 se despoja de

. seu veu mlstico e nebuloso no dia em que seu conjunto aparecer como 0 produto de horn enslivrernente associados e exercendo urn controle consclente e met6dico. Mas para isso e ne-cessario que a sociedade possua uma base material ou que ell.ista todll uma strie de condi-

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Nao podemos aceitar esta concepcilo por ruzoes ja cxpostas em outrotrabalho 11: resumindo, porque ndo podemos definir urn nivcl de desen-

.•~.' volvirnento tecnico ou de abundiincia econornica a partir da qual a divi-. sao em classes ou a alienacao perdemsuas "razoes de ser": porque uma

abundancia tecnicamente acesslvel ja esta hoje em dia entravada; porqueas "necessidades" a partir das quais sornente urn estado de penuria po deser definida nada tern de fixo mas exprimem urn estado social-hist6rico .••.Mas sobretudo, porque desconhece cornplet arnente 0 papeldo irnaginario, a saber que ele esta na raiz tanto da alienacao como dacriacao na hist6ria.

Porque a criacao pressupoe, tanto quanta a a alienacao, a capacida-.' de de dar-se aquilo que nao e (0 que njlo e dado na percepcao ou 0 que

nao e dado nos encadeamentos simb61icos do pensarnento racional jaconstitufdo). E nao podemos distinguir 0 irnaginario que esta atuante nacriacao, do irnaginario "pura e simples", dizendo que 0 primeiro "anteci-

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~3es materials da vida que, por sua vez, silo 0 produto natural de uma longa e penosa evolu-I, . C;lIo". Le Capital, lbid., p. 67; PI. I, p. 614. E tambern no trabalho inedito postumo "Intro-

duction ~ une critique de I'econornie politique" [redigido ao mesmo tempo que. a Contribu-lion d 10 critique de l'Lconomte politique, terrninada em 1859): "Toda mitologia subjuga, do-mina e molda as forc;as da natureza na irnaginacao e pela imaginac;iio e desaparece portantoquando conseguirnos dornina-Ias realrnente". (Contribution d 10 critique. etc. trad. LauraLafargue, Paris 1928, p. 351). Se assirn fosse, a mitolugia nau desapareceria nunca, nernrnesmo no dia em que a humanldade pudesse representar 0 papel de rnestrc de bale de al-guns milhares de galaxias vislveis num raio de treze milhoes de anos-Iuz. (Subsistiriam aindaa irreversibilidade do tempo e algumas outras futilidades para "subjugar e dominar"). Tarn-bern nao compreenderlamos como 11 mitologia concerncnte a natureza desapareceu ha mui-to tempo do mundo ocidental; se Jupiter foi ridicularizado pelo para-raio e Hermes pelocredito imobiliaric, porque nilo inventarnos urn deus-cancer, urn deus-atheroma, au urnd~us omega-minus? 0 que Marx dizia na 4' These sur Feuerbach era mais rico: "0 [ato deque 0 fundamento profano (do' mundo religioso), se separe por sl mesmo e se fixe em impe-rio independente nas nuvens, s6 pode explicar-se pelo fato de que esse fundamento profanonilo tern coesilo e est Ii em contradicao consigo mesmo. ~ necessario. conseqilentementc, queesse fundamento seja em si mesrno compreendido em sua contradicao assirn como revolu-.cionado na pratica. Por exemplo, depois que a familia tcrrestre foi dcscobcrta como a rnis-terio da Santa Familia, e precise que a primeira seja ela propria aniquilada na teoria e napratica". 0 imaginarlo seria pois a solucao fantasiosa das contradiciies reais. Isso e verda-deiro para urn certo tipo de irnaginario, porern somente urn tipo derivado. Nilo e bastantepara compreender 0 imaginario central de uma sociedade, por razoes explicadas maisadiante no texto, que se ligam a isto: mesmo a constituicdo dessas contradicccs reais e inse-paravel deste irnaginario central.

28. Ver "Le mouvernent revolutlonnaire sous le capitalisrne moderne" no n9 33 de S. 011

8., p. 75 e seguintes,. • ~ evidente que as necessidades, no sentido soclal-histcrico (que nilo e 0 das necessida-

des biologicas) silo urn produto do irnaginario radical.o "irnaginario" que compensa a nao-satisfacao dessas necessidades s6 c portanto urn

irnaginario secundario e derivado. Ele 0 e tarnbern para certas tendencias psicanallticas eon-temporaneas, para as quais 0 imaginario "sutura" uma fenda ou uma clivagern originanasdo sujeito. Mas esta s6 existe pelo imaginario radical do sujeito, Voltaremos a isla longa-mente na segunda parte deslc livro.

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pa" uma realidade ainda nao dada, mas "se verifica" em seguida, Poisprecisariamos primeiro explicar em que esta "antecipacao" poderia OCOr-rer sem urn imaginario e 0 que impediria este de jamais equivocar-se.Alern disso, 0 essencial da criacao nao e "descoberta", mas constituiear,do novo; a arte nao descobre, mas constitui; e a relacjio do que ela consti-tui com 0 "real", relacao seguramente muito complexa, njlo e uma rela-C;aode verificacao. E no plano social, que e aqui nosso interesse central, aernergencia de novas instituicoes e de novas maneiras de viver, tarnbernnao e uma "descoberta", e uma constituicao ativa. as atenienses njiodescobriram a democracia entre outras flares selvagens que cresciam noPnyx, nem os operarios parisienses desenterraram a Cornuna debuixo 'docalcarnento das ruas. Eles tarnbern nao "descobriram" essas instituicoe,no ceu das ideias, depois de inspecionar todas as formas de governo queal se encontram desde sempre expostas e bem arrumadas em suas vitri-nas. Eles inventaram algo, que certamente se rnostrou viavel nas circuns-tancias dadas, mas que tambern, desde que existiu, modificou-as essen-cialmente - e que, alias, vinte e cinco seculos ou cem anos depois, conti-nua a estar "presente" na hist6ria. Esta "verificacao" nada tern a ver coma verificacao, pela circunavegacao de M agalhaes, da ideia de que a terra eredonda - ideia que ela tambern se da no inlcio de alguma coisa que naoest a na percepcao, mas que se refere a urn real ja constituido. 19

Quando afirmamos, no caso da instituicao que 0 imaginario s6 re-presenta urn papel porque ha problemas "reais" que os homens nao con-seguem resolver, esquecemos pois, por um lado, que os homens so che-gam precisarnente a resolver esses problemas reais, na medida em que seapresentam, porque sjio capazes do imaginario; e por outro lado, que es-sesproblemas s6 podem ser problemas, s6 se constituem como estesproblemas que tal epoca ou tal sociedade se prop6em resolver, em funcaode uma irnaginaria central. da epoca ou da sociedade considerada. lssonao significa que esses problemas sejam totalmente inventados, surjarnapartir do nada e no vazio. Mas 0 que, para cada sociedade forma proble-ma em geral (ou surge como tal a urn nivel dado de especificacao e deconcretizacao) e inseparavel de sua maneira de ser em geral, do sentidoprecisamente problernatico com que ela investe 0 mundo e seu lugar nele,sentido que como tal nao e nem verdadeiro, nem falso, nem verificavelnem Ialsificavel como referencia a "verdadeiros" problemas e a sua "ver-dadeira" solucao, salvo em uma acepcao bem especlfica, a qual retorna-rernos.

29. E claro que algucm podera dizcr sempre que essas criacoes hist6ricas sao s6 a desco-berta progressiva dos possfveis conteudos num sistema absoluto ideal e "pre-constituido·'.Mas como esse sistema absolute de todas as formas posslveis jarnais pode por dcflnicao sercxibido, e nao esta presente na hist6ria, a objecao i: gratuita e reduz-se finalmente a umaquerela de palavras. A posteriori poderemos dizer sempre de qualquer realizacao que elatarnbern era ideal mente posslvel, E urna tautologia vazia, que nao ens in a nada a ninguern.

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'-,Em se tratando de hist6ria de um indivlduo, que sentido existe em

dizer que suas formacoes imaginaries s6 adquirem irnportancia, so repre-sentam urn papel porque fatores "reais" - a reprcssao das pulsoes, urntraumatisrno - ja haviam criado um conflito? a irnagina rio age sabreurn terreno onde existe repressdo das pulsoes e a partir de urn au variestraumas; mas esta repressiio das pulsoes esta sernpre presente, e 0 queconstitui urn trauma? Afora casos extremes, urn acontecimento s6 e trau-matico porque e "vivido como tal" pelo indivlduo, e esta frase quer dizerno caso presente: porque 0 indivlduo Ihe imputa uma significacao dada,que nao e a sua significacao "canonica", ou de qualquer maneira, n ao seimpoe fatalmente como t~1 Ja. ._

Do mesrno modo, no caso de uma sociedade, a ideia de que suas for-macoes irnaginarias "se fixam como imperio independente nas nuvens"porquea sociedade considerada njio con segue resolver seus problemas"na realidadc" e verdade no segundo nlvel, mas nao no nivel originario.Porque isso so tern sentido se podemos dizer qual e 0 problema da socie-dade, que ela teria side temporariamente incapaz de resolver. a ra, a res-posta a esta pergunta e impossivel, nao porque nossas pesquisas nao este-jam suficienternente adiantadas ou porque nosso saber seja relativo; ela eirnpossivel porque a pergunta nao tern sentido. Nao existe 0 problema dasociedade. Nao existe "alguma coisa" que os homens queiram profunda-mente e que ate agora nao puderam ter porque a tecnica nao era suficien-te ou mesmo porque a sociedade permanecia dividida em classes. as ho-mens foram, individual e coletivamente, esse querer, essa necessidade,esse fazer, que de cada vez se deu urn outre objeto e atraves disso umaoutra "definicao" de si mesmo.

Dizer que 0 irnaginario s6 aparece - ou s6 representa urn papel -porque 0 homem e inca paz de resolver seu problema real, supoe que sai-bamos e que possarnos dizer qual e esse problema real, em toda a parte esernpre, e que ele foi, e e sera sempre 0 mesmo (visto que se esse problemamuda, somos obrigados a perguntar porque e somos Ievados Ii perguntaprecedente). Isso sup6e que sabemos, e que podemos dizer 0 que e a hu-manidade e 0 que ela ques, aquilo para cuja direcao ela tende, como dize-mos (ou cremos poder dize-lo) dos objetos,

A esta pergunta, os marxistas dao sernpre uma resposta dupla, urna.resposta contraditoria, cuja confusao e, em ultima instancia, rna fe, ne-nhuma dialetica pode dissimular:

A humanidade e aquilo que tem fome.. A humanidade e aquilo que quer a liberdade - nao a libcrdade da fa-

me, a liberdade sirnplesmente, sobre a qual eles estarao de acordo em di-zer que ela nao tern nem pode ter "objeto" deterrninado em gera\.

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~:- 30. 0 acontecimento traurnatico e real enquanto acontecirnento e irnaginario enquantotraumatismo.

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A humanidade tem fome, e certo. Mas elatem fame de que e como?Ela ainda tem fome, no senti do literal, no que diz respeito it metade deseus membros, e esta fome certamente tern que ser. satisfeita. Mas sera.que cia s6 tem feme de alimento? Em que ent ao ela difere das esponjas oudos corais? Porque esta fome, uma vez satisfeita, deixa sempre apareceroutros problemas e outras solicitacoes? Porque a vida das camadas quesernpre puder arn satisfazer sua Ierne, ou de sociedades inteiras que po-dem Iaze-Io hoje, nao se tornou livre - ou voltou a ser vegetal? Porque asaciedade, a seguranca e a copulacao ad libitum nas sociedades escandi-navas mas tarnbern, cada vez mais, em todas as sociedades de capitalismo

.moderno (um bilhao de indivlduos) nao fez com que surgissem indivi-duos e coletividades autonornas? Qual e a necessidade que essas popula-coes nao conseguem satisfazer? Se disserem que essa necessidade e manti-da constantemente insatisfeita pelo progresso tecnico, que faz aparece-rem novos objetos, ou pela existencia de camadas privilegiadas que colo-earn diante dos olhos dos outros outras maneiras de satisfaze-la - teraoentao admitido 0 que queremos dizer: que essa necessidade nao traz em sipropria a definicao de um objeto que poderia preenche-la, como a neces-sidade de respirar encontra seu objeto no ar atmosferico, que ele nascehistoricamente, que nenhuma necessidade definida e a necessidade da hu-manidade. A hurnanidade teve e tem fome de alimento mas ela tarnbernteve fome de vestimentas e em seguida de outras vestimentas que nao asdo ano anterior, ela teve fome de autom6veis e de televisao, fome de po-der e fome de santi dade, ela teve fome de ascetisrno e de libertinagern, elateve fome de rnlstico e forne de saber raciona!, teve fome de amor e de Ira-ternidade mas tarnbern fome de seus pr6prios cadaveres, fome de festas efome de tragedies, e agora parece que corneca a ter fome da Lua e de pla-netas. E precise uma boa dose de cretinismo para pretender que ela in-

.ventou todas essas fomes porque nao conseguia comer e fazer amor sufi-cientemente.

o homem nao e essa necessidade que cornporta seu "bom objeto"complementar, uma fechadura que tern sua chave (a encontrar ou fabri-car). 0 homem s6 pode existir definindo-se de cada vez como um conjun-to de necessidades e de objetos correspondentes, mas ultrapassa sempreessas definicoes - e, se as ultrapassa (nao somente em urn virtual perrna-nente, mas na efetividade do movimento hist6rico), e porque saem delepr6prio, porque ele as inventa (njio arbitrariamente por certo, existe sern-pre a natureza, 0 mlnimo de coerencia que a racionalidade exige e a his-t6ria precedente), portanto, que ele es faz fazendo e se fazendo, e nenhu-ma definicao racional, natural ou historica permite fixa-las em definitivo."0 homem eo que nao e 0 que e, e que eo que nao e", ja dizia Hegel.

As signiflcaefies lmaglnarlassocials

Vimos que njlo podemos compreender as instituicoes e menos aindao conjunto da vida social como um sistema simplesmente funcional, serie164

integrada de arr anjos destinados a satisfacao dasnecessidades cia socie-dade. Toda interpretacao desse tipo levanta imediatamente a pergunta:funciorial em relacao a que e com que firn - pergunta que nao comportaresposta dentro de uma perspectiva funcionalista ". As instituicoes certa-mente sao funcionais na medida em que necessariamente devem assegu-rar a sobrevivencia da sociedade considerada n. Mas ja 0 que chamamos"sobrevivencia" possui um conteudo completamente diferente segundo asociedade que considerarnos; e, alern deste aspecto, as instituicoes sao"funcionais" relativamente a finalidades que nfio dizem respeito nem afunciona!idade nem ao seu oposto. Uma sociedade teocratica; uma socie-dade essencialmente organizada para permitir que uma camada de se-nhores guerreie interminavelmente; ou enflrn, urna sociedade como a docapitalisrno moderno que cria num jato continuo novas "necessidades" eesgota-se para satisfaze-las, so podem ser descritas, ou compreendidas emsua propria funcionalidade relativamente a enfoques, orientacoes, enca-deamentos de significacoes que nao somente escapam a funcionalidade,mas aos quais a funcionalidade em grande parte esta sujeita.

Nao podemos tarnbern compreender as instituicoes simp!esmentecomo uma rede simb61ica ll. As instituicoes formam uma rede simb61icamas essa rede.!..por definicao, remete a algo que nao 0 simbolisrno. Toda

31 ..... dizer que uma sociedade funciona e urn lrulsmo; mas dizer que tudo n uma socie-dade funciona e urn absurdo". Claude Levi-Strauss. A nthropologie structurale, Paris 1958 p.17.

32 Mesmo isso, alias, nilo esta livre de problemas: js meneionamos a existencia de insti-tuicoes disfuncionais, especialrnente nas sociedades modern as ou ainda a ausencia de insti-tulcoes necessarias para certas funcoes.

33 Como parece querer faze-lo cada vez rnais Claude Levi-Strauss. Ver especial mente II'Totemisme aujourd'hui, Paris 1962 e a discussao com Paul Ricoeur, no Esprit, novernbro1963, principalmente p. 636: "Voce diz ... que 10 Pensee sauvage prefere a sintuxe II sernanti-ca; para mim nao existe 0 que escolher... 0 sentido sempre resulta da cornbinacao de ele-mentos que nao silo em si rnesmos significantes ... 0 sentido e sernpre redutlvel. .. por tras detodo sentido existe um contra-sense eo contrario njio e verdadeiro ... a significacao e sernprefenomenal". Tarnbern, Ie Crn e Ie Cuit, Paris 1964: "Nos nao pretendemos pois mostrarcomo os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam nos homcns e a sua reve-lia. E talvez ... convem ir ainda mais longe, fazendo abstracao de lodo sujeito para conside-rar que, de urn certo modo, os mitos se pensam entre eles. Porque se lrata aqui de separar

. nao tanto 0 que existe nos mites ... mas 0 sistema de axiomas e de postulados definindo 0

rnelhor c6digo posslvel, capaz de dar uma signiflcaca o comum a elaboracoes inconscien-tes .v." (p. 20, sublinhado no texto). Quante a esta stgniflcacao, ..... se perguntamos qual 0

significado ultimo a que rernetcrn estas signiflcacoes que se significam mutuamenle, masque e preciso que final mente e todas juntas se refiram a alguma coisa, a unica resposta queeste livre sugere e que as mitos signiflcarn 0 esplrito que os elabor a atraves do mundo doqual ele mesmo faz parte" (ib, p. 346). Como sabernos que para Levi-Strauss 0 esplrito sig-nifiea 0 cerebro, e que este pertence cornpletarnente it ordem das coisas, exceto que possuiesta extravagante proprledade de poder simbolizar as outr as coisas, chegamos 11 conclusiiode que a atividade do esplrito consiste em simbolizar-se a si mesmo enquanto coisa dotadade poder simbolizador. Contudo, 0 que nos imporla aqui nao sao as aporias filos6ficas aque eonduz esta posicao, mas 0 que ela deixa cscapar de csscncial no social-historico.

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interpretacao puramente simb6lica das instituicoes suscita imediatamen-te as seguintes perguntas: porque este sistema de slmbolos, e nao urn ou-tro; quais sao as signiflcaciies veiculadas pelos slm bolos, 0 sistema de sig-nificados ao qual remete 0 sistema de significantes; porque e como as re-des sirnbolicas conseguem autonornizar-se. E ja suspeitarnos que as res-pastas a estas perguntas estao profundamente ligadas.

a) Compreender, na medida do posslvel, a "escolha" que uma socie-dade faz de seu simbolismo, exige ultrapassar as consideracoes formaisou mesrno "estruturais". Quando dizemos, a prop6sito do totemismo,que tais especies animais sao investidas totemicamente nao porque "boaspara comer", mas porque "boas para pensar" H, desvendamos sem duvi-da uma importante verdade. Mas esta nilo deve esconder as questoes quevem em seguida: porque essas especies sac "melhores para pensar" doque as outras, porque tal par de oposicoes e escolhido de preferencia aosinumeros outros oferecidos pela natureza, pensar par quem, como - emsuma, ela nilo deve servir para esvaziar a pergunta do conteudo, para eli-rninar a referencia ao significado. Quando uma tribo estabelece dois elascomo homologos ao par falcao-corvo, surge imediatamente a questao desaber porque esse par foi escolhido entre todos os que poderiam conotaruma diferenca no parentesco. E claro que a questao se coloca com infini-tamente maior insistencia no caso das sociedades hist6ricas ".

b) Compreender, e mesrno simplesmente captar 0 simbolismo deuma sociedade, e captar as significacoes que carrega. Essas significacoess6 aparecem veiculadas por estruturas significantes; mas isso nao quer di-zerque elas se reduzem a isso nem que dal resultem de maneira unlvoca,nem enfim que por elas sejarn determinadas. Quando, a prop6sito domito de Edipo separamos uma estrutura que consiste em dois pares deoposicees 36, indicamos provavelmente uma condicao necessaria (comoas oposicoes fonernaticas na lingua) para que alguma coisa seja dita. Maso que e dito? E qualquer coisa - isto e, 0 nada? No caso presente e indife-rente que esta estrutura, esta organizacao de varies nlveis de significantese de significados particulares, transmita finalmente uma significacao glo-bal ou urn sentido articulado, a proibicdo e a sancao do incesto, e, porisso mesmo, a constituicao do mundo humano como esta ordem de coe-xistencia onde 0 outro nao e simples objeto de meu desejo mas existe porsi e man tern com um terceiro relacoes as quais 0 acesso me e proibido?

34 Levi-Strauss, Le Totemisme aujoud'hui, L.c., p. 128.35 Esta pergunta rnais uma vez e colocada pela ciencia que trabalha, por assim dizer, ao

nlvel do simbolismo, a Iingulstica, cr. Roman lackobson, Essai de linguistique gel/erale, Pa-ris 1963. ch. VII ("L'aspect phonologique et I'aspect grammatical du langagedans leurs in-terrelations"). Menos ainda podernos deixar de coloca-la em outros domlnios da vida histo-rica, a que F. de Saussurejamais teria pensado estender 0 principio do "arbitrario do sig-na".

36 Ver Levi-Strauss, Anthropologie structurale, I.c., p. 235-243.

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Quando, ainda, uma analise estrutural reduz todo urn conjunto de mitosarcaicos para significar, por meio da oposicao entre 0 cru e 0 cozido, apassagem da natureza a cultura H, nilo e claro que 0 conteudo assim sig-nificado possui urn sentido fundamental: a questao e a obsessao das ori-gens forma e parte da obsessao da identidade, do ser do grupo que a co-loca? Se a analise em questiio e verdadeira, ela significa 0 seguinte: os ho-mens se perguntam 0 que e 0 mundo humano - e respondern a isso porurn mito: 0 mundo humane e aquele onde se submetern a uma transfer-macae os dados naturais (onde cozinhamos os alimentos); 6, finalmente,uma resposta racional dada no imaginario por meios simb6licos. Existeum sentido que jamais pode ser dado independentemente de todo signo,mas que nao e a oposicao dos signos, e nao esta forcosarnente ligado a ne-.nhuma estrutura signlficante particular, pois ele e, como dizia Shannon, 0que permanece invariante quando uma mensagem 6 traduzida de urn co-digo a outro, e mesmo, poderlarnos acrescentar, 0 que permite definir aidentidade (ainda que parcial) no rnesmo c6digo de mensagens cuja com-posicao e diferente. E imposslvel sustentar que 0 sentido 6 simplesmenteo que resulta da cornbinacao dos sign os ". Podemos igualmente dizer quea combinacao dos signos resulta do sentido, pois enfim 0 mundo nilo e s6feito de pessoas que interpretam 0 discurso dos outros; para que aquelesexistarn, 6 precise primeiro que estes tenham falado, e falar ja e escolhersignos, hesitar, corrigir-se, retificar os signos ja escolhidos - em funcao deurn sentido. a rnusicologo estruturalista e uma pessoa infinitamente res-peitavel, con tanto que nile esqueca que deve sua existencia (do ponto devista economico, mas tarnbern ontol6gico) a alguern que, antes dele, per-correu 0 caminho inverso; a saber, ao rnusico criador que (consciente ou.inconscienternente, pouco importa) estabeleceu e mesmo escolheu suas"oposicoes de signos", cancelou notas numa partitura, enriqueceu ouempobreceu tal acorde, confiou finalmente as madeiras tal Frase inicial-mente dada aos metais, guiado por uma significacao musical a exprimir(e que, e claro, nao para de ser influenciada, ao longo da cornposicao, pe-los signos disponiveis, no c6digo utilizado, na linguagem musical que acompositor adotou - embora finalmente urn grande compositor modifl-que essa pr6pria linguagem e constitua macicarnente seus pr6prios sig-nificantes). Isso vale tambern para 0 rnitologo ou para 0 antropclogo es-truturalista, exceto que aqui 0 criador e uma sociedade inteira, a recons-trucao dos c6digos e muito mais radical, e muito mais profunda - em su-ma, a constituicao dos sign os em funcao de um sentido e um processo in-finitamente mais complexo. Considerar 0 sentido como simples "resulta-do" da diferenca dos signos e transformar as condicoes necessaries da lei-Iura da hist6ria em condicoes suficientes de sua existencia. E certamente,essas condicoes de leitura ja sao intrinsecamente condicoes de existencia,

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37 Levi-Strauss, Lc Cru et Ie Cuit, I.c.38 Como 0 faz Levi-Strauss. in Esprit, l .c.

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pois s6 existe hist6ria porque os homens comunicam e cooperam nummeio simbolico. Mas esse simbolismo e ele proprio criado. A hist6ria soexiste na e pela "linguagem" (todas as especies de linguagem), mas essalinguagem, ela se da, ela constitui, ela transforrna, Ignorar esse lado daquestao, e estabelecer para sempre a multiplicidade dos sistemas simboli-cos (e por conseguinte institucionais) e sua sucessao como fatos brutos aprop6sito dos quais nada haveria a dizer (e ainda menos a fazer), elimi-nar a questiio hist6rica por excelencia: a genese do sentido, a producao denovos sistemas de significados e de significantes, E, se isso e verdade emrelacao a constituicao hist6rica de novos sistemas simb61icos, 0 e tam-bern quanta a utilizacao, a cada momento, de urn sistema simb6lico esta-belecido e dado, Nesse caso, tarnbem nao podemos dizer, em absoluto,nem que 0 sentido "resulta" da oposicao dos signos, nem ° inverse: por-que isso transportaria aqui relacoes de causalidade, ou pelo menos decorrespondencia biunlvoca rigorosa, que dissimulariam e anulariam °'que e a rnais profunda caracteristica do fenorneno simbolico, a saber, suaindeterrninacao relativa. No nlvel mais elementar, esta indeterrninacao jae claramente indicada pelo fenorneno da sobredeterrninacao dos simbo-los (varies significados podem ser ligados ao mesmo significante) - aoqual e preciso acrescentar of en orne no inverso, que poderiamos chamar asobre simbolizacao do sentido (0 rnesmo significado e carregado porvaries significantes; existern, no mesmo codigo, mensagcns equivalentes,ha em toda lingua "traces red undantes" etc.).

As tendencies extremistas do estruturalismo resultam do fato de queele cede efetivamente a "utopia do seculo", a qual nao e "construir urnsistema de signos num so nlvel de articulacao" J\ mas eliminar ° sentidointeiramente (e, sob uma outra forma, eliminar 0 homern). ~ assim que.reduzimos 0 sentido, na medida em que nao e identiflcavel a uma cornbi-nacao de sign os (ainda que s6 como seu resultado necessario e univoco),a uma interioridade nao-transportavel, a urn "certo sabor" '0, E que pare-cemos so poder conceber ° sentido em sua acepcao psicologica-afetivamais limitada. Mas a proibicao do incesto nao e urn sabor; e uma lei, ouseja, uma instituicao que tern uma significacao, simbolo, mito e enuncia-do de regra que remere a urn sentido organizador de uma infinidade deatos humanos, que faz levan tar no meio do campo do posslvel a muralhaque separa 0 licito e 0 illcito, que cria urn valor e reorganiza to do 0 siste-ma de significacoes, dando por exernplo a consanguinidade urnconteudoque ela nao possuia "antes", A diferenca entre natureza e cultura nao emais a simples diferenca de sabor entre 0 cru e 0 cozido, ela e urn mundode significacoes.

c) Enfim e imposslvel eliminar a pergunta: como e porque 0 sistemasimb61ico das instituicoes consegue autonomizar-se? Como e porque a

)9 Levi-Strauss, Le Cru ('I It' Cuit . p. )2,40 Levi-Strauss. in Esprit, I.C,p, 6.17-641.

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estrutura institucional, tao logo estabelecida, torna-se urn fator ao qual avida efetiva da sociedade est a subordinada e submetida? Responder quefaz parte da natureza do simbolismo 0 autonomizar-se seria algo pior doque uma inocente tautologia. Isso significaria dizer que faz parte da natu-reza do sujeito 0 alienar-se nos slmbolos que cmprega, por conseguinte,abolir to do discurso, todo dialogo, toda verdade, estabelecendo que tudoque dizemos e provocado pela fataJidade automatica das cadeias simboli-cas", E sabemos, de qualquer maneira, que a autonomizacao do sirnbo-lismo como tal, na vida social, 6 urn fenorneno secundario. Quando a reli-giao se apresenta perante a sociedade, como urn fator autonomizado, osslrnbolos religiosos s6 tern independencia e valor porque eles encarnam asignificacao religiosa, seu brilho e artificial- como 0 mostra 0 fato de quea religiao pode investir novos slmbolos, criar n ovos significantes, apode-rar-se de outras regioes para sacrarnenta-las.

Njio e inevita vel cair nas arrnadilhas do simbolisrno por ter reconhe-cido sua irnportancia. a discurso nao e independente do simbolismo, eisso significa uma coisa bem diferente de urna "condicao externa": 0 dis-curso e tornado pelo simbolismo. Mas isso nao quer dizer que the seja fa-tal mente subrnetido. E, sobretudo, 0 que 0 discurso visa e outra coisa queo simbolismo: e urn sentido que pode ser percebido, pensado ou imagina-do; e sac as rnodaJidades dessa relacdo, com sentido que fazem urn dis-curso ou urn deliria (0 qual pode ser grarnaticalmente, sintaticarnente elexicamente irnpecavel). A diferenca, que nao nos e posslvel evitar, entreaquele que, olhando a Torre Eiffel, diz: "~a Torre Eiffell", e aquele quenas mesrnas circunstancias diz: "Ue, eis a vovo", 56 pode ser encontradana relacao do significado de seu discurso com urn significado canonicodos termos que ele utiliza e com urn nucleo independente de todo 0 dis-curso e de toda sirnbollzacao. a sentido e esse nucleo independente quevem a expressao (que, neste exemplo, e 0 "estado real das coisas").

Estabelecemos pois que existern significacoes relativamente indepen-dentes dos significantes e que desempenham urn papel na escolha e na or-ganizacao desses significantes. Essas significacoes podem corresponderao percebido, ao racional ou ao imagindrio, As relacoes intimas que exis-

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:.'11 41 Podemos certarnente sustenrar que um uso lucido do simbolismo e posslvel a nlvel in-dividual (por exernplo , para a linguagern). e nao a nivel coletivo (relativarnentc as institui-coes). Mas stria preciso mostra-lo, e esta demonstracao nao podcria evidenlemente apoiar-se na natureza geral do simbolismo como tal. Nao dizernos que nao exista difcrenca entre osdois niveis, nem mesmo que esta seja simplesmente de grau (cornplexidade maior do socialetc.). Dizernos simplesmente que cia provern de outros farores que mio 0 simbolismo, a sa-ber, do caratcr multo mais profundo (e diflcil de captar) das significacoes im agin arias 50-

ciais e de sua "materializacao". Ver mais adiante.• A critic a do "estruturalisrno " aqui delineada nao respondia a nenhuma "necessidade

interna " para 0 autor, mas somente a necessidade de com baler uma mist ificacdo ~ qual. hadez anos, rnuito poucas pessoas escapavam. Ela facilmente poderia ser prolongada e amp li-fieada. mas nao e urna tarefa urgentc, na mcdida ern que a furnaca do estruturalisrno esia sedissipando.

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tern praticamente sernpre entre esses tres p610s nao devem fazer com quese perca de vista sua especificidade.

Seja, por exernplo, Deus. Sejam quais forem os pontos de apoio quesua representacao tenha no percebido; seja qual for sua eficacia racional

. como princlpio de organizacao do mundo para algumas culturas, Deusnao e nem uma significacao do real, nem uma slgnificacao de racional;tarnbern nao e slrnbolo de outra coisa. 0 que e Deus - nao como conceitode teologo, nem como ideia de fil6sofo - mas para n6s que pensamos 0que ele e para os que creern em Deus? Eles s6 podem evoca-lo e referir-sea Ele com a ajuda de sirnbolos, nem que seja apenas 0 "Nome" - maspara eles e para n6s que consideramos esse fenorneno hist6rico constitul-do por Deus e os que creern em Deus, Ele ultrapassa indefinidamente esse"Nome", e outra coisa. Deus nao e nem 0 nome de Deus, nem as imagensque um povo po de dar-se dele, nem nada de similar. Carregado, indicadopor todos estes slmbolos, ele e, em cada religiao, 0 que faz desses slmbo-los, simbolos religiosos, - uma signiflcacdo central, organizacao em siste-ma de significantes e de significados, 0 que sustenta a unidade cruzada deuns e de outros, 0 que permite tarnbem sua extensao, sua rnultiplicacao,sua modificacao. E essa significacao, nem de uma percepcao (real) nemde urn pensamentoIracional) e uma significacao irnaginaria.

Seja ainda esse fenorneno que Marx charnou de reiflcacao, mais generi-camente,de "desumanizacao" dos individuos das classes exploradas emcertas fases hist6ricas: um escravo e visto como animal vocal, 0 operariocomo "parafuso de maquina" ou simples mercadoria. Pouco importa.:aqui, que esta assimilacao nao chegue jarnais a se realizar totalrnente, quea realidade humana dos escravos e dos operarios a questione etc. '2. Quale a natureza desta significacao -, a qual, e precise lembrar, longe de sersimples mente conceito ou representacao, e uma signlficacao operante,com pesadas conseqtlencias hist6ricas e sociais? Um escravo nlio e umanimal, urn operario nao e uma coisa; mas a reificacao nao e nem umafalsa percepcao do real, nem urn erro 16gico; e nao podemos tambern fa-zer dela um "momento dialetico" em uma hist6ria totalizada do adventoda verdade da essencia humana, onde esta se negaria radicalmente antese a fim de poder realizar-se positivamente. A reificacao e uma signifiea-cao irnaginaria (inutil salientar que 0 imaginario social, tal como 0 enten-demos, e mais real do que 0 "real"). Do ponto de vista estritarnente sim-bolico, ou "Iingulstico", ela aparece como urn deslocamento de sentido,como uma cornbinacao de metafora e de metonimia. 0 escravo s6 pode"ser " animal metaforicamente, e esta metafora, como toda metafora.apoia-se sobre uma metonfmia, sendo a parte tomada pelo todo, tanto no

42 Nos nos explicarnos em outre lugar sobre a relatividade do conceito de reificacao: cr."Le mouvement revolutionnaire so us Ie capitalisme moderne", em particular S. ou B. N933, p. 64·65: tambern "Recommencer la revotution", in L'Ex perience du mnuvement ouvrier,2, L.«. p. 317-318.0 que quest iona a reificacao e a relativiza como categoria e como realida-de i: a luta dos escravos ou dos o perarios.

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animal como no eseravo, e sendo a pseudo-identidade das propriedadesparciais estendida sobre 0 lodo dos objelos considerados. Mas esse des-vio de sentido - que e afinal a operacao indefinidamente repetida do sirn-bolismo -,0 fato de que sob urn significante surja urn outro significado, esimplesmente uma rnaneira de descrever 0 que se passou, e nao explicanem a genese, nem a maneira de ser do fenorneno considerado. 0 que es-ta em questiio na reificacao - no caso da escravidao ou no caso do prole-tariado - e a instauracao de uma nova slgnificacdo operante, a captacaode uma categoria de hornens por uma outra categoria como assimilavel,em todos os sentidos praticos, a animais ou a coisas. ~ uma criacdo ima-ginaria, de que nem a realidade, nem a racionalidade, nem as leis do sirn-bolismo podem explicar (e diferente se esta criacao nao pode "violar" asleis do real, do racional e do sirnbolico), e que niio tern necessidade de serexplicitada nos conceitos ou nas representacces para existir, que age napratica e no fazer da soeiedade considerada como sentido organizador docornportarnento humano e das relacoes sociais independentemente de suaexistencia "para a consciencia" desta sociedade. 0 escravo e metaforiza-do como animal, 0 operario como mercadoria na pr atica social efetivamuito tempo antes' dos juristas romanos, Arist6teles ou ·Marx.

o que torn a 0 problema dificil, 0 que provavelmenteexplica porques6 foi visto durante muito tempo de maneira parcial e porque ainda hojetanto em antropologia como em psicanalise, constatamos as maiores di-ficuldades em diferenciar os registros e a acao do simb61ico e do imagina-rio, nao sao somente os preconceitos "realistas" e "racionalistas" (dosquais as tendencias mais extremas do "estruturalismo" conternporaneorepresentam uma curiosa mistura) que impedem de admitir 0 papel do'imaginario, 0 significado ao qua! remete 0 signifieante e quase in a-preensivel como tal, e por definicao seu "modo de ser" e urn modo denjio-ser. No registro do percebido (real) "exterior" ou "interior" a exis-tencia fisicamente distinta do significante e do signi ficado 6 imediata:ninguern confundira a palavra arvore com uma arvore real, a palavra rai-va ou tristcza com os afetos correspondentes. No registro do racional, adistincao nao e menos clara: sabemos que a palavra (0 "termo") que de-signa um conceito e uma coisa e 0 proprio conceito outra. Mas no easodo imaginario, as coisas sao menos simples. Certamente, podemos aquitarnbern distinguir, num primeiro nlvel, as palavras e 0 que elas designarn,significantes e significados: Centauro e uma palavra que rernete a um serirnaginario distinto desta palavra e que podemos "definir" por palavras(pelo que ele se assimila a um pseudoconceito) ou representar por ima-gens (pelo que se assimila a um pseudopercepto) I). Mas ja esse caso facile superficial (0 Centauro irnaginario e apenas uma reuniao de partes des-

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43. Existc uma "essencia" do Centauro: dois conjuntos definidos de possivcis e imposs/-veis. Esta "essencia" e "r epresentavel": nao existe nenhuma impr ecisao concernente A apa-rencia flsica "generica" do Cenlauro.

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tacadas de seres reais) nao se esgota por essas consideracoes, pais para a''cultura que vivia a realidade mitol6gica dos Centauros, 0 ser destes eradiferente da descricao verbal au da representacjio esculpida que poderla-mos dar. Mas esta arrealidadeultirna, como capta-Ia? Ela s6 se da, de urncerto modo, como as "coisas em si", a partir de suas conseqilencias, deseus resultados, de seus derivados. Como captar Deus, enquanto signifi-cacao irnaginaria, a nao ser a partir das sombras (A bscha/tungen) projeta-dos sobre 0 agir social efetivo dos povos - mas, ao rnesmo tempo, comonao ver que, assim como a coisa percebida, ele e condicao de possibilida-de de uma serie inesgotavel de tais sornbras, mas, ao contrario da coisapercebida, ele jamais se da "em pessoa"?

Seja 0 exernplo de um sujeito que vive uma cena no imagin ario, en-trega-se a um devaneio ou repete fantasticamente uma cena vivida. Acena consiste em "irnagens" no sentido rnais ample do termo. Essas irna-gens sac feitas do mesmo material com que podemos fazer slm bolos; se-rao slrnbolos? Na consciencia explicita do sujeito, njio; elas njio estao aipara representar outra coisa, mas sac "vividas" por si mesmas. Mas issonao esgota a questao. Podem representar outra coisa, urn fantasma in-consciente - e e geralrnente assirn que serao vistas pelo psicanalista. Aimagem e portanto aqui sirnbolo :...mas de que? Para sabe-lo, e preciso en-~'trar nos labirintos da elaboracao simb61ica do irnaginario no inconscien-te. 0 que ha, no fundo? Algo que nao esta hi para representar outra coisa,que e antes condicao operante de toda representacao ulterior, mas que jaexiste no modo da.representacao: 0 fantasma fundamental do sujeito, suacena nuclear (nao a "ceria prirnitiva"), onde existe 0 que constitui 0 sujei-to na sua singularidade: seu esquema organizador-organizado que se re-presenta por imagem, e que existe nao na sirnbolizacao, mas sim na pre-sentificacao irnaginaria a qual ja e para 0 sujeito significacao encarnada eoperante, primeira captacao e constituicao logo de inlcio de urn sistemarelacional articulado, colocando, separando e unindo "interior" e "exte-rior", esboco de gesto e esboco de percepcao, reparticao de papeis ar-quetipicos e imputacao originaria de papel ao- pr6prio sujeito, valoriza-c;iio e desvalorizacao, fonte da significancia simbolica ulterior, origemdos investimentos privilegiados e especificos do sujeito, um cstruturante-estruturado. No plano individual, a producao desse fantasma fundamen-tal depende do que chamamos 0 imaginario radical (ou a imaginacao ra-dical); esse fantasma existe ao mesmo tempo no modo do imaginario efe-tivo (do imaginado) e e principal significacao e nucleo de significacoes ul-teriores.

E duvidoso que possamos captar diretamente esse fantasma funda-mental; quando muito poderrios reconstitui-lo a partir de suas manifesta-coes porque aparece efetivarncnte como fundamento de possibilidade ede unidade de tudo 0 que faz a singularidade do sujeito nao como singu-laridade puramente combinatoria; de tudo 0 que na vida do sujeito ultra-passa sua realidade e.sua historia, condicao ultima para que uma realida-de e uma histor ia sobrevenham ao sujeito.172

Quando se trata da sociedade - que evidcntemente nao se quer trans-formar em "sujeito", nem em sentido proprio, nem metaforicamente -en con tram os esta dificuldade em grau redobrado. Portanto, temos aqui,a partir do imaginario que cresce irnediatarnente na superficie da vida so-cial, a possibilidade de penetrar no labirinto da sirnbolizacao do irnagina-rio; e desenvolvendo a analise, chegaremos a significacoes que nao se en-con tram al para representar outra coisa, que sdo como as articulacoes ul-.timas que a sociedade em questao impos ao mundo, a si mesma e a suas'necessidades, os esquemas organizadores que sac condicao de represen-tabilidade de tudo 0 que essa sociedade pode dar-se. Mas por sua proprianatureza, esses esquemas nao existem sob a forma de uma representacaoque poderiamos atingir atraves de analises. Niio podemos falar aqui deuma "imagem", por vago e indefinido que seja 0 sentido dado a esse ter-

mo. Deus e talvez, para cada urn dos fieis, uma "irnagern" - que pode sermesmo uma representacao "precisa" -, mas Deus, enquanto significacaosocial irnaginaria, nao e nem a "soma", nem a "parte comurn", nern a"media" dessas irnagens, e antes sua condicao de possibilidade eo quefaz com que essas imagens sejam imagens "de Deus". Eo nucleo imagi-nario do fenomeno de reificacao nao e "irnagern" para ninguern. Corre-tamente falando, significacoes irnaginarias sociais nao existem sob a for-ma de uma representacao: elas sao de uma outra natureza, para a qual ein uti I procurar uma analogia nos outros domlnios de nossa experiencia.Comparadas as significacoes imaginarias individuais, elas sac infinita-mente maiores que urn fantasma (0 esquema subjacente ao que designa-mos como a "imagem do mundo" judeu, grego ou ocidental se estende aoinfinito) e elas nao tern um lugar de existencia preciso (sc e que se podedenominar 0 inconsciente individual de urn lugar de existencia preciso).Elas so podem ser captadas de maneira derivada e obliqua: como a sepa-racao ao mesmo tempo evidente e irnpossivel de delimitar exatarnente en-tre este primeiro termo: a vida e a organizacao efetiva de uma sociedade,e este outro termo igualmente irnpossivel de definir: esta vida e esta orga-nizacao concebidas de maneira estritamente "funcional-racional"; comouma "deforrnacao coerente" do sistema dos sujeitos, dos objetos e desuas relacoes; como a curvatura especifica a cada espaco social; como 0cirnento invisivel mantendo unido este imenso bric-a-brac de real, de ra-cional e de simb6lico que constitui toda sociedade e como 0 principio queescolhe e informa as extremidades e os pedacos que af serao admitidos.As significacoes imaginarias sociais - pelo menos as que sao verdadeira-mente ultimas - nao denotam nada, e conotam mais ou menos tudo; e epar isso que elas sao tao freqUentemente confundidas com seus simbolos,nao somente pelos povos que as utilizam, mas pelos cientistas que as ana-lisam e que chegam, por isso, a considerar que seus significantes se sign i-ficam por si mesmos (uma vez que nao remetem a nenhum real, nenhumracional que pudessernos designar), e a atribuir a esses significantes comotais, ao simbolismo tornado em si mesmo, urn papel e uma eficacia infini-tamente superiores as que certamente possuem.

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Mas nao haveria a possibilidade de uma "reducilo" deste imagiriariosocial ao imagin ario individual- 0 que forneceria, ao mesmo tempo, urnconteudo denottivel a esses significantes? Nao poderlamos dizer queDeus, por exernplo •. deriva de inconscientes individuais e que significaprecisamente urn momento fantastico essencial desses inconscientes, 0pai irnaginario? Tais reducoes - como a que Freud tentou para a religiao,e as que tambern podedamos tentar para as significacoes irnaginarias denossa pr6pria cultura - parecem conter uma parte de verdade irnportan-te, mas nao esgotam a questao. E incontestavel que uma significacaoimaginaria deve encontrar seus pontos de apoio no inconsciente dos in-divlduos; mas esta condicao nao e suficiente, e legitirnarnente podernosperguntar-nos se e condicao ou resultado. 0 indivlduo e sua psique pare-cern em certos aspectos. sobretudo para n6s, homens de hoje, possuiruma "realidade" eminente, da qual 0 social estaria privado. Mas sob ou-tros aspectos esta concepcao e ilus6ria, "0 indivlduo e urna abstracao": afato de que 0 campo social-historico jamais seja captavel como tal, massomente por seus "efeitos" nao prova que possua uma menor realidade,seria antes 0 contrArio. 0 peso de urn corpo traduz uma propriedade des-se corpo, mas tarnbern do campo gravitacional circundante, 0 qual s6 eperceptlvel por efeitos "rnistos" dessa ordem; eo que pertence "em parti-cular" ao cor oo considerado, sua massa na concepcao classica, njio seria,se acreditarmos em certas concepcoes cosrnologicas modernas, uma"propriedade" do corpo, mas a expressao da acao sobre esse corpo de to-dos os outros corpos do universe (principio de Mach). em resurno, umapropriedade de "coexistencia" que surge ao nivel do conjunto. 0 faro deque. no mundo hurnano, encontremos alguma coisa que eao rnesmo tem-po menos e mais que uma "substancia", 0 individuo, 0 sujeito, 0 para-si,nao deve fazer diminuir aos nossos olhos a realidade do "campo". Con-cretamente, colocando como na interpretacao freudiana da religiao, aexistencia de um "Iugar para preencher" no inconsciente individual, eaceitando sua interpretacao dos processos que produzem a necessidade dasublimacao re1igiosa, ainda assim ·subsiste que 0 individuo njio podepreencher este lugar com suas pr6prias producoes, mas somente utilizan-do significantes dos quais nao dispoe livremente. 0 que 0 individuo podeproduzir sao fantasmas privados, nao instituicoes. A juncao opera-se, asvezes, ate mesmo de maneira que podemos situar e datar, nos fundadoresde religiao e alguns outros "individuos excepcionais", cuja fantasia pri-vada vem preencher onde e precise e no momenta exato 0 vazio do in-:consciente dos outros, possuindo suficiente "coerencia" funcional e ra-cional para revelar-se via vel uma vez simbolizada e sancionada - au seja,institucionalizada. Mas esta constatacao nao resolve a problema no scn-tido "psicologico", njlo somente porque esses casos sac as mais raros,mas porque mesmo neles a irredutibilidade do social e facilmente legivel.Para que esta juncao entre as tendencies dos inconscientes individualspossa produzir-se, para que 0 discurso do profeta nao perrnaneca aluci-nacao pessoal ou credo de uma seita efernera, e necessario que coridi-174

f,.coes sociais Iavoraveis tenham moldado, numa area indefinida, as in-.conscientes individuals e os tenham preparado para esta "boa-nova". Eopr6prio profeta trabalha no e pelo instituldo e 'mesmo se ° transformanele se apoia; todas as religioes cuja genese conhecernos sao transforrna-~oes de religioes precedentes : ou entao contern um enorme cornponentede sincretismo. S6 0 mito das origens formulado por Freud em Totem eTabu, escapa em parte a estas consideracoes, e isso porque e urn mito,mas tambern porque se refere a um estado hlbrido e. a bem dizer, incoe-rente. 0 instituldo ja esta presente, e a pr6pria horda primitiva nao e umfato da natureza; nem a castracao das criancas de sexo masculino, nem apreservacao do ultimo nascido podem ser considerados como originan-do-se de um "instinto" biologico (com que finalidade, e como teria ele"desaparecido" a seguir?) mas ja traduzem a pena a~ao do irnaginario,sern a qual, alias, a subrnissao dos descendentes e inconceblvel, 0 assassi-nato do pai nao e ato inaugural da sociedade mas resposta a castracao (eesta 0 que e senao uma defesa antecipada?), como a comunidade dos ir-maos, enquanto instituicao, sucede ao poder absoluto do pai, e pois revo-lucao mais do que instauracao primeira. 0 que ainda nao est a al, na"horda primitiva", e que a instituicao. todos os outros elementos da qualestao presentes, nao e simbolizada como tal.

Subsiste que fora de uma postulacao mltica das origens, toda tentati-va de derivacao exaustiva das significacoes sociais a partir da psique indi-vidual parece fadada ao fracasso por desconhecer a impossibilidade deisolar esta psique de·um continuo social, 0 qual nao pode existir se ja naoest a sempre instituido. E, para que uma significacao social irnaginariaexista, sac necessaries significantes coletivamente disponiveis, mas sobre-tudo significados que njio existem sob a forma sob 0 qual existem os sig-nificados individuais (como percebidos, pensados ou imaginados por talsujeito ).

A funcionalidade toma de emprestirno seu sentido fora de si rnesma;o simbolismo refere-se necessariamente a alguma coisa que nao e sirnbo-lico, e que tarnbern nao e somente real-racional. Este elemento, que da afuncionalidade de cada sistema institucional sua orientacao especlfica,que sobredetermina a escolha e as conexoes das redes simb6licas, criacaode cada epoca hist6rica, sua singular maneira de viver, de ver e de fazersua propria existencia, seu mundo e suas relacoes corn ele, esse estrutu-rante originario, esse significado-significante central. Fonte do que se dacada vez como sentido indiscutlvel e indiscutido, suporte das articulacoes,e das distincoes do que importa e do que nii o importa, origem do aurnen-ito da existencia dos objetos de investirnento pratico, afetivo e intelectual,individuals ou coletivos - este elemento nada mais e do que 0 imagintirioda sociedade ou da epoca considerada.

Nenhuma sociedade pode existir se nao organiza a producao de suavida material e sua reproducao enquanto sociedade. Mas nem uma nernoutra dessas organizacoes sao ou podem ser ditadas inevitavelmente porleis naturais ou por consideracoes racionais. No que assim aparece como

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margem de indeterrninacao, situa-se 0 que e 0 cssencial do ponto de vistada historia (para a qual 0 que importa nao e certamente que os hornensten ham cada vez corn ido ou gerado criancas, mas antes de tudo, que 0 te-nham feito de uma infinita variedade de formas) - a saber, que 0 mundototal dado a esta sociedade e captado de uma maneira determinada, prati-camente, afetivamente e mentalmente, que um sentido articulado the e irn-posto, que sao operadas distincoes correlativas ao que vale e ao que naovale (em todos os sentidos da palavra valer, do mais economico ao maisespeculativo), entre 0 que deve e 0 que nao deve ser feito ", .

Esta estruturacao encontra certamente seus pontos de apoio na cor-poralidade, na medida em que 0 mundo dado a sensorialidade ja e neces-sariamente urn mundo articulado, na medida tambern em que a corpora-lidade jA e necessidade, portanto que objeto material e objeto humane.alimento, como acasalamento sexual, ja estao inscritos no interior dessanecessidade, e que uma relacao com 0 objeto e uma relacao com o outrohumano, portanto uma primeira "definicao" do sujeito como necessida-de e relacao com 0 que pode satisfazer essa neccssidade, ja esta ca rregadapor sua existencia biol6gica. Mas esse pressuposto universal. em toda aparte e sernpre 0 mesmo e absolutamente incapaz de explicar tanto as va-riacoes como a evolucao das formas da vida social.

Papel das significa~oes Imagtnarias

A historia e imposslvel e inconcebivel fora da imaginacdo produtivaau criadora, do que nos chamamos 0 imagindrio radical tal como se mani-festa ao mesmo tem po e indissoluvelmente no fazer historico, e na consti-tuicao, antes de qualquer racionalidade expllcita, de um universo de sig-niflcaciies 0. Se ela incIui esta dimensao que as fil6sofos idealistas chama-ram liberdade, e que seria mais justa denominar indeterminacao (a qual,pressuposta pelo que definimos como a autonomia, nao deve ser confun-dida com esta), e que esse fazer estabelece e se da outra coisa que nao 0

44. Valor e nilo-valor, llcito e illcito silo constiturivos da historia e nesse sentido, comooposicao estruturante abstrata, prcssupostos par toda hist6ria. Mas 0 que c cad a vez va-'lor e nao-valor, llcito e illcito, e historico e deve ser interpretado, na rncdida do posslvel, emseu conteudo

45. 0 papel rudamental da imaginucao, no sentido mais radical, tinha sido claramentevistu pela filosofia classic a alerna, ja por Kant, mas sobrctudo por Fichte, para quem a Pro-duktive Einblldungskraft e urn ••Faktum do esplrito humano", que e err. ultima analise, nilofundarnentavel e nao fundamentado e que lorna posslveis todas as slntcses da subjetividade.Tal i: pelo menos a posicao da primeira Wissencltaftslehere, ondc a imaginacao produtiva eaquilo em que "6 baseada a possibilidade de nossa consciencia. de nossa vida. de nosso serpara nos, ou seja de nosso ser como Eu". Vcr principalmente R. Kroner. VOII Kalil bis He-gel. 2 Aufl .. Tiibingen. 1961. vol, I. p. 448 e s.. 447-480. 4!l4-486. Esta intuicao csscncial Ioiobscurecida em seguida (e ja nas obras ulteriores de Fichte). sobretudo em funcdo de urn reotorno ao problema da validade geral (A/Igellleill,f!JiJri~keir) do saber. que parcce quase irn-possivcl de pensar em terrn os de irnaginacao. (A questfio c Iongnrnente rrat ada na segundaparte deste livre).

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que simplesmente e, e que ha nele significaciies que njio sao nem reflexodo percebido, nem simples prolongamento e sublirnacao das tendenciasda animalidade, nem elaboracao estritamente racional dos clados.

. 0 rnundo social e cada vez constituldo e articulado em funcao de umsistema de tais significacoes, e essas significacoes existem, uma vez consti-tuldas, na forma do que chamamos 0 imagindrio efetivo (au 0 imaginado).f: so relativamente a essas significacoes que podemos compreender, tantoa "escolha" que cada sociedade faz de seu sirnbolisrno, e principalrnentede seu simbolismo institucional, como os fins aos quais ela subordina a"funcionalidade". Presa incontestavelmente entre as coercces do real edo racional, sempre inser ida em uma continuidade historica e por conse-qiiencia co-deterrninada pelo que ja se encontrava al, trabalhando sern-pre com um simbolismo ja dado e cuja rnanipulacao nao e livre, sua pro-ducao niio pode ser exaustivamente reduzida a urn desses fatores ou aoseu conjunto. Nao pode, porque nenhurn desses fatores pode preencher .seu papel, pode "responder" as perguntas as quais "respondem".

Ate aqui toda sociedade tentou dar uma res posta a algumas pergun-tas fundamentais: quem somos nos, como coletividadc? Que somos nos,uns para os outros? Onde e em que somas n6s? Que queremos, que dese-jamos, a que nos falta? A sociedade deve definir sua "identidade"; sua ar-ticulacao; 0 mundo, suas relacoes com ele e com os objetos que contem;suas necessidades e seus desejos. Sem a "resposta" a essas "perguntas":sem essas "definicoes" .nao existe mundo humane, nem sociedade e nemcultura - porque tudo perrnaneceria caos indiferenciado. 0 papel das sig-nificacoes imaginaries e 0 de fornecer uma resposta a eS'Sas pergun tas,resposta que, evidentemente, nem a "realidade" nem a "racionalidade"podcm fornecer (salvo num sentido especlfico, ao qual voltaremos).

f: claro que, quando falamos de "perguntas", de "respostas", de"definicoes", falamos metaforicamente. Nao se trata de perguntas e derespostas colocadas explicitamente e as definicces nao sao dadas na lin-guagem. As perguntas njio sao nem mesmo feitas previamente as respos-tas. A sociedade se constitui fazendo ernergir uma resposta de fato a essasperguntas em sua vida, em sua atividade. E no fazer de cada coletividadeque surge como senti do encarnado a resposta a essas perguntas, e esse fa-zer social que so se deixa compreender como resposta a perguntas que elepr6prio coloca implicitamente.

Quando 0 marxismo acredita mostrar que essas questoes e as respos-tas correspondentes provem desta parte da "superestrutura" ideol6gicaque e a religiao au a filosofia, e que na realidade elas 56 sac reflexo defer-mado e refratado das condicces reais e da atividade social dos hornens,ele em parte tem razfio na medida em que visa a teorizacao expllcita, namedida tarnbem em que esta e efetivamente (ainda que ndo integralmente)sublimacao e defcrrnacao ideol6gica, e que 0 sentido autentico de umasociedade deve ser procurado em primeiro lugar na sua vida e sua ativi-dade efetivas. Mas cngana-se quando ere que esta vida e esta atividadepossam ser captadas fora de um sen t ido que elas possuern, ou que esse

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.sentido "e inquestionavel" (que ele seria, por exernplo, a "satisfacao dasnecessidades"). Vida e atividade das sociedades sac precisamente a posi-cao, a definicao desse sentido; 0 trabalho dos homens (no sentido maisestrito e no senti do mais amplo) indica por todos os lados, nos seus obje-tos, nos seus fins, nas suas modalidades, nos seus instrumentos, uma ma-neira cada vez especlfica de captar 0 mundo, de definir-se como necessi-dade, de se estabelecer em relacao aos outros seres humanos. Sem tudoisso (e nao somente porque pressupoe a representacao mental previa dosresultados, como diz Marx), ele njlo se distinguiria efetivamente da ativi-dade das abelhas, a qual poderiamos acrescentar uma "representacaoprevia do resultado" sem que nada mudasse. 0 homem e um animal in-conscientemente filosofico , que fez a si mesmo as perguntas da filosofianos fatos, muito tempo antes de que a fllosofia existisse como reflexiioexpllcita; e e urn animal poetico, que forneceu no irnaginario respostas aessas perguntas.

Eis algumas indicacoes preliminares sobre 0 papel das significacoessociais irnaginarias nos dominies evocados mais acima.

Prirneiro, 0 ser do grupo e da coletividade: cada um sc define, e e de-finido pelos outros, em relacao a urn "nos". Mas esse "nos", esse grupo,essa coletividade, essa sociedade, e quem, eo que? E primeiro urn simbo-10, as insignias de existencia que se deram sempre cada tribo, cada cidade,cada povo. Antes de tudo, e certamente urn nome. Mas esse nome, con-vencional e arbitrario, sera assim tao convencional e arbitrario? Esse sig-nificante remete a dais significados, que reune indissoluvelmente. Ele de-signa a coletividade em questao, mas nao a design a como simples exten-sao, .ele a designa ao mesmo tempo como cornpreensao, como algumacoisa, qualidade ou propriedade. N6s somas os leopardos. Somos as ara-ras. Somas as filhos do Ceu. Somas os filhos de Abraao, povo eleito queDeus fara triunfar sobre seus inimigos. Somos os Helenos - os da luz.N6s nos chamamos, ou os outros nos chamam, os gerrnanos, as francos,os teutos, os eslavos. Somos os filhos de Deus, que sofreu por n6s. Se essenome fosse slmbolo com funcao exclusivamente racional, ele seria signapuro, denotando simplesmente os que pertencem a tal coletividade elapropria designada por referencia a caracteristicas exteriores desprovidasde ambigiiidade ("os habitantes do XX9 distrito de Paris"). Mas isso naoe o-que ocorre, a nao ser para as divisoes administrativas das sociedadesmodern as. Ao contrario, para as coletividades hist6ricas de outrora,constatamos que 0 nome nao se limitou a denotd-las, que ele as conotouao mesmo tempo - e esta conotacao, liga-se a urn significado que nao enem po de ser real, nem racional, mas irnaginario (qualquer que seja 0

conteudo especifico, a natureza particular, deste imaginario).

Mas, ao mesmo tempo ou para alern do nome, nos totens, nos dell-ses da cidade, na extensao espacial e tcmporal da pessoa do Rei, se cons-titui, adquire peso e se materializa a instituicao que colora a coletividadecomo existente, como substancia definida e duravel para alern de suas178

moleculas pereciveis, que responde a pergunta de seu ser e de sua identi-dade referindo-os a simboios que a unem a uma outra "realidade".

A nacao (cujas juncoes reais desde 0 triunfo do capitalismo indus-trial, gostariamos que um marxista que nao Stalin explicasse, para alerndos acidentes de sua constituicao historical tem hoje estc papel, preencheesta funcao de identificacao por esta referencia triplicementc imaginariaa uma "historia cornum" - tripiicemente, porque esta historia e 56 passa-do, porque nao e tao comum, porque enfim 0 que dela e sabido e serve desuporte a esta identificacao coletivizante na consciencia das pessoas emitico em sua maior parte. Esse irnaginario da nacao se revela no en tantomais solido do que todas as realidades, como 0 mostram duas guerrasmundiais e a sobrevjvencia dos nacionalismos. as "marxistas" atuais queacreditam eliminar tudo isso dizendo simplesmente: "0 nacionalismo euma mistificacao" evidenternente se automistificam. Que 0 nacionalismoseja uma mistificacao, nao resta duvida. Que lima mistificacao tenha efei-tos tao rnacicarnente e terrivelmente reais, que ela se m ostre muito maisforte do que todas as forcas "reais" (inclusive 0 simples instinto de sobre-vivencia) que "deveriam" ter impelido ha muito tempo os proletariados auma confraternizacao, eis 0 problema. Dizer - "a prova de que 0 nacio-nalismo era uma simples mistificacao, par conseguinte alguma coisa de ir-real, e que ele se dissolvera no dia da revolucao mundial", nao e somentecantar vitoria antes da hora, e dizer: "Voces, homens que viveram de1900 a 1965 e quem sa be ate quando ainda, e voces os milhoes de mortosde duas guerras, e todos os outros que sofreram com isso e sao solidarios_ tad os voces, voces in-existem, voces sempre inexistiram aos olhos daverdadeira hist6ria; tudo 0 que voces viverarn foram alucinacces, pobressonhos de sombras, nao era a historia. A verdadeira hist6ria era esse vir-tual-invisivel que sera e que, traicoeiramente, preparava 0 fim de vossasilusoes". E esse discurso e incoerente, porqne nega a realidade da hist6riada qual participa (afinal um discurso nao e urna forma do movimento dasforcas produtivas) e porque ele convoca por meios irreais esses homens ir-reais a fazerem uma revolucao real.

Do mesmo modo, cada sociedade define e elabora uma imagemdo mundo natural, douniverso onde vive, tentando cada vez fazer urnconjunto signiflcante, no qual certamente devem encontrar lugar os obje-tos e seres naturais que importam para a vida da coletividade, mas tam-bern esta propria coletividade, e finalmente uma certa "ordem do mun-do". Esta imagem, esta visao mais ou menos estruturada do conjunto daexperiencia humana disponivel, utiliza as nervuras racioriais do dado,mas as dispoe segundo significacoes e as subordina a significacoes quecomo tais nao dependcm do racional (nem, alias, de um racional positi-Yo), mas sim do imaginaruo. Isso e evidente tanto para as crenc;~s das so-ciedades arcaicas 46 como para as concepcfies religiosas das sociedades

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46, Pensamos que e nesta perspectiva que deve-ser visto em grande parte 0 material exa-minado. principalrnentc por Claude LC~i·Strauss em La Pensee sauvage. e que de outra ma-

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historicus: e rnesrno 0 "rncionulisruo" extr erno das socicdades modernasnao cscupa totalmente a esta pcrspectiva.

I rnagern do mundo e imugern de si mesmo estd o evidentemente sem,pre ligadas '", Mas sua unidade e por sua vez trazida pela defirricao quecuda sociedade da de suas nccessidades, tal como ela se inscreve ria ativi-dude. 0 fazer social efctivo. A imagem de si mesma que se da a sociedadecomporta como momento essencial a escolha dos objetos, atos, etc., ondese encarnu 0 que para ela tern sentido e valor. A sociedade se define comoaquilo cuja existencia (a existencia "valorizada", a existencia "digna deser vivida") pode ser questionada pela ausencia au a escassez de tais coi-sas e, corrclativamente, como atividade que visa a fazer existir essas coi-sas em quantidade suficiente e segundo as modalidades adequadas (coi-sas que podem ser, em certos cases, perfeitamente imateriais, por exern-plo, a "santidade").

Sabemos desde sempre (pelo men os desde Her6doto) que a necessi-dade, seja alimentar, sexual, etc, 56 se torn a necessidade social em funcaode uma elaboracao cultural. Mas nos recusamos a maior parte do tempoobstinadamente a tirar as consequencias desse fato; que refuta.ja 0 disse-rnos, toda interpretacao funcionalista da hist6ria como "interpretacaoultima" (porquanto, longe de ser ultima, ela permanece suspensa no arpar nao poder responder a esta pergunta: 0 que define as necessidades deuma sociedade"). E claro tambern que nenhuma interpretacao "raciona-lista" pode bastar para explicaresta elaboracdo cultural. Nao conhece-mas sociedade onde a alirnentacao, 0 vestuario, 0 habitat obedecam aconsideracoes purarnente "utilitarias" au "racionais". Nao conhecemoscultura onde nao haja alimentos "inferiores", e ficarlamos espantados sejamais houvesse existido uma (afora casos "catastr6ficos" au marginais,como as aborlgenes australianos descritos em Les En/ants du capitaineGrant) .1.neira as homologies de estrutura entre natureza e sociedade, por exernplo no totemismo("verdadeiro" ou "pretense"), perrnanecem incompreenslveis.

47. A bem dizer, isso c uma tautologia, porquanto nao vemos como uma sociedade po-deria "representar-se" a si mesrna sern se situar no mundo: e sabemos que todas as religioesinserem de urn modo ou de outro 0 ser da humanidade num sistema do qual deuses e rnun-do fazem parte. Igualmente sabernos, pelo menos desde Xenofanes (Diels, t6), que os ho-mens criam as deuses Il. sua propria irnagem, pelo que c preciso en tender a: imagem de suasrelacocs efetivas, elas pr6prias marcadas de irnaginario, e a imagem da imagem ·que eles temdessas relacoes (sendo esta ultima grandemente inconsciente), Os trabalhos de G. Durnezi]mostr ar arn com precisiio, ha vlnte e cinco anos, a homologia de articulacao entre universesocial e universe das divindades atraves do exemplo das religioes indo-europeias, (;. na socie-dade conternpordnea que pela primeira vez, ao mesmo tempo em que esta ligac;ao persistesob rnutiplas formas, cia e questionada, porque imagem do mundo e imagem da sociedadese dissociam, mas, sobtetudo, porque elas tendem a deslocar-se cada uma por sua conta.Esse e urn dos aspectos da crise do imaginario (instituldo) no mundo moderno, ao qual vol-tarernos mais adiante ..

48. "Esses seres. degradados pela miseria, cram repulsivos". Julio Verne, Les En/ants ducapitaine Grall', Paris; Hachette, 1929, p. 362 e s. Verne deve, con forme seu habiro, ter to-rnado os elementos de sua narrativa de urn viajante ou ex pi orad or da epoca, (Vcr tarnbernagora Colin Turnbull, Un peuple de fauves, Stock, 1973).

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·1Ii' .'/ Como se faz esta elaboracao? Esse e um problema imenso, e toda

resposta "simples" que ignorasse a interacao cornplexa de urn grande nu-mero de fatores (as disponibilidades naturais, as possibilidades tecnicas,o estado "hist6rico", as jogos do simbolismo, etc.) seria desesperada-mente ingenua, Mas e facil ver que 0 que constitui a necessidade humana(como distinta da necessidade animal) eo investimenta do objeto comum valor que ultrapassa, por exernplo, a simples inscricao na oposicao"instintual" nutritivo-nao nutritivo (que "vale" tarnbern para 0 animal) eque estabelece no inteiror do nutritivo a diferenca entre a comivel e 0

nao-cornlvel, que cria 0 alimento no sentido cultural e dispoe as alimentosnuma hierarquia, classifica-os em "melhores" e "menos bans" (no senti-do do valor cultural, e nilo de gostos subjetivos). Essa retirada cultural nonutritivo disponivel, e a hierarquizacfio, estruturacao, etc., corr espon-dentes, encontram pontos de apoio em tad as os dadas naturals, mas naodeeorrem destes. E a necesaidade social que cria a raridade com 0 raridadesocial e nao 0 inverso '9. Niio e nem a disponibilidade, nem a raridade doscaramujos e das ras que fazem com que, para culturas analogas, contern-poraneas e pr6ximas, eles sac aqui, prato de goumert requintado, la, vo-mit6rio de eficacia segura. Basta fazermos 0 catalogo de tudo 0 que ashomens podem comer e efetivamente comeram (e conservando boa sau-de) atraves das diferentes epocas e sociedades, para percebermos que o.que e cornivel para 0 homem ultrapassa de longe a que ja foi:para cadacultura; alimento e que nao sac simplesmente as disponibilidades n atu ...rais e as possibilidades tecnicas que determinam essa escolha. IS50 se veainda mais c1aramente quando examinamos outras necessidades que nao-a alirnentacao. Essa escolha e feita por um sistema de significacces irnagi-narias que valorizam e desvalorizarn, estruturam e hierarquizam urn con-junto cruzado de objetos e de faltas correspondentes, e no qual pode-seler, mais facilmente que em qualquer outro, essa coisa tao incerta comoincontestavel que e a orientacdo de uma sociedade.

Paralelarnente a esse conjunto de objetos constituldos correlativos econsubstancialmente as necessidades, define-se uma estrutura ou uma ar-ticulacao da sociedade, como vemos no totemisma ("verdadeiro" ou"pretenso"), quando par exemplo a funcao de um cla e de "fazer existir"para os outros sua especie eponirna. Nesta "etapa", ou melhor, varieda-de, a articulacao social e hornologa a distincjio dos objetos, as vezes for-cas da atureza, que a sociedade estabeleceu como pertinente. Quando os

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49. Como pensa Sartre, Critique de /0 raison dialectioue, p. 200 e s. Sartre chcga ale a es-crever: "Assirn, na medida em que 0 corpo e fUn<;iio, a funcao ncccssidade c a nccessidadepraxis, podemos dizer que 0 trabalho humane ... e inteiramente dialrtico" (p. 17)-174. subli-nhado no texto). t: divertido ver Sartre criticnr longamente a "dialetica da natureza" parachegar, pcla distorcao destas identificac;3es sucessivas corpu·run~iiu.necessidade-praxis-trabalho-dialetica, a "naturalizar" a dtaletica. 0 que e preciso dizer , e que nos falta cruel-mente uma teoria da praxis nos himen6pteros. que ralvcz a continuaca o du Critique de /araison dialectique forneca.

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objetos sao colocados como secundarios relativamente aos m'ovimentosabstratos das atividades sociais que os produzem - 0 que sem duvidapressupoe uma evolucao desenvolvida dessas atividades como tecnica;uma extensao do tamanho das comunidades, etc. - sac essas proprias ati-vidades que fornecem 0 fundamento de uma articulacao da sociedade,nao mais em clas, mas em castas.

o aparecimento da divisao antagoriica da sociedade em classes, nosentido marxista do termo, e, sem duvida, 0 fato capital para 0 nascimen-to e a evolucao das sociedades hist6ricas. Forcosarnente temos que reco-nhecer que ele permaneee envolvido num denso misterio.

Os marxistas que acreditam que 0 marxismo expliea 0 nascimento, afuncao, e a "razao de ser", das classes nao estao num nivel de cornpreen-sac superior ao dos cristaos que creem que a Blblia explica a criacao e arazao de ser do rnundo. A pretensa "explicacao" marxista das classes re-duz-se de fato a dois esquemas, sendo cad a urn dos quais in_satisfat6rio eque, tornados em conjunto, sao heterogeneos. 0 primeiro 50 consiste emcolocar, na origem da evolucao, um estado de penuria por assim dizer ab-soluta, no qual, a sociedade sendo incapaz de produzir um "excesso"qualquer, tarnbern nao pode manter uma camada exploradora (a produ-tividade por homem-ano e justamente igual ao minimo biol6gico, demodo que nao poderiamos explorar alguern sem faze-lo morrer de in ani-cao mais cedo ou mais tarde). No firn da evolucao havera, como sabe-mos, um estado de absoluta abundancia onde a exploracao nao tera ra-

.zao de ser, cad a qual podendo satisfazer totalmente suas necessidades.Entre as dais. situa-se a historia conhecida, fase de relativa perniria, ondea produtividade do trabalho elevou-se suficientemente para permitir a.constituicao de um excedente, 0 qual servira (somente em parte) paramanter a c\asse exploradora. _ .

Esse raciocfnio se desrnor ona qualquer que seja 0 lado pelo qual 0examinamos. Admitindo que a partir de um momento as classes explora-doras se tenham tornado posslveis; porque se tornaram elas necessdrias?

50. Do ponto de vista da generalidade, nao da cronologia. Nos escritos de Marx e de En-ge ls, as dais principios de cxptical;ao coexistent e se entrecruzam. De qualquer maneiru, En-gelS'em l'Origille de la famille, etc. (1884) - obra alias fascinante e que faz reflctir mais do quea grande maio ria dos trabalhos etnol6gicos modernos - acentua francamente 0 aumento deprodutividade perrnitido pel as "primeiras grandes divisiies sociais do trabalho" (criacao.agricultura) e que teria trazido consign "necessariamerue" a cscravatura (p. 147-148 da edi-cao das Editions Sociales, Paris, 1954). Esse "necessaria mente" e todo a problema. Quantaao resto, a o longo do capitulo "Barbaric et Civilisation", onde a questao da aparicao dasclasses deveria ter sido tratada, Engels fala continuamente da evolucao da tecnica e da divi-sd o do trabalho ccncornitante, mas em nenhum momenta ele liga essa evolucao da tecnicacomo tal ao nascimeruo.das classes. Como 0 poderia, alias, ja que sua materia a conduz aconsiderar ao mesmo tempo as primeiras etapas da criacao, da agricultura, e do artesanato.ati vidades baseadas ell) tecnicas diferentes e conduzindo 11(au compativeis com) mesilla di-vis ao da sociedade em senhores e escravos (ou com a ausencia de uma tal divisao)?O apare-cimento da criacao. da agricultura e do artcsanato pod em em si mcsmos conduzir a uma di-visao em oficios, n50 em classes.

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Porque, aparecendo 0 excesso, nao foi ele gradual e imperceptivelrnentereabsorvido num bern-estar crescente (ou um mlnirno "mal-estar") doconjunto da tribe, como nao se lornou parte integrante da definicao do"minimo" para a coletividade considerada "'? Os casos em que as classesexploradas sac reduzidas a urn minirno biol6gico existiram algurna vez,de outra maneira que nao como casos marginais? Podernos rnesrno deli-nir um "rninimo biologico" e. fora de condicoes sem significacao, tere-mos alguma vez encontrado uma coletividade hurnana que so se ocupe desua alirnentacao? Niio tera havido,' durante 0 paleolltico e 0 neolitico,uma progressao, pensando bern, fantastica da produtividade do trabalhoe sem duvida tarnbem do nlvel de vida -. sern que possarnos falar de"classes" no sentido verdadeiro do termo? Nao existe por tras de tudoisso como a imagem de hornens que aguardarn 0 momenta em que 0 cres-cimentoda producao atingira a cola "permitindo" a exploracao para searremessarem uns sobre os outros e estabelecerem-se os vencedores, se-nhores, os vendidos, escravos? Esta propria imagem, nao correspondesobretudo ao imaginario do seculo XiX capitalista, e como podeconci-liar-se com as descricoes dos Iroqueses e dos Germanos cheios de huma-nidade e de nobreza, sobre os quais Engels se estende com cornplacencia?

. 0 segundo esquema consiste em ligar, nao a existencia das classescomo tal a um estado geral da econornia (a existencia de um "excesso"que permanece insuficiente), mas cada forma precisa de divisao da socie-dade a uma etapa dada da tecnica. "Ao moinho movido a brace corres-ponde a sociedade feudal, ao moinho a vapor a sociedade capitalista".Mas, se a existencia de uma relacaoentre a tecnologia de cad a sociedadee sua divisao em classes nao pode ser negada sem absurdo, e totalmenlediferente querer basear esta naquela. Como imputar a uma tecnica agri-cola que permaneceu praticamente a mesma do firn neolltico aos nossosdias (na grande maioria dos paises). ligacoes sociais que vao das hipoteti-cas mas provaveis comunidades agrarias primitives aos fazendeiros livresdos Estados Unidos do seculo XIX, passando pelos pequenos lavradoresindependentes da primeira Grecia e da primeira Rorna, pelo colono, pelaservidao medieval. etc.? Uma coisa e dizer que os grandes trabalhos hi-draulicos condicionaram ou favorecerarn a existencia de uma proto buro-cracia centralizada no Egitc, na Mesopotamia. na China, etc.: outra e li-gar a essa hidraulicidade constante atraves do tempo e do espaco as va-riacoes extremas de urn pais a outro e na hist6ria de cada pais. da vidahist6rica e dasformas da divisao social. Os quatro rnilenios da hist6ria

.eglpcia nao sao redutlveis a quatro mil enchentes do Nilo, nem a variacilodos meios utilizados para controla-las, Como reduzir a existencia de se-nhores feudais a especificidade das iecnicas produtivas da epoca, quandoesses senhores estao por definicdo fora de qualquer producao?

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• Do momenta em que uma sociedade produz urn "excesso", ela devora uma parte es-sencial em atividades absurdas tais como os funerals, as cerirnonias, as pinturas de murais. aconstrucao de pirarnides, etc.

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Quando as interpretacoes rnarxistas ultrapassam os esquemas sim-ples, quando elas se referem a materia concreta de uma situacao his tori-ca, entao abandon am, na melhor hip6tese, a pretensao de tratar do fatorque produziu esta divisao da sociedade em classes, entao tentam dar-se,como meio de explicacao, a totalidade da situacao considerada enquantosituacao historica, ou seja que remete, para sua explicacao, ao que ja esta-va dado. Foi 0 que Marx fez com felicidade quando descreveu certos as-pectos ou fases da genese do capitalismo "'. Mas e preciso compreender aque isso significa, tanto para 0 problema da hist6ria em geral, como parao problema mais especifico das classes. Entao nao temos rnais uma expli-cacao geral da hist6ria, mas uma explicacao da hist6ria pela historia,uma aproximacao progressiva, que tenta fazer com que tenha importan-cia 0 conjunto dos fatores, mas que encontra sempre os fatos, os fatos"brutes", como aparecimento de uma nova significacao nao redutivel aoque existe, e tarnbern como predeterrninacao de.tudo que e dado na si-tuacao par signiflcacoes e estruturas ja existentes, que se ligam "em ulti-ma analise" ao fato brute de seu nascimento oculto numa origem inson-davel. Isso, nao para dizer que todos os fatores estao no mesmo plano,nem que uma teorizacao sobre a hist6ria e inutil ou sem interesse; maspara salientar os limites desta teorizacao. Porque nao somerite nos temosque tratar, na historia, de alguma coisa que esta sempre ja cornecada, auo que ja esta constituldo, em sua facticidade e sua especificidade, nao

. pode ser tratado como simples "variacao concomitante" da qual po-.deriamos fazer abstracao; mas tarnbern, e sobretudo, 0 historico 56 existecada vez em uma estruturacao lrazida por significacoes cuja genese nosescapa como processo cornpreensivel, visto que ela pertence ao irnagina-rio radical.

Podemos descrever, explicar e ate "compreender" como e porque asclasses se perpetuam na sociedade alual. Mas nao podemos dizer grandecoisa quanto a maneira como nascern, ou rnelhor, como nasceram. Por-que toda explicacao desse tipo tom a as classes nascentes em uma socieda-de ja dividida em classes, onde a significactio classe ja estava disponivel.Urna vez nascidas, as classes informaram toda a evolucao historica ulte-rior; uma vez que entramos no cicio da riqueza e da pobr eza, do poder eda subrnissjio, uma vez que a sociedade se instituiu, njio com base nas di-ferencas entre categorias de homens (que provavelmente sempre existi-ram) mas nas diferencas ndo simetricas, toda a sequencia se "explica";mas essa "urna vez" e todo 0 problema.

Podemos ver 0 que, nos mecanismos da sociedade atual; sustenta aexistencia das classes e as reproduz constantemente. A organizacao buro-cratica e autocatalitica, automultiplicativa, e podemos ver como ela in-forma 0 conjunto da vida social. Mas de on de vem ela? Ela e. nas socie-

• Sabre a oposicao entre as descricocs hist6ricas de Marx. e sua construcao do "concci-to" de classe, ver "La Question de I'histoire du mouvement ouvrier", in l'Experience dum ouvem ent ouvrier, I, I.c .. p. 45-66.

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'.-'t: ....• , dades ocidentais, 0 transcrescimento do empreendimento capitalista clas-

sico (a "grande industria" de Marx), que se liga por sua vez a manufatu-ra, etc., e no limite. ao artesanato burgues por urn lado, a "acumulacsoprirnitiva", por outre. Sabemos positivamente que nessas regioes da Eu-ropa Ocidental, a partir do seculo XI. nasceu primeiro a burguesia (ecomo classe, verdadeiramente ex nihilo), em scguida 0 capitalismo. Mas 0nascimento da burguesia s6 e nascimento de urna classe porque e nasci-mento em uma sociedade ja dividida em classes (utilizamos, dever ao tercompreendido, a palavra no sentido mais geral, pouco importa aqui a di-ferenca entre "estados" feudais, "classes" econornicas, etc.i), num meioonde os acidos nucleicos portadores desta inforrnacao. que c a significa-clio classe, estao presentes em toda parte. Eles 0 estjio na propriedade pri-vada que se desenvolve ha milenlos, na estrutura hierarquica da socieda-de feudal. etc. Njio e nos traces especlficos da burguesia nascente (pode-mos perfeitamente conceber urn artesanato "igualitario") mas na estrutu-ra geral da sociedade feudal que esta inscrita a necessidade, para a novacamada, de se estabelecer como categoria particular oposta ao resto dasociedade: a burguesia nasce em urn mundo que s6 pode conccber e agirsua diferenciacao interna como categorizacao em "classes". Basta repor-ta-se Ii queda do Imperio Romano? Certamente nao, esta nao criou umatabula rasa e os Gerrnanos, qualquer que pudesse ter sido sua organiza-l;aO social anterior, foram sem sombra de duvidas, "contaminados" pelasestruturas sociais que encontraram. .

Nao podemos interromper este recuo antes que nos tenha mergulha-do na obscuridade que cobre a passagem do neolitico a proto-hist6ria.No que nao passou provavelmente de dois ou tres rnilenios, no OrientePr6ximo e Medic pelo menos, encontramos a transicao das vilas neollti-cas mais evoluldas mas sem vestlgio aparente de divisao social. as prirnei-ras cidades sumerianas onde desde 0 comeco do seculo IV milenar antesde Cristo existe de in!cio e sob uma forma praticamente ja conc1uida 0 es-sencial de toda sociedade bem organiza da: os padres. os escravos, a poll-cia, as prostitutas. 0 jogo ja esta Ieito e nao podemos saber como e porqueassim se deu.

Sabe-lo-ernos algum dia? Escavacoes mais desenvolvidas farao com-preender 0 rnisterio do nascimento das classes? Confessamos nao poderver como as descobertas arqueol6gicas poderiam fazer compreender isso:que a partir de urn "rnornento", os homens se virarn, e agiram uns em re-lacao aos outros, nao como aliados para ajudar, rivais para dorninar, ini-migos par~ exterminar ou mesmo comer, mas como objetos para possuir.Como 0 conteudo desta visao e desta acao e perfeitamente arbitrario, naovemos em que poderia consistir sua explicacao e sua cornpreensao. Comopoderlarnos constituir 0 que e constituinte das sociedades historicas?Como compreender esta posicao originaria, que e condicao de com preen-sibilidade do desenvolvimento ulterior? f: preciso dar-se, ja possuir estasignificacao inicial: urn homem pode ser "quase-objeto" para urn outrohomem, e quase-objeto nao numa relacao a dois, privada, mas no anoni-

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mato da sociedade (00 rnercado de escravos, nas cidades industriais, e asfabricas de uma grande parte da hist6ria do capitalisrno), para podercompreender a historia ha seis milenios. Podemos cornpreender hoje esseestado de "quase-objeto" porque dispomos desta significacao, nascernosnesta hist6ria. Mas seria uma ilusao crer que poderiamos produzi-la, e re-produzir, na cornpreensao, sua ernergencia. Os homens fizeram existir apossibilidade da escravidao: isso foi uma criacdo da hist6ria (sobre a qualEngels dizia, sem cinismo, que foi a condicao de urn grandioso progres-so). Mais exatarnente, uma fracilo dos homens fez existir esta possibilida-de contra os outros, os quais, serncessar de cornbate-Ia de mil rnaneiras,del a tambern participaram de mil rnaneiras. A instituicdo da escravidao eaparecimento de uma nova significacao imaginaria, de uma nova manei-ra de se viver para a sociedade, de se ver e de se agir como articulada demaneira antagcnica e nao simetrica, signiflcacao que se simboliza e sesanciona irnediatamente pelas regras SI.

Esta significacao e estritamente ligada as outras significacoes imagi-riarias centrals da sociedade, especialmente a definicao de suas necessida-des e sua imagem do mundo. Nao examinaremos aqui 0 problema queesta relacao coloca.

Mas esta impossibilidade de compreender as origens das classes naonos deixa desarmados ante 0 problema da existencia das classes comoproblema atual e pratico - assim como em psicanalise a impossibilidadede atingir uma "origem" nao impede de compreender noatual (nos doissentidos da palavra) 0 que esta ern questjio, nem de relativizar, despren-der, "dessacramentar" as significacces constitutivas do sujeito como su-jeito doente. Chega urn momento em que 0 sujeito, nao porque encon-trou a cena primaria ou detectou a inveja do penis em sua avo, mas porsua luta na sua vida efetiva e a forca de repeticao, descobre 0 significantecentral de sua neurose e finalmente olha-o na sua contingencia, suapobreza e sua insignificdncia. Do rnesmo modo, para os homens que vi-vern hoje, a questao nao e compreender como se fez a passagem do claneolitico as cidades ja grandemente divididas de Ak kad. ~ compreender

51. Engels havia quase atingido esta ideia: "Vimos rnais acima como, num grau bastanteprimitive do descnvolvimcnto da producao, a forca do Irabalho humano torna-sc capaz deforneeer urn produto bern mais consideravcl do que e necessario Ii subsistencia dos produ-tos, e como este grau de desenvolvimento e, essencialrnente, 0 mesmo que aquele em queaparecem a divisao do trabalho e a troca entre indivlduos. Niio foi precise muito tempo paradescobrir esta grande "verdade": que 0 homem tambem pode ser uma mercadoria, que a [orcahumana e materia troctivel I' ex ploravel, se transformamos 0 homem em escravo. Tao logo oshomens cornecararn a praticar a troca ja eles pr6prios, foram trocados". iL'Origine de la fa-mille. etc, l.c. p. 160-161, sublinhado por nos), Esta grande "vcrdadc", csscncialmente amesma que a "impostura" denunciada por Rosseau no Discours sur l'origine de L'inegalite- nem verdade, nem impostura, portanto, podiam ser "dcscobertas" ou."invenladas"; erapreciso que fossem imaginadas e criadas -. lsto posto, observarernos que Engels apresenta,aqui e alhures, a escravidao como uma exlensiio da Iroea de objetos por horn ens, enquanloque seu memento essencial e a Iransformac;iio dos homens em "objetos" - e e precisarnenteisso que nao i: redutlvel a consideracoes "econornicas".

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- e evidentemente isso significa, aqui mais do que em qualqucr outro lu-gar: agir - a contingencia, a pobreza, a insignificancia deste "signifiean-te" das sociedades hist6ricas que e a divisao em senhores e escruvos, emdominantes e dominados.

Mas 0 questionamento desta significacao que represents a divisaoda sociedade em classes, a decantacao deste imaginario, de fato cornecamuito cedo na hist6ria, ja que, quase ao mesmo tempo que as classes apa-rece a luta das classes e, com ela, esse fen6meno primordial que abre umanova fase da existencia das sociedades: a contestacao, a oposicao no inte-rior da pr6pria sociedade. 0 que era ate entao reabsorcao irnediata da co-letividade em suas instituicoes, simples sujeicao dos horn ens as suas cria-f,:oes irnagiriarias, unidade que s6 marginalmente era perturbada pelo des-via ou a infraca o, torna-se agora totalidade dilacerada e conflitual, auto-contestacao da sociedade; 0 interior da sociedade torna-se seu exterior, cisso, na medida em que significa a auto-relativizacao da sociedade, 0 dis-tanciarnento e a critica (nos fatos e nos atos) do instituldo, e a primeiraemergencia da autonomia, a primeira fissura do irnaginario (instituido).

E certo que esta luta corneca, demora muito tempo, recai quase sern-pre novarnente, na arnbigilidade. E como poderia ser de outra maneira?Os oprirnidos, que lutarn contra a divisao da sociedade em classes, lutamsobretudo contra sua pr6pria oprcssiio; de mil maneiras eles permanecerntributaries do imaginario que combatem em urna de suas manifestacoes,e com freqllencia 0 que visam nada mais e do que urna permutacfio de pa-peis no mesmo roteiro. Mas tarnbern muito cedo, a c1asse oprirnida res-ponde negando macicarnente 0 irnaginario social que a oprime, e opon-do-Ihe a realidade de uma igualdade essencial dos homens, mesrno se elaman tern em torno desta afirrnacao uma vestimenta rnltica:

Wenn Adam grub und Eva spann,Wo war denn da der Edelmann?(Quando Adao cavava e Eva tecia,Onde estava entao 0 nobre?)

.cantavam os camponeses alemiies no seculo XVI, incendiando os castel osdos senhores.

Este questionamento do imaginario social tomou outra dimensaoapes 0 nascimento do proletariado moderno. Voltaremos \ongamente aisto.

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o Imaginarle no mundo modcrno

o mundo moderno apresenta-se, superficialmente, como aquele queimpeliu, que ten de a impelir a racionalizacao ao seu extremo e que, porisso, perrnite-se desprezar - ou olhar com uma curiosidade respeitosa - osestranhos costumes, invencoes e representacoes irnaginarias das socieda-des precedentes. Mas, paradoxalrnente, apesar de, ou rnelhor, por causa

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desta "racionalizacdo" extrema. a vida do mundo moderno depende doirnaginario tanto como qualquer das culturas arcaicas ou historicas.

o que se da como racionalidade da sociedade modern a, e simples-mente a forma, as conexoes exteriormente necessarias, 0 dornlnio perpe.

. tuo do silogismo. Mas nesses silogismos da vida moderna, as premissastomam seu conteudo do irnaginario; e a prevalencia do silogismo comotal, a obsessao da "racionalidade" separada do resto, constitui um irnagi-nario em segundo grau. A pseudo-racionalidade moderna e uma das for-mas hist6ricas do irnaginario; ela e arbitraria em seus fins ultirnos na me-dida em que estes nao dependern de nenhurna razao, e e arbitraria quan-do se coloca como firn, visando somente uma "racionalizacao" formal evazia. Nesse aspecto de sua existencia, 0 mundo moderno e atormentadopor um deliria sistematico - do qual a autonornizacao da tecnica desen-cadeada, e que nao esta "a service" de nenhum fim deterrninavel, e a for-ma mais imediatamente perceptivel e a mais diretamente arneacadora.

A economia no sentido mais amplo (da producao ao consumojpas-sa pela expressao por excelencia da racionalidade do capitalismo e dassociedades modernas. Mas e a economia que exibe da maneira mais sur-preendente - precisamente porque se pretende integral e exaustivamenteracional - a supremacia do lmaginario em todos os nlveis.

E esse visivelrnente 0 caso no que se refere a definicao das necessida-des que ela e suposta aterider. M ais do que em qualquer outra sociedade,o carater "arbitrario", nao natural, njio funcional da definicao social dasnecessidades aparece na sociedade moderna, precisamente devido ao seudesenvolvimento produtivo, a sua riqueza que lhe permite ir muito alernda satisfacao das "necessidades elementares" (0 que alias, com freqilen-cia, como contrapartida nao menos significativa, do que a satisfacdo des-sas necessidades elementares e sacrificada a das necessidades "gratui-tas"). Mais do que nenhuma outra sociedade, tarnbern, a sociedade mo-derna permite ver a fabricacao historica das necessidades que sao manu-faturadas todos os dias sob nossos olhos. A descricao deste estado de co i-sas foi feita desde ha muitos anos; essas analises deveriam ser considera-velrnente aprofundadas, mas njlo ternos a intencao de voltar a isso aqui.Lembrernos somente 0 lugar gradualmente crescente que assumem nasdespesas dos consumidores as compras de objetos correspondendo a ne--cessidades "artificiais"; ou entao a renovacao, sem nenhuma razao "fun-cional" de objetos que podem ainda servir H, simplesmente porque nao

52. Estirnou-se recenternente que 0 simples custo das trocas anuais de modelos para oscarros particulares nos Estados Unidos atinge 5 milhoes de do lares por a no no minima parao periodo 1956-1960, soma que ultrapassa 1% do produto nacional do pals (e amplamcntesuperior ao produto nacional anual da Turquia, pals de)O milhoes de habitantes), sem con-tar 0 consume da gasolina acrescido (em relacao as economias que teria pcrmitido a evolu-'cao tecnoI6gica). Os economistas que aprcsentaram este calculo no quadrag6simo setirnocongresso anual da Associacao economica amcricana (dezembro 1961) nao ncgam que essastrocas lenham podido tarnbem lrazer mclhorias nem que elas pudessem ter sido "descja-

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estao mais na moda au nao possuern tal ou qual "apcrfciccarnento" Ire-qiientemente ilusorio.

E inutil apresentar esta situacao exclusivarnente como uma "respos-ta substitutiva", como oferta de substitutes para outras necessidades, ne-cessidades "verdadeiras", que a presente sociedade deixa insatisfeitas.Porque, admitindo que tais necessidades existam e que possamos defini-las, torna-se ainda mais surpreendente que sua realidade possa ser total-mente encoberta por uma "pseudo-realidude" (pseudo-realidade co-extensiva, lembremos, 'ao essencial da industria moderna). E igualmenteinutil querer eliminar 0 problema, limitando-o a seu aspecto de manipu-lacao da sociedade pelas camadas dominanles, lembrando 0 lado "fun-cional" desta criacao continua de novas necessidades, como condicao daexpansao (isto e, da sobrevivencia) da industria moderna. Porque, naosornenteessas camadas dominantes sac tarnbern dominadas par este irna-ginario que nao criam livrernente; njlo somente seus efeitos se manifes-tam la mesmo o nde a necessidade, para 0 sistema, de confeccionar umademanda, assegurando sua expanslio, nlio existe (assim, nos paiscs indus-trializados do Leste, onde a invasao do estilo de consumo moderno faz-seja muito tempo antes que possamos falar de uma saturacao qualquer dosmercados). Mas, sobretudo 0 que constatamos, com esse exernplo, 6 queesse funcional esta suspenso no irnaginario: a economia do capitalismomoderno so pode existir na medida em que ela responde as necessidadesque ela propria confecciona.

A dorninacao do irnaginario e igualmente clara no que se refere aolugar dos hornens, em todos as nlveis da estrutura produtiva e econorni-ca. Esta pretensa organizacao racional exibe ja 0 sabemos e ja 0 dissernosha' muito tempo, mas ninguern levou a serio, exceto essas pessoas que naosac serias, os poetas e os romancistas, todas as caracteristicas de urn dell-rio sistematico. Substituir, tratando-se do operario, do ernpregado, ournesrno do "quadro", 0 homem por urn conjunto de traces parciais esco-lhidos arbitrariamente, em funcao de urn sistema arbitrario de fins e porreferencia a uma pseudo-conceitualizacao igualmente arbitraria, e trata-lona pratica de acordo com isso, traduz uma prevalencia do imaginario,que, qualquer que seja sua "eficacia" no sistema, nao difere em nada da-quela das sociedades arcaicas mais "estranhas". Tratar urn homem comocoisa ou como puro sistema mecanico nao e menos, mas mais irnaginaric,do que pretender ver nele uma coruja, isso representa urn 0 utro grau deaprofundamento no imaginario; pois nlio somente 0 parentesco real do

.homem com uma coruja e incomparavelmente maior do que 0 e com umamaquina, mas tarnbern nenhuma sociedade primitiva jamais aplicou t.3.0radical mente as consequencias de suas assirnilacoes dos homens a outra

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das" pclos consurnidores. "Entretanto. os custos foram lao extraotdinariarnente elevados,que pareceu valor B pena apresentar a soma e perguntar-se retrospccuvarncntc se eJcs a vu-lem" (fischer. Griliches and Kaysen in American Economic Revie ••.. mai 1962. p. 259).

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coisa, como 0 faz a industria modern a com sua mctafora do homem-automate. As sociedades arcaicas parecem sempre conservar uma certaduplicidade nessas assirnilacoes; mas a sociedade modern a torna-as, nasua pratica, ao pe da letra da maneira mais selvagem. Nao existe nenhu-ma diferenca essencial, quanto ao tipo de operacoes menta is e mesmo deatitudes pslquicas profundas, entre urn engenheiro tayloriano ou urn psi-c61ogo industrial, que isolam gestos, rnedem as coeficientes, decornpoerna pessoa em "fatores" totalmente in ventados e a recornpoem em um ob-jete secundar io; e um fetichista, que goza com a visao de um sapato desalto alto au pede a uma mulher que imite por gestos urn lampadario.Nos sLoiscasos, vemos em acao esta forma particular do irnaginario que ea identificacao do sujeito com a objeto. A diferenca e que 0 fetichistavive num mundo privado e sua fantasia nao tern efeitos para alern do par-ceiro que a elas se presta de born grado; mas 0 fetichism a capitalist a do"gesto eficaz", ou do individuo definido par testes, determina a vida realdo mundo social 11.

Citamos mais acima 0 esboco que Marx ja fornecia do papel doirnaginario na economia capitalista. falando do "carater fetichista damercadoria". Este esboco deveria ser prolongado por uma analise doimaginario na estrutura institucional que assume cada vez mais, ao Jade ealern do "rnercado", 0 papel central na sociedade moderna: a organiza-cao burocratica. 0 universe burocratico e povoado de irnaginario de umaextremidade a outra. Geralrncnte, nao prestamos atencao a isso - ou so-mente para graeejar ~, porque s6 vernos al excesses, urn abuso da rotinaou "erros", em suma, deterrninacocs exclusivamente ncgativas. Mas exis-te seguramente urn sistema de significacoes irnaginarias "positivas" quearticulam 0 universo burocratico, sistema que poderncs reconstituir apartir dos fragmentos e dos indices que of ere cern as instrucoes sabre a or-ganizacao da producao e do trabalho, 0 proprio modelo desta organiza-<tao, as objetivos que ela se propoe, 0 comportamento tfpico da burocra-cia, etc. Esse sistema, alias, evoluiu com a tempo. Traces essenciais daburocracia de outrora, como a referencia ao "precedente", a vontade deabolir 0 novo como tal e de uniformizar 0 Iluxo do tempo, foram substi-tuidos pela antecipacao sistematica do futuro; a fantasia da organizacaocomo rnaquina bem lubrificada cede lugar a fantasia da organizacaocomo maquina auto-reformadora e auto-expan siva. Do rnesmo modo. avisao do homem no universo burocratico tende a evoluir; existe, nos seto-res "progressistas" da organizacao burocratica, passagem da imagem .doautomata, da rnaquina parcial, para a imagem da "personalidade bemintegrada num grupo", paralela a passagern notada pelos sociologos

53. A rcificacao tal como a analisava Lukacs iHistoire et conscience de classe, Paris1960. cspecialrncnte p. 110 a 141). e evidenternent e urna significacao imaglnariu. Mas ciane lc so a parece como t al, porque a res possui urn valor fl losofico mistico, na medida emque. prccisamcnlc ela e urn a categoria "racional" podendo entrur n urnu "dialetica hist6ri.ca ".

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americanos (principal mente Riesman e Whyte) dos valores de "rendi-mento" aos valores de "ajustamento". A pseudo-racionalidade "analiri-ca" e reifieante tende a ceder lugar a uma pseudo-racionalidade "totali-zante" e "socializante" nao menos irnaginaria. Mas esta evolucao, ernbo-.ra seja urn iridicador muito importante das fissuras e finalmente da crisedo sistema burocratico, nao altera suas signiflcacoes centrals. Os ho-mens, simples pontos nodais no entrelacarnento das mensagens, s6 exis-tem e valem em funcao dos "status" e das posicoee que ocupam na escalahierarquica, 0 essencial do rnundo e sua redutibilidade a um sistema deregras formais inclusive as que permitern "calcular" seu futuro. A reali-dade so existe na medida em que e registrada, no limite, 0 verdadeiro niloe nada e somente 0 documento ,~verdade. E aqui surge 0 que nos pareceser 0 trace especlfico, e mais profundo, do irnaginario moderno, a maispleno de consequencias e tarnbem de prornessas. Este imaginario nilepossui carne propria, ele toma sua materia de outra coisa, e investirnentofantastico, valorizacao e autonornizacao de elementos que em si mesmosnao dependem do imaginario: 0 racionallimitado do entendirnento, eo.simb6lico. 0 mundo burocratico autonomiza a racionalidade nurn dosseus mementos parciais, 0 do entendimento, que nao se preocupa com acorrecao das conexoes parciais e ignora a questilo dos fundarnentos, datotalidade, dos fins. e da relacao da razao com 0 homem e com 0 mundo(e par isso que charnamos sua "racionalidade" de pseudo-racionalidade);e ele vive, essencialmente, nurn universo de slmbolos que, a maior partedo tempo nem reprcsentam 0 real, nem sao necessaries para pensa-lo oum aninula-lo; e aquele que realiza ao extremo a autonornizacao do purosimbolismo. .

Essa autonornizacao, 0 grau de influencia que ela exerce sobre a rea-lidade social a ponto de provocar seu deslocamento, bem como 0 grau dealienacao a que ela sub mete a pr6pria camada dominante, foi posslvelve-las, sob suas formas extremas, nas economias burocraticas do Leste,sobretudo antes de 1956. quando os econornistas poloneses, para descre-ver a situacao de seu pals, tiveram que inventar 0 termo "economia daLua ". Pelo fato de ficar aquem desses limites em tempos normais, nernpor isso a economia ocidental deixa de aprescntar os mesmos traces es-senciais .

Este exernplo nao deve gerar confusao quanta ao que compreende-mos par irnaginario. Quando a burocracia se obstina em querer cons-truir urn metro subterraneo numa cidade - Budapest - onde isso e fisica-mente irnpossivel; ou quando nlio somente ela sustenta ser ante a popula-rrao que 0 plano de prcducao foi realizado, mas ela pr6pria continua aagir, decidir, e empenhar em pura perda de recursos reais, como se ele ti-vesse sido realizado, as dois sentidos do terrno irnaginario, 0 mais corren-~e e superficial, e a mais profundo, se juntam, e nada podemos quanta a1S50. Mas sobretudo 0 que importa, e evidentemente 0 segundo, que po-demos ver em acao, quando uma econornia moderna funciona eficaz erealmente, segundo seus pr6prios criterios, quando ela nao e sufocada

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pelas excrescencies em segundo grau de seu pr6prio simbolismo. Pois en-ta~ 0 carater pseudo-racional de sua "racionalidade" aparece clararnen-te: tudo e efetivamente subordinado a "eficacia" - mas a eficacia paraquem, com vistas a que, para fazer 0 que? 0 crescimento econornico serealiza; mas e crescimento de que, para quem, a que custo, para chegar aque? Urn momenta parcial de sistema econornico (nern sequer 0 momentoquantitativo: uma parte do momento quantitative concernente a certosbens e services) e erigido em momento soberano da economia; e, repre-sentada, por esse momento parcial, a economia, ela pr6pria memento davida social, e erigida em instancia soberana da sociedade.

E precisamente porque 0 imaginario social moderno nao possui car-ne propria, e porque ele toma sua substancia do racional, a urn momentodo racional que ele transforma assim em pseudo-racional, que ele conternuma antinomia radical, que esta fadado it crise e it usura, e que a socieda-de moderna con tern a possibilidade "objetiva" de uma transforrnacao doque foi ate aqui 0 papel.do irnaginario na historia. Mas antes de abordareste problema, e preciso considerar mais de perto a relacao do imaginarioe do racional.

Imaginario e racional

E imposslvel cornpreender a que foi, 0 que e a hist6ria humana, fora. da categoria do imaginario. Nenhuma outra permite refletir estas ques-toes: 0 que e que estabelece e flnalidade, sem a qual a funcionalidade dasinstituicoes e dos processes sociais permaneceria indeterminada? 0 que eque, na infinidade das estruturas simbolicas posslveis, especifica urn siste-ma simbolico, estabelece as relacoes canonicas prevalentes, orienta emuma das inumeras direcces posslveis todas as metaforas e as metonlmiasabstratamente conceblveis? Nao podemos 'cornpreender uma sociedadesem um Iator unificante, que fornece urn conteudo significado e 0 entre-lace com as estruturas simb6licas. Esse fator nao e 0 simples "real", cadasociedade constituiu seu real (nao nos daremos 0 trabalho de especificarque esta constituicao jamais e totalmente arbitraria). Ele tarnbern nao.Ul"racional", a inspecao mais surnaria da hist6ria e suficiente para mostra-10; se assim fosse, a historia nao teria sido verdadeiramente historia, e simascensao instantanea a uma ordem racional, ou no maximo, pura pro-gressao na racionalidade. Mas se a historia contem incontestavelmenteaprogressao da racionalidade - voltaremos a isto - ela nfio pode ser reduzi-da a tal. Urn sentido surge al, desde as origens, que nao e urn sentido dereal (referido ao percebido), que nao e tarnbern racional, ou positivarnen-t e irracional, que nao e nem verdadeiro nern falso e no entanto e da ordemda significaciio, e que e a criacao imaginaria propria da historia, aquiloem que e pelo que a historia se constitui para cornecar.

Nao temos portanto que "explicar" como e porque 0 imaginario, assigniflcacoes sociais irnaginarias e as instituicoes que as enearnam, se au-tonomizam. Como poderiam elas nao se autonomizarem, ja que elas sao

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o que estava sempre al "no inicio", 0 que, de urn certo modo, esta sempreai "no .inlcio"? A bem dizer, a propria expressao "se autonomizar" e visi-velrnente inadequada a esse respeito; nao estamos lidando com um ele-mente que, primeiro subordinado, "se desliga" e torna-se autonomonum segundo tempo (real ou 16gico), mas com 0 elemento que constitui ahistoria como tal. Se existe alguma coisa que e problema, sera antes aemergencia do raeional na historia e, sobretudo, sua "separacao", suaconstituiciio em momenta relativamente autonomo.

Se assim e, urn imenso problema jA surge no plano da distincao deconceitos. Como podemos distinguir as significacoes irnaginarias das sig-nificacoes racionais na historia? Definimos mais acima 0 simb6lico-racional como aquilo que representa 0 real ou entao e indispensavel parapensa-lo ou para agi-le. Mas 0 representa para quem? Pensa-lo como?Agi-lo em qual contexto? De que real se trata? Qual e a definicao do realaqui irnplicada? Nao esta clar:o que corremos 0 risco de introduzirsub-repticarnente uma racionalidade (a nossa) para faze-la representar 0papel da racionalidade?

Quando, considerando urna cultura de outrora ou de outro lugar,qualificamos de imaginario tal elemento de sua visao do mundo, ou estapropria visao, qual e 0 pontode referencia? Quando nos encontramos,nao diante de uma "transformacao" da terra em divindade, mas diantede uma identidade origin aria, para uma cultura dada, da Terra-Deusamae, identidade inextricavelmente entrelacada, por esta cultura, com suamaneira geral de ver, de pensar, de agir, e de viver 0 mundo, nao e irn-possivel qualificar esta identidade, sern mais, de imaginaria? Se 0 sirnboli- .co-racional eo que representa 0 real ou 0 que e indispensavel para pensa-10 ou agi-Io, nao e evidente que esse papel e mantido tam bern, em todasas sociedades, por significacoes imaginarias? 0 "real", para cad a socie-dade nao cornpreende, inseparavelmente, este componente irnaginario,tanto no que diz respeito a natureza como, sobretudo, no que se refere aomundo humano? 0 "real" da natureza nao pode ser captado fora de urnquadro categorial, de princlpios de organizacao do dado senslvel, e estesnunca sao - mesmo em nossa sociedade - simplesmente equivalentes, semexcessos, nern faltas, ao quadro das categorias construldo pelos logicos(alias, eternamente retocado). Quanta ao "real" do mundo humano, niloe somente enquanto objeto possivel de conhecimento, e de maneira irna-nente, no seu ser em si e para si, que ele e catcgorizado pela estruturacaosocial e 0 irnaginario que este significa; relacoes entre individuos e gru-pos, comportamento, rnotivacoes, nao sac somente incompreensiveis paranos, sao impossiveis em si mesmos fora deste irnaginario. Urn primitivoque quisesse agir ignorando as diferencas clanicas, urn hindu de outroraque decidisse ignorar a existencia das cast as, seria muito provavelmenteloueo - ou se tornaria rapidamente.

E preciso pois abster-se, falando do iinaginario, de fazer deslizarurna irnputacao a sociedade considerada de uma capacidade racional ab-soluta que, presente desde 0 inlcio, teria sido repeJida ou encoberta pelo

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imaginario. Quando urn indivlduo, crescendo em nossa cultura, apoian-do-se numa realidade estruturada de urn modo precise, merguIhandonum controle social perpetuo "decide" ou "escolhe" ver em cada pessoaque encontra urn agressor em potencial e desenvolve urn delirio de perse-guicao, podemos qualificar sua percepcao dos outros como irnaginarianao sornente "objetivamente" ou socialmente - por referenda aos mar-cos estabelecidos -, mas subjetivarnente, no sentido de que ele "teria po-dido" forjar-se uma viaao correta do mundo; a forte prevalencia da fun-eao irnaginaria em seu desenvolvimento exige uma explicacao a parte, namedida que outros desenvolvimentos eram posslveis e foram realizadospela grande maio ria dos homens, De certa maneira, n6s imputamos a nos-sos loucos sua loucura, nao so mente no sentido de que e a deles, mas por-que eles teriam podido nao produzi-la. Mas quem pode dizer dos Gregosque eles sabiam muito bern, ou que eles teriam podido saber, que os deu-ses njlo existem, e que seu universo rnitico e urn "desvio" relativamente auma visao s6bria do mundo, desvio que pode ser explicado como tal?Esta visao s6bria, ou pretensamente tal, e simplesmente a nossa.

Estas observacoes nao sac inspiradas por uma atitude agn6stica nemrelativista. N6s sabemos que os de uses nao existem, que os homens naopodem "ser" corvos, e nao podemos esquece-lo deliberadarnente quandoexaminamos uma sociedade de outrora ou de outre lugar. Mas encontra-mos aqui, num nivel mais profundo e mais diflcil, 0 mesmo paradoxo, amesma antinornia da aplicacao retroativa das categorias, de "projecaopara tras" de nosso modo de captar 0 mundo, que relevamos mais acimaa prap6sito do rnarxismo, antinomia sobre a qualja dissemos que e cons-titutiva do conhecimento hist6rico. N6s entao constatamos que njio po-demos, para a maioria das sociedades pre-capitalistas, manter 0 esquemamarxista de uma "deterrninacao" da vida social e de suas diversas esfe-ras, do poder por exernplo, pela economia, porque este esquema pressu-.poe uma autonornizacao dessas esferas que s6 existe plenamente na socie-dade capitalista; num caso tao proximo de n6s no espaco e no tempocomo a sociedade teudal par exemplo (e as sociedades burocraticas atuaisdos pafses do Leste), relacoes de poder e relacoes econernicas sac estrutu-radas de tal maneira que a ideia de "deterrninacao" de uma pelas outras esem sentido. De urn modo muito mais profundo, a tentativa de distinguirnitidamente, a fim de articular sua relacao, 0 funcional, 0 imaginario, 0simb6lico e 0 racional em outras sociedades que nao a Ocidente dos doisultirnos seculos (e alguns momentos da hist6ria da Grecia e de Roma) de-para-se com a impossibilidade de dar a esta distincao um conteudo rigo-roso, e que seja verdadeiramente significativo para as sociedades conside-radas, que tenha realmente apoio nelas. Se os poderes divinos, se as clas-sificacoes ."totemicas", sao, para uma sociedade antiga ou arcaica,principios categoriais de organizacao do mundo natural e social, como in-contestavelmente 0 sac, que significa, do ponto de vista operative (isto e,para a cornpreensao e a."expIica<;ii.o" dessas sociedades), a ideia de queesses princlpios dependern do imaginario na medida em queele se opoe

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~:f'I'· ao racional? E este imaginario que faz com que 0 mundo dos Gregos au

dos Aranda nao seja urn caos, e sim uma pluralidade ordenada, que 0

uno al organiza a diverso sem esrnaga-lo, que faz ernergir 0 valor t! 0 nao-valor, que traca para essas sociedades a dernarcacao entre a "verdadeiro "eo "falso", 0 perrnitido e oproibido - sem 0 que elas nao poderiam exis-tir nem por urn segundo H. Este imaginario n~o desempenha somente afuncao do racional, ele ja e uma forma sua, ele 0 contern, nurna indistin-crao primaria e infinitamente feeunda e podemos af diseernir os elementosque pressupoe nossa pr6pria racionalidade i,.

Sob esse ponto de vista, portanto, seria, njio incorreto, mas a bemdizer sem senti do querer captar toda a historia precedente da hurnanida-de em funcao do par de categorias imaginario-racional, que so tern verda-deiramente seu pleno sentido para n6s. E no entanto - al esta 0 paradoxo- nao podemos deixar de faze-to. Assirn como nao podemos, quando fa-lamos do domlnio feudal, fingir esquecer 0 conceito de economia, nem

·eximir-nos de categorizar como economicos fenornenos que nao 0 erampara os homens da epoca, nao podemos fingir ignorar a distincao do ra-cional e do irnaginario falando de uma sociedade para a qual ela nao ternsentido au 0 mesmo conteudo que para n6s. ". Esta antinomia, nossa con-sideracao da historia deve necessariamente assumi-la, 0 historiador ou 0etnologo deve obrigatoriamente tentar compreender 0 universe dos babi-lonios ou dos bororos, natural e social, tal como era vivi do por eles, ten-tando explica-lo, abster-se de introduzir deterrninacoes que nao existempara esta cultura (conscientemente ou nao conscientemente). Mas ele naopode ficar nisso. 0 etnologo que assimilou tao bem a visao do mundodosbororos a ponto de 56 poder ve-los Ii sua maneira, nao e mais urn etnolo-go, e urn boraro - e as bororos nao sac etnologos. Sua razao de ser nao eassirnilar-se aos bororas, mas explicar aos parisienses, aos londrinos, aosnovaiorquinos de 1965 est a outra humanidade que os bororos represen-tam. E isso, ele s6 pode faze-lo na linguagem, no sentido mais profundodo termo, no sistema categorial dos parisienses, londrinos, etc. Ora, es-

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5lt. Sob esse ponto de vista, existe pois um tipo de "funcionalidade" do imaginario efeti-vo na medida em que ele e "condicao de existencia" da sociedade. Mas ele e condicao deexistencia da sociedadc como sociedade humana, e est a existencia como tal nilo responde II

ncnhuma funcionalidade, nlio e tim de nada e nilo tem tim.55. E isso que nos parece ser, e apesar de suss intencoes, 0 essencial da contribuicao de

Claude Levi-Strauss, em particular em Pensee sauvage, muito mais que 0 parentesco entrepcnsarnento "arcaico" e bricolagem, ou a identificacao entre "pensamento selvagem" e ra-cionalidade simplesmente. Quante ao enorrne problema, no nlvel filos6fico rnais radical, darelacao entre imaginario e racional, da questao de saber se 0 racional 56 t urn momento doirnaginario ou entjlo se de ex prime 0 encontro do homem com uma ordem transcendente,nos aqui 56 podemos deixa-Io em aberto, duvidando alih que possamos jamais agir de ou-Ira mancira. (Esse problema 6 longamente discutido na segunda parte deste livro.)

56. Isso nile e afetado pelo Iato de que toda sociedade distingue necessariamente entre 0

que e para eta real-racional e 0 que ~ para eta irnaginario.

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sas linguagens nao sao "c6digos equivalentes" - precisamente porque emsua estruturacao, as significacoes irnaginarias representamum papel cen-tral ".

; ~ por isso que 0 projeto ocidental de constituicao de uma hist6riatotai. de compreensao e de explicacao exaustiva das sociedades de outroslugares e de outras epocas con tern necessariamente 0 fracasso em suaraiz, se e tornado como projeto especulativo. A maneira ocidental de con-ceber a hist6ria apoia-se na ideia de que 0 que era sentido para si, sentidopara os asslrios de sua sociedade, pode tornar-se, exatamente, sentidopara n6s. Mas isso e, evidentemente, irnposslvel e ocasiona a impossibili-dade do projeto especulativo de uma hist6ria total. A historia e semprehist6ria para n6s - 0 que naosignifica que tenhamos 0 direito de mutila-la ao nosso bel-prazer, nem de submete-la ingenuamente as nossas proje-coes, posta que, precisamente 0 que nos interessa na hist6ria e nossa al-teridade autentica, os outros possiveis do hornem em sua singularidadeabsoluta. Mas enquanto absoluta, esta singularidade se abole necessaria-mente, do momento em que tentamos capta-la, assim como em microflsi-ca, do momento em que se fixa a particula ern sua posicao, ela "desapare-ee" como quantidade de movimento definida.

No entanto, 0 que aparece como uma antinomia insuperavel para arazao especulativa, muda de sentido quando reintegramos a consider a-\taD da hist6ria em "ossa projeto de elucidacao te6rica do mundo, e emparticular do mundo humano, quando vemos al uma parte de nossa ten-tativa de interpretar 0 mundo para transforma-lo - njio subordinando averdade as exigencias da Iinha do partido,mas estabeleeendo explicita-mente, a unidade articulada entre elucidacao e atividade, entre teoria epratica, para dar sua realidade plena a nossa vida enquanto fazer autono-mo, ou seja, atividade eriadora lucida. Porque entao, 0 ponto ultimo dejuncao destes dois projetos - compreender e transformar - s6 pode cada

vez encontrar-se no presente vivo da hist6ria que njio seria presente histo-rico se nao se ultrapassasse em direcao de um porvir que deve ser feito pornos. Eo fato de que nao possamos comprecnder 0 outrora eo alhures dahumanidade a nao ser em funcao de nossas proprias categorias - 0 que,em cornpensacao, r etorna nessas categorias, as relativiza, e nos ajuda asuperar a sujeicao a ncssas pr6prias formas de irn aginario e mesmo de ra-cionalidade - njio traduz simplesmente as condicoes de todo conhecimen-to hist6rico e seu enraizamento, mas 0 fato de que toda elucidacao queempreendemos e finalmente interessada, e para nos em sentido efetivo,porque nao existimos para dizer 0 que e, mas para fazer ser 0 que nao e(ao qual 0 dizer daquilo que e pertence como momento).

Nosso projeto de elucidacao das forrnas passadas do! existencia dahumanidade 56 adquire seu sentido pleno como momento do projeto deelucidacao de nossa existencia, por sua vez inseparavel do nosso [azeratua\. Estamos ja inexoravelmente engajados numa transforrnacao destaexistencia quanto a qual a unica escolha que temos e entre sofrer e fazer,entre confusao e lucidez. 0 fato de que isso nos leve inevitavelmente areinterpretar e a recriar 0 passado, pode ser deplorado por alguns e de-nunciado como urn "canibalismo espiritual pior que 0 outro". Nos,como eles, nada podernos contra isso, assirn como nao podemos·impedirque nosso alimento contenha, em proporcao constanternente crescente,os elementos que com pun ham 0 corpo de nossos ancestrais hi trinta milgeracoes,

57. Como diriam os lingtlistas, essas linguagens n~o tern uma s6 fun~~o cognitiva; e so-mente seus conteudos cognitivos (eu diria agora: Identltarlos) sio integralmcnte traduzlveis.cr. Roman Jakobson, Essais de llnguistique general, ib., p. 78 a 86. A dialetica total dn his-t6ria, implicando a possibilidadcdc uma traducao exaustiva, de direito, de todas as culturasna linguagem da cultura "superior", implica uma tal reducao da hist6ria ao cognitive, Sobesse ponto de vista, 0 paralclo com a poesia c absolutamente rigoroso, 0 texto da hist6ria Cuma mistura indissociavel de elementos cognitivos e poeticos. A tendencia estruturalista ex-trema diz rnais ou menos: Nao posso traduzir-lhes Hamlet para 0 trances, ou s6 muitopobremente, mas 0 que e muito mais interessante do que 0 texto de Hamler c a grarnatica dalingua em que foi escrito, eo fato de que esta gramtltica e urn caso particular de uma grams-tica universal. Podemos responder: Nilo obrigado, a poesia nos interessa na medida em quecontern algo mais do que a grarnatica. Podemos tambern perguntar: E porque, entilo, a gra-matica inglesa nao e diretamente est a grarnatica universal? Porque existern diversas gramati-cas? Evidenternente, os pr6prios elementos p oeticos, embora nlo rigorosamente traduzl-veis, nao sac inaccesslveis. Mas este acesso c re-criacdo: ••... a poesia, por deflnlcao, e intra-duztvel. 506t possivel a transposicao criadora" (Jakobson, I.c., p. 86). Existe, mesmo alerndo conteudo cognitive, leitura e cornpreensao aproximada, atraves das diversas fases histo-rieas. Mas esta leitura tern que assurnir 0 fato de que t leitura por alguem,

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