a guerra de relatos no brasil contemporaneo

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A guerra de relatos no Brasil contemporâneo. Ou: a “dialética da marginalidade” João César de Castro Rocha Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - Brasil Resumo Neste ensaio, proponho uma abordagem alternativa em relação à sociedade brasileira e, sobretudo, à cultura brasileira contemporânea. Talvez a “dialética da malandragem”, tal como formulada por Antonio Candido num texto fundamental, esteja sendo substituída por uma “dialética da marginalidade”. A “dialética da marginalidade” pretende superar a desigualdade social mediante o confronto, em lugar da conciliação; através da exposição da violência, em lugar de seu ocultamento. Portanto, se a “dialética da malandragem” supõe uma forma descontraída, jovial de lidar com a injustiça social e o cotidiano, a “dialética da marginalidade” impõe-se mediante a exploração e mesmo a exposição metódica da violência, a fim de explicitar o dilema da sociedade brasileira. O enfrentamento desses dois modos de compreender o país cria uma “batalha simbólica”, que este ensaio almeja discutir. Palavras-chave: cordialidade - dialética da marginalidade - dialética da malandragem - desigualdade social revista01.indd 23 13/5/2007 19:09:54

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César Rocha parte revisando las dos grandes líneas de interpretación de la modernización brasileña, a saber: aquella crítica negativa que lee las formaciones socioculturales de Brasil en términos de carencia, fracaso e incomplitud y aquella apologética que busca hallar la peculiaridad de la formación brasileña “como la emergencia de un camino único para la negociación de diferencias y para el control del elemento agonístico de su sistema social”

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  • A guerra de relatos no Brasil contemporneo. Ou: a dialtica da marginalidade

    Joo Csar de Castro RochaUniversidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - Brasil

    Resumo

    Neste ensaio, proponho uma abordagem alternativa em relao

    sociedade brasileira e, sobretudo, cultura brasileira contempornea. Talvez a

    dialtica da malandragem, tal como formulada por Antonio Candido num texto

    fundamental, esteja sendo substituda por uma dialtica da marginalidade. A

    dialtica da marginalidade pretende superar a desigualdade social mediante o

    confronto, em lugar da conciliao; atravs da exposio da violncia, em lugar

    de seu ocultamento. Portanto, se a dialtica da malandragem supe uma forma

    descontrada, jovial de lidar com a injustia social e o cotidiano, a dialtica da

    marginalidade impe-se mediante a explorao e mesmo a exposio metdica

    da violncia, a m de explicitar o dilema da sociedade brasileira. O enfrentamento

    desses dois modos de compreender o pas cria uma batalha simblica, que este

    ensaio almeja discutir.

    Palavras-chave: cordialidade - dialtica da marginalidade - dialtica da

    malandragem - desigualdade social

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    Claudia IturrietaResaltado

  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM24

    Abstract

    In this working paper, I want to propose a different framework to cope

    with contemporary Brazilian society and, above all, Brazilian contemporary

    cultural production. It will be my contention that the dialectic of malandroism,

    as proposed in the seminal work of Antonio Candido, is being replaced by a

    dialectic of marginality, which is mainly based on the overcoming of social

    inequalities through confrontation instead of reconciliation, and through the

    exposition of violence instead of its concealment. Thus, whereas the dialectic of

    malandroism was represented by a joyful way of dealing with social inequalities

    as well as with everyday life, on the contrary, the dialectic of marginality

    presents itself through the exploration and exacerbation of violence, seen as a

    way of denouncing the social dilemma in Brazil. The confrontation of these two

    worldviews creates a symbolic battle, which I am trying to underscore.

    Key words: cordiality - dialectic of marginality - dialectic of the malandroism

    - social inequality

    At ver o povo

    No pargrafo de abertura de um livro raramente lembrado hoje em

    dia, John dos Passos fornece uma ilustrao sinttica da abordagem que desejo

    questionar neste ensaio:

    Os brasileiros so timos em contar piadas sobre eles mesmos. Uma histria que circulava alguns anos atrs era sobre Deus e um arcanjo no terceiro dia da criao. Quando Jeov terminou de fazer o Brasil, no resistiu em se gabar um pouco diante de um dos arcanjos. Ele havia plantado as maiores orestas e traado o maior sistema uvial do mundo e construdo uma magnca cadeia de montanhas com agradveis baas e praias ocenicas. Enchera os rios com topzio e gua-marinha e semeara os rios com ouro em p e diamantes. Preparou um clima livre de furaces e terremotos que poderia produzir qualquer tipo de fruta.

    justo, Senhor, perguntou ento o arcanjo, dar tantos benefcios a apenas um pas?

    Espera s, disse Deus, at ver o povo que eu vou por ali1.

    Essa piada repousa sobre um paradoxo: mostra o Brasil como um

    verdadeiro paraso, mas, ao mesmo tempo, diminui o seu status idlico ao povo-lo

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    com um povo aparentemente medocre, que no saber como aproveitar a

    generosidade divina. A piada ainda mais cida, pois engenhosamente reescreve

    o relato do Livro do Gnesis. Primeiro, Deus cria os cus e a terra e somente

    depois o homem formado. Deus cria o Jardim do den e atribui a Ado a tarefa

    de cultiv-lo2. Portanto, no pode existir um Jardim do den sem o seu cultivo.

    E, exatamente como no Gnesis, o povo brasileiro reproduz a queda do Homem,

    pois os brasileiros no so capazes de transformar o paraso em um domnio

    frutfero. Entretanto, a histria tem sugestes ainda mais sombrias, pois, se Ado

    foi tentado por Eva, que havia sido anteriormente seduzida pela serpente, no

    caso do povo brasileiro, como se a queda fosse apenas natural, no requerendo

    nenhuma cadeia especca de eventos. No nal das contas, Espera s, disse

    Deus, at ver o povo que eu vou por ali.

    Dos Passos imediatamente informa ao leitor que a lgica da piada est

    de ponta-cabea. Na maior parte do tempo, a exuberante natureza tropical do

    Brasil representa um obstculo ao povoamento, e, portanto, ao desenvolvimento

    econmico e social. De fato, no sculo XIX, Henry Thomas Buckle estabeleceu

    o que parecia ser o veredicto nal sobre a relao complexa entre o Homem

    e a Natureza nos trpicos: (...) grande o uxo e a abundncia de vida pelos

    quais o Brasil diferenciado de todos os demais pases da Terra. Mas entre

    toda pompa e esplendor da natureza, nenhum lugar deixado para o homem3.

    Essa imagem se tornou onipresente e provavelmente encontrou seu mais

    rme endosso em Euclides da Cunha. Em seu livro inacabado sobre a regio

    amaznica, o autor de Os sertes elmente reproduz a concluso de Buckle: A

    impresso dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade positiva,

    esta: o homem, ali, ainda um intruso impertinente4. Alis, em sua obra-

    prima, o conito entre o homem e a natureza j se encontrava tona. Se nos

    sertes o homem no era um intruso, ele, contudo, nunca poderia ser mais

    do que um sobrevivente. Anal, de acordo com a frmula incisiva de Cunha:

    O sertanejo , antes de tudo, um forte. No tem o raquitismo exaustivo dos

    mestios neurastnicos do litoral5. No entanto, no se pode esquecer de que o

    resultado da Guerra de Canudos assinalou a derrota do sertanejo. Na descrio

    pungente de Euclides da Cunha sobre os ltimos momentos da resistncia:

    Canudos no se rendeu. Exemplo nico em toda a Histria, resistiu at

    ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na preciso integral do

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM26

    termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caram os seus ltimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criana, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados6.

    Em outras palavras, as coisas no so exatamente como pareciam

    primeira vista. A natureza tropical pode ser to inspita para o estabelecimento

    da cultura como ela exuberante em sua aparncia de abundncia e fertilidade

    na verdade, essa uma imagem que remonta Carta, de Pero Vaz da Caminha,

    em maio de 1500. Assim, se essa compreenso inicial da cultura brasileira precisa

    ser questionada, o que dizer da viso pouco lisonjeira do povo brasileiro como

    o irnico contraponto para o paraso na Terra? John dos Passos no perde a

    oportunidade de repudiar a piada, asseverando com cuidado: O maior bem

    do Brasil so os brasileiros7. Contudo, no informa ao leitor as razes de sua

    armativa. Elizabeth Bishop, no entanto, ofereceu uma possvel resposta no

    ltimo pargrafo de um livro que mais tarde iria repudiar seu livro sobre o

    Brasil, escrito para a Biblioteca Mundial, da revista Life:

    Qualquer pessoa em visita ao Brasil concordaria que os brasileiros, os cidados comuns, so um povo maravilhoso, alegre, gentil, espirituoso e paciente de uma inacreditvel pacincia. V-los esperar em las por horas, literalmente por horas, em las cujo ziguezague, esticado, equivaleria a duas ou trs quadras, s para embarcar num nibus avariado e dirigido da maneira mais imprudente com destino a suas minsculas casas de subrbio, onde as ruas provavelmente ainda aguardam conserto e o lixo no foi recolhido, onde talvez esteja at faltando gua ver isso assombrar-se com tamanha pacincia. Outros povos sob provaes semelhantes sem dvida fariam uma revoluo por ms8.

    Essa citao oferece uma idia diferente sobre o mesmo povo, ou

    pelo menos justica o entusiasmo anterior de dos Passos pelos brasileiros.

    No entanto, ela se funda na mesma estrutura bsica de paradoxo, construindo

    uma imagem dplice dos brasileiros, na qual cada comentrio positivo esconde

    uma crtica subjacente. No ca muito claro se Bishop est somente elogiando

    a moderao do povo ou se est tambm condenando a resignao diante de

    padres de vida insuportveis. Nesse caso, pacincia signica sabedoria ou apatia?

    Neste ensaio, sugiro que uma estrutura paradoxal similar tem dominado

    a tradio do assim chamado pensamento social brasileiro, ou seja, a tradio

    de ensaios escritos sobre a formao da sociedade brasileira. Portanto, a

    estrutura de uma denio dplice da histria do pas tem sido internalizada,

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    Claudia IturrietaResaltado

  • letras n 32 - tica e cordialidade 27

    a partir do bem conhecido gnero do dirio de viagem do estrangeiro para a

    tradio do pensamento social brasileiro. Serei deliberadamente esquemtico

    na apresentao de suas duas mais destacadas escolas.

    De um lado, considera-se a formao da identidade brasileira como

    fundamentalmente incompleta, apontando diversas instncias em que as

    reformas sociais bsicas no foram alcanadas, a modernizao do setor econmico

    no foi satisfatoriamente implementada e a redistribuio da riqueza no foi

    seriamente iniciada. Essa escola valoriza as desigualdades sociais e a concentrao

    de poder e riqueza nas mos de uma elite que permanece em posies-chave,

    independentemente de mudanas polticas e convulses sociais. De acordo com

    essa abordagem, o Brasil antes de tudo visto por meio de um conceito de falta ou

    fracasso. Eu chamo essa abordagem de arqueologia da ausncia9 . claro que tal

    mtodo no contribui para uma compreenso antropolgica da singularidade da

    sociedade brasileira. preciso enfatizar, no entanto, que importantes intelectuais

    j identicaram esse impasse como tambm procuraram super-lo: Quando

    investigamos a realidade brasileira, raramente somos capazes de faz-lo a partir

    do modelo da lgica social brasileira10 .

    Por outro lado, h uma escola que, ao contrrio, valoriza a formao

    brasileira como a emergncia de um caminho nico para a negociao de

    diferenas e para o controle do elemento agonstico de seu sistema social. Em

    vez de lamentar a incompletude do processo de modernizao, essa abordagem

    louva a escolha brasileira por um universo social cuja lgica peculiar se busca

    identicar. Essa escola, inicialmente inspirada pelo trabalho de Gilberto

    Freyre, concentra-se sobretudo nas conseqncias sociais da miscigenao,

    que vista como a fonte de traos comumente atribudos ao povo brasileiro,

    o povo alegre, gentil que tanto impressionou Elizabeth Bishop. Tal escola

    entende a sociedade brasileira como fundamentalmente hbrida um conceito

    que ultimamente tem se tornando cada vez mais popular. Numa verso mais

    sosticada, essa escola ressalta a habilidade dos brasileiros em evitar conitos

    abertos atravs da criao de mediaes entre os plos antagnicos em disputa.

    claro, porm, que tal mtodo no fornece uma compreenso histrica

    adequada dos dilemas enfrentados na sociedade brasileira contempornea.

    Obviamente, tanto a perspectiva crtica quanto a apologtica so incapazes

    de competir em condies de igualdade com a complexidade da formao social

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    Claudia IturrietaResaltado

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM28

    brasileira; pois so vises unilaterais de um problema consideravelmente complexo.

    Neste ensaio, procuro desenvolver um novo modelo para a anlise da cultura

    brasileira contempornea. Um modelo que busca abarcar ambas as abordagens.

    Isso no signica, no entanto, que eu esteja procurando reconcili-las, mas que,

    em vez disso, desejo explorar ao mximo suas diferenas.

    Filmes e romances

    Em 2004, na 76a. premiao do Oscar, o cinema brasileiro testemunhou

    um momento histrico com a indicao, sem precedentes, para quatro categorias,

    do lme dos diretores Fernando Meirelles e Katia Lund, Cidade de Deus: Melhor

    Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edio e Melhor Cinematograa. Sem

    dvida alguma, a ocasio deve ser celebrada, pois conrma o salto qualitativo das

    produes nacionais. Em vez de simplesmente despertar o interesse de platias

    internacionais por meio de paisagens exticas e relaes sociais incomuns, as

    indicaes revelam o alto nvel tcnico alcanado pelo cinema brasileiro11. Ao

    mesmo tempo, na saga do crime organizado, implacavelmente descrita por Paulo

    Lins no romance Cidade de Deus, a brutal violncia de Z Pequeno parece sugerir

    que a caracterizao da cultura brasileira contempornea exige novos modelos

    de anlise; modelos inclusive capazes de estimular outra leitura do lme e da

    adaptao do romance de Lins.

    De forma semelhante, em 1962, o cinema brasileiro testemunhou outro

    importante momento de reconhecimento internacional quando O Pagador de

    Promessas, lme dirigido por Anselmo Duarte, ganhou a Palme DOr no Festival

    de Cannes, tendo sido indicado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro daquele

    ano. Na incisiva pea, de Dias Gomes, as ingnuas crenas religiosas de Z do Burro

    revelavam a complexidade da vida urbana tema que se tornou predominante

    durante a segunda metade do sculo XX, momento no qual, pela primeira vez, mais

    da metade da populao brasileira passou a viver em centros urbanos. Na saga do

    pagador de promessas, o deslocamento do interior para a cidade no apenas

    representado por meio da morte de Z do Burro, mas tambm atravs da atrao

    que sua esposa, Rosa, sente por um personagem tipicamente urbano, o malandro

    Bonito. Esses dois lmes oferecem um paralelo intrigante: do ponto de vista

    social, a distncia entre Z Pequeno e Z do Burro no poderia ser maior. De um

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    lado, temos o criminoso e a sua brutalidade, aterrorizando todos os espectadores,

    como se o horror presente no lme pudesse ser encontrado na prxima esquina,

    a qualquer hora do dia. Assim, Z Pequeno se torna um cone da violncia

    urbana contempornea. Por outro lado, o campons, e sua simples f, cativa os

    espectadores, precisamente por causa da luz anacrnica sob a qual caracterizado;

    como se o passado tivesse projetado a sua sombra melanclica por sobre a vida

    diria da cidade de Salvador. Nesse sentido, Z do Burro se torna uma metfora

    da busca do tempo perdido. Como podemos entender a distncia entre esses

    dois momentos histricos? Antes de explorarmos essa distncia, lembremos uma

    conexo surpreendente entre Z do Burro e Z Pequeno. Conexo que surge no

    atravs de um personagem ccional, mas de uma mulher pobre que se tornou

    internacionalmente conhecida por seus textos: Carolina Maria de Jesus, cujo

    Quarto de despejo, publicado em 1960, imediatamente a projetou para um inesperado,

    embora curto, momento de celebridade. Carolina de Jesus, na verdade, uma das

    mais destacadas precursoras do que chamo de dialtica da marginalidade. Sua

    histria pessoal realmente tem o sabor de um lme: Ela juntava papel velho

    durante o dia, mas noite, quando podia, confrontava as pginas em branco de

    seu caderno. De dia, juntar papel signicava dinheiro; noite, escrever em folhas

    de papel se tornava uma nova forma de sobrevivncia12. Prximo ao m de seu

    dirio, o leitor encontra a descrio do cenrio para um lme, que est sendo

    construdo na favela do Canind, em So Paulo, onde Carolina de Jesus vivia. O

    excerto longo, mas vale a pena ser citado:

    O que se nota que ningum gosta da favela, mas precisa dela. Eu olhava o pavor estampado no rosto dos favelados.

    Eles esto lmando as proezas do Promessinha. Mas o Promessinha no da nossa favela.

    Quando os artistas foram almoar os favelados queriam invadir e tomar as comidas dos artistas. Pudera! Frangos, empadinhas, carne assada, cervejas (...) Admirei a polidez dos artistas da Vera Cruz. uma companhia cinematogrca nacional. Merece deferncia especial. Permaneceram o dia todo na favela. A favela superlotou-se. E os vizinhos de alvenaria caram comentando que os intelectuais do preferncia aos favelados.

    (...) As mulheres xingavam os artistas: Estes vagabundos vieram sujar a nossa porta. As pessoas que

    passavam na Via Dutra e viam os bombeiros vinham ver se era incndio ou se era algum que havia morrido afogado. O povo dizia:

    Esto lmando o Promessinha!Mas o ttulo do lme Cidade Ameaada13.

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM30

    Em 1960, o lme Cidade ameaada, de Roberto Farias, venceu diversos

    prmios em festivais no Brasil e foi apresentado no Festival de Cannes14. O

    comentrio agudo, ainda que paradoxal, de Carolina de Jesus ningum gosta

    da favela, mas precisa dela parece procedente, levando-se em considerao o

    sucesso internacional de lmes como Central do Brasil, de Walter Salles, e Cidade

    de Deus, de Fernando Meirelles. A observao de Carolina de Jesus levanta um

    importante problema tico, isto , como retornar para essas comunidades o

    lucro obtido com a explorao de sua imagem, como tambm da exposio de

    suas diculdades dirias? Fotgrafos, cineastas, escritores, antroplogos, crticos

    literrios, todos ns temos nossa prpria parte no despertar de um interesse

    internacional nas vidas, esperanas e sonhos dos excludos. Mas quanto a eles,

    quanto aos prprios excludos?15 Eles melhoraram seu padro de vida por causa

    dessa exibio? No dirio de Carolina de Jesus o tema ferino, mas de forma ainda

    ingnua. Um conhecido da futura autora advertiu no sem razo: Eles ganham

    dinheiro nas tuas costas e no te pagam. Eles esto te embrulhando. Voc no deve

    entregar-lhe o livro. Eu no impressionei com as ironias do senhor Manoel16. Mas

    talvez devesse, pois terminou por retornar misria da qual pensou ter escapado.

    Certamente, esse no simplesmente um assunto brasileiro. Vejamos, por

    exemplo, o spero comentrio de Joseph Brodsky, originalmente apresentado

    como um artigo num congresso sobre o papel do intelectual no exlio:

    Enquanto nos encontramos aqui, nessa sala atraente e bem-iluminada, nessa noite fria de dezembro, para discutir o sofrimento do escritor no exlio, paremos por um minuto e pensemos em alguns desses que, muito naturalmente, no chegaram a essa sala. (...) Qualquer que seja o nome adequado para esse fenmeno, quaisquer sejam os motivos, origens e destinos dessas pessoas, qualquer que seja o seu impacto nas sociedades que abandonam e nas quais chegam, uma coisa absolutamente clara: elas tornam muito difcil falar com impassibilidade sobre o sofrimento do escritor no exlio17.

    Assim sendo, as implicaes ticas de falar em nome dos que sofreram,

    em vez de fornecer-lhes condies de contarem as suas prprias histrias, um

    dilema tico que tem se tornado cada vez mais claro. Em um tema que se relaciona

    de perto a minha prpria abordagem, vejamos a resenha sobre Random Family,

    de Adrian Nicole LeBlanc, uma crnica de vida em um gueto de Nova Iorque.

    O autor passou onze anos na prpria comunidade, e seu relato uma histria

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    pungente de vidas que aparentemente tm pouco a dizer. A resenha se encerra

    num tom similar ao da observao de Carolina de Jesus:

    Mas a questo mais grave por que as histrias sobre pessoas pobres (...) so um material bruto to valioso, criando um frisson no meio literrio e entre os compradores de livros? Por que suas vidas e sofrimentos pessoais so moeda corrente para qualquer um menos eles prprios?18

    No entanto, uma mudana decisiva comeou a se tornar visvel: h um

    crescente sentimento de insatisfao com o fato de que os lucros derivados de suas

    histrias e de suas imagens somente retornem a eles, por assim dizer, em doses

    homeopticas. por isso que, neste ensaio, procuro identicar um fenmeno

    que tem ocorrido nos ltimos anos, cujas conseqncias no podem ainda ser

    completamente avaliadas, uma vez que ainda est em pleno desenvolvimento. Esse

    fenmeno deve provocar uma mudana radical na imagem da cultura brasileira

    no exterior, como tambm na auto-imagem que os brasileiros mantm. Estou

    me referindo transio da dialtica da malandragem, como Antonio Candido

    conceituou a estratgia social do malandro, para a dialtica da marginalidade,

    como proponho batizar o fenmeno19. Para ser mais preciso, estou lidando

    com a coliso entre esses dois modos de compreender o pas, uma vez que no

    se trata da substituio mecnica de um por outro, mas, ao contrrio, estamos

    vivendo uma guerra de relatos, para empregar a expresso de Nestor Garca

    Canclini20. Uma vez mais, minha abordagem procura evitar a armadilha implcita

    em escolher tanto o modelo apologtico quanto o crtico para analisar a formao

    social brasileira, como tambm a sua produo cultural contempornea. Desse

    modo, proponho que a cultura brasileira contempornea se tornou o palco para

    uma batalha simblica (nem sempre) sutil. Por um lado, uma pontual crtica da

    desigualdade social tem sido desenvolvida. o caso do romance Cidade de Deus,

    de Paulo Lins, para no mencionar a msica dos Racionais MCs, e os romances

    de Ferrz Capo Pecado e Manual Prtico do dio. Por outro lado, a crena na velha

    ordem de conciliao de diferenas mantida; tal o caso do lme Cidade de Deus

    e de seu produto derivado, a srie da Rede Globo, Cidade dos Homens.

    Antes de explorar essa batalha simblica, retornemos para o ano de

    premiao da saga de Z do Burro, cuja mistura de obstinao e submisso

    Elizabeth Bishop prenunciou na passagem j citada. Lembremos sua surpreendente

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM32

    concluso: Outros povos sob provaes semelhantes sem dvida fariam uma

    revoluo por ms21. Dois anos aps, um golpe militar se disfarou de revoluo

    e instalou uma ditadura que governaria o pas pelas duas dcadas seguintes. Se

    pudesse reescrever o trecho, provavelmente Bishop abandonaria a caracterizao

    macunamica do povo feliz, embora espera do nada. Uma nao de Pedros

    pedreiros esperando um trem que nunca saiu da estao.

    Ora, os nibus continuam sendo dirigidos por pilotos do caos urbano;

    as las aumentam ecumenicamente, incluindo a dos bancos, dos postos de sade

    e das inscries para os escassos empregos pblicos; os bairros de subrbio

    permanecem uma distante realidade para os donos do poder. Em suma, no

    tocante ao respeito pela cidadania das camadas menos favorecidas, 1962 e 2005 so

    apenas nmeros diferentes. Entretanto, hoje os pedreiros esto desempregados, e

    a hiptese de a estao nunca ter existido deixou de ser um pesadelo kafkiano para

    transformar-se no surrealismo do nosso cotidiano. Por m, a violncia substituiu

    a decantada pacincia na caracterizao da cultura brasileira contempornea: Z

    Pequeno tomou o lugar de Z do Burro, no resta dvida. Numa recente edio

    inglesa de Quarto de despejo, Felipe Fortuna ressaltou a indesejada continuidade:

    Enquanto escreve este prefcio, o Banco Mundial acaba de publicar dados

    que revelam que a pobreza na Amrica Latina no viu realmente qualquer

    mudana nos ltimos vinte anos. (...) Estou relendo as ltimas notcias e o dirio

    de Carolina de Jesus. H ainda tudo a fazer22. No m, ao que tudo indica, a

    violncia substituiu a clebre pacincia dos brasileiros. Sem dvida, Z Pequeno, o

    criminoso impiedoso, tomou o lugar de Z do Burro, o ingnuo homem do povo.

    Por isso mesmo, nas ltimas dcadas, uma sensao crescente de

    desconforto e de insegurana se tornou parte do dia-a-dia nas grandes cidades

    brasileiras. Condomnios fechados e carros particulares blindados expressam a

    reao dos mais privilegiados realidade dos seqestros-relmpago; da neofavela

    como entreposto do trco internacional de drogas; dos comandos do crime

    organizado aterrorizando bairros de classe mdia como fazem h dcadas nas

    reas da periferia. O repertrio variado, pois no deve ser toa que criminalidade

    rima com criatividade. J os rgos de segurana pblica no conhecem rima e

    muito menos solues para o problema. Em alguma medida, a chave reside na

    elaborao de um novo modelo de estudo. Anal, a anlise crtica somente estar

    altura da produo cultural contempornea mediante a criao de formas de

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  • letras n 32 - tica e cordialidade 33

    abordagem inovadoras. nesse sentido que eu proponho o conceito de dialtica

    da marginalidade como um modo de descrever a superao parcial da dialtica

    da malandragem superao parcial, pois ambas dialticas esto atualmente

    disputando a representao simblica do pas. Atravs do reconhecimento

    dessa batalha simblica, ser possvel revelar o maniquesmo problemtico da

    adaptao cinematogrca do romance Cidade de Deus, e, ao mesmo tempo, permitir

    uma anlise nova de parcela signicativa da produo cultural contempornea

    alternativa. Antes, porm, revisitemos o modelo anterior.

    Dialticas em coliso23

    Em 1970, Antonio Candido publicou um de seus mais importantes

    ensaios, A dialtica da malandragem24. Nele, Candido props uma

    interpretao inovadora da formao social brasileira atravs de uma leitura

    original do romance Memrias de um Sargento de Milcias, de Manuel Antonio

    de Almeida. De acordo com Candido, a formao social brasileira teve como

    base um comrcio de mo dupla entre os plos da ordem e da desordem. Tal

    negociao era levada a cabo principalmente pela gura socialmente plstica

    do malandro homem de muitas faces e discursos, cujo gingado compete com

    sua habilidade em tirar vantagem nas mais diversas, e adversas, situaes. Esse

    modo especial de negociar diferenas permite a coexistncia de diversos cdigos

    dentro do mesmo espao social, evitando dessa maneira o surgimento de

    conitos sociais ou, pelo menos, tornando-os mais prontamente controlveis.

    Tal trnsito entre esferas opostas representa a metfora da formao social

    consolidada pelo acordo mais do que pela ruptura; uma formao social baseada

    em uma atitude pacicadora deixa-disso em vez de conitante. Ao nal, o desejo

    por cooptao tambm dene o malandro. No fundo, como Candido deixa claro,

    o malandro aguarda ser nalmente absorvido pelo plo convencionalmente

    positivo25. o que realmente acontece com o protagonista de Memrias de um Sargento

    de Milcias: depois de viver vrias aventuras no mundo da desordem, o malandro

    Leonardo perfeitamente integrado no plo da ordem por meio de um casamento

    favorvel e de uma inesperada promoo que o torna um sargento de milcias.

    Neste contexto, consideremos a denio precisa dada por Jorge Amado

    para o personagem Gato, um malandro tpico. A passagem se encontra em

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    Claudia IturrietaResaltado

  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM34

    Capites de Areia, publicado em 1937, um dos primeiros romances brasileiros a

    tratar do problema das crianas que vivem nas ruas: Tinha o dom da elegncia

    malandra, que est mais no jeito de andar, de colocar o chapu e dar um lao

    despreocupado na gravata que na roupa propriamente26. Pois a roupa talvez esteja

    puda, assim como o pas talvez esteja com as foras sociais esgaradas, prximas

    do rasgo. Melhor ento manter o olhar longe das roupas, num gesto anlogo

    quele dos grupos dominantes que desejam esquecer o desconforto social mais

    eloqentemente sintomatizado na irrupo de violncia na vida diria nos centros

    urbanos.

    Na importante obra Carnavais, Malandros e Heris, lanada em 1979,

    Roberto DaMatta deslindou todas as conseqncias da dialtica da malandragem

    proposta por Candido. DaMatta argumenta que o dilema brasileiro se originou da

    oscilao entre o mundo das leis universais e do universo das relaes pessoais,

    entre a rgida hierarquia da lei e a branda exibilidade da vida cotidiana. Em

    seu vocabulrio, no Brasil, todos aspiram ao status de pessoa em detrimento

    condio de indivduo. A pessoa tem a sua disposio uma rede social

    que lhe permite burlar a lei conforme a sua convenincia, enquanto que o

    indivduo tem que se curvar perversa universalidade das regras, uma vez

    que sua rede social muito limitada. Tudo isso transmitido num provrbio

    argutamente estudado por DaMatta: Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.

    Precisamente a lei que deveria proteger todos os cidados com igualdade se

    torna o instrumento para o restabelecimento de hierarquias. Portanto, de acordo

    com DaMatta, o que deveria fazer do brasil, o Brasil a constituio de uma

    ordem relacional, que se funda num mecanismo social bsico por meio do

    qual uma sociedade feita com trs espaos pode tentar refazer sua unidade27.

    Esses espaos o cotidiano, o festivo, e o mundo ocial constituem

    um peculiar mosaico no qual a fratura d lugar unidade. No entanto, o artifcio

    social esconde um interesse concreto, embora previsvel:

    () h em todos os nveis essa recorrente preocupao com a intermediao e com o sincretismo, na sntese que vem cedo ou tarde impedir a luta aberta ou o conito pela percepo nua e crua dos mecanismos de explorao social e poltica28.

    No Brasil, gostamos de encenar a escolha muito especial de Dona Flor,

    que no tem nada a ver com a de Soa. De acordo com o antroplogo, em sua

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  • letras n 32 - tica e cordialidade 35

    leitura instigante do romance de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos, quando

    Dona Flor tem que escolher entre o malandro, mas encantador, Vadinho, e o marido

    perfeitamente convencional, mas metodicamente tedioso, Teodoro Madureira,

    Dona Flor simplesmente encena o ato que dene as relaes sociais brasileiras: ela

    escolhe no escolher!29 Em vez de permanecer el ao seu nico amor, ela decide

    ser leal aos seus prprios desejos e se torna Dona Flor e seus dois maridos. Alm

    disso, Vadinho j est morto, o pecadono to srio, pois se trata de um defunto

    amante, por assim dizer to irreverente e solipsista, alis, quanto o defunto

    autor machadiano. Desse modo, segundo o inspirado estudo de DaMatta, Dona

    Flor capaz de unir at mesmo os mundos da vida e da morte. Aparentemente,

    Dona Flor conseguiu encontrar a maneira de reunir o til e o agradvel sem

    prestar contas a ningum. Porm, talvez o prprio DaMatta tenha sido seduzido

    pela lbia de Vadinho. Ora, pelo menos na letra do texto, Dona Flor no decidiu

    no escolher, como acredita o antroplogo; pelo contrrio, tomou uma resoluo

    extrema logo aps reencontrar-se plenamente com o defunto amante ou seja,

    ao voltar a relacionar-se carnalmente com o esprito de Vadinho. O texto de Jorge

    Amado claro: como sempre, Vadinho anuncia que precisa sair; Flor estranha,

    no ter sossegado depois da morte? Recebe ento a resposta que menos esperava:

    A nossa noite agora. Depois, meu bem, a vez de meu colega, o outro teu marido. Dona Flor se encheu de brios, reformulando decises dramticas: Com ele nunca mais... Como ia poder? Nunca mais, Vadinho. Agora s ns dois, tu no v logo?Ele sorriu na maciota, no leito estirado a la godaa: Meu bem, no diga isso... Voc adora ser el e sria, eu sei. Mas se isso se acabou, para que se enganar? Nem s comigo, nem s com ele, com ns dois, minha Flor enganadeira. (...)30.

    No se pense que Vadinho se tornou um feminista avant la lettre,

    defendendo direitos iguais para as indelidades conjugais ofcio no qual foi

    consumado mestre. Seu raciocnio mais simples e efetivo. Na verdade, Flor

    escolhe no escolher apenas para satisfazer mais uma vez os desejos de Vadinho,

    cujo argumento parece mesmo difcil de contestar:

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM36

    Ele o marido da senhora Dona Flor, cuida de tua virtude, de tua honra, de teu respeito humano. Ele tua face matinal, eu sou tua noite, o amante para o qual no tens nem jeito nem coragem. Somos teus dois maridos, tuas duas faces, teu sim, teu no. Para ser feliz, precisas de ns dois. Quando era s eu, tinhas meu amor e te faltava tudo, como sofrias! Quando foi s ele, tinhas de um tudo, nada te faltava, sofrias ainda mais. Agora, sim, s Dona Flor inteira como deves ser31.

    A soluo encontrada por Vadinho, bem verdade, favorece

    Dona Flor, mas, sobretudo, libera o malandro da obrigao de assumir

    qualquer responsabilidade, a no ser as relacionadas ao universo do prazer

    e da seduo. Em outras palavras, o romance de Jorge Amado esclarece

    os limites da viso de mundo com base na arte da malandragem, pois o

    solipsismo tpico do malandro desfavorece uma crtica da prpria sociedade.

    Por isso, nos estudos de Antonio Candido e Roberto DaMatta, a

    violncia mantida sob controle por meio da reconciliao compensatria,

    a qual, numa escala social, parece favorecer a adoo da escolha de Dona Flor

    em no escolher porm, como vimos, fundamental compreender que tal

    deciso nem sempre se reveste do carter libertrio que o antroplogo deseja

    associar ao romance de Jorge Amado. Em conseqncia, e apesar de ser o

    primeiro a reconhecer a importncia dos estudos de Candido e DaMatta, quero

    propor uma abordagem diferente para analisar a sociedade brasileira e, acima de

    tudo, a produo cultural contempornea. Reitero, ento, a minha hiptese: a

    dialtica da malandragem est sendo parcialmente substituda ou, para dizer

    o mnimo, diretamente desaada pela dialtica da marginalidade, a qual est

    principalmente fundada no princpio da superao das desigualdades sociais

    atravs do confronto direto em vez da conciliao, atravs da exposio da

    violncia em vez de sua ocultao. Em outras palavras, estou interessado em

    identicar as representaes culturais e simblicas desse conito; portanto, no

    estou inicialmente preocupado com pesquisas empricas sobre os nveis atuais

    de violncia e criminalidade na sociedade brasileira contempornea, mas com a

    produo cultural e a reexo proposta sobre os atuais dilemas que enfrentamos.

    De fato, Flora Sssekind j ressaltou a existncia de uma prtica potica

    com relao ao aparecimento histrico recente de uma experincia violenta

    segregadora, autoritria, tal como a do Brasil32. A hiptese de Sssekind pode

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  • letras n 32 - tica e cordialidade 37

    ser ampliada para uma certa parcela da produo cultural contempornea. O que

    cunhei como dialtica da marginalidade enfatiza uma nova forma de relao

    entre as classes sociais. No favorece mais uma viso negligenciadora de diferenas,

    mas em vez disso as traz tona, recusando a promessa incerta da reconciliao

    social. Nesse contexto, importante esclarecer que o termo marginal no tem

    necessria e exclusivamente um signicado pejorativo, representando, acima de

    tudo, embora no exclusivamente, a maioria da populao empobrecida e excluda

    dos benefcios do progresso social. Na denio incisiva proposta por Ferrz para

    denir o movimento da literatura marginal: () cultura da periferia feita por

    gente da periferia e ponto nal33.

    Assim sendo, enquanto a dialtica da malandragem representa o modo

    jovial de lidar com as desigualdades sociais, como tambm com a vida cotidiana,

    a dialtica da marginalidade, ao contrrio, apresenta-se atravs da explorao

    e da exacerbao da violncia, vista como um modo de repudiar o dilema social

    brasileiro. Em outras palavras, a violncia parece no apenas predominar na vida

    cotidiana, especialmente em centros urbanos como Rio de Janeiro e So Paulo,

    mas tambm prevalece na produo cultural de nossos dias. Portanto, acredito

    que o desenvolvimento do conceito de dialtica da marginalidade pode ajudar

    a compreender o surgimento de uma produo cultural contempornea centrada

    na violncia.

    Vale, ento, perguntar se a dialtica da malandragem e a ordem relacional

    tm sido em parte substitudas pelo seu oposto, a dialtica da marginalidade e

    a ordem conitiva. Tal confronto simblico tem profundas conseqncias, visto

    que o conito aberto no pode mais ser escondido sob o disfarce do acordo

    carnavalizante. O surgimento de uma dialtica da marginalidade ajuda a explicar

    o tpico comum de um vasto nmero de produes recentes que traam uma

    nova imagem do pas uma imagem que denida pela violncia. De fato, vale

    repetir que a violncia tem sido transformada na protagonista de romances,

    textos confessionais, letras de msica, lmes de sucesso, programas populares e

    at mesmo de sries de TV. A violncia o denominador comum, mas a maneira

    como ela abordada dene movimentos contraditrios, determinando a batalha

    simblica que estou tentando tornar explcita.

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM38

    Disputas Simblicas

    O melhor modo de expor essa batalha simblica e apresentar uma

    leitura diferente do lme Cidade de Deus consiste em enfatizar a mudana drstica,

    e dicilmente incua, do foco narrativo na transposio do romance Cidade de

    Deus, de Paulo Lins, para as telas. Como veremos, a srie de TV Cidade dos Homens

    infantiliza ainda mais o problema da violncia e do trco de drogas iniciado

    pelo lme. Esse processo pode ser mais bem apreciado ao estudarmos o foco

    narrativo tanto do romance quanto do lme.

    Roberto Schwarz estava certo ao armar que, no panorama da literatura

    brasileira contempornea, o romance de estria de Paulo Lins, um catatau de

    quinhentas e cinqenta pginas sobre a expanso da criminalidade em Cidade de

    Deus, no Rio de Janeiro, merece ser saudado como um acontecimento34. No

    entanto, aps oferecer uma leitura sensvel da estrutura do romance, como tambm

    de sua crtica da formao social brasileira, Schwarz conclui sua anlise criteriosa

    ao circunscrever Cidade de Deus a um modelo j consagrado: A ambivalncia no

    vocabulrio traduz a instabilidade dos pontos de vista embutidos na ao, um

    certo negaceio malandro entre ordem e desordem (para retomar, noutra etapa,

    a terminologia de Dialtica da malandragem)35. O comentrio de Schwarz em

    relao complexidade do narrador importante; contudo, o romance expressa

    os impasses e limites da dialtica da malandragem, pelo menos de acordo com

    a hiptese que estou descrevendo.

    Enfatizarei ento o papel do narrador do romance. um narrador de

    terceira pessoa, cujo ponto de vista no sempre claramente distinguvel. s

    vezes, o narrador onisciente tradicional, um verdadeiro farol, que organiza

    eventos, conduzindo o leitor. Outras vezes, o eco da voz do autor: este no

    apenas foi de fato morador da Cidade de Deus, mas tambm trabalhou como

    assistente de pesquisa da sociloga Alba Zaluar, uma das maiores especialistas

    na violncia urbana do Rio de Janeiro36. O narrador do romance tambm

    parece estar engajado no projeto de uma prosa potica (antes de escrever seu

    primeiro romance, Paulo Lins produziu principalmente poesia), como a epgrafe

    e as primeiras pginas do livro comprovam. A epgrafe um poema de Paulo

    Leminski, que parece inspirar a evocao do autor de sua musa particular:

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  • letras n 32 - tica e cordialidade 39

    (...) Mas o assunto aqui o crime, eu vim aqui por isso... Poesia, minha tia, ilumine as certezas dos homens e os tons de minhas palavras. que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas. o verbo, aquele que maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. (...) Massacrada no estmago com arroz e feijo a quase-palavra defecada ao invs de falada. Falha a fala. Fala a bala.37

    No entanto, na maior parte do tempo, o narrador do romance oscila entre

    diversos registros lingsticos, caractersticos da passagem de tempo e da mudana

    da forma da criminalidade na Cidade de Deus. Em suma, o romance apresenta

    a histria de aproximadamente 30 anos da favela Cidade de Deus, oferecendo

    um estudo das transformaes estruturais impostas s comunidades pobres

    pela ascenso do trco internacional de drogas, como tambm pelo abandono

    das autoridades do pas. Uma vez mais, Quarto de despejo recorda continuidades

    estruturais:

    Os polticos s aparecem aqui nas pocas eleitorais. O senhor Cantidio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na favela. Ele era to agradvel. Tomava nosso caf, bebia nas nossas xcaras. Ele nos dirigia as suas frases de veludo. Brincava com nossas crianas. Deixou boa impresso por aqui e quando candidatou-se a deputado venceu. Mas na Cmara dos Deputados no criou um projeto para beneciar o favelado. No nos visitou mais.

    ... Eu classico So Paulo assim: o Palcio, a sala de visita. A Prefeitura a sala de jantar e a cidade o jardim. E a favela o quintal onde jogam os lixos38.

    As semelhanas no poderiam ser mais fortes. Quarto de despejo foi lanado

    na mesma dcada em que o governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda,

    decretou a criao da Cidade de Deus, entre 1962 e 1965. A Cidade de Deus

    foi originalmente concebida como um projeto que abrigaria habitantes de outras

    favelas cariocas que haviam sido destrudas por um temporal em 1962. O nome

    com o qual o projeto foi batizado est altamente carregado pela associao bvia,

    mas, no m, irnica, com A Cidade de Deus, de Santo Agostinho. Ora, as favelas

    cariocas so geralmente identicadas como o autntico Hades. Essas semelhanas,

    contudo, no deveriam ocultar distines fundamentais. O dirio de Carolina de

    Jesus no pode ser facilmente comparado com o romance de Paulo Lins, no

    apenas porque os gneros so diferentes, mas, acima de tudo, porque seus autores

    possuam objetivos radicalmente diferentes. Carolina de Jesus pretendia, sobretudo,

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM40

    e legitimamente, adquirir voz prpria para quebrar o feitio da invisibilidade

    social dos habitantes das favelas brasileiras. Como o tradutor da verso inglesa

    de Quarto de despejo relembra numa entrevista televiso, Carolina de Jesus armou

    que havia retornado humanidade e deixado a Lata de Lixo39. Ou ainda, no

    seu modo cndido de escrever, que ainda hoje mantm a sua fora: Espero que

    1960 seja melhor do que 1959. Sofremos tanto no 1959 (...)40. No entanto, a

    primeira anotao de primeiro de janeiro de 1960 repete o lugar-comum que os

    leitores encontram do comeo ao m do livro, estabelecendo o ritmo de sua

    vida diria: Levantei as 5 horas e fui carregar agua41. Aparentemente, 1960

    comeou como 1959 terminou. verdade, no entanto, que por certo tempo

    Carolina de Jesus realmente escapou da Lata de Lixo, embora no tenha

    escapado a um melanclico (eterno) retorno misria anterior. Desde a sua

    primeira edio, Quarto de despejo foi traduzido em treze lnguas, e Carolina de Jesus

    publicaria mais tarde outros quarto livros Casa de Alvenaria (1961); Pedaos de

    Fome (1963); Provrbios (1963); e Dirio de Bitita (1982), publicado postumamente.

    Em contraste, o projeto de Paulo Lins fornece um relato tanto ccional

    quanto crtico das transformaes da Cidade de Deus por meio de sua relao

    intrnseca com a ausncia das autoridades ociais e com o orescimento da

    criminalidade em vrios momentos histricos na (trans)formao da comunidade.

    Portanto, um ponto importante a ser lembrado no tocante ao romance Cidade de

    Deus a complexidade e ambigidade do narrador, que no transmite um foco

    particular, mas antes tenta incorporar as muitas camadas que comportam o tecido

    social da prpria favela. O texto de Lins no a expresso de sua voz particular,

    mas antes a articulao de um estrato social que implica a sociedade brasileira

    como um todo. Espero que o leitor entenda que no estou julgando o mrito

    dos dois projetos baseado nessa distino, mas importante que seja ressaltada,

    pois uma das mais importantes inovaes do que tenho chamado de dialtica da

    marginalidade precisamente sua natureza coletiva.

    Tomemos como exemplo o primeiro romance de Ferrz, Capo Pecado,

    nomeado a partir de seu prprio bairro, o subrbio de Capo Redondo. O livro

    dividido em cinco partes, contando com textos assinados por outros autores.

    A primeira parte comea com um texto de Mano Brown, um dos rappers mais

    importantes do Brasil, lder da banda Racionais MCs um grupo profundamente

    comprometido com aquilo que chamo de dialtica da marginalidade. A estratgia

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  • letras n 32 - tica e cordialidade 41

    tambm est presente no livro de Andr du Rap, Sobrevivente (do Massacre do

    Carandiru), que contm uma seo intitulada Aliados, na qual companheiros

    de hip-hop e de luta social falam sobre a convivncia com o autor42 . Portanto, o

    carter coletivo da experincia literria e artstica um dos traos denidores das

    formas de expresso da dialtica da marginalidade.

    Da, no livro de Ferrz, Mano Brown aproveita para associar o movimento

    brasileiro com problemas similares enfrentados em outros contextos: Pode

    ser pretenso minha, mas eu acho que Tupac e Bob Marley tambm tem a cara

    da nossa quebrada43. curioso observar que, na poca do lanamento de

    Quarto de despejo, relao semelhante foi estabelecida: Mas a misria da favela

    do Canind igual desgraa comum de todas as favelas do mundo, o que

    empresta ao depoimento de Carolina Maria de Jesus caractersticas simblicas

    e universais44. O livro de Ferrz tambm ilustrado com fotograas de Capo

    Redondo e de seus habitantes estratgia utilizada pela maioria dos livros

    desse gnero, um gesto adicional de denio da prpria imagem, anlogo

    ao gesto de escrita. A dedicatria do autor tem o propsito de um manifesto:

    Este livro dedicado tambm a todas as pessoas que no tiveram sequer uma chance real de ter uma vida digna; que no puderam ser cidados, pois lhe impediram de ter direitos, mas lhe foram cobrados deveres. (...) queles que no foram alfabetizados e, portanto, no podero ler esta obra (...). Embora minha prosso para essas pessoas no tenha o menor sentido, este livro tambm dedicado a elas45.

    Em outras palavras, os que no podem ler podem ao menos vislumbrar

    sua realidade cotidiana atravs das imagens. Essa vocao coletiva tambm explica

    a crescente importncia do hip-hop e de outras formas de expresso musical em

    comunidades como Capo Redondo ou Cidade de Deus46.

    Penso em Dirio de um detento: o livro, de Jocenir. O ttulo especica que se

    trata de um livro, porque uma msica de sucesso dos Racionais Mcs nasceu de um

    dos poemas de Jocenir, por sua vez tambm intitulado Dirio de um detento.

    No nal do livro, o poema transcrito, enquanto que atravs dos captulos do

    livro vrias passagens do poema esto disseminadas, compondo um quebra-

    cabeas que o leitor precisa decifrar47. Essa relao intrnseca entre literatura e

    msica uma das marcas da literatura marginal, e o prprio Ferrz lanou

    um CD chamado Determinao. A msica uma forma imediata de criar vnculos

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    Claudia IturrietaResaltado

  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM42

    com a comunidade que, at hoje, enfrenta srios problemas de analfabetismo.

    Ento, o uso da oralidade, como um processo estruturador de muitos dos textos

    literrios aqui analisados, tem de ser visto tanto como uma forma de incluso,

    quanto como a permanncia de um circuito comunicativo organizado em torno

    da ao performtica caracterstica da transmisso oral da cultura. Neste sentido,

    a observao de Luis Antonio Giron ganha fora: trata-se de um texto em

    estado virginal, no qual gneros em extino sobrevivem, como troca de cartas,

    relatos viscerais, consses e episdios de ao48. to bvio que os modelos

    tradicionais de anlise literria so incapazes de abranger as inovaes trazidas por

    esse tipo de textos que nem mesmo me estenderei nesse assunto. Na maior parte do

    tempo, os crticos literrios simplesmente no se deram conta que os textos atuais

    produzidos por escritores como Paulo Lins e Ferrz exigem o desenvolvimento

    de novos instrumentos analticos49. Pelo contrrio, insistem em criar montonos

    leitos de Procusto, a m de preservar sua prpria compreenso de literatura.

    Alm disso, Paulo Lins prope uma inquietante equivalncia entre malandros,

    bandidos, bichos-soltos e vagabundos, em suma, entre malandros e criminosos. Todos

    eles sabem como tirar vantagem de tudo e de todos, sobretudo se forem pessoas

    comuns, incapazes de se defender. Esse um gesto fundamental que no foi

    ainda totalmente compreendido pelos leitores do romance. Em vez da habitual

    idealizao do malandro, como vimos em Jorge Amado, Paulo Lins revela o lado

    oculto do modo de vida do malandro, deixando claro que o malandro s pode

    sobrevier tirando vantagem do otrio. Mais ainda, o otrio geralmente algum

    da prpria comunidade do malandro, um dos inumerveis excludos. Enm, de

    acordo com o ditado popular, malandro que malandro no cospe para cima.

    Em outras palavras, ele no se mete com os membros poderosos das classes

    privilegiadas, que poderiam facilmente pun-lo com rigor. Recordemos o samba

    de Zeca Compositor, um dos personagens do romance de Paulo Lins: Enquanto

    existir otrio no mundo,/ malandro acorda ao meio-dia50. O malandro apenas

    pensa em si mesmo; da, a desconstruo da malandragem feita por Lins um

    momento chave rumo ao desenvolvimento da dialtica da marginalidade. Eis uma

    passagem representativa que mostra a equivalncia entre o malandro e o criminoso:

    Tutuca foi criado no morro da Cachoeirinha. Quis ser bandido para ser temido por todos, assim como foram os bandidos do lugar onde morou. Os bichos-soltos botavam tanta moral que o medroso do seu pai no tinha coragem

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  • letras n 32 - tica e cordialidade 43

    nem de olhar nos olhos deles. Gostava do jeito dos malandros falarem, como se vestiam.51

    Tal equivalncia pode ser proposta porque o relacionamento estrutural

    entre as guras do malandro e do otrio trazida superfcie. Trata-se de

    movimento crtico decisivo. Celebrar a malandragem, portanto, esquecer que

    todo Vadinho necessita de uma Dona Flor para explorar, roubar-lhe o dinheiro,

    agredi-la quando seu desejo no prontamente atendido e, como ningum

    de ferro, dar-lhe tambm amor. No necessariamente nessa ordem, pois tudo

    depende das urgncias dos negcios do malandro. Em princpio, o amor pode

    sempre car para mais tarde. Pode ser inclusive pstumo, por assim dizer. Enm,

    neste contexto, vale lembrar mais uma vez que a oferta generosa de Vadinho,

    que permite a Dona Flor ter dois maridos de uma s vez, foi de fato originada a

    partir de seu interesse pessoal:

    Mas no queiras que eu seja ao mesmo tempo Vadinho e Teodoro, pois no posso. S posso ser Vadinho e s tenho amor para te dar, o resto todo de que necessitas quem te d ele; a casa prpria, a delidade conjugal, o respeito, a ordem, a considerao e a segurana. Quem te d ele, pois o seu amor feito dessas coisas nobre (cacetes) e delas todas necessitas para ser feliz. Tambm de meu amor precisas para ser feliz, desse amor de impurezas, errado e torto, devasso e ardente, que te faz sofrer52.

    E certamente o malandro nunca leva em conta o problema do outro, como

    ocorre com o Bonito, em O Pagador de promessas. Ele aproveita a oportunidade para

    seduzir Rosa enquanto seu marido, Z do Burro, est tentando pagar a promessa

    que havia feito. A situao do ltimo vai se tornando cada vez mais precria e

    perigosa; de fato, no nal da histria, Z do Burro morto. No entanto, isso no

    importa a Bonito, desde que ele possa tirar vantagem da situao para seduzir

    Rosa. Nos termos de Roberto DaMatta, algum s se arma como pessoa quando

    um nmero innitamente maior se v reduzido ao plido papel de indivduo. O

    malandro, sem dvida, aspira a ser uma pessoa, a despeito do fato de que a sua

    prpria comunidade deva permanecer no papel incerto de indivduo.

    Da a importncia do ponto de vista da narrao no romance Cidade de

    Deus. A ausncia de uma perspectiva clara de superao da desigualdade social

    inviabiliza a promessa utpica do morador da Cidade de Deus ser nalmente

    absorvido pelo plo convencionalmente positivo, como Candido deniu com

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    preciso o destino do malandro. revelia de seu desejo, o morador da Cidade

    de Deus o otrio, simples escada para a duvidosa ascenso do malandro. Por

    exemplo, como vimos no dirio de Carolina de Jesus, os polticos engravatados

    em busca de voto; os grupos dominantes em busca da paz perdida em meio

    violncia cotidiana professores que, como eu, ganham bolsas no exterior e

    escrevem artigos sobre a dialtica da marginalidade.

    Ora, qual o ponto de vista narrativo do lme Cidade de Deus? Em lugar de

    um narrador difuso e deliberadamente ambguo, optou-se pela determinao do

    foco narrativo em primeira pessoa, atribudo ao adolescente Buscap. No lme, ele

    parece ter dois problemas principais: perder a virgindade e deixar a favela graas

    a um possvel emprego como fotgrafo. Essa extraordinria simplicao da

    personagem corresponde a um propsito duplo: tanto torna o horror da histria

    mais palatvel, por acrescentar uma dose de comdia, quanto associa o desejo

    do espectador de distanciar-se da realidade ao objetivo do rapaz de abandonar

    a Cidade de Deus. Ao mesmo tempo, no tocante audincia internacional, a

    histria da primeira noite de um homem, no caso, o favelado Buscap, permite

    uma rpida associao com um clich narrativo explorado exausto pelo cinema

    holywoodiano53.

    Portanto, a escolha do foco narrativo reveladora. A perspectiva de

    Buscap estabelece uma srie de mediaes entre o espectador e as causas da

    violncia: o ponto de vista do fotgrafo, a prpria cmera; o desejo de Buscap

    de escapar da verdadeira favela da Cidade de Deus. Esses vrios ltros tornam

    a insuportvel realidade da comunidade dominada pelo trco de drogas em

    material para um espetculo dinmico, inegavelmente divertido e muito bem feito.

    Assim, o voyeurismo de Buscap, fotgrafo da prpria comunidade, legitima

    nosso papel de voyeurs da misria alheia. Se o foco narrativo do lme tivesse sido o

    de Z Pequeno, o pblico teria louvado o lme Cidade de Deus? Como poderamos,

    audincias de outras classes sociais, identicarmo-nos com o ponto de vista do

    criminoso impiedoso? A brutalidade sem mediaes de Z Pequeno relembra

    o dio do cobrador, o personagem homnimo do conto merecidamente

    clebre de Rubem Fonseca, que pode ser visto como o verdadeiro precursor da

    atual dialtica da marginalidade. Antonio Candido chamou o gnero de relato

    denidor do estilo de Fonseca de realismo feroz. Em sua anlise, a brutalidade

    da situao transmitida pela brutalidade do seu agente (personagem), ao qual se

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    identica a voz narrativa, que assim descarta qualquer interrupo ou contraste

    crtico entre narrador e matria narrada54. Ou seja, encena-se o carter imediato

    da transmisso da experincia. Numa chave semelhante, Alfredo Bosi batizou essa

    tendncia como representativa do brutalismo55. Em ambos os casos, sublinha-

    se a imediatez da violncia causada por uma vida cotidiana igualmente violenta

    nos centros urbanos brasileiros. Vejamos um dos mais notveis exemplos dessa

    forma de expresso.

    No conto de Fonseca, o cobrador decide obter pela fora todos os

    bens e confortos dos quais foi sistematicamente privado em sua vida. E faz isso

    com uma violncia at mesmo sdica. Sem condies de ir ao dentista, pois no

    tem dinheiro suciente para pagar pelo tratamento, o cobrador decide reagir:

    Eu no pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu s cobro! Dei

    um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele lho da puta56. Nesse ponto,

    comea a cobrar com violncia crescente, at que encontra Ana Palindrmica, que

    o ajuda a entender seu objetivo verdadeiro:

    Leio para Ana o que escrevi, nosso manifesto de Natal, para os jornais. Nada de sair matando a esmo, sem objetivo. Eu no sabia o que queria, no buscava um resultado prtico, meu dio estava sendo desperdiado. Eu estava certo nos meus impulsos, meu erro era no saber quem era o inimigo e por que era inimigo. Agora eu sei, Ana me ensinou. E o meu exemplo deve ser seguido por outros, muitos outros, s assim mudaremos o mundo. a sntese do nosso manifesto.57

    Essa promessa de revoluo possui em si um importante papel na atmosfera

    sombria dos anos nais da ditadura militar, mas tambm revela o sonho da classe

    mdia de se unir s classes trabalhadoras na guerrilha urbana; um sonho que no

    poderia jamais ser concretizado diante das circunstncias histricas do nal dos

    anos 60 e incio dos anos 70 e que enm trai o voluntarismo subjacente promessa.

    Ao contrrio, como Ferrz claramente pontuou: () a parada da Literatura

    Marginal a revoluo sem r, ento, meus queridos, vamos evoluir (...).58 Na

    frmula de Paulo Lins, Falha a fala. Fala a bala.. Mas temos que compreender

    a equivalncia metafrica proposta entre balas e palavras, entre balas e obras-

    de-arte alis, um topos predominante nas manifestaes artsticas da dialtica

    da marginalidade. Escrever uma arma que pode tornar-se muito poderosa e

    perene, diz Humberto Rodrigues, dando voz a uma crena geral59. Revoluo

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    sem r no signica resignao; antes assinala uma nova compreenso no papel

    da cultura enquanto instrumento na organizao das comunidades pobres60. Na

    epgrafe de Sobrevivente (do Massacre do Carandiru), Andr du Rap desenvolve a

    noo: Dedico este livro ao irmo Natanael Valncio, pela revoluo e evoluo

    dentro do movimento hip-hop. Descanse em paz61.

    Aluses constantes a amigos, precocemente mortos, tambm so

    comuns nessa literatura. Estaremos ns, audincias de classe mdia e alta,

    preparados para olhar no espelho e admitir nossa prpria indiferena diante da

    desigualdade social que domina a vida cotidiana brasileira? As mediaes que

    permitem a ascenso do consumo voyeurstico da violncia originam-se desse

    paradoxo: desejamos experimentar o chamando mundo bandido, mas desde

    que protegidos no interior de carros blindados e condomnios de luxo cercados

    por autnticas muralhas medievais. como acontece numa cena de Carandiru,

    o lme inspirado pelo livro de Druzio Varela e dirigido por Hector Babenco62.

    Depois de terminar seu turno, o mdico observa a intimidade das celas atravs

    de pequenos buracos em suas portas, at que se encontra quase forado a passar

    a noite na penitenciria, uma vez que a troca dos guardas j ocorrera, e os novos

    guardas ainda no o conhecem. Aps um breve momento de suspense, e mesmo

    um comeo de pnico, os portes da priso so abertos: o mdico respira o ar

    da liberdade. No fundo, queremos testemunhar as memrias do crcere, como

    tambm as histrias das vidas dos excludos, retornando, porm, ao conforto de

    lares burgueses. Um Big Brother semanal, porm com uma dose adicional de

    realismo. E, ento, naturalmente, produziremos reexes agudas sobre o assunto.

    De fato, o consumo voyeurstico da violncia est presente no livro de Varela e,

    devo reconhecer, em boa parte da produo da dialtica da marginalidade. Na

    caracterizao precisa de Giron: Matam a ancestral sede de sangue do pblico

    leitor e o aprisionam leitura das tragdias e perverses do crcere, revelando o

    outro lado da sociedade63. H, contudo, uma diferena que importa observar.

    verdade que, nos textos de autores como Paulo Lins, Ferrz e Andr du Rap, ou nas

    msicas dos Racionais Mcs, o leitor-ouvinte encontra um festival de escatologia,

    sexo e sevcias64. Entretanto, pelo menos como parte de um projeto mais amplo,

    trata-se de uma estratgia de denncia, cujo acerto ou malogro pode ser discutido,

    naturalmente, mas cujo objetivo lanar no rosto da sociedade sua indiferena.

    Leia-se a epgrafe-bofetada do livro de Ferrz: Querido sistema, voc pode

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    at no ler, mas tudo bem, pelo menos viu a capa65 um menino com os olhos

    vendados, braos abertos, como um jovem Cristo crucicado, segurando um

    revlver numa das mos. J no livro de Druzio Varela a perspectiva que estrutura

    a narrativa a mesma do voyeur, mas sem a contundncia tpica da dialtica da

    marginalidade; pelo contrrio, trata-se de um voyeurismo familiar, liberado

    para todas as idades por assim dizer. Logo nas primeiras pginas, o mdido

    candidamente reconhece a natureza do seu olhar:

    Quando eu era pequeno, assistia eletrizado queles lmes de cadeia em branco e preto. Os prisioneiros vestiam uniforme e planejavam fugas de tirar o flego na cadeira do cinema. (...) Quando entrei e a porta pesada bateu atrs de mim, senti um aperto na garganta igual ao das matins do Cine Rialto, no Brs66.

    Idntico mtodo empregado pelo lme Cidade de Deus, que explora a

    violncia, mas procura mant-la sob controle atravs de sutis mecanismos de

    mediao. Alm disso, o roteiro do lme atualiza clichs, estruturando a narrativa

    em volta de um dualismo entre o bem e o mal que difcil de aceitar. Z Pequeno

    transformado no eptome do mal. Ele inquestionavelmente um bandido cruel,

    sem nenhuma possibilidade aparente de redeno; em suma, um verdadeiro

    psicopata social muito similar aos tipos de lmes holywoodianos, inexoravelmente

    maus, incontornavelmente criminosos. Sua malcia reforada pela candura do

    parceiro, Ben, como tambm pela justa vingana procurada por Man Galinha,

    cuja noiva havia sido estuprada pelo incorrigvel Z Pequeno. No necessria

    uma imaginao frtil para recordar a retrica de programas de televiso como

    Cidade Alerta, que reduz a criminalidade a desvios de comportamento individuais.

    O autor do romance expressou seu desacordo em relao ao desenvolvimento do

    personagem Z Pequeno no lme: segundo Paulo Lins, no lme o personagem se

    transforma num tipo ideal lombrosiano; caracterstica ausente no romance67.

    O processo de infantilizar os protagonistas foi levado ainda mais longe

    pela srie de TV Cidade dos Homens. A equipe bsica de produo do seriado

    televisivo a mesma do lme, e a simplicao do foco narrativo parece ter se

    adaptado audincia televisiva do horrio nobre. No lugar de um adolescente,

    temos agora duas crianas, Laranjinha e Acerola como se estivssemos de

    volta referncia ambgua de dos Passos ao Brasil como Paraso na terra; dessa

    vez na imagem de crianas literalmente transportadas para um corrompido Jardim

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    do den. No entanto, em vez de uma perspectiva de adolescente, representada por

    Buscap no lme Cidade de Deus, contamos agora com uma perspectiva infantil,

    que aparentemente torna a violncia ainda mais palatvel, ao tornar as crianas

    vtimas inocentes, privando-as de qualquer subjetividade para alterar seu ambiente.

    No primeiro ano da srie, em 2002, diculdades tpicas da vida na favela eram

    discutidas, mesmo que de forma diluda. No entanto, no ano seguinte, as aventuras

    amorosas dos protagonistas tomaram conta da cena por que discutir problemas?

    Basta reproduzir o modelo das comdias amorosas, somente localizadas num

    cenrio extico, mais ou menos como se fez com o dilema da virgindade de

    Buscap. Alm disso, Cidade dos homens se serve inescrupulosamente de clichs,

    incluindo a representao de garotas da favela se oferecendo para estrangeiros,

    acrescentando a isso um sabor cmico ao faz-las falar um arremedo de ingls

    deliberadamente ridculo. E, uma vez que as garotas da favela so aparentemente

    bem democrticas em seus gostos, tambm tentam seduzir jovens de classe mdia

    na praia, cuja aparncia promete possveis benefcios econmicos. Tal ofcio

    tem um nome e, pelo que se sabe, representa uma das prosses mais antigas

    do mundo... difcil imaginar o objetivo dessas cenas na estrutura narrativa

    da srie. igualmente difcil no se sentir incomodado por tais apresentaes

    estereotipadas e ofensivas. Ou ser que isso representa uma maneira de fugir da

    discusso do drama das favelas dominadas pelo trco de drogas, apresentando-

    as como exticas? O terceiro ano da srie, exibido em 2004, apenas ressaltou os

    esteretipos e aumentou o processo de exotismo da realidade da vida cotidiana

    nas favelas cariocas.

    Aqui, o leitor talvez se pergunte: De que forma exatamente o lme

    e a srie de TV infantilizam a violncia? A trama principal da narrativa no

    justamente a violncia? Sem dvida, mas proponho outra pergunta ao leitor: Qual

    o objetivo dessa infantilizao crescente do foco narrativo dos protagonistas?.

    No ser uma forma de fazer com que os problemas associados ao narcotrco

    sejam deixados margem e, assim, reencontremos a humanidade das relaes

    mesmo numa favela? Tal infantilizao termina por criar uma favela abstrata,

    descontextualizada, como se sua vista privilegiada no passasse de um elemento

    de valorizao imobiliria e todos os barracos fossem apartamentos de cobertura.

    No segundo ano da srie, a favela se transformou no cenrio de uma sensualidade

    or da pele, uma miniatura da imagem turstica de Salvador em pleno morro

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    carioca. Obviamente, h uma clara linha divisria, cuidadosamente controlada, na

    base do morro, ou seja, no asfalto, que involuntariamente reencena o imaginrio

    tradicional de uma jornada aos infernos. Mas, como a srie promete uma favela

    idlica, talvez em breve, os espectadores de Cidade dos homens abandonem seu

    receio e troquem o asfalto congestionado pela aventura da vida nas favelas. Anal,

    somos todos brasileiros; logo, lhos de Deus, na Cidade Maravilhosa.

    Auxlio paternal

    Gostaria de sugerir outra resposta: semelhante processo de infantilizao

    do problema aposta na possibilidade de retorno ao modelo da dialtica da

    malandragem, isto , aposta em algum modo de cooptao, em vez de ruptura

    social. Laranjinha e Acerola so apresentados como dois aspirantes a malandro.

    Vale lembrar, no entanto, que em latim infante o in-fans, ou seja, aquele que

    no fala, no se expressa, necessitando portanto de auxlio paternal. Muito pelo

    contrrio, autores como Paulo Lins e Ferrz, grupos musicais como os Racionais

    MCs, documentrios como nibus 174, de Jos Padilha, ou Margem da imagem,

    de Evaldo Mocarzel, entre outras produes recentes, desenham um horizonte

    muito distinto do silncio que a infantilizao da violncia deseja produzir.

    como se nibus 174 fosse o remake de Cidade de Deus, mas com Z Pequeno como

    narrador da histria. O resultado explosivo, e foi muito bem resumido em

    resenha publicada no The New York Times: o lme produz um triste retrato de

    uma vida moldada pela crueldade e pela indiferena que parecem endmicas no

    Brasil urbano68. Por sua vez, Margem da Imagem, de Morcazel, traz superfcie

    a discusso tica fundamental a respeito dos direitos de imagem de moradores de

    rua. Tudo comea quando o internacionalmente aclamado fotgrafo Sebastio

    Salgado tem permisso negada para fotografar um grupo de sem-teto em So

    Paulo. De imediato, o fotgrafo teria reagido, segundo a narradora do episdio,

    com uma verso suave, mas sempre autoritria do voc sabe com quem est

    falando?, estudado por Roberto DaMatta69. A religiosa, que ajudava os sem-teto,

    sabia muito bem quem era Sebastio Salgado e precisamente por isso proibiu a

    tomada das fotos. Por qu? Ela explicou prontamente: estavam cansados de ver a

    sua imagem ser vendida sem qualquer benefcio concreto s suas prprias vidas.

    Portanto, estavam tentando recuperar o controle sobre as suas prprias imagens.

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM50

    No nal do documentrio, os sem-teto retratados so convidados a assistir ao

    lme e ento coment-lo. Um deles desaa o diretor, perguntando a ele se abriria

    as portas de sua casa, na eventualidade de uma visita inesperada. O diretor no

    d nenhuma resposta, um fato que apenas ressalta a compreenso do problema

    complexo levantado pela questo que subjaz ao documentrio. Essa a melhor

    denio prtica do que tenho chamado de dialtica da marginalidade, isto ,

    assumir controle da prpria imagem, expressar-se com a prpria voz.

    No contexto dessa infantilizao da violncia, uma discusso sobre a cena

    mais violenta do lme Cidade de Deus adquire novo vigor. Quase a unanimidade

    das pessoas considera essa a cena em que uma criana escolhe quem ela ter de

    matar para ser aceita como membro do bando de Z Pequeno. Infelizmente, Fil

    com fritas70, este o apelido do personagem, no pode optar pela escolha de

    Dona Flor; em vez disso, ele tem de enfrentar sua prpria escolha de Soa: tem

    de escolher uma outra criana como uma forma de rito de passagem, que vai

    lhe permitir tornar-se um criminoso maduro em vez de um simples assistente.

    Naturalmente, a seqncia terrvel e o prprio fato de uma criana tomar a

    deciso apenas salienta o efeito de choque da seqncia inteira.

    Contudo, a meu ver, o momento mais violento ocorre na cena em que

    Buscap invade a redao do jornal que publicou sua foto do bando de Z Pequeno.

    Naturalmente, ele julga que ser morto pelo tracante, assim exposto pela primeira

    vez. O aprendiz de fotgrafo est visivelmente desesperado e no vislumbra

    nenhuma alternativa. Nesse instante, o que sucede na redao? Uma jornalista lhe

    responde no conhecido tom do voc sabe com quem est falando?, e infantiliza

    o adolescente, silenciando-o. Como foi muito bem apresentada por Kathryn

    Hochstetler, essa estratgia implica, a importncia da hierarquia e do status na

    poltica brasileira, e presume que os que tiverem ouvido a questo respondam a

    seus superiorescom silncio e medo.71 Por sua vez, o fotgrafo consagrado lhe

    oferece um equipamento mais sosticado a m de obter mais e melhores fotos.

    O espectador espera em vo: no demonstram nenhuma preocupao real com

    a segurana de Buscap. A jornalista leva-o para casa, verdade, mas, acredite

    se quiser, l o adolescente enm perde a virgindade. Essa total insensibilidade e

    explorao representa o momento de maior violncia no lme, a meu ver, pois

    oferece uma imagem inesperada da atitude de indiferena dos prprios espectadores

    do lme em relao ao drama que assistem. perturbador encontrar no dirio

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    de Carolina de Jesus uma situao similar. Depois de ter aparecido numa revista

    importante, O Cruzeiro, ela sonha com a ascenso social ao ser levada, por uma

    leitora da revista que se interessou por seu caso, para a redao de um jornal:

    (...) Era uma loira muito bonita. Disse-me que havia lido a reportagem no O Cruzeiro e queria levar-me no Dirio para conseguir um auxlio para mim.

    ... Na redao, eu quei emocionada. (...) O senhor Antonio ca no terceiro andar, na sala do Dr. Assis Chatobriand (sic). Ele deu-me revista para eu ler. Depois foi buscar uma refeio para mim. Bife, batatas e saladas. Eu comendo o que sonhei! Estou na sala bonita. A realidade muito mais bonita do que o sonho.

    Depois fomos na redao e fotografaram-me (...). Prometeram-me que eu vou sair no Dirio da Noite amanh. Eu estou to alegre! Parece que a minha vida estava suja e agora esto lavando.72

    Essa passagem ajuda a esclarecer outra inquietante seqncia de Cidade

    de Deus. Num momento crucial, Buscap tem de escolher entre a estabilidade

    no trabalho como fotgrafo, que poderia ser alcanada ao publicar a fotograa

    do cadver de Z Pequeno e o risco envolvido ao denunciar a corrupo dos

    policias encarregados de proteger a favela, mas que coagiam a comunidade e

    extorquiam dinheiro dos tracantes. No contexto brasileiro, essa deciso to

    obvia que parece tornar qualquer anlise sem sentido ele entrega a imagem do

    cadver de Z Pequeno. Por que Buscap no ousa expor os policiais? Por que

    que tem de se contentar com uma imagem previsvel, em vez de uma fotograa

    que poderia talvez lhe garantir algum prmio, como tambm um reconhecimento

    imediato? Recordemos que, no nal do lme, Buscap no garante o emprego

    com a fotograa de Z Pequeno; ele simplesmente se torna um estagirio no

    jornal.

    Ora, enfrentemos a pergunta realmente importante: Por que que o lme

    pode tornar tanto a escolha de Fil com Fritas como a de Buscap em uma

    narrativa de sucesso no Brasil e no exterior? E, enm, coloco-me mais uma vez

    como parte do problema (e espero que o leitor tambm o faa): por que que

    eu posso fazer do lme e do tema da dialtica da marginalidade um objeto

    de pesquisa, obtendo importantes bolsas em centros renomados de pesquisa?

    Podemos ver nessa srie de apropriaes uma inquietante metfora da desigualdade

    social, agora transferida para o nvel de produo tanto de imagens simblicas

    como de conhecimento acadmico? Em outras palavras, todos ns temos de dar

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM52

    conta do desao implcito na questo de Wypijewski a respeito das apropriaes

    artsticas e acadmicas das diculdades das comunidades pobres: Por que as

    suas vidas e sofrimentos particulares geram dinheiro para todo mundo a no ser

    eles mesmos?. De novo, como vemos na questo implacvel levantada pelos

    sem-teto para Evaldo Morcazel, a dialtica da marginalidade tambm signica

    assumir controle da imagem de algum para redistribuir comunidade o ganho

    proveniente dela. A dialtica da marginalidade ento o oposto da infantilizao

    do problema da violncia porque permite ao marginal projetar a sua voz, a m de

    articular uma crtica inovadora das razes da desigualdade social.

    Trata-se de um problema particularmente complexo e que precisa ser

    mais discutido. Por exemplo, mesmo num livro importante como Sobrevivente

    (do Massacre do Carandiru), as mediaes no so controladas por Andr du Rap,

    mas pelo coordenador do volume, Bruno Zeni. Na nota editorial, esclarece os

    critrios de organizao: Na edio do texto, procurei ser o mais el possvel s

    particularidades da fala de Andr mantive inclusive suas incongruncias e incorrees

    por acreditar que no se pode separar a forma e o contedo daquilo que

    se diz, se escreve ou se cria73. Incongruncias e incorrees? Qual o critrio

    absoluto de norma culta da lngua subjacente a tal avaliao? revelia de seu

    propsito, como se Bruno Zeni reproduzisse o tradicional recurso dos primeiros

    momentos do romance regionalista, em que se grifava a fala do sertanejo, do

    homem simples do povo, a m de demarcar a distncia entre a norma culta

    do narrador e os inmeros tropeos lingsticos dos personagens da narrativa.

    Mais uma vez, vale retornar dcada de 1960, ou seja, ao fenmeno Carolina de

    Jesus. O coordenador editorial de Quarto de despejo, ofereceu explicao semelhante

    sobre o processo de depurao estilstica. A passagem longa, mas merece ser

    transcrita:

    (...) em alguns poucos trechos, botei uma ou outra vrgula, para evitar interpretao dbia de frases. Algumas cedilhas desapareceram, por desnecessrias, e o verbo haver, que Carolina entende com um a, assim soltinho, confundido facilmente com o artigo, ganhou um h de presente. (...) De meu, no livro, h ainda uns pontinhos que aparecem assim (...) e indicam supresso de frases. Quando os pontinhos esto sozinhos, sem (), nos pargrafos quer dizer que foi suprimido um trecho ou mais de um trecho da narrativa original74.

    Registre-se a infantilizao do discurso do jornalista ao referir-se ao dirio

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    de Carolina de Jesus, note-se a profuso de diminutivos, mas no se esquea do

    mais importante: a deciso nal sobre eventuais cortes pertenceu exclusivamente

    a Audulio Dantas, cuja contribuio assim foi maior do que a incluso de uns

    pontinhos. Alis, de Bruno Zeni, no livro de Andr du Rap, h muito mais que

    uns pontinhos. Zeni assina um posfcio no qual, alm de recordar a gnese do livro,

    oferece uma reexo sobre memria e evocao. Seu ensaio rene de Foucault a

    Adorno, sem esquecer Walter Benjamin, Ecla Bosi, Geoffrey Hartman, Gilberto

    Freyre e ainda outros nomes, a m de justicar a importncia da leitura do relato

    de Andr du Rap. Retornemos dcada de 1960. Num esforo de classicao

    de Quarto de despejo, Paulo Dantas surpreendeu modelos consagrados no dirio

    de uma favelada:

    Sem nenhum sincretismo literrio lia-se, porm, diretamente ao populismo de um Jorge Amado, ao universalismo de um Mximo Gorki e, no que diz respeito a certos aspectos da fome e da vagabundagem, lembra o lirismo de um Knut Hamsum, embora nada tenha com a literatura desses escritores, porque em matria de depoimento social sobre as misrias da vida, pela sua autenticidade e participao, ningum supera a voz de Carolina de Jesus, que brota de dentro e nasce feita. Literatura da favela, escrita pelo prprio favelado (...)75.

    O registro acadmico de Bruno Zeni ou a prosa jornalstica de Paulo

    Dantas se do as mos, pois compartilham o mesmo projeto, isto , enobrecer

    os textos respectivamente de Andr du Rap e Carolina de Jesus; enobrecimento

    esse que depende da criao de uma contigidade claramente articial entre os

    textos-depoimentos e autores consagrados ou conceitos acadmicos. O paradoxo

    incontornvel: como depoimentos, os textos valem precisamente pela ausncia

    de mediao entre o vivido e o narrado. Porm, tanto a coordenao editorial,

    quanto a necessidade de enobrecimento implicam uma srie de mediaes que

    contradizem a premissa inicial. Anal, devemos ler Carolina de Jesus por que

    seu dirio recorda Jorge Amado, Mximo Gorki e Knut Hamsum? Ou, pelo

    contrrio, sua leitura se impe porque se trata da literatura da favela, escrita

    pelo prprio favelado? De igual sorte, devemos ler Andr du Rap por que suas

    memrias ilustram o acerto de Adorno, Benjamin, Hartman, entre outros

    nomes consagrados? Ou, pelo contrrio, devemos ler seu livro por que se trata

    de uma pea de resistncia76? Sem dvida, os escritos de Carolina de Jesus

    e de Andr du Rap podem estimular paralelos os mais diversicados, inclusive

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    os apresentados por Paulo Dantas e Bruno Zeni. Entretanto, tais paralelos no

    servem como fonte legitimadora dos textos. Aqui, nenhuma concesso vlida:

    os textos se sustentam como narrativa, como relato de experincias particulares, ou

    simplesmente no vale a pena escrever sobre eles. Adorno no justica Andr du

    Rap. Jorge Amado no explica Carolina de Jesus. Precisamos, isso sim, criar novos

    modelos de anlise a partir dos textos de Carolina de Jesus, Paulo Lins, Ferrz,

    Andr du Rap, e das msicas e das demais manifestaes artsticas do movimento

    da dialtica da marginalidade. No se trata de reduzir tais manifestaes aos

    conceitos e mtodos que j conhecemos e empregamos com razovel facilidade;

    pelo contrrio, devemos aceitar o desao de propor uma nova abordagem capaz

    de renovar o entendimento da cultura brasileira contempornea. Mas ser que

    estamos dispostos a correr riscos?

    Por tudo isso, no resta dvida, Buscap agiu corretamente ao desistir

    de entregar ao jornal uma extraordinria fotograa, na qual agrava a corrupo

    de policiais na Cidade de Deus fotograa que poderia render-lhe um prmio,

    cona. Mas, em troca, decide apresentar uma foto menos impactante, porm

    capaz de assegurar-lhe o emprego e a sobrevivncia. Anal, a jornalista e o

    fotgrafo dicilmente perderiam seu precioso tempo para defend-lo dos

    criminosos de farda, isto , os policiais corruptos. Podemos tambm ver

    nessas cenas uma involuntria metfora do prprio processo de infantilizao

    do foco narrativo presente no lme e na srie televisiva? A sbia deciso de

    Buscap lembra a escolha comum tomada pelos habitantes das reas perifricas,

    sempre que os criminosos os confrontem, como Lcio Kowarick observou:

    A [escolha] mais racional, porque a menos perigosa, consiste em evitar o confronto, o que signica mudar de um lugar para o outro, longe do espao dos criminosos que irreversivelmente penetraram no crculo privado da vida domstica. E isso pode ser chamado de migrao provocada pela violncia (...)77.

    No caso do lme Cidade de Deus, a circunstncia ainda mais perturbadora

    os criminosos so autoridades ociais, que deveriam proteger pessoas como

    Buscap dos outros criminosos. A escolha de um narrador em primeira

    pessoa, ento, implica muito mais do que um recurso estilstico. Na escolha do

    adolescente Buscap como narrador do lme, a infantilizao do assunto j est

    posta em primeiro plano. Infatilizao que foi aprofundada no drama televisivo

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  • letras n 32 - tica e cordialidade 55

    Cidade dos Homens. Como vimos, os narradores so crianas de no mais de doze

    anos de idade. De um complexo narrador em terceira pessoa, no romance de

    Paulo Lins, passamos para o ponto de vista de crianas, passando pelas imagens

    produzidas por um fotgrafo adolescente. Embora devesse ser bvio, no estou

    comparando o romance com o lme e julgando que a adaptao no el.

    Qualquer adaptao deve ser deliberadamente inel; uma vez que estamos

    lidando com mdias diferentes, qualquer questo a respeito de delidade

    tende a se tornar uma tentativa de desviar do assunto. Minha crtica parte das

    conseqncias simblicas da infantilizao do foco narrativo, que ocorre tanto no

    lme como na srie televisiva.

    Rumo a uma dialtica da marginalidade

    As teorias de Candido e de DaMatta esclarecem formas particulares de

    mediao social, com base sobretudo no contato pessoal e no universo do favor,

    moedas correntes no idioma prprio da dialtica da malandragem e da ordem

    relacional. Mas em que medida essas abordagens ainda constituem um modelo de

    interpretao vlido para o Brasil contemporneo? indiscutvel a permanncia

    da lgica do favor como motor da vida social. Nesse sentido, suas teorias

    continuam pertinentes, revelando a capacidade das elites brasileiras de se apegar

    ao poder poltico a m de perpetuar seus privilgios. Entretanto, pouco ajudam

    no entendimento de parcela signicativa da produo cultural contempornea.

    importante ento insistir que no estou sugerindo que a dialtica da malandragem

    deveria simplesmente desaparecer no futuro prximo, sendo assim substituda

    por uma triunfante dialtica da marginalidade. Ao contrrio, a dialtica da

    malandragem mostra cada vez mais provas de vitalidade na Braslia dos dias

    atuais, e em todos os nveis e, como hoje sabemos, em todos os partidos e

    ideologias. Em vez disso, a minha abordagem pretende superar o modelo exclusivo

    de anlise da sociedade brasileira, seja o apologtico, seja o crtico. Estou antes

    tentando mostrar a natureza agonstica de uma formao social que foi capaz de

    ser razoavelmente inclusiva no tocante a uma tcnica de proximidade fsica dos

    corpos. Essa formao foi, ao mesmo tempo, preparada para excluir uma larga

    percentagem da populao de seus direitos sociais bsicos. Esta a razo de eu

    ter proposto que a cultura brasileira contempornea se tornou o palco para uma

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM56

    (nem sempre) sutil disputa simblica. Em outras palavras, a crtica cultural deveria

    assimilar em sua prpria metodologia a natureza conitiva da vida cotidiana

    brasileira. J o modelo que proponho da dialtica da marginalidade pressupe

    uma nova forma de relacionamento entre as classes sociais. No se trata mais de

    conciliar diferenas, mas de evidenci-las, recusando-se a improvvel promessa de

    meio-termo entre o pequeno crculo dos donos do poder e o crescente universo dos

    excludos. Nesse contexto, vale repetir para evitar mal-entendidos, o termo marginal

    no possui conotao unicamente pejorativa, representando tambm o contingente

    da populao que se encontra margem, no tocante aos direitos mais elementares,

    sem dispor de uma perspectiva clara de absoro, ao contrrio do malandro.

    Mas evitemos repetir o equvoco de idealizar o marginal, recuperando

    anacronicamente o motivo de Hlio Oiticica, seja marginal, seja heri, ou o

    movimento dos poetas marginais da dcada de 1970. Durante os anos de represso

    da ditadura militar, a celebrao do marginal poderia representar uma forma de

    oposio. Ao contrrio, recentemente, com o aumento da violncia imposto pela

    cruel lgica dos tracantes, deve-se ressaltar a ambigidade do termo: o marginal

    pode ser tanto o excludo quanto o criminoso, e at os dois simulta