a graça e a paz em tempos de dor e perseguição

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Atualidade Teológica ano X nº 22, janeiro/abril 2006 35 A graça e a paz em tempos de dor e perseguição , exegese de 1Ts 1,1-10 Isidoro Mazzarolo Introdução A Vila de Tessalônica não era apenas uma Vila, mas uma grande cidade no conjunto das metrópoles do império romano. Era a capital da Macedônia e estava situada sobre a via Ignacia, que ligava o mar Adriático ao Egeu, desde 146 a.C. e no império romano, recebeu o privilégio de cidade livre no ano de 44 a.C. Paulo chega a Tessalônica depois amargar a experiência da prisão em Filipos. Os judeus de Filipos deram ordens para sair da cidade e ele deixa Filipos acompanhado por Silas e Timóteo (At 16,40;17,1). Lucas estaria em Filipos (At 16,10) 1 , enquanto a comitiva segue com os outros três protagonis- tas Paulo, Silas e Timóteo (At 16,40). A igreja de Tessalônica era formada, na sua grande maioria, por gregos, dentre eles, muitas mulheres nobres (1Ts 1,9; At 17,4). Nela, os que haviam aderido ao cristianismo, se defrontavam com sádicos, perversos, homens da desordem que se alegravam com o sofrimento imposto aos inocentes, através de difamações, perjúrios e perseguições (1Ts 2,14; 3.1-5). Esses perseguidores e agitadores seriam os judeus da sinagoga, 1 Os estudiosos dos Atos dos Apóstolos, na sua grande maioria, sustentam que o estilo “nós” de At 16,10 revela a presença do redator (neste caso, Lucas) e a mudança em At 17,1 para a terceira pessoa “eles”, indicaria que Lucas ou o redator não segue o grupo. O estilo redacional “nós” retorna em At 20,13 quando o nosso redator está ao vivo junto com os fatos.

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Atualidade Teológica ano X nº 22, janeiro/abril 2006 35

A graça e a paz em tempos de dor e perseguição

, exegese de 1Ts 1,1-10

Isidoro Mazzarolo

Introdução

A Vila de Tessalônica não era apenas uma Vila, mas uma grande cidade no conjunto das metrópoles do império romano. Era a capital da Macedônia e estava situada sobre a via Ignacia, que ligava o mar Adriático ao Egeu, desde 146 a.C. e no império romano, recebeu o privilégio de cidade livre no ano de 44 a.C.

Paulo chega a Tessalônica depois amargar a experiência da prisão em Filipos. Os judeus de Filipos deram ordens para sair da cidade e ele deixa Filipos acompanhado por Silas e Timóteo (At 16,40;17,1). Lucas estaria em Filipos (At 16,10)1, enquanto a comitiva segue com os outros três protagonis-tas Paulo, Silas e Timóteo (At 16,40). A igreja de Tessalônica era formada, na sua grande maioria, por gregos, dentre eles, muitas mulheres nobres (1Ts 1,9; At 17,4). Nela, os que haviam aderido ao cristianismo, se defrontavam com sádicos, perversos, homens da desordem que se alegravam com o sofrimento imposto aos inocentes, através de difamações, perjúrios e perseguições (1Ts 2,14; 3.1-5). Esses perseguidores e agitadores seriam os judeus da sinagoga, 1 Os estudiosos dos Atos dos Apóstolos, na sua grande maioria, sustentam que o estilo “nós” de At 16,10 revela a presença do redator (neste caso, Lucas) e a mudança em At 17,1 para a terceira pessoa “eles”, indicaria que Lucas ou o redator não segue o grupo. O estilo redacional “nós” retorna em At 20,13 quando o nosso redator está ao vivo junto com os fatos.

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bem como bandidos contratados para praticar o mal, os quais obrigaram Paulo fugir também de Tessalônica (At 17,5-10).2

Estando em Atenas, Paulo continuava preocupado com os cristãos de Tessalônica, envia até eles Timóteo, o qual lhe traz notícias boas, não obstante o sofrimento (1Ts 3,1-5). Esta carta Paulo a escreve desde Corinto, quanto se juntam a ele, Silas e Timóteo, por volta do ano 51 (cf. At 18,5), trazendo as últimas informações da comunidade.

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O texto apresenta uma saudação, a princípio formal, visto que era um estilo epistolar comum, na época, fazer a apresentação do(s) emissor(es) e do(s) destinatário(s) 3. Depois da saudação os escritores habituavam fazer

2 A sensibilidade política do redator aponta para uma prática muito antiga de contratação de bandidos (pistoleiros) para atos de terror, assassinatos e violência, como profissionais da “” – sem lei, a fim de proteger os mandantes e os verdadeiramente responsáveis pelo mal.3 Cf. Bíblia do peregrino (1a. ed.), comentário a 1Ts 1,1.

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uma manifestação de sentimentos. Aqui Paulo faz uma oração de ação de graças, em tom afetuoso, expressão que acontece entre conhecidos ( ). Não obstante o remetente tenha um caráter coletivo {três} – Paulo, Silvano e Timóteo, o autor da carta é reconhecido como sendo unicamente o Apóstolo. A carta revela situações de sofrimento (v.6), mas também alegria por ter havido uma solidariedade, uma imitação ao exemplo do Apóstolo na conversão dos ídolos (v.9) e uma crença na libertação da condenação futura (v.10).

1. Contexto literário

A saudação de Paulo, em nome pessoal e de seus dois grandes auxi-liares se constitui na “visita” dele à comunidade. Eles sabiam as razões da sua partida brusca e precipitada, pois não podia pôr sua cabeça a premio diante dos agitadores contratados e protegidos pelas autoridades locais e pela sinagoga. Eles mesmos estavam experienciado, agora, no momento em que recebem a carta, parte dos sentimentos que Paulo havia experimentado quando começou evangelizar e teve que fugir para não morrer. A saudação é uma prece, uma ação de graças, na qual o Apóstolo não se preocupa tanto com os pequenos problemas existentes, mas parte do que é mais importante a fé e o testemunho dos tessalonicenses.

O capítulo 2,1-16, é o texto subseqüente, onde Paulo faz, na carta à comunidade, uma rápida memória dos acontecimentos de Filipos e os de Tessalônica, quando de sua passagem. Esta memória tem uma finalidade di-dática muito precisa: Os sofrimentos e perseguições dos tessalonicenses têm o mesmo valor e os mesmos objetivos do Apóstolo, ambos estão enraizados no Evangelho e nas profecias de Jesus: “Bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem, perseguirem e disserem todo o mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e encorajai-vos pois será grande vossa alegria nos céus. Da mesma forma que estão vos perseguindo, perseguiram os profetas que vieram antes de vós!” (Mt 5 11-12). Assim, para a delimitação do contexto literário da perícope 1,1-10, tomamos a ação graças que Paulo faz pela comunidade de Tessalônica (1,2) com a expressão , repetida em 2,13. Em 2,17 encontramos uma coordenada de modo que muda o contexto literário: – irmãos, separamo-nos de vós... Esta mudança de lugar e de situação nos permite delimitar o texto subseqüente em 2,16.

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2. Situação da Igreja de Tessalônica

A fundação da comunidade e seus problemas4

Em Tessalônica havia uma comunidade judaica bastante expressiva. Paulo, no seu método evangelizador, acredita que deve ir, primeiro, aos seus irmãos de sangue, pois eles tinham recebido uma parte da revelação e das pro-fecias messiânicas (o AT), assim ele, indiretamente, aplica o mandato de Jesus aos discípulos: “Não vos dirijais a países de pagãos, não entreis nas cidades de samaritanos, antes, dirigi-vos às ovelhas desgarradas da casa de Israel” (Mt 10,5b-6). Mesmo estando em terras de pagãos, Paulo opta primeiro pela sinagoga e nela anuncia o Cristo. É conveniente fazer memória que a presença judaica no império romano e mesmo fora dele era muito grande. Em todas as cidades médias e grandes havia sinagogas e com elas a influência judaica no meio social, político e religioso. Em Tessalônica ele tenta convencer os judeus sobre Jesus Cristo e o seu Evangelho durante três sábados (At 17,2) 5, alguns deles acolhem o Evangelho, juntamente com uma multidão de pagãos, mas a grande maioria rejeitou (At 17,4-10).

Friedrich interpreta o texto de Atos (17,4) como verdadeiro e único, sustentando que Paulo não pregou muito em Tessalônica por que ficou apenas três semanas (os três sábados que foi para a sinagoga.6 Kümmel7, fundando sua tese em Fl 4,16, afirma que Paulo esteve mais do que três semanas, mas não o tempo suficiente para solidificar o Evangelho, pois teve que fugir de lá, por

4 Na nota a 1Ts 1,1 a Bíblia do Peregrino (1a. ed), afirma ser Paulo o fundador da comunidade. Esta postura encontra alguma dificuldade por sabermos pouco desta comunidade antes de Pau-lo. Se a informação de At 17,2 é correta, em três semanas seria difícil colocar alicerces para uma comunidade. Pode-se aceitar Paulo como fundador, enquanto ele tenha sido o mentor, o mestre e o instrutor dos seus discípulos neste trabalho.5 O tempo de permanência em Tessalônica tem informações controvertidas. Enquanto Lucas, que já não está com a equipe, afirma que são três semanas, nas quais Paulo anuncia o Evangelho (At 17,2), dois outros textos indicam algo diferente. A primeira afirmação diferencial provém da própria carta que Paulo escreve alguns anos mais tarde aos Tessalonicenses; na qual diz que trabalhou muito para não ser pesado à comunidade (1Ts 2,9). Acredita-se que em três semanas ele não poderia ter dado grande testemunho de trabalho, nem ter expressado o sentimento de peso. A segunda afirmativa é encontrada na carta aos Filipenses (Fl 4,16) onde agradece a ajuda que recebeu, mais de uma vez enquanto estava em Tessalônica, e estava em necessidade. Estas afirmações apontam para uma estada maior do que três semanas. 6 FRIEDRICH, G. “Der Erste Breif nach die Thessalonicher”, in: Das Neue Testament Deutsch, Band 8, Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, 1985, p. 203-276, aqui p. 204.7 KÜMMEL, G, Einleitung im NT, p. 220, citado por Friedrich, op.cit, p. 204.

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causa da rebelião dos judeus. Dupont8 acredita que ele tenha ficado entre três oito meses, o que também cria dificuldades no roteiro geral de viagem. Por outro lado, para suscitar contestação dos judeus de Filipos, era preciso um certo tempo e com isso, seria difícil imaginar que em três semanas, os judeus percebessem a presença de uma persona non grata e iniciassem a perseguição. Paulo e Silas partem de noite para Beréia, mas os judeus de Tessalônica souberam que eles estavam lá, mandaram um grupo de agitadores e Paulo foi enviado pelos com-panheiros para Atenas, enquanto Silas se retém em Beréia e Timóteo continua em Tessalônica, encontrando-se os três em Atenas, mais tarde.

Os cristãos de Tessalônica sofriam a perseguição dos judeus como na Ju-déia (1Ts 2,14). O apóstolo revela uma longa experiência missionária (ainda que esta seja a 1a. Carta – Dupont,9). Ele expressa uma visão universal da salvação, em companhia de Silvano (Silas, At 15,10) e Timóteo (At 16,13). Enquanto a sinagoga procura obstruir o caminho dos discípulos cristãos, nem tudo era oposi-ção: alguns judeus, um grande número de gregos e muitas mulheres aristocratas uniam-se a Paulo e Silas (At 17,4). Não obstante o grande número de adeptos, a sinagoga interrompe o trabalho de Paulo: Cheios de inveja, os judeus recru-taram alguns vagabundos da rua, amotinaram o povo, perturbaram a ordem da cidade e se apresentaram na casa de Jasão, com a intenção de fazer Paulo e Silas comparecer diante da assembléia do povo. ...” (At 17,5-10).

A autenticidade da carta é aceita pela grande maioria dos estudiosos e o número dos que rejeitam ou duvidam é muito pequeno. De modo particular a 1Ts tem referências abundantes no período inicial do cristianismo como Inácio de Antioquia (II séc.), Pastor de Hermas (metade do II séc.), Policarpo (metade do II séc.) e outros. Outro elemento forte da autenticidade é que ambas 1Ts e 2Ts constam no cânon de Marcion (II séc) e no cânon de Muratori (próximo do final do II séc. – George/Grelot10 ). Clemente de Alexandria (215) e Irineu († 202) referem-se às duas cartas como sendo cartas usadas e conhecidas em todas as igrejas. Turrado afirma que é a primeira do epistolário Paulino, a primeira missiva do apostolado cristão no mundo grego e o mais típico tratado sobre a doutrina da escatologia, como se fosse a primeira etapa do apostolado e do pensamento do apóstolo sobre a ressurreição de Cristo e sua vinda gloriosa (cf. 1,10; 2,19; 3,13; 4,13-5,11).11

8 DUPONT, J. Lê Lettere di San Paolo, Tusculi, Edizione Paoline, 1978, 38.9 DUPONT, J. Lê Lettere di San Paolo, Tusculi, Edizione Paoline, 1978, 37.10 GEORGE, A., GRELOT, P. Les lettres apostoliques, l’oeuvre de Paul et autres épitres, v. II, Paris, Desclée, 1973, 41.11 TURRADO, L, A Bíblia comentada, Hechos de los apostoles y Epístolas paulinas, Madrid, 1965, p. 643.

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Alguns problemas sobre a autenticidade das cartas (Ipsis litteris) come-çam no final do séc. XIX com a escola de Tübingen, com a análise literária e as desconexões internas. Esta crítica encontrou seguidores e continuadores como Scott (1909) que acreditou ser obra de Timóteo, relacionando-as com 1Tm 1-3 e 2Tm 3. Esta tese foi contestada por Frame e Rigaux, que será mais tarde assumida por Kümmel12, mostrando as incongruências da crítica de Tübingen. Outros autores trabalham uma hipótese de composição ou, incorporação de quatro ou cinco bilhetes, em duas cartas.

3. O ambiente da Carta

É a primeira carta de Paulo. Por que ele escreve primeiro aos Tessalonicen-ses? O estilo epistolar segue um padrão, quase formal, dos cânones da época: A,... para B... deseja “X”: Paulo, Silvano e Timóteo à Igreja de Tessalônica: a paz e a graça. O escritor mostra que já conheceu a comunidade, já esteve por lá, conhece parte de suas vitórias, seus sofrimentos e também suas dificuldades (1,4).

O autor faz uma ação de graças pela firmeza com que os Tessalonicenses abraçaram e permaneceram firmes no Evangelho (repete depois uma segunda vez (2,13). Em contra-posição não pode fazer o mesmo com a sinagoga. A comunidade de Tessalônica é formada, na sua quase totalidade, por greco-romanos: alguns judeus, um grande número de gregos e muitas mulheres...(At 17,4). Alguns está em contra-posição a um grande número; as mulheres aristocratas estão em oposição às mulheres judias (dificilmente chegavam ser aristocratas, nem eram muitas nos lugares públicos – nas culturas semitas, ainda hoje, funciona um preceito: Deus ouve a oração da mulher em casa, por isso ela não precisa ir para a sinagoga ou mesquita = elas sempre são um número menor nos lugares públicos).

A Igreja de Tessalônica é a Igreja de Deus, não a de Paulo, Silas ou outro (1,1). Esta definição pode estar demitizando as tendências gregas de endeusar líderes ou personagens com poderes sobrenaturais. A experiência em Listra (At 14,8-21) pode ter ajudado a evitar desde logo possíveis confusões com mitos gregos. O que vai seguir depois (2,9; 3,4ss – o exemplo e as profecias das tribu-lações) fazem com que Paulo se coloque como modelo de trabalhador e muitos o imitaram. (Haverá também indisciplinados que ele vai advertir depois). Os judeus mataram o Senhor Jesus (2,15), e o sofrimento de Cristo se estende pelas gerações posteriores (no tempo de Jesus era o Sinédrio), agora é a sinagoga.

O clima da carta revela uma espécie de revisão, após a visita. O autor está próximo da comunidade, mostra ter informações seguras da situação, que não 12 Cf. KÜMMEL, G. “Das literarische und geschichtliche Problem des erstens Thessalonisch-erbriefes,”, op. cit. p. 213.

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parece ser muito diferente daquela que encontrou quando passou por lá. A parusia, um tema tratado mais adiante, parece ser o clímax da carta: O já e o ainda não. Há pessoas que crêem em uma parusia imediata, por isso não querem mais trabalhar; Há outras que se afadigam duplamente, porque, além de carregar o próprio fardo, arcam com os prejuízos dos indisciplinados (2,9; 3,3.6-7; 4,13-5,11).

4. Crítica textual

1,1- Encontramos duas inclusões: Depois de A inclusão de , A (alexandrino, 81; A segunda inclusão é depois da saudação, embasada na 2Ts 1,2 ... a, A, D, I (Washington), 33, ‘M’.

1,2 inclusão de , o que torna o texto repetitivo.... : o texto se apóia em (vgww = Wordsworth-White edition = vulgata quando difere da edição Clementina)

1,5. 1. Substituição de por D (Bezae); outra variante é a* ; 2. a segunda substituição: por ... uma segunda variante para o mesmo vocábulo é () P Wolfenbütel; 3 Uma omissão da preposição (pres. nas ediç. anteriores, .... E uma segunda omissão da mesma prep ....

1,7 Susbst de por (Ac sing/ Ac pl) modelo ou modelos concordando com o dativo plural

1,8 Omissão repetida diante de Macedônia; presente na edição anterior e muito atestada...; A segunda variante é a substituição de por

1,9 Subst de (de nós) por 1,10 Subs de permanecer, perseverar, sentido trans = espe-

rar; por ficar firme, ficar de pé à espera (de alguém, do inimigo...) Bauer, WzNT

- substituição de = gen diante de cons ( diante de vogal ) indica procedência (de, para fora de, ou em razão de...). . se constrói também com o Gen, com o sentido de motivo: em razão de; a respeito de, por causa de.

Do ponto de vista do estilo e do conteúdo, nenhuma variante é significativa e chegaria a alterar o conteúdo do texto, se usada como normal. Assim o texto conserva o conteúdo mesmo se aplicadas algumas opções alternativas.

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5. Crítica literária

A perícope em estudo é uma saudação de abertura de um texto maior. O estilo é afetuoso, fraterno e dócil. A abertura da carta tem um tom de conheci-mento, de convivência e de mútua estima. Há elementos que indicam um bom relacionamento, anterior. A saudação do v.1 seria uma fórmula estilizada dentro dos grandes cânones da época (B do Peregrino, 1a. comentário ao v.1). As car-tas ou missivas oficiais tinham sempre o remetente e o destinatário explícitos e também o motivo ou os desejos do remetente. Neste caso Paulo, Silvano (At 15,27.32 = Silas) e Timóteo estão junto com Paulo, em sintonia com o espírito do Apóstolo, do outro está a comunidade de Tessalônica, não obstante o autor seja Paulo. O conteúdo da saudação não é formal, no estilo helenístico, ainda que a estrutura possa obedecer aos padrões convencionais. O conteúdo desta saudação está repleto de uma terminologia cristã: A Igreja que está em Tessalônica é a Igreja de Deus e do Senhor Jesus Cristo. O estilo literário é refinado, mas deixa explícita uma compreensão de Igreja, de comunidade. O termo indica a reunião, a congregação das pessoas, a comunidade com o objetivo de estar em torno do Pai e Jesus Cristo. Etimologicamente pode significar uma convocação, composta de = “convocação de” e com isso decorrem os diferentes sentidos, como reunião, convocação, assembléia, igreja.14 Rollof afirma que há uma diferença específica na expressão (1Ts 1,1, como exem-plo) de outros significados, como “kahal”do hebraico ou do grego profano. O termo igreja de Deus refere-se a uma reunião com uma finalidade e característica determinada: esta reunião é dos que estão juntos por causa de Jesus Cristo e do Evangelho, assim, se reúnem em nome de Jesus, na igreja de Deus.15

O estilo de saudação se repete em 2Ts 1,1 (cf. 1Cor 1,1; 2Cor 1,1). Ainda que seja Paulo, de seu próprio punho que está escrevendo, o fato de referir o nome de seus companheiros, na hora da composição da carta, indica que estes estão cientes da missiva e concordam com o que está escrito.

O desejo da indica algo mais do que um simples estar ai, saber notícias, comunicar novidades. A graça e a paz, em um clima de sofrimento, pode ser mais do que um mero desejo, é um imperativo, uma necessidade.

13 O dicionário moderno de grego coloca como definição de : reunião de povo, dos magistrados e o lugar onde eles se reúnem, a congregação dos cristãos... , Dimitricos, , 1969.14 ROLLOF, J., “”, in: BALZ, H, SCHNEIDER, G, (org), EWNT, Band I, Stuttgart, Kohlhammer, 1980.15 ROLLOF, J. Op.cit.

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O vocabulário desta saudação é próprio, usando termos muito signifi-cativos para o contexto: graça, paz, ação de graças, amor, permanecer, oração, Espírito Santo, Palavra, sofrimento, alegria e espera... Há uma intimidade e empatia que transpõe a distância: o tom revela uma proximidade antropológica, uma sintonia de sentimentos humanos, uma comunhão de experiências e uma fé viva que se integram às razões divinas da esperança. O uso da expressão (irmãos, v. 4), (vós, meus imitadores, v. 6) revela um tom fraterno, uma continuidade e um entendimento do Evangelho que lhes foi anunciado.

6. As motivações e o endereço da Carta

“De Paulo, Silvano e Timóteo à igreja de Tessalônica, em Deus Pai e em Jesus Cristo”.

Paulo (pequeno) segundo nome do apóstolo, a partir de At 13,13 , pos-sível contraposição com Saul (rei, nobre...), autor de 14 escritos (atribuição), mas de seis cartas autênticas (1,2 Ts; 1,2 Cor; Gl, Rm). Silvano (cf. 2Ts 1,1; 2Cor 1,19; Silas At 15,22.27; 16,19.25.29) era também um cidadão romano.16 Silas vai aparecer, mais tarde, ligado a Pedro (1Pd 5,12). Silas era um mem-bro da Igreja de Jerusalém (At 15,22.27.32), designado pela comunidade de Jerusalém a ser o leitor, juntamente com Judas, da carta de homologação das decisões conciliares sobre a circuncisão e as liberações das prescrições judaicas aos pagãos. Havia também um outro personagem chamado Silvano (Silvus, Silvius), mas não atestado no NT.

Timóteo é um nativo da comunidade de Listra, na Província da Galácia, filho de pai pagão e mãe judia, chamada Eunice, com bom conhecimento das Escrituras (2Tm 1,5; 3,14). Na segunda viagem, Paulo passa por Listra (At 16,3), Paulo circuncida Timóteo. Ele se junta a Paulo no caminho para Atenas, torna-se um certo diplomata de Paulo diante das comunidades da Macedônia (At 19,22; Fl 2,19); em Tessalônica (1Ts 3,2); em Corinto (1Cor 4,17), em Éfeso (1Tm 1,3). Timóteo é nomeado como colaborador em sete cartas (excluídas as 2 de Tm), com muita probabilidade, além de um grande evangelizador, ele é mestre e formador de discípulos (cf. 1Tm 4,16; 2Tm 4,5.17 Timóteo e Silas podem ajudar na data e na determinação provável do lugar da Carta. O intróito apresenta Timóteo e Silas, juntamente com Paulo (1,1). A carta, com estas in- 16 Ilustrated dIctIonary and concordance, London, Macmillan Publishing Company, 1986.17 Illustrated dIctIonary and concordance of BIBle, London, Macmillan Publishing Com-pany, 1986.

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formações, teria sido escrita desde Corinto, por volta do ano 51, quando Silas e Timóteo, procedentes da Macedônia se encontram com Paulo em Corinto (At 18,5) e lhe dão as notícias. Esta informação não fecha com a própria carta, pois em 1Ts 3,1, Paulo envia Timóteo para Tessalônica, estando em Atenas, e em 1Ts 3,6, Timóteo está retornando para encontrar Paulo, em Corinto, com as notícias. Pode-se também entender que em 1Ts 3,1, seja Timóteo o portador de uma carta, juntamente com a missão de confirmar os irmãos na fé, em vir-tude de Satanás (2,18) e o Tentador (3,5) terem impedido Paulo de fazer esta volta dele junto à comunidade. Os relatos de At 18,5 e 1Ts 3,1 poderiam estar referindo-se a missões diferenciadas de Timóteo à comunidade de Tessalônica. Teríamos a junção de dois bilhetes? “Paulo ainda guarda vivas na memória as experiências de convivência entre os tessalonicenses. A carta não poderia ser de outro lugar e data porque mais tarde (1Pd 5,12) Silas não estaria mais com Paulo, mas acompanhando Pedro”18 (Teriam feito uma troca: Silas com Pedro e João Marcos com Paulo? – “Somente Lucas está comigo, toma contigo Marcos e traze-o, pois me é útil no ministério” 2Tm 4,11 – “Saúdam-vos Aristarco, meu companheiro de prisão e Marcos, primo de Barnabé...” Cl 4,10; cf Fm 24).

A igreja de Tessalônica é modelo ( 1,7) para toda a Macedônia e Acaia, mas precisa ser confortada na fé e na unidade. A expressão aparece 217 vezes no NT. No texto, a assembléia indica os cristãos que estão em Tessalônica, essas pessoas congregadas ao redor do Evangelho (At 5,11)19. Essa comunidade está indica, ao menos na construção da frase, uma unidade da natureza do Pai e do Filho na diversidade de pessoas. No tratado Tripartite gnóstico encontramos uma tese semelhante sobre a relação Pai e Filho. Em primeiro lugar o Pai é único, mas só é Pai por que gerou o Filho. O Filho, na qualidade de gerado, assume a natureza do Pai. “O Filho, em conseqüên-cia, é Filho do Pai. A tensão de conhecimento alcançado no Pensamento paterno é vontade e conhecimento indistingüíveis. O Filho, assim interpretado, coexiste eternamente com o Pai e é resultado de sua própria concepção em sua potência de querer e conhecer. O Filho será, portanto, tão necessário, como diferente na relação com o Pai, assim como seu primogênito e único, Pai e Filho, no sentido próprio e na correlação indissociável”.20

No aspecto pastoral, Paulo estaria, possivelmente, exortando aos Tessaloni-censes a construir uma comunidade sólida em torno de Deus Pai e Jesus Cristo e não ao redor dos seus líderes, dos seus mestres, filósofos e guias. No mundo grego os

18 TURRADO, L, A Bíblia comentada, v.VI, Madrid, BAC, 1965, p. 641. 19 TURRADO, L, A Bíblia comentada, v.VI, Madrid, BAC, 1965, p. 643.20 Peñero, Antônio et alii, Textos gnósticos, Biblioteca de Nag Hammadi I, Tratados filosóficos y cosmológicos, 57,8-59,38, Madrid, Editorial Trotta, 2000, p. 135.

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alunos se inscreviam nas escolas de fulano, beltrano (Sócrates, Platão, Epicuro...). A comunidade de Corinto tinha alguns problemas desta natureza quando os fiéis se deixavam levar pelas simpatias dos pregadores e perdiam o senso da unidade em torno de Cristo Jesus (1Cor 1,10-16). Esta comunidade de cristãos precisa ter a consciência de ser diferente da assembléia política dos cidadãos gregos que se reúne para tratar assuntos de negócios, política e outros. Na referência de Barbaglio, G, a comunidade cristã tem características originalíssimas: “Indica união, pertença e comunhão de vida, em uma palavra, conjunto daquelas profundas experiências que ligam pessoalmente os fiéis a Deus e a Cristo”.21

Outro aspecto relevante da preocupação pastoral e teológica de Paulo é que ele coloca a paternidade na figura de Deus (Deus, Pai) e do senhorio em Jesus Cristo. Em primeiro lugar, Paulo aplica um conceito jeusuânico de Deus, pois no judaísmo, Deus é grande, majestoso, libertador, mas intocável, invisível e até terrível (cf. Ex 19). Paulo segue de perto os ensinamentos de Jesus a respeito do Pai. Jesus não é apenas o Filho, o qual poderia ser confundido como um simples ser humano superdotado, mas ele é Senhor, uma afirmação implícita sobre a res-surreição, a autoridade do Evangelho e a certeza da verdade divina. Enquanto ele fala do Deus Pai, está confirmando as palavras do próprio Filho que o chamava de Abbá (Mc 14,36). No diálogo com Maria Madalena, junto à sepultura, no jardim onde fora sepultado, Jesus impede que ela o detenha, dizendo: “Subo ao meu Pai e vosso Pai, ao meu Deus e vosso Deus” (Jo 20,17). E Maria de Magdala corre aos discípulos e lhe diz: “Vi o Senhor!” (Jo 20,18). Maria não diz que encontrou Jesus, o amigo, o crucificado, mas o Senhor. Assim a carta vai à Igreja dos Tes-salonicenses, em nome de Deus Pai (nosso) e no Senhor Jesus Cristo.

6.1 A Paz a vós!

Esta saudação está na trilha das saudações antigas, na expressão hebraica Shalôm, que significa paz, saúde, bem-estar... Nos anúncios proféticos a paz significa a justiça, a recuperação da mística libertadora do Êxodo. A paz como sinônimo do compromisso com YHWH que resgatou o povo da escravidão para conceder-lhe a libertação: “Não perverterás o direito do estrangeiro e do órfão, nem tomarás como penhor a roupa da viúva. Lembra-te que foste escravo na terra do Egito e YHWH teu Deus de lá te resgatou. É por isso que eu te ordeno agir deste modo” (Dt 24,17-18).22

21 Barbaglio, G, As cartas de Paulo, I, (or. It., 1980), São Paulo, Loyola, 1989, p. 74, citando Neirynk, F. “La dotrina di Paolo su ‘Cristo in noi’ – noi in Cristo’”, Com 5(1969) 2025-2038.22 Na perspectiva profética é indubitável a relação de paz com o bem estar proporcionado pela libertação do Egito e que este procedimento deveria ser a Lei maior na terra da promessa e toda

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O termo Shalôm aparece mais de 250 vezes em 213 versículos.23 Shalôm significa paz, saúde, sanidade, integridade e prosperidade, particular e públi-ca24. A paz que alguém pode experienciar é o estado de vida de alguém posto a salvo, incólume, próspero e frutuoso sem nenhum perigo (1Sm 20,7.21; 2Sm 18,29). A paz é o bem na prosperidade, na segurança pública e na administração justa de todas as coisas (Nm 6,26; Dt 23,7). A paz é o repúdio à inimizade, à violência e à guerra (Ecl 3,8; Mq 3,5). A paz é busca da amizade, da estima e bem querer com o próximo (Sl 41,10; Jr 20,10; 38,22).

A paz é a perfeição, a completude do todo ao redor do ser.25 Aquele que tem a consciência serena de ter procedido na justiça pode também pedir o sono tranqüilo e abençoado por YHWH (Sl 4,9). Em Gn 15,15 estão também os desejos de despedida da vida, de descanso definitivo e na paz de quem muito lutou por ela. A paz, muitas vezes, é a luta para o estabelecimento das justas medidas nas relações humanas (Jr 20,10; cf. 38,22). A paz está ligada à relação direta com Deus e sua aliança (Is 54,10). A LXX traduz o termo shalôm por (salvar, paz, perfeição).

Na linguagem grega, procede do dórico e compreende a perfeita harmonia dos indivíduos e dos povos.26 No NT a expressão é encontrada 1 vez em Mc, 4 em Mt, 14 em Lc, 6 em Jo, 10 em Rm, 8 em Ef, 7 no Ap e 26 nos outros escritos paulinos e nas cartas de João. A paz é uma saudação que transcende ao mero eco da voz. Quando Paulo escreve sua saudação ele quer que os irmãos vivam a fraternidade, a justiça e a unidade, libertos das calúnias, opressões e perseguições injustas.

A paz, na pedagogia de Jesus, abre uma nova Era à luz de Lc 4,19-18: O Espírito do Senhor está sobre mim, ele me ungiu para abrir os olhos aos cegos, curar os enfermos e libertar os cativos. Essa plataforma política não agrada às autoridades do Sinédrio e de Herodes. Esse programa não contava com o aval legal, mas cada dia mais havia adeptos e simpatizantes. Iniciando sua programação nas periferias, Jesus mostrava que a paz aconteceria pela pedagogia da inclusão de pobres, doentes, estrangeiros e excluídos. A paz,

a forma de escravidão seria um adultério contra Yhwh porque não prolongaria este compromis-so, traindo a longa trajetória do povo no deserto e traindo os ensinamentos de Deus para seguir os ensinamentos próprios (Cf Am 5,18-6,14; 8,4-8; Os 1,2-2,25; 4,1-8; 1Sm 8,1-20; Is 1,10-20; 5,1-8; 10,1-2; Mq 1-3)23 Lloyd, G.C, “Shalôm”, in: Dicionário Internacional de Teologia do AT, São Paulo, Vida Nova, 1998.24 Zorrel, F, Lexicon Hebraicum et Aramaicum Veteris Testamenti, Roma, PIB, 1968.25 Brown, Driver, Briggs, Hebrew and English Lexicon of the Old Testament, Lafayette, Indiana, APXA, 1981.26, Dimitrakos, 1969.

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no programa missionário de Jesus, começa no sermão da Montanha (Mt 5,1), quando ao subir o monte, não exclui ninguém e permite que todos os que con-seguem, subam, no sentido oposto do acontecido com a atitude de Moisés (Ex 19). A paz é a felicidade perfeita. A verdadeira se dá na proposta das Bem-aventuranças (Mt 5,2-12), na proposta invertida da lógica da exclusão dos sistemas hipócritas da época.

A paz, no envio dos discípulos, não significava descanso, repouso, tranqüilidade, mas luta, dificuldades, privações e sofrimentos. Enviados como cordeiros no meio de lobos, restava-lhes a dura missão de anunciar a paz em cada casa que entrassem (Lc 10,3-6). Lucas teria unido o conceito de shalôm do hebraico com o significado de salvação na terminologia grega da Epifania e também com a aplicação dos conceitos imperiais da paz.27 Esta afirmativa não deve ter muita verdade, pois a obra lucana não se inspira em categorias imperiais e a paz do Reino de Deus não está alicerçada na ausência da guerra, e sim na proclamação da misericórida e da justiça (cf. o bom samaritano Lc 10,25-37). A é um projeto político-pastoral que se contrapõe à postura da prepotência ou do mais forte (Lc 22,24-30).

O entendimento da proposta da pode ser visto de modo mais claro no envio dos discípulos: 1. “Eis que eu vos envio como ovelhas no meio de lobos” (Lc 10,3); 2. “Ao entrardes em uma casa, dizei primeiro: Paz a esta casa!” (Lc 10,5). Retomando a primeira advertência, entendemos que a paz do Reino a ser carregada e anunciada pelos discípulos de Jesus encontrará uma forte resistência, oposição e rejeição do mundo, pois só esta perseguição pode caracterizar um cordeiro entre lobos. Se no lado oposto dos cordeiros estão lobos, as propostas se tornam antagônicas e os lobos farão todo o possível para prejudicar ou eliminar os cordeiros (cf. Zc 13,7). Anunciar a paz num contexto de ódio, vingança ou perseguição será a missão do discípulo (cf. Mt 5,11-12). Esta não é uma realidade presente, mas uma utopia a ser construída: “Bem-aventurados os construtores da paz!” (Mt 5,9). Os que constroem a paz estão envolvidos em labutas, sacrifícios, renúncias e jejuns (Is 58,5-11). A paz pode se traduzir num permanente estado de tensão, de receios e perigos (cf. 2Cor 11,23-30 = açoites, naufrágios, fome, frio, etc.).

Olhando o texto de João 20,19-28 podemos sintetizar a temática da paz nos três anúncios feitos por Jesus:

a. A paz para vencer o medo (Jo 20,19)– Os discípulos estavam reunidos a portas fechadadas por medo dos judeus e Jesus se faz presente e lhes diz: . Esta paz é a superação de temores, receios, inseguranças.

27 Balz, H, Scheneider, G. Exegetisches Wörterbuch zum Neuen Testament, Band I, Stuttgart, Kkohlhammer, 1980.

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Esta paz é uma força interior, uma força psíquica e espiritual que assegura um estado de consciência sereno. O medo é vencido pela força do espírito que pode ser chamado também um estado psicológico de harmonia do interior que assegura uma força de discernimento e decisão exterior.

b. O segundo aspecto da paz é a serenidade de espírito para poder crer (Jo 20,26). Tomé estava descrente porque não se encontrava com o grupo quando Jesus apareceu da primeira vez. O fato de não estar com o grupo pode revelar que Tomé já estava se afastando e sendo tomado pelo desânimo da morte do Mestre. Esse desencanto fez com que ele já procurasse uma alternativa pessoal de solução, por isso não estava sempre com os outros. E Jesus diz também a Tomé: A paz esteja contigo, prova, vê e não sejas incrédulo. A paz se torna imperativa para crer. Não é possível assumir uma posição de crente verdadeiro em meio a conflitos psicológicos, a distúrbios mentais ou a crises espirituais. Essa paz é a harmonia do ser e do espírito que permite olhar mais longe e crer.

c. A paz humana e a força do Espírito para poder anunciar e profetizar (Jo 20,21). Depois do primeiro anúncio, Jesus faz o segundo e sopra sobre eles o Espírito Santo. Este sopro, à luz de Jo 14,26-27; 15,26; 16,7-14) é a harmonização entre a psichê e o pneýma que transforma o medo, a insegurança e a incapacidade em vigor, testemunho e missão. Esta paz é alcançada pela comunhão com o Espírito Santo que faz uma recapitulação das Escrituras, uma reconstituição do testemunho e ensinamentos de Jesus e transforma o discípulo em outro Cristo, capaz de fazer da vida dele um testemunho autêntico do Mestre (Gl 2,20): “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim. Não invalido a graça de Deus, porque, se é pela Lei que vem a justiça, então Cristo morreu em vão!”

6.2 A vós a graça

A (graça) é a irmã da paz, é a outra perna deste “corpo” revestido de “dons”. O discípulo tem um compromisso primário de estar com o Mestre, a fim de aprende dele e com ele a dinâmica do discipulado e as instruções para poder curar e expulsar demônios (Mc 3,13-15). O Evangelho é inteligência, instrução, presença do Espírito, mas também testemunho da graça, daquilo que foi recebido de “mão beijada”. A graça () é traduzida para o hebraico como

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ds{x.28 A definição no dicionário grego de como algo que é experienciado como bom, algo que se faz sentir como plenitude ou plenificação29. O BDB30 traduz ds{x como bondade, cordialidade e gratuidade.O homem que possui a ds{x é um homem piedoso, bom, gracioso. A ds{x pode ser fruto da instrução, da aprendizagem. Ela é a atitude em favor do necessitado e do miserável (Pr 20,28; Jó 6,14). A expressão tem um sentido mais específico que ds{x. Enquanto a ds{x tem um sentido, no grego, de que pode ser entendido como compaixão, favor, socorro ou misericórdia (Os 2,21; 6,6; Mt 9,13; 12,7). A misericórdia (cor – miserus) é a ação de um coração despojado em favor de alguém necessitado, carente. Compreende-se porque o grego interpreta a ds{x com diferentes terminologias, pois os vocábulos gregos são mais abundantes e distinguem as funções, ora como misericórdia (Os 6,6), ora como amor (Os 2,21) ou com outro termo como compaixão, ternura, graça.

A aparece 156 vezes no NT, e nos evangelhos aparece 8 em Lucas e 4 em João31. O sentido não-religioso do termo significa algo concreto que alguém recebe de outrem, um presente, um favor especial, uma cura sem mérito. Já para Aristóteles a graça não é salário ou pagamento.32No conceito profético (AT) a é a ação de Deus que vem em favor do povo, a libertação e o resgate, mesmo com os pecados, traições ou o adultério (cf. Os 4,4-8). Em Lucas 4,22 entende-se a visita de Jesus como o anúncio de uma Era de graça, de amor, per-dão, curas e restaurações. A graça é também dom (1Pd 4,10) que alguém recebe para colocar a serviço da comunidade (1Pd 4,9; Mt 25,14-30; Lc 19,12-27). A graça pode ser entendida como salvar alguém (2,Tm 1,9; libertar ou perdoar os pecados (Ef 1,7). A graça está também ligada à fé (Rm 5,2) que permite entrar na comunhão e na experiência de Deus mais profunda. A saudação de Paulo e seus companheiros à Igreja de Tessalônica é uma forma de saudação com ressonância litúrgica usada pelas comunidades cristãs. Esta é mais do que uma simples saudação, pode-se defini-la como bênção33. Esta fórmula estereotipada de saudação pode encontrar respaldo no ritual de bênção (Nm 6,25-26): “O Senhor faça resplandecer sobre ti a sua face e te agracie34! O Senhor te mostre

28 DELYTZ, P. (Bêrit hadashah) – tradução hebraica do NT, Soc. Bíblica de Israel.29 neôn orthographIkon léxIcon.30 BDB = Abreviatura de Brown, Driver, Briggs, Hebrew and English Lexicon of the Old Testa-ment, Lafayette, Indiana, APXA, 1981.31 BERGER, K. “”, in; BALZ, et alii. Exegetisches Wöerterbuch zum NT, B.III, Stuttgart, Kohlhammer, 1983.32 BERGER, K. “”, in; BALZ, et alii. Exegetisches Wöerterbuch zum NT, B.III, Stuttgart, Kohlhammer, 1983.33 BARBAGLIO, G., op.cit, p. 77.34 O termo usado nesta saudação não é “hesed”, mas “hanan”, que pode ser interpretado como

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a sua faça e dê a sua paz!” A graça e a paz, no epistolário Paulino, podem ser vistos como a graça de Deus a serviço do perdão dos pecados, a reconciliação dos corações e o anúncio de tempos messiânicos, onde o “lobo e o cordeiro” ou a “criança e a víbora”... pudessem conviver na paz (Is 11,6-9).

6.3 A ação de graças - : ponto de chegada e de partida 1,2

A primeira palavra, depois da saudação, revela o tom positivo da carta. Paulo está muito contente com as notícias que recebe, pois teve que fugir de Tessalônica em virtude da perseguição dos judeus (At 17,5.10), marchando para Beréia, juntamente com Silas e de lá para Atenas. As notícias sobre Tes-salônica são trazidas por Timóteo (1Ts 3,1-6), que é enviado para evangelizar e confirmar na fé os irmãos desta comunidade. É Timóteo, que neste momento se encontra com Paulo e Silas (1Ts 1,1) que relata a situação desta igreja. Por outro lado, o próprio Paulo, quis retornar para Tessalônica, mas Satanás o impediu (1Ts 2,18).

A expressão (1Ts 1,2) significa uma ação de gra-ças, não simplesmente um obrigado ou louvor como interpreta Turrado35, mas uma ação de graças por algo concreto (uma graça) que aconteceu anteriormente à carta. Os tessalonicenses demonstraram uma fé adulta, concreta, engajada em meio a dificuldades e perturbações, e esse testemunho do Evangelho é uma graça para todos os habitantes da Macedônia e da Acaia (1Ts 1,7). Este é um dos motivos para dar graças. É mister distinguir o verbo “eucharisteô” do verbo “eulogeô”. Um obrigado, um agradecimento, uma expressão de louvor é dada pela palavra, em razão da palavra ou do discurso. A Eucaristia envolve a ação, um fato ou algo semelhante sobre o qual e por causa do qual se rende graças. No momento da Eucharistia (Lc 22,17.19) Jesus faz a sua ação de graças, não apenas sobre as espécies de pão e vinho, mas com toda a missão. A razão desta Eucharistia não são o pão e o vinho, mas a missão, a qual nestas espécies, vai receber o sentido de Nova Aliança.36 Na Eucharistia de Jesus está a sua páscoa, o seu “trânsito” para o Pai, mas ele retoma toda a sua vida, quer nos aspectos teóricos dos ensinamentos, quer nos aspectos práticos das curas e sinais. A páscoa de Jesus, como Eucharistia, só encontra sentido na vida e no todo que antecede ao momento em que ele se reúne com os discípulos para a

um sinônimo, ainda que distinto. A LXX traduz com o termo. A Vulgata segue o texto grego: “Ostendad Dominus faciem suam tibi et misereatur tui”. 35 TURRADO, L., op. cit, p. 641.36 MAZZAROLO, I. A Eucaristia memorial da Nova Aliança, continuidade e rupturas, São Paulo, Paulus, 1999, esp. pp. 146-158.

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Ceia e nela estabelece a Aliança. Esta Ceia, como memorial de sua vida, ação, ensinamentos e práxis alicerça a sua ação de graças.37

Quais seriam os motivos desta ação de graças? Nesta perícope, a ação de graças é dada em virtude da acolhida da Palavra pregada por Paulo e outros, mesmo no meio de grandes tribulações e sofrimentos (1Ts 1,6), o testemunho que os tessalonicenses estavam dando para toda a Macedônia e a Acaia (1Ts 1,7) e a conversão das práticas idolátricas.

1. O testemunho do Evangelho entre tribulações torna-se um contributo real para a edificação das novas comunidades e um auxílio concreto que eles dão aos mestres (como Paulo, Timóteo, Silas e outros).

2. A acolhida que a comunidade deu a Paulo e seus companheiros por ocasião de sua passagem pela comunidade, defendendo-o dos inimigos, protegendo e assumindo perigos (At 17,6 – Não encontrando Paulo, os judeus prendem Jasão e alguns de seus irmãos sob a acusação de serem contra o imperador) por estarem envolvidos com estas pessoas de “má conduta” que eram Paulo e seus companheiros, era uma graça e bênção do Evangelho.

3. A conversão das práticas idolátricas para abraçar o Evangelho (1Ts 1,9) revela uma mudança de comportamento e de filosofia de vida.

A ação de graças é a Deus, ele é a razão da missão, do encantamento e da opção pelo Evangelho. A Igreja de Tessalônica está em Deus, Pai e no Senhor Jesus Cristo (1,1). Deus, que é Pai, é também o Criador de todas as coisas e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo (Ef 1,3). Aqui, no entanto, Paulo coloca Deus Pai e Jesus Cristo na mesma linha, com a mesma preposição, expressando de algum modo, em que pese numa fórmula literária, a unidade da natureza divina na diversidade de pessoas.38 O Apóstolo não agradece aos Tessalonicenses, mas 37 MAZZAROLO, I, A Eucaristia memorial, p. 154: “Os dons da Criação (pão, vinho, trigo e uva) estão para todos de forma indistinta. A participação a eles não pode ser discriminatória, tampouco solitária. A Eucaristia retoma a Ceia;ao que é um ato privilegiado da comunhão de Deus com o cosmos e as criaturas. Aqui notamos a peculiaridade de Lucas pondo em relevo a dupla ação de graças de Jesus (Lc 22,17.19) neste momento de despedida: ele não apenas deu graças com a sua vida, mas convidou os seus para participarem dela. O pão e o vinho, mais do que simples símbolos do alimento, são, na sua concretude, a melhor expressão a vida e da subsistência e com muita propriedade são elementos que justificam a gratidão: tendo tomado o cálice, deu graças... No exercício do repartir e distribuir, o Mestre vai mostrando aos seus a importância da diaconia, dos ministérios, da contribuição de diferentes elementos, e acima de tudo, do romper do pão da autoridade, no exercício do poder...”38 TURRADO, L, Biblia comentada, v.VI, Madrid, BAC, 1965, p. 643, discute até que ponto se pode interpretar essa união do Pai com o Filho a partir da preposição “en”. Essa união da igreja de Tessalônica com o Pai em Jesus Cristo se dá na fé e na caridade ou acontece na fundação da

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a Deus, pois tudo o que possa ter acontecido de bom em Tessalônica, é obra da graça e da bênção divina, evidentemente, com a participação de cada um e de todos os membros desta comunidade. A idéia de estar diante de Deus é clara para o Apóstolo, expressão que ocorre trinta e quatro vezes nas duas cartas. Esta postura de Paulo na colocação de Deus acima de tudo e todos torna-se uma doutrina paulina sobre Deus. No discurso do Areópago enfatiza a teologia do Senhorio absoluto de Deus como o feitor do céu, da terra e todas as criaturas. Em Deus vivemos, nos movemos e somos criaturas dele (At 17,24-28). Nesta saudação como ação de graças pode estar também uma tese sobre a unidade como o próprio Jesus vivia e transmitia: “Eu neles, Tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e para que o mundo reconheça que Tu me enviaste e os amaste como amaste a mim” (Jo 17,23). Esta unidade foi uma grande preocu-pação manifestada e trabalhada na comunidade de Corinto – cf. 1Cor 1-3.

A expressão adverbial (sempre, todo o tempo, permanentemen-te) indica como Paulo não esqueceu as situações de sofrimento dos Tessalo-nicenses. Eles estariam, no momento da carta, numa situação semelhante ou talvez pior daquela que estavam quando ele foi expulso de lá. A perseguição se tornara uma bem-aventurança, mas os tessalonicenses testemunhavam a vida e o Evangelho, não obstante essas circunstâncias. Todos são dignos desta gra-tidão, - a respeito de todos vós, mesmo que alguns membros da comunidade sejam fracos, negligentes (1Ts 5,13-15) e outros preguiçosos e não querem trabalhar (2Ts 3,10). Para estes, uma solução simples lhes é dada: Quem não quer trabalhar, também não deve comer (2Ts 3,10). Paulo usa um argumento genérico ao usar os termos “sempre” e “todos”.

Nem todos os tessalonicenses eram anjos, visto que havia indisciplinados, fracos, pusilânimes e outros (1Ts 5,14), mas Paulo não faz julgamentos particu-larizados. Sobre tudo e todos ele eleva sua prece e com eles uma ação de graças. A gratidão é o primeiro sentimento que o Apostolo manifesta diante do sucesso da missão que é maior do que as pequenas dificuldades que possam surgir.

6.4 A obra da fé, o esforço do amor e a perseverança da vossa esperança

Na comunidade de Tassalônica há um esforço muito grande para que a nova religião seja conhecida, difundida e vivida. O batismo no Espírito Santo

igreja de Tessalônica tendo como causa eficiente o Pai e Jesus Cristo? Turrado acredita que a interpretação deva ser como em outros textos paulinos, nos quais nós “somos e nos movemos em Deus” (At 17,28).

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proclama a fé com vigor e compromisso. Esta comunidade parece conhecer na prática o que era ter fé, como encontramos na carta de Tiago: “Meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem obras, de que lhe adiante isso? Por acaso poderá salva-lo?... Tu tens fé e eu tenho as obras. Mostra-me a tua fé sem as obras e eu te mostrarei a minha fé pelas obras” (Tg 2,14.18b).

a. A ergou tês pisteôs (a obra da fé) é fundamental para entender a ação de graças a respeito da comunidade, mas também para entender toda a teologia cristã. Não há fé sem obras. A fé sem obras é uma teoria, uma ideologia ou uma filosofia esotérica. A obra da fé corresponde às atividades práticas da diaconia e dos serviços que acontecem solidificando a parte teórica do ensinamento. Paulo tem conhecimentos destes fatos pelas notícias trazidas por Timóteo (1Ts 3,6; At 18,5). A obra da fé desta comunidade começou, em relação a Paulo, com a sua acolhida, proteção e até assumir a perseguição por ter dado cobertura, como acontece com Jasão e seus irmãos (At 17,5-6). Os cristãos de Tessalô-nica colocam em prática os mesmos princípios dos cristãos de Jerusalém (At 2,42-47) e se preocupam com as necessidades de cada um como os primeiros diáconos (At 6,1-7). A obra da fé corresponderia, segundo Turrado, às duras penas que estes passavam diante da oposição e perseguição por estarem no caminho do Evangelho.39

b. O kopou tês ágápês (o “preço” do amor) – literalmente “pancada, golpe, ferimento...”40 No sentido sociológico do termo ele passa a ser a fadiga, o trabalho árduo, o esforço para fazer acontecer ou para materializar o amor. Todo o trabalho missionário autêntico arca com um ônus decorrente da oposição e resistência (cf. 1Cor 3,8; 2Cor 10,15; 1Ts 3,5). A proposta do amor (agápê) pode encontrar um terreno próprio e difundir-se sem muitas dificuldades, mas ela poderá encontrar resistência, perseguição e até um ódio sem motivos (Jo 15,25b). Não é muito correto traduzir “agápê” por caridade, é melhor traduzi-lo por “amor”, pois enquanto a caridade pode ser entendida como um gesto concreto, o amor pode ser entendido como a ação e a razão da ação. O agápê é mais que caridade. Quem ama tem razões profundas e age movido por essas convicções, portanto, quando age está inebriado de motivações, e, mesmo quando não pode agir, quando for impedido de expressar ou manifestar con-cretamente suas motivações. Estes sentimentos vivem nele.

39 TURRADO, L. “1Tessalonicenses”, A Bíblia comentada, BAC, v. VI, p. 644.40 FENDRICH, H, “kópos”, Exegetisches Wörterbuch zum NT, Stuttgart, Kohlhammer, 1981.

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O agápê tem como sinônimos, no Dicionário Grego,41 “philikê” = ami-zade, “sympátheia” = simpatia, “synphiliôsis” = bem-querer. O amor perpasse todas as dimensões e todas as relações, quando a ação é manifesta ou quando esta não pode ser manifestada. A tradução pelo termo “caridade” pode ser feito em função do desejo de apresentar as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Não obstante esse esforço, poderia-se afirmar que as três virtudes se chamam: fé, esperança e amor (cf. 1Cor 13,13).

c. A “hypomonês tês elpídos” (perseverança da esperança) está ligada diretamente à parusia, à vinda de Jesus (1,10).42 Esta pode ser uma das razões, mas não creio que seja a única. A perseverança que também, neste caso, se torna uma resistência aos ataques do mal, pode ser mais do que uma expectativa do fim, um desejo de prêmios da parte de Deus, com a vinda de Jesus (1Ts 4,13-18). A resistência ao mal pode ser uma motivação firme de querer, aqui e agora uma realidade diferente, pautada em outros critérios de valor, decisão consciente da dignidade da vida, determinação sócio-política para fazer acontecer um projeto novo como o do Evangelho. Nem sempre a meta é só escatológica ainda que sempre possa ter uma conotação de escatológica enquanto perfeita, acabada e completa. Mas a escatologia que começa aqui é sempre um álibi para conservar esta esperança, para renovar as forças desta luta e resistência, numa expectativa de realização imediata e escatológica, ao mesmo tempo. Para a comunidade de Tessalônica esta resistência podia ter como motivação a vinda de Jesus, o retorno imediato, quando muitos ainda estivessem vivos (1Ts 4,16-17). Para todos aqueles que, vivendo as Bem-aventuranças (Mt 5,1-12) encontram ca-minhos de oposição, perseguição e cruz, esta perseverança e resistência pode ser alimentada pela escatologia, enquanto nesta vida lhes é tirado o direito de viver, de ser e existir, a esperança num céu e numa recompensa conforta e reanima na luta pela vida.

Esta hypomonê está ligada à consciência profética que une a fé à vida e olha para a realidade humana com um olhar de Deus, portanto, uma proposta do agápê:

“O amor é paciente, o amor é prestativo, não é invejoso, não ostenta e nem se incha de orgulho, não faz o inconveniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. O amor tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13,4-7).

41 neôn orthographIkon léxIcon42 TURRADO, L, Ibidem.

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O amor é mais do que a caridade. O agápê está na origem de todas as motivações boas. Deus é a origem destas motivações. Ele é amor e quem permanece e pratica o amor está em Deus e Deus nele (1Jo 4,16). Deus é a fonte do amor e todo aquele que ama nasce de Deus e conhece Deus (1Jo 4,7). A caridade (cáritas – carus - do latim = cháris do grego) indica algo que custa muito, preço elevado, oneroso, mas também querido, amado.43 Enquanto podemos interpretar a cháris como o dom e graça recebidos ou oferecidos, o ágápê pode ser entendido como um gesto em favor de outrem movido por decisões e opções de vida, como resultado de escolhas mais profundas e determinadas não apenas pelas necessidades imediatas, mas por motivações de fé e humanismo. O agápê é entendido como o gesto solidário e amoroso entre as pessoas.44

O amor é “não-hipócrita” (Rm 12,9), por que ele detesta o mal e se apega ao bem, ao serviço dos outros e na valorização profunda do outro. O amor não é apenas gestos afáveis, mas é a rejeição de todos aqueles que não representam o bem, a verdade e a justiça. O agápê aproxima de Deus, por que Deus é agápê (1Jo 4,16).

6.5 O Senhor nosso, Jesus Cristo é a razão da perseverança

A obra da fé e a resistência na esperança encontram na adesão pes-soal a Cristo a motivação da pregação e anúncio do Evangelho. Esta obra significa a renovação do ser humano interior, em Cristo Senhor está a força da resistência e coragem da perseverança (cf. Ef 6,10-20). A esperança não elimina as provações, os obstáculos e dificuldades da vida, mas alimenta a coragem de superá-las. O Apóstolo não fala simplesmente da esperança, mas da constância e da resistência que esta impõe. Ele conhece as dificuldades diárias dos cristãos, pela sua própria experiência até aquele momento da missão, mas ele conhece também, de modo especial, os ouvintes desta sua carta, as dificuldades nas quais os tessalonicenses estavam envolvidos e que ameaçavam a continuidade e o testemunho da sua fé (At 17,1-5; 1Ts 2,14-16; 3,3-4).

É nas provações que a fé no Senhor Jesus Cristo manifesta as razões da sua perseverança. É neste alicerce cristocêntrico que se encontra a unidade com o Pai e na força do Espírito Santo (1Ts 1,5).

43 SANTOS SARAIVA, F.R.dos, Novíssimo dicionário latino-português, Rio de Janeiro, Livra-ria Garnier, 199310.44 BAUER, W. Wörterbuch zum Neuen Testament, Berlin, De Grunter, 1971.

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6.6 O Evangelho convoca para a eleição no Espírito Santo

Usando a expressão eklogê (escolha, seleção, chamado)45 o apóstolo chama os tessalonicenses de “selecionados” por Deus (eleitos) para a salvação deles e a de todos aqueles que pudessem participar com eles da perseverança até fim (1Ts 1,4). Turrado interpreta essa eleição à luz de Rm 8,28-30 como sendo uma possibilidade de prêmio para a vida eterna, mas que pode ser que-brado pelo nosso pecado (cf Rm 1,6; 1Cor 1,24; 2Ts 1,2).46 Ainda que Turrado se apóie em referências bíblicas paulinas, não é possível afirmar que a vocação (escolha/eleição) tenha apenas uma finalidade escatológica.

A eleição, no contexto explícito da comunidade de Tessalônica, pode ter duas outras motivações:

a. Uma apologese com os judeus resistentes e perseguidores. A comu-nidade judaica se outorgava o direito exclusivo da salvação e eleição privilegiada para uma escatologia feliz, e com isso, julgava-se no direito de transgredir todas as normas éticas, sociais e políticas para obter privilégios junto aos romanos e retribuir a esses favores acusando os cristãos de serem contra o império.

b. Uma valorização e auto-estima pastoral para a qual os tessalonicenses ainda não estavam bem preparados. Sendo gregos, nobres e muitas mulheres (At 17,4) eles precisavam crer que eram amados por Deus e o Senhor Jesus Cristo (1Ts 1,4).

Os novos cristãos de Tessalônica estavam formando o novo corpo de Cristo, que podia estar sendo visto em duas dimensões: a. Na dimensão escato-lógica ficava a esperança desta comunhão incorruptível, perfeita e plena; b. Na dimensão imanente restava a obra da fé e a árdua tarefa do amor, da resistência às perseguições e contra-pôr ao ódio o amor e a fraternidade. Desta forma a eleição, no contexto cristão, exige uma nova conduta no mundo atual, na vida presente, pois a escatologia já é o aqui e agora (Mt 25,31-46; Jo 5,25).

A idéia de escolha/eleição pode tornar-se uma certa identificação do cristão, o qual se considera privilegiado, não para a salvação automática ou mitológica, mas para exercer sua vocação profética. A vocação pode ter o caráter de privilégio enquanto escolha, mas tem a dura tarefa de experienciar a perseguição, a difamação e até a prisão (cf. Mt 5,11-12). Não é possível aceitar aqui a escatologia judaica e também a de muitos teólogos modernos 45 BAUER, W. Wörterbuch zum Neuen Testament, Berlin, De Grunter, 1971.46 TURRADO, L. “1Tessalonicenses”, A Bíblia comentada, BAC, v. VI, p. 645.

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que vêem a “eleição” como salvação privilegiada, pior ainda quando vista de modo determinista, (pré-determinação) deformando todo o pensar teo-lógico autêntico.

Não existe escolha/eleição sem a dynamis (força) do Espírito Santo. O Evangelho não depende da retórica, da força da palavra ou dos recursos lingüísticos do orador (1Ts 1,5). Se o Evangelho dependesse dos discursos ele seria a tarefa para oradores públicos que se fazem crer pela arte da persuasão da palavra. No mesmo tom, Paulo se dirige aos Coríntios (1Cor 2,5) afirmando que o Evangelho não se fundamenta na arte da palavra ou da sabedoria humana, ainda que quando bem apresentado, na argumentação da palavra e da sabedoria humana ele pode ser mais convincente e provocador. O Evangelho depende diretamente da assistência do Espírito Santo (1Ts 1,5). O Quarto Evangelho apresenta uma profecia jesuânica afirmando que quando viesse o Espírito da Verdade, ele conduziria à plena verdade e anunciaria coisas futuras, pois rece-beria de Jesus e anunciaria aos discípulos (Jo 16,12-15).

Para alavancar esta posição, Paulo (1Ts 1,5) usa ainda a expressão plêroforia (testemunho pleno, convicção absoluta, autenticidade)47 pollê (grande, máxima). A força do Espírito Santo é percebida nesta convicção plena e na assistência aos portadores da Boa Nova que os faz superar suas limitações para que o Evangelho transpareça (At 2,14; Gl 3,1). Esta con-vicção pode estar vinculada à firmeza e intrepidez do anúncio profético (cf. Is 40,9; 52,7; 60,6; 61,1) que não tem receios, nem temores do resultado de sua pregação, mas tem apenas a consciência de que precisa anunciar (1Cor 9,16; Rm 10,14-15).

O anúncio do Evangelho conta com a solidez da palavra, com a pleni-tude da assistência do Espírito para a edificação da comunidade através de sinais transformadores, libertadores e construtores de uma nova realidade. Paulo transmite aos tessalonicenses a mesma missão que recebeu e que outros receberam diretamente de Jesus: “Jesus subiu à montanha, chamou junto a si quem ele quis, e eles foram. Constituiu-os Doze para que ficassem com ele, para enviá-los a pregar e terem a autoridade de expulsar demônios” (Mc 3,13-15). A dynamis do Espírito Santo gera no discípulo uma plêroforia pollê (traduzindo literariamente – a perfeição do testemunho) para que ele possa ser capaz de resistir e fazer frente à thlipsei pollê - sofrimento máximo (1Ts 1,6), resultante da perseguição da sinagoga e dos pagãos que perdiam adeptos com as conversões.

47 BAUER, W. Wörterbuch zum Neuen Testament, Berlin, De Grunter, 1971.

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6.7 O Deus vivo e verdadeiro ressuscitou seu Filho, o Filho nos livra da ira

Os “céus da Macedônia e Acaia” estavam abarrotados de deuses. Os dis-cursos sobre Deus não passavam de especulações gnósticas, sofismas filosóficos e teorias. Os gregos gostavam de ocupar-se com discussões sobre deus, mas eles ainda não conheciam o “Deus Desconhecido” (At 17,23), ao qual dedicavam altares e oferendas a fim de afastar possíveis catástrofes ou desgraças. Paulo mostra que conhece muito bem Aquele que eles temiam e ignoravam (1Ts 4,5; 2Ts 1,8; Gl 4,8; 1Cor 15,34).

Os tessalonicenses já estavam sendo exemplo dessa força do Espírito Santo ao deixar seus caminhos no meio dos ídolos e assumindo a proposta do Evangelho (1Ts 1,9). Eles se tornaram imitadores do espírito de serviço e dia-conia de Paulo (1Ts 1,4-6), e agora são modelo (tipon) para toda a região. Esta é a obra da fé, a resistência árdua do amor e perseverança da esperança (1Ts 1,3). Nesse quadro, entre a imitação dos apóstolos e as tensões pelos sofrimentos presentes, eles manifestam de modo pleno a força do espírito para suplantar o peso do sofrimento (1Ts 1,6). Os frutos do Evangelho começam acontecer na forma da acolhida, da assistência e da solidariedade. As notícias que Timóteo traz fazem com que Paulo, ao escrever, não apenas diz que louva a Deus, mas faz sua eucharistia (ação de graças) pela situação da comunidade.

O Deus dos tessalonicenses já não causa temor, mas aproxima-os uns dos outros e todos em Jesus Cristo, pela força do Espírito Santo. Esperando a vinda de Jesus, que livra da ira futura (1Ts 1,10) eles trabalham incessantemente para transformar o tempo presente em propostas concretas do Reino. Estas últimas linhas apresentam uma convicção clara da parusia, tema dominante destas duas cartas aos tessalonicenses. A parusia tem um sabor de prêmio e também de cas-tigo. Aos que se aplicaram com afinco nas propostas o Evangelho, o juízo será afável, e o juiz dirá, “venha bendito...” (Mt 25,34), mas aos que tiverem negado a acolhida ao Evangelho e, conseqüentemente, negado a compaixão e a justiça ao seu próximo, ele terá o sabor da ira – (“vai maldito...” (Mt 25,41).

7. Hermenêutica

Falar de graça e paz pode ser um simples ato de distração, de rotina ou de uma linguagem embusteira que esconde a perfídia do ato. Falar de graça e paz é difícil quando os conceitos são divergentes. A pode ter conceitos diferentes, mas na experiência de vida de um pobre e de um rico; a graça para um senhor de posses tem um conceito e para um escravo tem outro. Mais con-flitante ainda pode ser o conceito de (paz). Para um índio que teve as

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suas terras dividas e demarcadas por estranhos, qual seria o conceito de paz? Para um déspota que invade terras, que se autoriza usar as armas para tomar os bens de outro, daquele que inventa mentiras para invadir outra nação, qual é o conceito de paz?

A graça e a paz só são possíveis dentro de uma conceituação universal da fé e da vida, em outras palavras, não é ter o mesmo rito religioso, mas o mesmo Deus, que fale a mesma linguagem, a mesma verdade e os mesmos princípios. O monoteísmo é mais do que ter o mesmo rito no ato de culto ou o nome igual para a divindade, mas a mesma linguagem para falar com Deus, o mesmo amor no coração ao falar com o próximo, a mesma compaixão ao lavar os pés do outro.

Quando um homem se dirige ao seu Deus com o seu rito e sua forma própria, mas a diferença está apenas no rito e no Nome, a graça e a paz terão o mesmo conceito e entre ele e seu irmão haverá graça e paz. Quando um homem vai ao seu Deus, mas este lhe permite assenhoriar-se do seu próximo, dos seus bens, da sua pátria e sua vida, ainda que o rito e o Nome sejam os mesmos, essa divindade será diferente.

Estamos habituados a distinguir as divindades pelos ritos dos atos de culto e pelos seus Nomes, mas essa identificação pode não ser a correta. A idolatria não é o ato de culto diferente, mas a forma de vida distinta, os mandamentos distintos e as razões que movem o comportamento e as decisões diferentes. A idolatria é o pacto, a aliança existencial e a conduta vinculada a uma divindade ( = potestade, imagem, divindade – Is 30,22; Tb 14,6)48 O rito religioso ou nome não necessariamente distingue a divindade, mas o que distingue a mes-ma é a forma de conduta. Quando alguém fere ou nega a graça ao seu próximo; quando alguém perturba ou rouba a paz de outro, é certo que sua divindade é diferente porque ao prestar culto, sente-se autorizado a tirar o fruto da árvore da vida e do conhecimento do bem e do mal. (c. f. Gn 2,9)

As dificuldades para o discurso da graça, da paz e da justiça residem, não nos discursos sobre Deus, mas na concepção prática de Deus ou dos ídolos. Estes podem ter um caráter individual ou podem assumir formas de idolatria nacional quando as grandes orientações ideológicas do poder podem estar a serviço de falsas ideologias nacionais, de falsa segurança ou de democracia mundial. A graça e a paz não serão um discurso monoteísta sobre Deus, a vida e o cosmos, mas serão ideologias a serviço de ídolos.

48 BAUER, W. Wörterbuch zum Neuen Testament, Berlin, Gruyter & Co., 1971. A idolatria era uma prática também conhecida no mundo grego, conforme o testemunho de Políbio, o qual define o “ídolo” como imagens de divindades ou de demônios.

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Resumé

La “grace et la paix”, salutation de Paul à la communauté de Thessa-lonique, revèle um amour impératif em direction de celui qui souffre, que est persécouté, que est diminué par les sans scrupules et personnes injustes.

Après avoir vécu dans la souffrance avec cette communauté, Paul, Sillas et Timothée révèlent leur désir d’amour et de vie pleine, c’est â dire, de justice, dignité et bien, traduit em deux concepts: “grace et paix”.

Isidoro MazzaroloPós-doutor pela Ecòle Biblique de Jerusalém

Professor do Dpto de Teologia da PUC-Rio