a arte como perseguiÇÃo do tempo: ressonâncias entre cortázar e deleuze

Upload: cadu-mello

Post on 07-Aug-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    1/39

    A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO:

    ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    Mariano Dai! 

    Fazer. Fazer algo, fazer o bem, fazer pipi, fazer hora: a ação em todas assuas complicações. Contudo, por trás de toda e qualquer ação, haviasempre um protesto, pois todo fazer significava sair de para chegar a, oumover algo para que fiasse aqui e não ali, ou entrar numa determinadacasa em vez de entrar ou não entrar na casa ao lado, significando isso queem qualquer ato havia sempre a confissão de uma falha, de algo ainda nãofeito e que era poss!vel fazer, o protesto tácito diante da cont!nua evid"nciada falha, da mesmice, da imbecilidade do presente. #creditar que a ação pudesse culminar ou que a soma das ações pudesse realmente equivaler auma vida digna desse nome era uma ilusão de moralista. $ais valia a pena

    renunciar, pois a ren%ncia & ação era o pr'prio protesto, e não a suamáscara.

    "ulio Cortázar, ( )ogo da amarelinha

     

    #uatro senti!os car!eais: te$%o& $'sica& Cortázar e Deleuze

    ( *empo não suporta ser marcado como se fosse gado.

    Carroll, #lice no pa!s das maravilhas 

    Quando colocamos o CD no aparelho de som e ouvimos as notas que Charlie “Bird” Parker

    soprou em seu sax numa noite inspirada de 19!, somos imediatamente remetidos do s"culo

    ##$ para a aurora do %e%op. &pesar do 'asc(nio que essa via)em nos causa, experimentamos

    apenas uma ilus*ria volta no tempo proporcionada pela tecnolo)ia de re)istro e reprodu+o

    sonora. Por"m, outro 'en-meno temporal, mais %anal e paradoxalmente mais 'antstico,

    acontece quando ouvimos as notas de “/over man” )ravadas naquela noite. &o ouvir uma nota

    musical somos remetidos para o passado pela mem*ria das notas que a antecederam e domesmo modo somos remetidos para o 'uturo pela expectativa da nota que vir a se)uir. 0*

    assim, remetidos pela nota que est a soar, simultaneamente para o passado e para o 'uturo, a

    msica pode criar uma sensa+o art(stica pela sucesso de sons. 2ossa 'rui+o musical se d

    pela ciso temporal. Por outro lado, a produ+o das notas no sax de Charlie Parker tam%"m

    envolve uma complexidade temporal. 3ntre sua concep+o no c"re%ro de Bird, seu impulso nos

    msculos de Bird e sua resson4ncia sonora h uma coordena+o de 'un+5es que 'a6 a msica

    voar e a%olir qualquer sentido de presente. 7ma nota no " soprada sem que a se)uinte este8a

    sendo conce%ida no c"re%ro de Bird. as qual a dist4ncia entre uma nota e outra, em que ponto

    uma nota se distin)ue da outra se o que ouvimos " um cont(nuo musical, uma 'rase mel*dica

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    2/39

    aparentemente sem sil:ncios; Bird quer encontrar a dist4ncia in'initesimal, e paradoxalmente

    in'inita, entre duas notas< 'a6 com que uma nota avance so%re a anterior, quer colar uma nota

    na outra, quer 'undi=las, sintetizá+las. as o msico tam%"m alon)a as notas at" certo limiar ou

    ento produ6 apenas 'ra)mentos de notas que 'ormam um emaranhado de sons insti)antes,

    an)ustiantes. > a an)stia do  perseguidor   incansvel. Bird quer se instalar “entre” as notaspara encontrar seu se)redo, levar ao limite a pot:ncia de extrair sensa+5es do sax. ? que ele

    perse)ue, tal como um 'il*so'o, " a ess:ncia do tempo envolvida na msica. Quer encontrar o

    tempo em estado puro, quer nos mostrar o tempo e esta sua tare'a " exaustiva, insana,

    enlouquecedora. Por isso mesmo estamos a ouvi=lo na verti)em de uma revela+o que apenas

    se vislum%ra mas no pode se esta%elecer em de'initivo. Pensamos ento< " para isso que serve

    a arte, esse monumento @ perse)ui+o do ine'vel, esse 'ra)mento de realidade que

    perse)uimos com 'or+as impensveis. > para isso que colocamos o CD de Charlie Parker no

    aparelho de som, que nos sentamos em 'rente ao aparelho e esquecemos a )ua do ca'"'ervendo no 'o)o, esquecemos as queixas de sade dos parentes e dos ami)os, esquecemos

    as contas a pa)ar e, principalmente, esquecemos de n*s mesmos. De nosso 'r)il eu e nosso

    ro%usto e)o. Aa6emos com que Bird nos d: esse peda+o de mundo em que podemos pressentir

    o in'inito do tempo. as no o 'a6emos para 'u)ir do mundo com suas )uas 'ervendo, suas

    ma6elas por curar, suas contas por pa)ar. &o contrrio, ouvimos Bird para sentir o real  mais de

    perto< tal como o pr*prio Bird ao tocar, n*s o ouvimos no porque 'u)imos de al)o, mas porque

    %uscamos al)o. &l)o como a vida, como o mundo, como o tempo.

    Da mesma 'orma, lemos Cort6ar para ter acesso ao miolo do mundo ou a oitenta mundos em

    um s* dia. Para sermos 8o)ados no tempo. 2o podemos ler Cort6ar apenas como um

    entretenimento, porque nada em sua literatura nos tra6 consolo ou apenas pra6er, nada

    permanece tranqilo ao nosso redor ao terminarmos de ler uma o%ra sua. udo adquire uma

    t:nue atmos'era de suspei+o. ?s o%8etos podem exi%ir uma 'ria volitiva, os espa+os podem

    cindir e nos en)olir, o passado vivido ou no pode se 'undir ao presente, um duplo miservel

    pode sur)ir para nos reivindicar a consci:ncia, um persona)em pode estar @s nossas costas

    com um punhal na mo. 0e o mundo nos parecia uma rocha, ap*s ler Cort6ar o mundo nos

    parece um quei8o su(+o ou uma )elatina, talve6 uma %a%a. 0ua tare'a " nos mostrar a estranha

     porosidade do mundo, " nos 8o)ar no mundo. 3 ele o 'a6 de tal 'orma que passamos a querer

    mais mundo, mais arte.

    ?s interessados em literatura a ponto de lerem cr(tica literria, se8a por )enu(no interesse ou

    por dever pro'issional, muitas ve6es constatam, com pesar, o contraste entre a qualidade

    literria das o%ras de 'ic+o e de cr(tica. > particularmente penoso sair de um texto em que

    a%undam qualidades po"ticas e penetrar em uma cr(tica est"ril ou entediante. Por isso torna=se

    )rati'icante para estes leitores quando se deparam com textos cr(ticos inteli)entes eestimulantes, e mais )rati'icante ainda quando encontram na pr*pria o%ra de 'ic+o discuss5es

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    3/39

    te*ricas que 'a+am as ve6es de cr(tica. 3ste ltimo " o caso de “? perse)uidor” de Cort6ar em

    que o persona)em narrador " um cr(tico musical. &o relatar o conv(vio com um )enial

    saxo'onista de 8a66, cu8a %io)ra'ia aca%ara de pu%licar, o narrador=cr(tico re'lete so%re

    pro%lemas est"ticos e comenta a maneira ca*tica de viver, as id"ias con'usas e os del(rios

    recorrentes de seu %io)ra'ado. &trav"s da tensão entre as perspectivas do cr(tico e do artista,Cort6ar constr*i uma primorosa o%ra de 'ic+o em que o centro de 'or+a da arte musical e

    por extenso de toda )rande arte sur)e em sua rica complexidade, com destaque para a

    'ascinante caracter(stica de 'a6er proli'erar os paradoxos. Con'orme di6 de maneira hesitante

    EohnnF Go persona)em saxo'onistaH so%re a msica, a arte nos tira do tempo, ou melhor, nos

    p5e no tempo. “as ento " preciso crer que esse tempo no tem nada a ver com... %em, com

    a )ente, vamos di6er.iIiJ” &rriscamos acrescentar que este " o tempo inumano, di'erente do

    tempo crono=l*)ico cotidiano, demasiado humano, com sua 'lecha passadoK'uturo re)ular e

    inexorvel. > o tempo puro que a o%ra de arte nos 'a6 entrever ou no qual a o%ra tem o podernos inserir.

    as qual o estatuto da rela+o entre o tempo e a arte; > pertinente reclamar a necessidade e a

    import4ncia desta rela+o; &l"m de 'ruir )rati'icado a o%ra corta6ariana o leitorKpesquisador "

    tentado a comparar as concep+5es te*ricas que seus persona)ens ela%oram com as concep+5es

    de arte que circulam na contemporaneidade, %em como com as pr*prias re'lex5es te*ricas

    presentes nos diversos ensaios de Cort6ar. Desta 'orma, contaminados pelo esp(rito

    perscrutador da realidade do saxo'onista EohnnF Carter, nos propomos a esta%elecer um dilo)o

    entre a pro%lemati6a+o do tempo, em 'un+o da %usca art(stica, que Cort6ar coloca

    principalmente em “? perse)uidor” e a mesma pro%lemati6a+o que encontramos na 'iloso'ia de

    Lilles Deleu6e. &creditamos ser 'rut('ero o es'or+o de pensar tal articula+o em virtude das

    inmeras possi%ilidades de ler Cort6ar atrav"s de Deleu6e, e vice=versa, das inmeras

    comunica+5es que as o%ras apresentam. Deste o%8etivo resultam quatro sentidos principais que

    determinam sendas de pesquisa pr*prias< a obra de Cortázar   Ge seus cr(ticosH, a filosofia de

    illes -eleuze Ge seus comentadoresH, o tema do tempo e a questo da m%sica Gcom destaque

    para o 8a66H. 3stes quatro sentidos cardeais acoplam=se de modo a en'ocar temas mais

    espec('icos tais como o tempo em Cort6ar e em Deleu6e e a msica tam%"m em am%os, mas

    possuem um centro de conver):ncia onde se encontra a idia de arte. Por"m, muitos outros

    temas correlatos e a'inidades entre os dois pensadores sur)iro ao lon)o desta 8ornada ao

    centro da arte e do tempo. Messaltamos que a convoca+o do pensamento de Deleu6e implica a

    cola%ora+o de Fli uattari , cu8a parceria produ6iu o%ras @s quais recorreremos ao lon)o do

    tra8eto.

    O (antástico co$o )entre*reali!a!e+

    ( que mais me revolta a mania das eplicações, o /ogos compreendido eclusivamente como verbo.Cortázar, ( )ogo da amarelinha

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    4/39

     

    Parece=nos interessante que a via)em no se inicie pelo texto que pretendemos privile)iar, mas

    que passemos antes por territ*rios vi6inhos, por outros contos e por textos te*ricos de Cort6ar.

    Do volume intitulado 0alise de cron'pio destacamos vrios ensaios nos quais so en'ocadas ascaracter(sticas do sentimento de insu'ici:ncia do real e suas rela+5es com a arte de cria+o

    po"tica. 3m “Do sentimento de no estar de todo” e em “Do sentimento do 'antstico” o

    escritor critica a cren+a do homem contempor4neo na realidade tal qual " apreendida pelos

    sentidos< certo realismo amplamente disseminado, que s* no " de todo in):nuo devido @

    circula+o de in'orma+5es hist*ricas e 'ilos*'icas. &s fissuras da realidade, que esporadicamente

    'usti)am a cren+a na esta%ilidade e na coer:ncia do real, so devidamente cimentadas pela

    dispersiva conviv:ncia cotidiana, restrin)indo a relev4ncia daquelas 'issuras a al)o meramente

    extraordinrio. 0e)undo Cort6ar “esse homem " um in):nuo realista mais do que um realistain):nuoiiIiiJ” pois, ante o 'en-meno excepcional renuncia a inda)=lo. > 8ustamente do desa'io,

    do est(mulo rece%ido pelo estranhamento que o mundo nos reserva, que o artista retira a 'or+a

    que o 'a6 criar<

     

    0e por poeta entendermos 'uncionalmente o que escreve poemas, a

    ra6o para que os escreva Gno se discute a qualidadeH nasce de que

    seu estranhamento como pessoa suscita sempre um mecanismo dechallenge and responseN assim, cada ve6 que o poeta " sens(vel @ sua

    lateralidade, @ sua situa+o extr(nseca numa realidade aparentemente

    intr(nseca, rea)e poeticamente I...J, escreve poemas que so como

    petri'ica+5es desse estranhamento, o que o poeta v: ou sente em

    lu)ar de, ou ao lado de, ou por %aixo de, ou ao contrrio de,

    remetendo este de ao que os demais v:em tal como cr:em que ", sem

    deslocamento nem cr(tica interna.iiiIiiiJ

    ? mesmo mecanismo aconteceria com o 'il*so'o, em%ora este tenha 'ins diversos dos do poeta.

    2a esteira desta po"tica, Cort6ar a'irma que todo )rande poema ativa e potenciali6a a

    estranheza  perante o mundo atrav"s da aceita+o da “6ona intersticial”. al a%ertura nos

    'ornece uma primeira aproxima+o com a 'iloso'ia de Deleu6e em que as 'issuras do real, a

    ciso entre o plano dos si)ni'icados e dos si)ni'icantes situa=se na ):nese dos paradoxos do

    pensamento e da arte. & perspectiva intersticial  encontra=se na %ase da concep+o deleu6eana

    da arte uma ve6 que o “entre” possi%ilita a expresso do princ(pio de incessante trans'orma+odas coisas, ou se8a, do devir  incessante do mundo. & 6ona intersticial para Cort6ar corresponde

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    5/39

    ao intervalo entre a realidade propriamente dita e uma outra realidade mais sutil, enquanto que

    para Deleu6e o interst(cio sur)e entre os estados de trans'orma+o de toda e qualquer coisa.

    Parece=nos, entretanto, que o privil")io em am%as est"ticas de uma 6ona 'ronteiri+a, de um

    limite impalpvel, aponta para a'inidades importantes entre elas. De 'ato, veremos ao lon)o

    deste ensaio como muitos pontos em comum entre os dois pensadores t:m ori)em nestaperspectiva intersticial ou a ela podem ser remetidos. &l"m disso, " importante ressaltar desde

     8 que o o%8etivo deste tra%alho no " identi'icar um pensamento ao outro mas mostrar como

    um pode potenciali6ar o outro, em am%os os sentidos. Meprodu6imos a se)uir outro trecho do

    ensaio 8 citado em que Cort6ar nos revela aspectos do seu processo criativo que respaldam a

    teoria acerca da 6ona intersticial da qual o poeta constr*i suas cria+5es<

     

    uito do que tenho escrito ordena=se so% o si)no da excentricidade,

    posto que entre viver e escrever nunca admiti uma clara di'eren+aN se

    vivendo che)o a dissimular uma participa+o parcial em minha

    circunst4ncia, por outro lado no posso ne)=la no que escrevo uma

    ve6 que precisamente escrevo por no estar ou por estar a meias.

    3screvo por 'al:ncia, por deslocamentoN e como escrevo de um

    interst(cio, estou sempre convidando que outros procurem os seus e

    olhem por eles o 8ardim onde as rvores t:m 'rutos que so, por certo,

    pedras preciosas.ivIivJ

    & id"ia de que a literatura parte de um sentimento de fal"ncia da realidade e opera um efeito

    de estranhamento que restitui esta 'al:ncia para o leitor " plenamente recorrente na est"tica de

    Cort6ar. Dentro desta perspectiva um dos temas que mais e'etivamente propicia o

    estranhamento " a desordem do tempo cotidiano. Cort6ar explorou as possi%ilidades de

    viv:ncia de novas ordens do tempo em muitos de seus contos %reves. 3scolhemos para

    exempli'icar tal en'oque so%re o tempo uma narrativa que se encontra no mesmo volume de “?

    perse)uidor”.

    ? conto “&s %a%as do dia%o”, adaptado para o cinema por &ntonioni com o t(tulo de “BloO up”,

    parece=nos colocar a questo dos paradoxos temporais de 'orma particularmente interessante,

    uma ve6 que ali a bifurcação do tempo encontra=se estreitamente relacionada ao pro%lema da

    pr*pria narrativa, @ impossi%ilidade de se narrar de uma perspectiva pessoal um evento que

    su%verte a dita normalidade. E nos primeiros par)ra'os o narrador evidencia a impossi%ilidade

    de enuncia+o dos eventos< “2unca se sa%er como isto deve ser contado,...v

    IvJ” Quem podercontar uma hist*ria em que o narrador morre e no morre, em que a mesma cena pode ser

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    6/39

    vista como desenrolando=se de duas 'ormas distintas; alve6 as mquinas, diretamente

    envolvidas na narra+o=acontecimento, a mquina de escrever e a mquina 'oto)r'ica

    GC*ntaxH, pudessem contar com mais 'idelidade a estranha hist*ria. as tam%"m o morto Gno=

    mortoH pode narrar sua perspectiva da hist*ria que implica o desdo%rar=se do tempo ou o

    retorno dos eventos so% a marca tr)ica da di'eren+a. e8amos as linhas %sicas do enredo.

    Mo%erto ichel, o narrador=prota)onista do conto, " um tradutor 'ranco=chileno que, ao sair de

    seu apartamento em Paris para 'oto)ra'ar amadoristicamente o movimento das ruas, presencia

    uma cena envolvendo tr:s persona)ens. ? tradutor='ot*)ra'o encontra @ ponta da ilha de 0aint=

    /ouis uma %ela mulher loura sedu6indo um assustado adolescente, a cena lhe parece insti)ante

    e ele tira uma 'oto do casal. &o perce%er que 'oi 'oto)ra'ada, a mulher avan+a indi)nada para o

    'ot*)ra'o exi)indo que ele lhe d: o 'ilme enquanto o adolescente sai de cena quase correndo.

    2este instante um homem, que estava lendo 8ornal dentro de um carro estacionado ali perto,sai do carro e se 8unta @ mulher para pression=lo a entre)ar o 'ilme. Mo%erto responde @

    solicita+o com um sorriso e deixa local mantendo o 'ilme consi)o.

    2os dias que se se)uem ao epis*dio, Mo%erto amplia vrias ve6es a 'oto do casal e cola=a na

    parede do quarto onde tra%alha em suas tradu+5es. 3nquanto 'a6 seu tra%alho, “a cada tantos

    minutos”, er)ue a ca%e+a e olha para a 'oto sentindo=se na exata perspectiva de quando tirou a

    'oto. as eis que Mo%erto v: a mo da mulher se 'echar e a partir da( tudo na 'oto se

    movimenta< a cena se repete mas desta ve6 ele perce%e que na verdade a mulher sedu6 o

    adolescente para entre)=lo ao homem. 2este retorno da cena de rua que se passa na parede

    do quarto de Mo%erto, como se 'osse um 'ilme policial, o adolescente conse)ue escapar

    novamente mas desta ve6 o 'ot*)ra'o=narrador no escapa ileso< termina assassinado,

    imo%ili6ado, contemplando as nuvens e os pssaros atrav"s do ret4n)ulo na parede. Meprodu6ir

    os eventos deste conto da maneira como 'i6emos " exatamente o que no se deveria e no se

    poderia 'a6er. 2a narra+o do conto h uma hesitação e uma ambig1idade que se perdem neste

    tipo de reprodu+o. ?ra o 'ot*)ra'o narra na primeira pessoa, ora o conto " narrado na terceira

    pessoa e Mo%erto ichel " um persona)em que tem seus movimentos vistos de fora. & narrativa

    " a pr*pria pro%lemati6a+o da maneira de narrar um evento quando 'alham simultaneamente

    as certe6as da coer:ncia do su8eito e da sucessividade dos acontecimentos na ordem do tempo.

    0e insistimos aqui em reprodu6ir o enredo deste conto, 'oi para mostrar como o tempo

    cronol*)ico entra em colapso no universo 'antstico de Cort6ar. ? presente da narrativa " to

    'also como o passado narrado. ? pr*prio narrador revela a inconsist:ncia da temporalidade<

     “&)ora mesmo Gque palavra, agora, que mentira estpidaH.viIviJ” ? suposto retorno da cena que

    se passa na 'oto)ra'ia, com sua conseq:ncia 'atal para o 'ot*)ra'o, cria uma condi+o de

    impossi%ilidade de seu acontecimento< se a 'oto)ra'ia revela a verdade de que o 'ot*)ra'o 'oi

    morto ap*s tirar a 'oto, como esta poderia ter sido revelada, ampliada e colocada na parede doquarto para revelar a verdade; 0* nos resta crer que am%as as vers5es so verdadeiras ou

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    7/39

    am%as 'alsas, que os dois desdo%ramentos da cena aconteceram em tempos e lu)ares

    di'erentes Gna manh de domin)o na ilha de 0aint=/ouis e dias depois no apartamento de

    Mo%ertoH ou que am%as aconteceram num mesmo tempo e lu)ar indeterminados, talve6 entre

    um tempo e outro, entre  uma verso e outra. ( que importa a subversão da ordem da

    consci"ncia e o estranhamento que esta perspectiva intersticial promove . ? acontecimento nose passa de acordo com as leis do %om senso e da '(sica clssica, ou se8a, o%servado por uma

    consci:ncia intencional precisamente re)ulada, mas con'orme uma meta'(sica em que o tempo

    se encontra 'ora dos eixos e a consci:ncia presa das incerte6as. & ra6o Gcomo lo)os, palavraH

    se v: insu'iciente para co%rir as sutile6as da realidade e recorre aos paradoxos, @s

    am%i)idades da lin)ua)em.

    Davi &rri)ucci Er., em excepcional estudo da o%ra de Cort6ar, comentando a hesita+o que o

    narrador apresenta no in(cio do conto e a solu+o de incorporar esta hesita+o no 4m%ito dodiscurso, 'ormula de maneira precisa tal pro%lemtica<

     

    rata=se, evidentemente, de uma solu+o ir-nica< a enuncia+o sobre

    um paradoxo torna=se ela pr*pria paradoxal, mantendo tam%"m at" o

    'im o estranhamento do leitor, colocado em contato direto com o

    pro%lema da estrutura+o do texto. ? carter paradoxal e, por isso

    mesmo, desconcertante, da enuncia+o resulta da ado+o de um 'oconarrativo dplice, o que permite a oscila+o am%()ua e ir-nica entre

    perspectivas contradit*rias.viiIviiJ

     “&s %a%as do dia%o” " um conto exemplar do estilo corta6ariano porque a pro%lemtica da

    narrativa encontra=se implicada na atmos'era 'antstica do enredo. Para Cort6ar, o conto curto

    assemelha=se a um poema ou a uma 'oto)ra'ia uma ve6 que todos os elementos encontram=se

    comprometidos na economia que %usca distender ao mximo a tenso ou incrementar aintensidade  das sensa+5es expressas. Para o escritor, “a ):nese do conto e do poema ",

    contudo, a mesma, nasce de um repentino estranhamento, de um deslocar+se que altera o

    re)ime normalR da consci:nciaviiiIviiiJ”. &l"m disso, a e'iccia e o sentido do conto dependem de

    valores caracter(sticos do poema Ge do 8a66H< “a tenso, o ritmo, a pulsa+o interna, o

    imprevisto dentro de par4metros pr"=vistos, essa liberdade fatal  que no admite altera+o sem

    uma perda irreparvelixIixJ”. 3ste tipo de conto, a narrativa curta, " %astante a'eito ao

    sentimento do 'antstico ou, pelo menos, requer um tema excepcional, al)o que 'uncione como

    um !mã, que atraia toda uma rede de rela+5es e permita uma abertura para 'ora da pr*pria

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    8/39

    narrativa. Desta 'orma, o tempo e o espa+o “t:m de estar como que condensados, su%metidos

    a uma alta presso espiritual e 'ormal para provocar essa a%erturaR xIxJ” 

    al propriedade, de remeter a al)o maior que a parte en'ocada, caracteri6a a narrativa como

    'antstica e " sempre por uma força capa6 de provocar certo deslocamento que o 'antsticoexerce sua e'iccia. Cort6ar recorre @ concep+o de ponto vlico, em uma passa)em de ictor

    Su)o, para descrever o sentimento do 'antstico< trata=se do ponto de conver):ncia de todas

    as 'or+as dispersas no velame de um navio. &ssim tam%"m “o 'antstico 'or+a uma crosta

    aparente, e por isso lem%ra o ponto v"licoN h al)o que encosta o om%ro para nos tirar dos

    eixos.xiIxiJ” Aoi em virtude desta li)a+o 'avorvel, entre a 'orma do conto curto e o tema

    'antstico, que autor utili6ou amplamente esta '*rmula. e8amos como o pr*prio escritor exp5e

    as ra65es para o exerc(cio deste ):nero<

     

    Quase todos os contos que escrevi pertencem ao ):nero chamado

    'antstico por 'alta de um nome melhor, e se op5em a esse 'also

    realismo que consiste em crer que todas as coisas podem ser

    descritas e explicadas como dava por assentado o otimismo 'ilos*'ico

    e cient('ico do s"culo #$$$, isto ", dentro de um mundo re)ido mais

    ou menos harmoniosamente por um sistema de leis, de princ(pios, de

    rela+5es de causa e e'eito, de psicolo)ias de'inidas, de )eo)ra'ias%em carto)ra'adas. 2o meu caso, a suspeita de outra ordem mais

    secreta e menos comunicvel, e a 'ecunda desco%erta de &l'red

    EarrF, para quem o verdadeiro estudo da realidade no residia nas

    leis, mas nas exce+5es a essas leis, 'oram al)uns dos princ(pios

    orientadores da minha %usca pessoal de uma literatura @ mar)em de

    todo realismo demasiado in):nuo.xiiIxiiJ

    3nvolvendo direta ou indiretamente a su%verso da ordem temporal podemos citar ainda os

    contos curtos< “&s armas secretasxiiiIxiiiJ”, “DistantexivIxivJ” e “odos os 'o)os o 'o)oxvIxvJ”. &

    tentativa de superar certo realismo cienti'icista, to em vo)a neste 'inal do s"culo ## e in(cio do

    s"culo ##$ como uma das caracter(sticas da dita p*s=modernidade 8 se encontrava

    presente na 'amosa ironia machadiana %em como na 'iloso'ia demolidora de 2iet6sche. Serdeiro

    desse )osto 'ilos*'ico su%versivo, empenhado na )uerrilha 'ilos*'ica contra a tradi+o ocidental,

    meta'(sica e cienti'icista, Deleu6e desenvolve uma o%ra que nos parece '"rtil para pensar a arte

    contempor4nea. Privile)iaremos neste tra%alho sua inusitada a%orda)em do tempo que nospossi%ilitar o dilo)o com Cort6ar. &ssim, em nossa via)em, cu8o territ*rio de destino " “?

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    9/39

    perse)uidor”, 'aremos mais uma passa)em pelo territ*rio vi6inho da 'iloso'ia 'rancesa

    contempor4nea antes de tomarmos o rumo 'inal.

     

    Rizo$a te$%oral

    2esse instante gigantesco, vi milhões de atos agradáveis ou atrozes3 nenhum me assombrou mais que ofato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem transpar"ncia.,or-es, ( #leph

    ? pro%lema do tempo se encontra no cerne do pensamento deleu6eano e uma a%orda)em que

    visa discutir suas implica+5es em o%ra literria requer recortes espec('icos. Destacaremos ento

    tr:s aspectos do tempo em Deleu6e que nos parecem, tendo em vista nosso o%8etivo, mais

    pro'(cuos< &ion o tempo no cronol*)ico, ):nese dos paradoxos, como discutido em /'gica do

    sentidoN o conceito de ima)em=cristal, como aparece em Cinema 44: # imagem+tempoN e o

    conceito de ritornelo, ela%orado em $il plat5s  e ( que a filosofia6 , as duas ltimas o%ras

    escritas em parceria com A"lix Luattari.

    3m /'gica do sentido, Deleu6e reali6a um res)ate da l*)ica dos incorporais da 'iloso'ia

    est*ica l*)ica dos acontecimentos como 'en-menos de super'(cie , 'a6endo a articula+o

    desta com a o%ra de /eOis Carroll. & din4mica do acontecimento, que no se det"m nunca no

    presente, mas remete sempre ao passado e ao 'uturo, " um dos 'ocos )eradores dos paradoxosno encontro do plano si)ni'icante da lin)ua)em com o plano si)ni'icado das coisas. ?

    acontecimento " um efeito  que " expresso por um ver%o no in'initivo. 3nquanto a l*)ica

    aristot"lica preocupa=se com as proposi+5es que atri%uem uma qualidade a uma coisa, do tipo

     “a rvore " verde”, a l*)ica est*ica preocupa=se com as proposi+5es que enunciam

    acontecimentos, tais como “a rvore verde8a” . ? acontecimento incorporal, o verde8ar, " um

    atri%uto que d o sentido da cor na rvore e no existe 'ora da proposi+o que o enuncia. 2o "

    uma qualidade sens(vel como a cor verde. erde8ar " um acontecimento que no se det"m, tal

    como o crescer< ", concomitantemente, estar maior que no passado e menor que no'uturoxviIxviJ.

    3sta insta%ilidade na enuncia+o dos acontecimentos aponta uma primeira 'issura na

     8un+o do plano da idealidade com o plano das coisas. “? acontecimento " coextensivo ao devir

    e o devir, por sua ve6, " coextensivo @ lin)ua)emN I...J ? paradoxo aparece como destitui+o da

    pro'undidade, exi%i+o dos acontecimentos na super'(cie, desdo%ramento da lin)ua)em ao

    lon)o deste limite.xviiIxviiJ” $sto si)ni'ica que o devir , princ(pio de incessante di'erencia+o,

    encontra nos paradoxos da lin)ua)em a expresso de seus e'eitos e " atrav"s deles que a

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    10/39

    lin)ua)em pode ser levada ao seu limite< ponto em que a literatura encarna sua pot:ncia mas,

    ao mesmo tempo, depara=se com a som%ra de sua destrui+o.

    & inadequa+o tam%"m aparece na rela+o entre os nomes e as coisas desi)nadas por

    eles. Quando se de'ine que tal nome desi)na tal coisa, esta de'ini+o necessita de uma outraque a sustente, )erando uma s"rie in'inita de de'ini+5es. 0* ar%itrariamente pode=se colocar um

    termo ori)inal nesta s"rie que a 'a+a estancar. 3ste paradoo da regressão ou da proliferação

    indefinida aparece na l*)ica so% di'erentes 'ormas e " reprodu6ido por Carroll no texto “? que a

    tartaru)a disse a &quilesxviiiIxviiiJ”. ?s c"ticos tam%"m se ap*iam neste pro%lema l*)ico para

    impu)nar qualquer 8u(6o a%soluto, como se v: no se)undo tropo de &)ripa. ? re'erido tropo

    mostra que, ao re'erendar uma a'irma+o por meio de um ar)umento, pode=se exi)ir uma nova

    demonstra+o que prove este ar)umento, e assim por diante, ao in'initoxixIxixJ. 3ste tipo de

    paradoxo implica o conceito de in'inito que 8 tra6 consi)o propriedades paradoxais.

    Desta 'orma o paradoo encontra+se no centro do pensamento. De 'ato, como di6

    Deleu6e, seria preciso ser muito simpl*rio para crer que o pensamento se 'a6 por atos simples,

    claros para si mesmo e que no envolve as pot:ncias paradoxais do inconsciente. 0* podemos

    acusar os paradoxos de recrea+5es do esp(rito quando so iniciativas levianas do pensamento e

     “no quando os consideramos como a Paixo do pensamentoR, desco%rindo o que no pode ser

    seno pensado, o que no pode ser seno 'alado, que " tam%"m o ine'vel e o impensvel,

    a6io mental, &ionxxIxxJ”. #ion " o tempo super'icial dos acontecimentos incorporais tomado em

    sua rela+o com o devir< remete ao passado e ao 'uturo simultaneamente. Contrap5e=se a ele

    Cronos, que representa o tempo tomado em sua rela+o com o presente vasto e pro'undo, e

    que transcorre atrav"s da 'lecha homo):nea e inexorvel do tempo< do passado para o 'uturo

    um tempo locali6vel, espaciali6ado. Peter Pl Pel%art, em sua anlise da questo do tempo na

    'iloso'ia de Deleu6e, sinteti6a do se)uinte modo a distin+o entre os dois conceitos de tempo<

     “Cronos " o tempo da medida ou da pro'undidade desmedida, ao passo que &ion " o da

    super'(cie. Cronos exprime a a+o dos corpos, das qualidades corporais, das causas, &ion " o

    lu)ar dos acontecimentos incorporais, dos atri%utos, dos e'eitos.xxiIxxiJ”

    & principal conseq:ncia desta associa+o entre o tempo e os paradoxos do devir reside

    na sua capacidade de 'a6er 'rente ao plano da opinio, da doa e da ima)em do pensamento

    como reco)ni+o. 2o plano da doa circulam o bom senso, como sentido correto, dire+o nica

    das coisas, e o senso comum, como reconhecimento do mesmo na es'era dos su8eitos e dos

    o%8etos. ? paradoxo su%verte a am%os ao a'irmar simultaneamente vrias dire+5es. Mecorremos

    ao mencionado texto de Peter Pl Pel%art para esclarecer essa opera+o que os paradoxos do

    tempo implicam.

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    11/39

    ? paradoxo su%verte a dire+o da 'lecha do tempo ao a%olir o princ(pio

    da dire+o nica, mas so%retudo coloca em xeque o presente que lhe

    serve de par4metro, presente em que aquela se ancora ou do qual ela

    parte. ? paradoxo 'urta=se ao presente e esquiva=o, instalando na

    diviso in'inita do instante e a'irmando concomitantemente os vriossentidos, numa temporalidade centr('u)a, multilinear. I...J KK &o

    a'irmar ao mesmo tempo  mltiplos sentidos, vrias dire+5es, sua

    coexist:ncia insupervel, o paradoxo sa%ota a reco)ni+o e seus

    postulados impl(citos, a identidade do su8eito que reconhece, a

    perman:ncia do o%8eto reconhecido, a mensura+o e limita+o das

    qualidades a ele atri%u(das, e reintrodu6 o devir=louco que a

    reco)ni+o se encarre)ava de proscrever.xxiiIxxiiJ

    ? estranho estatuto do tempo em /'gica do sentido, como ):nese dos paradoxos e

    como 'issura entre os planos da idealidade e das coisas, parece=nos muito pr*ximo da

    concep+o 'antstica da realidade em Cort6ar. ? tempo conce%ido desta 'orma a'ina=se

    per'eitamente com a su%verso da ordem temporal de “&s %a%as do dia%o”, %em como com as

    diversas insta%ilidades da su%8etividade que se propa)am pela o%ra corta6ariana. Como vimos,

    o in)resso na insta%ilidade temporal implica tam%"m o convite @ insta%ilidade dos su8eitos e dos

    o%8etos< " o mundo como um todo, em sua percep+o cotidiana, que se torna instvel eestranho, puro devir.

    3m seus livros so%re o cinema, Deleu6e parte da concep+o de tempo em Ber)son como

    duração, tomando=a como princ(pio de diferenciação. 2esta perspectiva, o tempo no pode ser

    dividido em instantes, ou se8a, no se pode extrair da dura+o os instantes que a comp5e como

    se 'ossem pontos pelos quais se passa, como se a dura+o 'osse uma tra8et*ria espaciali6ada

    em que os pontos pudessem ser assinalveis. 3xatamente por isso o tempo " tomado como

    dura+o< um %loco compacto que sup5e o sur)imento de diferença. 0e)undo Deleu6e, “da

    pr*pria dura+o, ou do tempo, podemos a'irmar que " o todo das rela+5es xxiiiIxxiiiJ”. as esse

    todo " a%erto, altera=se constantemente. “? todo se cria e no pra de se criar numa outra

    dimenso sem partes, como aquilo que leva o con8unto de um estado qualitativo a outro, como

    o puro devir incessante que passa por esses estados.xxivIxxivJ”

    am%"m nesta concep+o o tempo s* pode ser pensado atrav"s de paradoxos, uma ve6

    que o presente de uma ima)em atual coeiste com seu passado virtual. 2o h ima)em ou

    o%8eto puramente atual sem que uma “nuvem” de virtualidade o envolva. > atrav"s dessa

    virtualidade Gmem*riaH que envolve o o%8eto perce%ido que ele pode ser reconhecido. “odoatual rodeia=se de uma n"voa de o%8etos virtuais.xxvIxxvJ” Cria=se ento um circuito em que a

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    12/39

    percep+o alimenta a sua mem*ria Gima)em=lem%ran+a, para Ber)sonH e esta se pro8eta so%re

    o o%8eto perce%ido, uma perse)uindo a outra. 2este circuito, que " capa6 de detectar a

    di'eren+a de qualidade dos estados, 'orma=se o tempo como dura+o. 3sse processo, al"m de

    nos mostrar o paradoxo que preside a concep+o do tempo como dura+o, tam%"m possi%ilita a

    a%orda)em do mecanismo de coalesc:ncia entre o atual e o virtual, do mecanismo de ):neseda imagem+cristal . Deleu6e o descreve da se)uinte maneira<

    as, em todos os casos, a distin+o entre o virtual e o atual

    corresponde @ ciso mais 'undamental do empo, quando ele avan+a

    di'erenciando=se se)undo duas )randes vias< 'a6er passar o presente e

    conservar o passado. I...J ?s dois aspectos do tempo, a ima)em atual

    do presente que passa e a ima)em virtual do passado que se

    conserva, distin)uem=se na atuali6a+o, tendo simultaneamente um

    limite inassinalvel, mas intercam%iam=se na cristali6a+o at" se

    tornarem indiscern(veis, cada um apropriando=se do papel do outro.xxvi

    IxxviJ

    > a partir deste mecanismo que Deleu6e desenvolve o conceito de ima)em=cristal. rata=

    se, 8ustamente, da situa+o em que as ima)ens atual e virtual aproximam=se de tal 'orma que

    se tornam indiscern!veis, embora ainda conservem as caracter!sticas que a distinguem, pois a

    ima)em=cristal " exatamente aquela em que o circuito atual=virtual se 'echa ao mximo sem

    entrar em colapso, mantendo sua altern7ncia 'undamental. 7ma ve6 que o passado virtual e o

    presente atual intercam%iam=se intermitentemente at" se tornarem indiscern(veis, o e'eito que

    sur)e da ima)em=cristal " a emer):ncia do  pr'prio tempo  como ciso entre passado e

    presente. ?s dois sur)em simultaneamente, con'undem=se mas mant"m suas caracter(sticas e,

    por isso mesmo, deixam vislum%rar o tempo. ranscrevemos o texto de Deleu6e para a%ordar

    esse conceito paradoxal<

    ? que constitui a ima)em=cristal " a opera+o mais 'undamental do

    tempo< 8 que o passado no se constitui depois do presente que ele

    'oi, mas ao mesmo tempo, " preciso que o tempo se desdo%re a cada

    instante em presente e passado, que por nature6a di'erem um do

    outro, I...J > preciso que o tempo se cinda ao mesmo tempo em que

    se a'irma ou desenrola< ele se cinde em dois 8atos dissim"tricos, um

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    13/39

    'a6endo passar todo o presente, e o outro conservando todo o

    passado. ? tempo consiste nessa ciso, e " ela, " ele que se v: no

    cristal. & ima)em=cristal no " o tempo, mas vemos o tempo no

    cristal.xxviiIxxviiJ

    ? cristal se encontra no limite de coalesc"ncia, de indiscernibilidade. ?u como escreve

    Deleu6e< “& ima)em=cristal " certamente o ponto de indiscerni%ilidade de duas ima)ens

    distintas, a atual e a virtual, enquanto o que vemos no cristal " o tempo em pessoa, um pouco

    de tempo em estado puro, a distin+o mesma entre as duas ima)ens que nunca aca%a de se

    reconstituir.xxviiiIxxviiiJ” 3m seu estudo so%re cinema, Deleu6e a'irma que o cristal revela uma

    ima)em=tempo direta, e no mais uma ima)em indireta do tempo que decorresse do

    movimento, extraindo da( conseq:ncias importantes para a est"tica do cinema. Certamenteuma “cena” similar em literatura, com todas as adapta+5es que o conceito exi)e, poderia ser

    til a um estudo da est"tica literria. 3ntretanto, no pretendemos desenvolver neste tra%alho

    tal classe de adapta+o. ? que nos chama a aten+o no conceito " a implica+o de tempo e

    est"tica so% a ")ide do paradoxo. 3sta con8un+o, por si s*, nos remete @ literatura de Cort6ar

    e @ sua o%ra cr(tica. 0e a coalesc:ncia de percep+o e mem*ria Gnarra+o concomitante no

    passado e no presenteH pode resultar em um e'eito est"tico expressivo, em que se vislum%re o

    tempo puro, certamente este " um dos e'eitos da escrita corta6ariana.

    ? conceito de cristal do tempo, como veremos, li)a=se ao conceito de ritornelo, que

    passamos a investi)ar. ? ritornelo, por sua ve6, envolve uma s"rie de conceitos que comp5em a

    geofilosofia de Deleu6e e Luattari, e esta, com seus estratos Gplat-sH e seus movimentos

    relativos @ terra, coloca=se como uma alternativa ao pensamento para a dicotomia su8eito e

    o%8eto. odo desdo%ramento conceitual envolvendo as rela+5es entre a terra e os territ*rios

    sur)e como o es'or+o no sentido de superar a mencionada dicotomia. ? conceito de territ'rio

    est intimamente relacionado ao conceito de agenciamento e, em um en'oque voltado para a

    est"tica, tam%"m podemos relacion=lo ao conceito de ritornelo um estri%ilho, uma 'rase

    mel*dica que se repete envolvendo as 'or+as do espa+o ao redor. Constituir um territ*rio ou

    promover uma territorialização si)ni'ica entrar em a)enciamento com 'or+as espa+o=temporais

    que nos rodeiam, da( que o ritornelo, como o canto dos pssaros, visa esta%elecer uma rela+o

    de 'or+as com o territ*rio.

    3sta%elecemos uma marca territorial Guma assinaturaH quando promovemos uma

    interven+o nas 'or+as do mundo para impor uma dist4ncia cr(tica, 'a6endo nascer assim meios

    e ritmos. 3ste a)enciamento das 'or+as da terra para constituir meios e ritmos expressivos tem

    as caracter(sticas de um ritornelo. Deleu6e e Luattari chamam de ritornelo “todo con8unto demat"rias de expresso que tra+a um territ*rio, e que se desenvolve em motivos e paisa)ens

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    14/39

    territoriaisxxixIxxixJ”. > como o canto e a encena+o Gqualidades expressivasH de um pssaro que

    constitui seu territ*rio. “& territoriali6a+o " o ato do ritmo tornado expressivo, ou dos

    componentes de meios tornados qualitativos.xxxIxxxJ” ? 'ator territoriali6ante se mani'esta pelo

     “devir+epressivo”, pelo ritornelo< as qualidades expressivas que se repetem como num

    estri%ilho. Portanto, o territ'rio )á um efeito da arteT ? primeiro ato do artista " o de constituirum territ*rio atrav"s de uma marca, de uma placa, de uma assinatura. 3nto, a qualidade

    expressiva implica posse e " anterior a esta.xxxiIxxxiJ as ser que %asta 'undar um territ*rio

    atrav"s de qualidades expressivas para criar uma o%ra de arte; 0er que a arte come+a e

    termina no movimento de territoriali6a+o;

     “? territ*rio ", ele pr*prio, lu)ar de passa)em. ? territ*rio " o primeiro

    a)enciamento, a primeira coisa que 'a6 a)enciamento, o a)enciamento " antes territorial. as

    como ele 8 no estaria atravessando outra coisa, outros a)enciamentos;xxxii

    IxxxiiJ” Com esta'ormula+o os autores su)erem que um a)enciamento territorial no se sedimenta nunca de

    'orma constante. & 'un+o de desterritorialização implica o a%ando do territ*rio, a linha de 'u)a

    n-made. &ssim o ritornelo territoriali6ante implica meios  e ritmos, enquanto que a

    desterritoriali6a+o envolve motivos  e contrapontos. ? a)enciamento territorial, na verdade,

    no " separvel das linhas ou coe'icientes de desterritoriali6a+o, das 'u)as, das passa)ens e

    das altern4ncias para outros a)enciamentos.

    Con'orme os autores, o ritornelo " um conceito eminentemente sonoro, devido @ maior

    pot:ncia de desterritoriali6a+o que o som possui so%re os demais materiais xxxiiiIxxxiiiJ. 3sta

    concep+o possui a'inidade com o pensamento niet6scheano, que atri%u(a @ msica uma

    pot:ncia de dissolu+o dionis(aca superior. 3ntretanto, Deleu6e e Luattari ressaltam que esta

    qualidade do som no torna a msica superior @s outras artes, mas con'ere=lhe a caracter(stica

    notvel de tanto mais se a'inar quanto mais se desterritoriali6a. &pesar do privil")io da msica

    no conceito de ritornelo, este pode ser aplicado a qualquer mani'esta+o art(stica. ? ritornelo,

    esta a+o eminentemente est"tica, " como um “cristal de espa+o=tempo”< a)e so%re o que o

    rodeia, extraindo das 'or+as “vi%ra+5es variadas, decomposi+5es, pro8e+5es e

    trans'orma+5esxxxivIxxxivJ”. 3le tem uma função catal!tica de aumentar a velocidade das trocas,

    de asse)urar intera+5es entre os elementos e de 'ormar massas or)ani6adas. 3le fabrica tempoN

    ou melhor, ele " tempo implicado, uma ve6 que catalisa os acontecimentos e os presenti'ica.

    Eustamente por catali6ar os acontecimentos o ritornelo produ6 di'eren+a, ou se8a, implica o

    tempo.

    ? ritornelo con8u)a todos estes 'atores numa verdadeira 'pera maqu!nica. alve6 se8a

    necessrio ao artista passar pelo ritornelo territorial  ou de a)enciamento para desterritoriali6=

    lo, coloc=lo em 'u)a, e, ento, che)ar ao “)rande ritornelo maquinado c*smicoxxxv

    IxxxvJ”, poisna desterritorialização envolvem=se no apenas as 'or+as do caos e da terra, mas as 'or+as do

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    15/39

    cosmo. ? ritornelo, esta a+o que envolve as 'or+as do mundo G'or+as do caos, da terra e do

    cosmoH apresenta, novamente, a caracter(stica de con8u)ar epressão esttica e 'a%rica+o,

    presenti'ica+o ou exi%i+o do tempo, com a vanta)em para nosso estudo, de possuir estreita

    li)a+o com a msica. &qui, no seio da )eo'iloso'ia, torna=se mais clara a convoca+o de todo

    tipo de 'or+a e a import4ncia de a'ec+5es e a'etos ou da “conaturalidade a'etiva xxxviIxxxviJ” como queria Cort6ar.

    &trav"s dos conceitos de &ion, ima)em=cristal e ritornelo vimos concep+5es do tempo na

    o%ra de Deleu6e que o apresentam sempre de 'orma paradoxal e contrria @ no+o do senso

    comum, de que o tempo possui uma ordem homo):nea e constante. Das pro%lemati6a+5es

    extra(mos uma no+o mais 'lex(vel do tempo, como uma multiplicidade. &s conex5es temporais

    podem se dar das mais variadas maneiras, tal como num rizoma em que as rela+5es no so

    simplesmente ar%orescentes, hierrquicas, mas podem se dar em todas as dire+5es e sentidos.ranscrevemos a se)uir o que escreve Peter Pl Pel%art, na introdu+o do seu tra%alho, a

    respeito da multiplicidade ri6omtica que o tempo apresenta na o%ra de Deleu6e.

    3m Deleu6e, ao inv"s de uma linha do tempo, temos um emaranhado

    do tempoN em ve6 de um fluo do tempo, veremos sur)ir uma massa

    de tempoN em lu)ar de um rio do tempo, um labirinto do tempo. ?u

    ainda, no mais um c!rculo do tempo, por"m um turbilhão, 8 no umaordem  do tempo, mas variação  in'inita, nem mesmo uma forma  do

    tempo, mas um tempo informal ,  plástico. Com isto estar(amos mais

    pr*ximos, sem dvida, de um tempo da alucinação  do que uma

    consci"ncia do tempo.xxxviiIxxxviiJ

    Deleu6e promove uma li%era+o do tempo, retomando a exclama+o de Samlet, (

    tempo está fora dos eiosT uitos dos termos que quali'icam o tempo em Deleu6e nos remetemde imediato @ o%ra de Cort6ar< o emaranhado, a massa, o la%irinto, o tur%ilho, a varia+o, o

    plstico e a alucina+o 'antstica, %em como a multiplicidade. > 8ustamente so% a 'orma de um

    labirinto ou de uma esp"cie de ri6oma que Davi &rri)ucci Er. v: a re'erida o%ra< “ista no

    con8unto a o%ra de Eulio Cort6ar parece tra+ar o itinerrio la%ir(ntico de uma %usca incessante.” 

    3, mais adiante, su)ere o que si)ni'ica criticar tal o%ra< “Penetrar no la%irinto< desmontar e

    remontar o tra+ado, em %usca do sentido de um pro8eto que " um %uscar permanente. 7ma

    lin)ua)em @ ca+a de outra lin)ua)em que 8 se %usca e enrodilha num complexo tra+ado.xxxviii

    IxxxviiiJ” &penas para real+ar a proximidade dos dois pensamentos, leiamos o que Cort6arescreve em sua po"tica< “odo verso " encantamento, por mais livre e inocente que se o'ere+a,

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    16/39

    " cria+o de um tempo, de um estar  'ora do ha%itual, uma imposi+o de elementos.” & 'u)a do

    ha%itual, da doa, atrav"s da cria+o de um tempo e da convoca+o e doa+o de mltiplos

    elementos, vem ao encontro da est"tica deleu6eana. S, sem dvida, uma s"rie de

    resson4ncias entre os dois pensamentos, de tal 'orma que a discusso dessas resson4ncias 8

    se coloca por si s* como um desa'io. &l"m disso, essa no+o ri6omtica do tempo no seencontra apenas em Deleu6e, mas sur)e em al)uns pensadores contempor4neos como uma

    alternativa do pensamento. Meprodu6imos a se)uir a constata+o desta tend:ncia por Pel%art.

    Dos vrios autores contempor4neos que colocam em xeque a

    representa+o linear do tempo, um dos que o enunciou de maneira

    mais su)estiva 'oi ichel 0erres. Di6 ele< o tempo " paradoxal, ele se

    do%ra, se torce, " uma variedade que seria preciso comparar a uma

    chama num %raseiro, aqui cortada, ali vertical, m*vel, inesperada. I...J

    ? tempo tem pontos de parada, rupturas, po+os, chamin"s de

    acelera+o 'ulminante, ras)amentos, lacunas, tudo numa composi+o

    aleat*ria, numa esp"cie de desordem, ao menos vis(vel.xxxixIxxxixJ

    isitados os territ*rios vi6inhos do conto=curto='antstico de Cort6ar e do tempo

    ri6omtico de Deleu6e, tomamos 'inalmente o rumo do terreno sonoro do 8a66, esse ritornelo

    maqu(nico e alucinante, territ*rio de 'u)as e desterritoriali6a+5es constantes.

    Cr.tica& (issura& !estrui/0o

    Conhecer o segredo do tempo das paiões, dessa espcie de tempo musical que rege seu batimentoharm5nico,...Artau! , “7m atletismo a'etivo” 

     

    ?s contos curtos de Cort6ar 'a6em com que se8amos su)ados por atmos'eras

    estranhas, que se8amos imersos em um clima alucinat*rio em que podemos experimentar

    diretamente a insta%ilidade da ordem normal cotidiana. ? autor quer nos 'a6er experimentar o

    pr*prio “sentimento do 'antstico”, que ele por sua ve6 experimentou ao “incorporar” o conto

    antes de escrev:=lo. 3ntretanto, no primoroso conto “? perse)uidor”, Cort6ar no adota a

    narrativa curta nem lan+a mo dos recursos do conto 'antstico. 2a edi+o %rasileira o conto

    ocupa cinqenta e cinco p)inasN trata=se mais propriamente de uma novela. Bruno, o narrador,

    no se deixa envolver por nenhum clima de excepcionalidade, descreve suas impress5es da

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    17/39

    msica, do pensamento e da vida do saxo'onista EohnnF Carter de 'orma realista, deixando que

    o estranhamento decorra apenas do que procede do msico. &inda assim, exceto pelas

    per'ormances musicais do saxo'onista, que o cr(tico=narrador admira e curte, as id"ias que

    EohnnF tenta comunicar e seu comportamento exc:ntrico so criticados e @s ve6es

    ridiculari6ados pela narrativa. as " exatamente destas id"ias e comportamentos do msico edas impress5es que Bruno colhe das per'ormances musicais de EohnnF que Cort6ar extrai os

    e'eitos literrios do conto e ser deles tam%"m que procuraremos extrair as resson4ncias com

    a 'iloso'ia de Deleu6e.

    3m “? perse)uidor” Cort6ar no quer vencer por 8noc8+out  como nos contos curtos,

    mas ir acumulando pontos com o envolvimento do leitor na dial"tica arteKcr(tica. ? tom

    despretensioso das con'iss5es de Bruno 'a6 com que o leitor v, pouco a pouco, tomando parte

    na discusso est"tica que se desenrola atrav"s da narrativa. Quest5es como as rela+5es entre aarte de um lado e do outro lado o mercado, a cr!tica, a vida, a busca metaf!sica  e o tempo

    atravessam as re'lex5es e os testemunhos de Bruno, sem que conclus5es a%solutas se8am

    impostas ao leitor.

    3m%ora se8a reconhecido como um ):nio do sax, EohnnF Carter no conse)ue viver em

    %oa situa+o 'inanceira. 3xplorado pelas )ravadoras e pelos empresrios, o msico vive em

    hot"is %aratos, nem sempre pode se alimentar %em e, quando perde o sax no metr- de Paris,

    no tem recursos para comprar outro instrumento. > o seu %i*)ra'o quem providencia o

    empr"stimo de um saxo'one para que EohnnF possa cumprir o contrato e se apresentar em uma

    casa noturna. ?s pro%lemas rotineiros e 'inanceiros no t:m )rande import4ncia para o msico<

    o que ele quer " se)uir em sua %usca meta'(sica de uma msica capa6 de sacudir o esp(rito, de

    nos arrancar do marasmo cotidiano e nos 8o)ar na viv:ncia de sensa+5es intensas. 0e EohnnF

    tem pro%lemas 'inanceiros, se seu talento no " recompensado 'inanceiramente, isto no 'a6

    dele um 'racassado, porque sua ra6o de viver encontra=se nesta %usca espiritual e no numa

    consa)ra+o 'utilmente vaidosa ou num %em=estar con'ortvel mas va6io. ? pr*prio narrador, a

    partir da audi+o de uma per'ormance )enial do msico Ga )rava+o de “&morous”H, se d conta

    que havia se en)anado quanto @ situa+o estereotipada de ):nio perse)uido e in8usti+ado que

    havia tra+ado na %io)ra'ia<

    > curioso, 'oi preciso escutar isso, em%ora tudo conver)isse para isso,

    para #morous, para que eu entendesse que EohnnF no " uma v(tima,

    no " um perse)uido como todo mundo acha, como eu mesmo dei a

    entender em minha %io)ra'ia Galis, a edi+o em in)l:s aca%a de sair e

    vende como coca=colaH. &)ora sei que no " assim, que EohnnF

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    18/39

    perse)ue em ve6 de ser perse)uido, que tudo que est lhe

    acontecendo na vida so a6ares do ca+ador e no do animal acossado.

    2in)u"m pode sa%er o que EohnnF perse)ue, mas " assim, est a(, em

     #morous, na maconha, em seus a%surdos discursos so%re tantas

    coisas, nas reca(das, no livrinho de DFlan homas, em todo po%re=dia%o que " EohnnF e que o en)randece e o converte num a%surdo

    vivente, num ca+ador sem %ra+os e sem pernas, numa le%re que corre

    atrs de um ti)re que dorme. Gp. 1U9H

    ? pro%lema de EohnnF, assim como o pro%lema da van)uarda do 8a66, da )rande arte de uma

    'orma )eral e da literatura de uma 'orma particular, como Cort6ar a entende, no " a %usca de

    con'orto material nem a %usca de satis'a+o or)4nica, sensual, hedonista ou a %usca deentretenimento para aliviar as tens5es da vida. ? que o msico quer tam%"m no " 'u)ir da

    realidade atrav"s da msica, no se trata de reali6ar uma arte escapista que pur)ue os terrores

    da exist:ncia. ? pro%lema de EohnnF, ao contrrio, " atin)ir as camadas mais pro'undas da

    realidade mesma, " a busca metaf!sica  de sensa+5es que nos d:em acesso @s aberturas, @s

    fissuras do mundo, que os h%itos cotidianos tendem a ocultar. Davi &rri)ucci caracteri6a com

    propriedade, em muitas passa)ens de seu livro so%re Cort6ar, esta perse)ui+o incansvel do

    artista<

     

    /in)ua)em com (mpetos de morder a realidade, a msica " aqui uma

    lin)ua)em do dese8o, do dese8o que no se satis'a6 nunca, que

    perse)ue sempre, que se arrisca na %usca incessante at" a %eira da

    desinte)ra+o. & narrativa " o itinerrio dessa %usca encarnada no

    homem=artista EohnnF Carter, que no separa a arte do plano da

    exist:ncia e assim se arrisca a si mesmo no 8o)o da inven+o 'a6endo

    do sax alto um verdadeiro instrumento na perse)ui+o de um tema

    que, para ele, " vital.xlIxlJ

    &o se entre)ar @ %usca espiritual o artista passa a vivenciar uma situa+o limite que amea+a

    destru(=lo. Para Deleu6e h um compromisso entre a %usca art(stica de um limite incorporal na

    super'(cie da lin)ua)em Gsuper'(cie em que ocorrem os acontecimentos ideais, incorporais,

    con'orme re'erimos na p)ina 1UH e a viv:ncia corporal deste limite, desta 'issura, como um

    processo de demoli+o. ? prot*tipo literrio deste processo " a 'rase de Ait6)erald no romance # fissura Ghe crack upH< “oda vida ", o%viamente, um processo de demoli+o. xliIxliJ” 2este

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    19/39

    sentido, o 'il*so'o questiona se seria poss(vel querer o acontecimento incorporal sem aceitar a

    e'etua+o do acontecimento no pr*prio corpo. “0e existe a 'issura na super'(cie, como evitar

    que a vida pro'unda se trans'orme em empresa de demoli+o e se torne tal, o%viamenteR; xlii

    IxliiJ” Do mesmo modo que a lin)ua)em da arte de van)uarda arrisca=se at" muito pr*ximo da

    autodestrui+o Gdo sil:ncioH, a incorpora+o desta atitude radical tende a levar a sade doartista @ fronteira da destrui+o de sua vida. ?s artistas teriam al)o de mrtires< o'erecem suas

    vidas para arrancar as sensa+5es est"ticas do plano das opini5es ha%ituais, para nos doar seus

    monumentos. as autodestrui+o, tanto da o%ra como da vida, si)ni'ica o sil:ncio e, portanto, o

    'racasso. ? pro%lema ento, de 'ato, encontra=se na questo do limite, " preciso criar e viver a

    partir deste limite em que um passo a mais implica o sil:ncio e um passo a menos implica o

    'racasso art(stico, a 'raque6a da o%ra. Deleu6e equaciona o pro%lema com preciso.

     

    0e per)untamos por que no %astaria a sade, por que a 'issura "

    dese8vel " porque, talve6, nunca pensamos a no ser por ela e so%re

    suas %ordas e que tudo o que 'oi %om e )rande na humanidade entra e

    sai por ela, em pessoas prontas a se destruir a si mesmas e que "

    antes a morte do que a sade que se nos prop5em. I...J > verdade que

    a 'issura no " nada se no compromete o corpo, mas ela no cessa

    menos de ser e de valer quando con'unde sua linha com a outra linha

    no interior do corpo. 2o se pode di6e=lo de antemo, " preciso

    arriscar permanecendo o mais tempo poss(vel, no perder de vista a

    )rande sade. 2o se apreende a verdade eterna do acontecimento a

    no ser que o acontecimento se inscreva tam%"m na carneN mas cada

    ve6 devemos duplicar esta e'etua+o dolorosa por uma contra=

    e'etua+o que a limita, a representa, a trans'i)ura.xliiiIxliiiJ

    & grande sa%de " a concep+o niet6scheana de uma vida ativa e criativa com intensa atividade

    espiritual. Deleu6e e Luattari destacam, como paradi)ma desta postura 'rente a vida, o mesmo

    persona)em em quem Cort6ar identi'ica as verdadeiras qualidades do poeta< &ntonin &rtaud. >

    tam%"m dele que Deleu6e e Luattari extraem o conceito de um exerc(cio espiritual que

    caracteri6a o artista criador< uma esp"cie de “atletismo a'etivo”. Devido @ postura radical que

    assumem, artistas e 'il*so'os “t:m 'reqentemente uma saude6inha 'r)il”, porque “viram na

    vida al)o de )rande demais para qualquer um, de )rande demais para eles, e que p-s neles a

    marca discreta da mortexlivIxlivJ”.

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    20/39

    & presen+a da cr!tica no interior da 'ic+o " caracter(stica marcante da o%ra de Cort6ar. 7m dos

    recursos utili6ados pelo escritor em “? perse)uidor” " o contraste entre as posturas do msico e

    do cr(tico=narrador. 3m%ora Bruno se8a sens(vel o su'iciente para compreender a )rande6a das

    interpreta+5es de EohnnF e para identi'icar seus momentos mais inspirados, o cr(tico=narrador

    procura no se deixar envolver pelo universo decadente que a vida, as o%sess5es e asalucina+5es do msico representam 'rente ao seu pr*prio universo de sucesso pro'issional e

    'inanceiro. Maramente ele leva a s"rio os discursos de EohnnF. & %io)ra'ia que escreveu " 'iel @

    ima)em de EohnnF como um espelho, mas re'lete apenas parcialmente a personalidade do

    msico. 3m%ora trace um “sistema est"tico” do 8a66 e exponha as ra(6es ne)ras do bebop, 'alta

    na %io)ra'ia o essencial de EohnnF< sua busca metaf!sica incessante, sua tentativa de abrir uma

    brecha na realidade atravs da m%sica. /o)o nas primeiras p)inas do conto o narrador

    reconhece a posi+o de in'erioridade que a atividade cr(tica representa 'rente @ cria+o art(stica<

     

    0ou um cr(tico de 8a66 sens(vel o su'iciente para compreender

    minhas limita+5es, e perce%o que o que estou pensando est por

    %aixo do plano onde o coitado do EohnnF tenta avan+ar com suas

    'rases truncadas, seus suspiros, suas raivas s%itas e seus prantos.

    3le no se importa nem um pouco que eu o ache )enial, e nunca se

    envaideceu por sua msica estar muito al"m do que seus

    companheiros tocam. Penso com triste6a que ele est no princ(pio de

    seu sax, enquanto eu vivo o%ri)ado a me con'ormar com o 'inal. 3le

    " a %oca e eu a orelha, para no di6er que ele " a %oca e eu o... odo

    cr(tico, ai, " o triste 'inal de al)o que come+ou como sa%or, como

    del(cia de morder e mascar. Gp. VWH

    Davi &rri)ucci Er. considera a presen+a da cr(tica no interior da 'ic+o corta6ariana como uma

    esp"cie de devir=camaleoxlvIxlvJ, como um instinto assassino em que o camaleo curva=se

    so%re si mesmo e morde o pr*prio ra%o. Partidrio de uma est"tica da inven+o radical e

    permanente, Cort6ar incorpora a cr(tica no seio da 'ic+o como estrat")ia de colocar a cria+o

    e a cr(tica no plano do pensamento, de fazer da arte um lugar do pensamento sobre a arte,

    sempre so% a ")ide da inven+o. e8amos como &rri)ucci Er. 'ormula esta caracter(stica

    corta6ariana.

     

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    21/39

    uitas das id"ias cr(ticas que podem ocorrer diante de )rande parte

    da o%ra de Cort6ar aparecem declaradas de antemo na sua pr*pria

    estrutura e dela 'a6em parte. & narrativa envolve a cr(tica e at"

    mesmo cont"m uma po"tica expl(cita. ? texto, escorpi-nico, se

    autocritica, revelando=se. I...J 2a verdade, a pro%lemtica da o%ra,que ca%e @ cr(tica discutir, se trans'orma em )rande parte aqui na

    presen+a pro%lemtica da cr(tica no espa+o antes reservado apenas @

    cria+o. 7m dos pro%lemas 'undamentais que coloca a o%ra de

    Cort6ar passa a ser exatamente o da presen+a, muitas ve6es

    as'ixiante, da cr(tica no interior da narrativa.xlviIxlviJ

    ? que a cr(tica, por ser apenas uma atividade racional, pode deixar escapar, assim como Brunodeixa escapar em sua %io)ra'ia, " a relação da arte com a busca metaf!sica de aspectos sutis da

    realidade, ou se8a, " a aptido art(stica para acessar a complexidade do mundo, que a ci:ncia,

    atrav"s da percep+o intencional Gpor"m parcialH, no permite. esmo no impre)nando o

    conto com atmos'era 'antstica, Cort6ar lan+a mo dos elementos e das id"ias que perpassam

    seus contos 'antsticos para associar em “? perse)uidor” a %usca meta'(sica do real com a

    per'ormance art(stica, sendo que tal associa+o implica a questo do tempo como 'ator comum.

    2o centro da pro%lemtica das 'issuras da realidade, de sua “porosidade”, encontra=se o tempo

    como ):nese dos paradoxosN paralelamente, na cria+o art(stica Gprincipalmente na msicaH, "o tempo que se destaca como princ(pio 'ormal da o%ra de arte. 3sta centralidade do tempo que

    o conto de Cort6ar su)ere Gtalve6 possamos di6er, explicitaH, corro%orada e complexi'icada pelo

    pensamento de Deleu6e, constitui tam%"m o motivo central do presente ensaio. & discusso

    desenvolvida tem por o%8etivo, principalmente, en'ocar a questo do tempo como uma esp"cie

    de elo entre o sentimento de 'al:ncia da realidade cotidiana e a cria+o art(stica.

     

    Ritornelo 1azz.stico: "o2nn3 no cristal !o te$%o

    $ost people don9t realize that most of hat the; hear come out of a man9s horn < the; are )ust eperiences.4t ma; be the beaut; of the eather. # nice loo8 of a mountain. # nice breath of fresh air.C2arlie Par4er, em entrevista a Eohn c/ellan, 8unhoK19XY

    Cort6ar coloca um msico de 8a66 como prota)onista de seu conto porque este ):nero musical,

    com seus contrapontos e improvisos, representa para ele a ess:ncia da cria+o art(stica como

    inven+o permanente. ais uma ve6 recorremos @ ampla pesquisa de Davi &rri)ucci Er. para

    precisar a 'un+o que o 8a66 exerce na o%ra de Cort6ar. &l"m do conto pelo qual estamosvia8ando, &rri)ucci encontra 'artas re'er:ncias ao 8a66 em ( )ogo da amarelinha e /a vuelta al 

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    22/39

    dia en ochenta mundos, sem contar os depoimentos so%re os msicos /ouis &rmstron) e

    Cli''ord BroOn inclu(dos na 0alise de cron'pio. Baseado nestas passa)ens, o ensa(sta %rasileiro

    conclui que o 8a66 'unciona como “uma esp"cie de via de acessoR, de intercesso, de a%ertura,

    en'im, @ qual se entre)am os perse)uidoresxlviiIxlviiJ”, movidos pela 4nsia de atin)irem a

    verdadeira realidade ou de se con='undiremR com a totalidade do real. > 'la)rante a a%und4nciade pontes, portas, )alerias, passa)ens que con'erem tal “porosidade” ao espa+o 'iccional de

    Cort6ar.

    0e)undo &rri)ucci, o “8a66 se escoa pelos interst(cios do mundo corta6ariano, levando a outra

    coisaxlviiiIxlviiiJ”, e esta propriedade se deve @ experi:ncia radical que o 8a66 reali6a com a

    lin)ua)em musical. Da( o elo)io dos ta8es que Cort6ar 'a6 em /a vuelta al dia en ochenta

    mundos. ?s ta8es so as diversas )rava+5es de um mesmo tema que as %andas de 8a66 'a6em

    para che)ar ao produto 'inal, @ sele+o dos ta8es que comp5em o disco a ser lan+ado nomercado. Para Cort6ar, os ta8es possuem um valor em si mesmos, independentemente de

    terem sido selecionados para o disco ou no. Possuem uma sin)ularidade que lhes d

    autonomia, sendo di'erentes dos ensaios que so reali6ados visando uma 'utura per'ei+o. ?

    que h de melhor na literatura seriam tam%"m os ta8es, os riscos impl(citos na execu+o, a

    mar)em de peri)o que excita. Por isso Cort6ar a'irma que )ostaria de escrever apenas

    ta8es li IxlixJ.

    & partir desta con'isso de Cort6ar, &rri)ucci pode identi'icar que “o 8a66 e a literatura

    aparecem como duas modalidades de uma mesma lin)ua)em lIlJ”< a lin)ua)em da busca, em

    que cada experi:ncia " uma nova invenção do mesmo tema. “7ma inven+o consciente de si

    mesma, que inte)ra a pr*pria cr(tica, desnuda os pr*prios 'racassos e sa%e que sua )rande6a

    resultar da insist:ncia na perse)ui+o.liIliJ” & prima6ia dos ta8es  implica a valori6a+o da

    intui+o criadora e da per'ormance sin)ular do artista. 0o% a perspectiva meta'(sica, 8a66 e

    literatura seriam canais privile)iados de acesso @ realidade. Meprodu6imos a se)uir um lon)o e

    preciso trecho do tra%alho de Davi &rri)ucci Er., so%re as 'un+5es da msica e da literatura, que

    nos parece apontar para o caminho que estamos tra+ando e contri%uir em muito para o o%8etivo

    deste ensaio.

     

    isto como lin)ua)em de %usca e re%elio, o 8a66 adquire uma

    'un+o desautomati6adora da percep+o do mundo e, nesta medida,

    trans'orma=se num instrumento de inda)a+o meta'(sica. Que%rando

    os h%itos perceptivos, desmascara o mundo, revela o real. KK

    Procedendo por analo)ia com o 8a66, a lin)ua)em literria torna=se

    tam%"m, para Cort6ar, uma lin)ua)em capa6 de sondar a realidade,

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    23/39

    o'erecer a%ertura para outros mundos, participa+o de outra coisa

    para al"m do mundo sens(vel, numa id:ntica 'orma de inven+o

    reveladora. 3sta atitude diante da lin)ua)em literria aponta para

    uma a'inidade )en"tica que irmanaria o 8a66 @ poesia, no sentido

    amplo e ori)inal de cria+o, I...J &o atin)ir o pice da inven+o, alin)ua)em musical atin)e tam%"m o ponto extremo do risco, @

    mar)em do a%ismo, uma 'ul)ura+o instant4nea, amea+ada pela

    dissolu+o no caos, num equil(%rio precrio, o ponto mais pr*ximo do

    a%soluto a que aspira.liiIliiJ

    0e o ta8e  Ga per'ormanceH aparece como o modo de cria+o mais aut:ntico e o 8a66 como

    lin)ua)em art(stica privile)iada, o persona)em=saxo'onista EohnnF Carter, com sua o%sessopelo tempo, sur)e como prot*tipo do ):nio criador, do incansvel perse)uidor. Davi &rri)ucci

    nos mostra os elementos que vinculam o prota)onista de “? perse)uidor” ao msico Charlie

    Parker. & )l*ria e os percal+os por que passa o persona)em so muito pr*ximos das re'er:ncias

    %io)r'icas de Bird, a quem, inclusive, o conto " dedicado. ? nome do persona)em seria

    composto por partes dos nomes de dois 'amosos saxo'onistas que precederam Charlie Parker<

    EohnnF Sod)es e BennF Carter. ? nome do persona)em possui semelhan+as com o de Bird, o

    diminutivo do prenome CharlieKEohnnF e a sonoridade do so%renome ParkerKCarter. &l"m disso

    o nome do persona)em possui as mesmas iniciais do autor, E. C.liii

    IliiiJ.

    ? epis*dio da )rava+o de “&morous” por EohnnF, semelhante ao que se sucedeu na )rava+o

    de “/over man” em 19W por Charlie Parker, revela a an)stia de perse)uidor do persona)em.

    EohnnF che)a para a )rava+o com duas horas de atraso e sem “a menor vontade de tocar”.

    as, depois de 'alar por lon)o tempo so%re alucina+5es com “campos de urnas” e de espalhar

    'olhas pelo cho do estdio, assente em )ravar al)uma coisa. 0e)undo o msico &rt BoucaFa

    que participou da )rava+o e narra o epis*dio a Bruno, EohnnF “desanda a tocar de um 8eito

    que, 8uro, nunca havia ouvido, 8amais”.Gp. 1UUH 3ntretanto, ap*s tr:s minutos o saxo'onista

    solta uma nota atravessada e pra de tocar. erminada a )rava+o di6 que “tudo tinha ido para

    os dia%os, e que aquela )rava+o no servia para nada”Gp. 1U1H, no poderia ser divul)ada.

    Lrava um outro tema, “0treptomicFne”, que sai, se)undo &rt, “muito melhor e ao mesmo

    tempo muito pior”Gp. 1U1H, porque " uma )rava+o impecvel mas sem o 'uror com que EohnnF

    havia impre)nado “&morous”. Quando che)a ao hotel EohnnF tem uma crise nervosa< tenta

    incendiar o quarto, corre nu pelos corredores e aca%a hospitali6ado e preso.

    &o ouvir a )rava+o de “&morous”, Bruno compreende porque EohnnF no quer que a msica

    se8a lan+ada< perce%e=se claramente as 'alhas do sopro nos 'inais de 'rases, principalmente “aselva)em queda 'inal”, que pareceu a Bruno “um cora+o que se arre%enta, uma 'aca entrando

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    24/39

    em um po”.Gp. 1U9H as o cr(tico v: nesta impreciso t"cnica uma %ele6a arre%atadora, pois

    expressa a sofreguidão da perse)ui+o do msico<

     

    EohnnF no perce%eria o que para n*s era terrivelmente %elo, a

    ansiedade que %usca sa(da nessa improvisa+o cheia de 'u)as em

    todas as dire+5es, de interro)a+o, de desesperado a)itar de mos.

    EohnnF no pode compreender Gporque o que para ele " 'racasso

    para n*s parece um caminho, ou pelo menos o ind(cio de um

    caminhoH que &morous vai 'icar como um dos maiores momentos do

     8a66. ? artista que existe nele vai 'icar 'ren"tico de raiva toda ve6

    que ouvir esse arremedo de seu dese8o, de tudo que quis di6er

    enquanto lutava, cam%aleando, deixando escapar a saliva da %oca

     8unto com a msica, mais que nunca so6inho diante do que

    perse)ue, do que mais 'o)e dele quanto mais ele perse)ue. Gp. 1U9H

    & força de EohnnF vem de sua entrega & busca metaf!sica. 3m vrias passa)ens do conto, como

    o trecho acima citado, 'ica muito claro que, em%ora Bruno re8eite o universo decadente de seu

    %io)ra'ado, compreende e valori6a a %usca art(stica de EohnnF. Durante um concerto “na sala

    PleFel” o cr(tico ra%isca anota+5es acerca do saxo'onista, “so%re um 8oelho nos intervalos”, sem

    o compromisso de que estas venham a contri%uir para a cr(tica que escrever no dia se)uinte

    para o “Ea66 Sot”. /ivre da o%ri)a+o de emitir um parecer com a o%8etividade t"cnica da cr(tica

    musical, Bruno analisa o que est por trs da 'achada de “):nio musical” de EohnnF, ou se8a, o

    outro EohnnF que realmente interessa. ? que h de mais aut:ntico em EohnnF, seu estilo, " a

    recusa da satis'a+o imediata, " a lin)ua)em que os msicos esto levando @s %ltimas

    conseq:ncias Gcomo sa%emos, o %e%opH. “3sse 8a66 dispensa todo erotismo 'cil, todo

    Oa)nerianismo, di)amos assim, para situar=se num plano aparentemente solto onde a msica

    'ica em a%soluta li%erdade, assim como a pintura su%tra(da ao representativo 'ica em li%erdade

    para no ser nada al"m de pintura.”Gp. 9VH 3sta msica, que Bruno “)ostaria de chamar de

    meta'(sica”, parece servir a EohnnF em sua tentativa de “morder a realidade que lhe escapa

    todos os dias”.Gp. 99H 3 Bruno perce%e que o caminho de EohnnF s* poderia ser o da

    perse)ui+o in'inita<

     

    e8o ali o alto paradoxo de seu estilo, sua a)ressiva e'iccia. $ncapa6

    de se satis'a6er, vale como um est(mulo cont(nuo, uma constru+o

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    25/39

    in'inita cu8o pra6er no est no arremate e sim na reitera+o

    exploradora, no empre)o das 'aculdades que deixam atrs o

    imediatamente humano sem perder a humanidade. I...J EohnnF no se

    move num mundo de a%stra+5es como n*sN por isso sua msica I...J

    no tem nada de a%strata. I...J 0uas conquistas so como um sonho,esquece delas ao despertar, quando os aplausos o tra6em de volta, ele

    que anda to lon)e vivendo seu quarto de hora de um minuto e meio.

    Gp. 99H

    3m sua %usca insacivel, EohnnF encontra=se imerso no tempo. Penetrar na porosidade do

    mundo " extrair o tempo puro, o tempo plástico de EohnnF em que quin6e minutos ca%em em

    um minuto e meio. 2o " @ toa que a maior o%sesso de EohnnF " o mist"rio do tempo, que sua4nsia em morder a realidade associa=se inevitavelmente @ imerso no tempo. Como o pr*prio

    EohnnF di6, desde que tocou seu primeiro sax a msica o punha no tempoN di6 ainda que a

    m%sica o a)uda um pouco a compreender o assunto do tempo . Gp. VU=V1H Bruno revela que

    desde que conheceu EohnnF o tema do tempo o preocupa e que viu poucos homens

    preocupados “daquele 8eito por tudo que se re'ere ao tempo”. Melata que presenciou um ensaio

    de EohnnF com iles Davis e outros msicos em 9 ou XU em que ocoreu um epis*dio

    interessante. 2as palavras do narrador<

     

     “3 8ustamente naquele momento, quando EohnnF estava perdido em

    sua ale)ria, de repente deixou de tocar e soltando um murro no nada

    disse< 3stou tocando isso amanhR, e os rapa6es 'icaram perplexos, s*

    uns dois ou tr:s se)uiram os compassos, como um trem que demora a

    parar, e EohnnF %atia na testa e repetia< 3u 8 toquei isso amanh, "

    horr(vel, iles, eu 8 toquei isso amanhR, e no conse)uiram tir=lo

    dessa, I...J Gp. Z9H

    Passado, presente e 'uturo misturam=se na via)em temporal de EohnnF promovida,

    principalmente, pela msica. 3la tem o poder de transporte no tempo, con'orme o msico a

    perce%e< “3u perce%i quando comecei a tocar que entrava num elevador, mas era um elevador

    do tempo, se " que voc: me entende.”Gp. VW=WYH Para EohnnF, o tempo possui uma estranha

    elasticidadeN propriedade que nos lem%ra a id"ia deleu6eana do tempo como uma massa

    plstica. ? msico experimenta esta elasticidade quando via8a de metr-, pois o que ele “v:” mentalmente entre duas esta+5es levaria uns quin6e minutos para acontecer e no entanto a

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    26/39

    via)em entre as duas esta+5es dura exatamente um minuto e meio. “ia8ar de metr- " como

    estar metido em um rel*)io”Gp. VZH e por isso permite constatar a insta%ilidade do tempo,

    permite desco%rir que existe outro tempo di'erente daquele que " marcado pelos rel*)ios.

    ? dese8o de EohnnF " viver apenas nesses momentos, como quando est tocando e o tempomuda. & msica de EohnnF, o %e%op, tem a 'un+o de uma ima)em=cristal< torna indiscern(veis

    a “ima)em virtual” do tema mel*dico e a “ima)em atual” dos solos de sax que evoluem ao

    redor do tema, e nesta opera+o " o tempo que se “visuali6a” atrav"s do cristal, o mist"rio de

    tempo que se cinde em presente e passado. ema e solo permanecem distintos mas participam

    de uma coalesc:ncia, de uma 'uso, que os torna indiscern(veis. & fleibilidade, a rapidez 

    vertiginosa, a ousadia formal  e o poder de s!ntese so qualidades sempre re'eridas quando se

    trata de descrever o %e%op. “? que caracteri6ava o %e%op, para o ouvinte da "poca, era a sua

    incr(vel 'lexi%ilidade e a sua condu+o mel*dica extremamente nervosa. &s 'rases eram to)eis que pareciam apenas 'ra)mentos. oda nota desnecessria era deixada de lado. udo 'oi

    redu6ido e comprimido ao extremo.livIlivJ” Quando se trata de 'alar do estilo de Bird, as

    quest5es do tempo e dos limites so sempre a%ordadas< “Dominando todas as tonalidades,

    todos os dedilhados, mesmo os mais acro%ticos, pode tradu6ir em tempo realR um discurso

    complexo e coerente, num tempo verti)inoso.lvIlvJ” 0eu apelido, apesar de no ter se ori)inado

    da msica, re'lete 'ielmente seu estilo< “v-o caprichoso em torno de uma linha mel*dica, por

    ve6es mal su)erida mas sempre estendida para um o%8etivo lon)(nquo, que se a'asta para o

    hori6onte todos os limites previs(veis do improvisolviIlviJ”.

    Do mesmo modo que " poss(vel esta%elecer uma li)a+o entre a o%sesso de EohnnF pelo

    tempo e a sua msica perse)uidora atrav"s do conceito de ima)em=cristal, tam%"m " poss(vel

    'a6:=lo atrav"s do conceito de ritornelo, que, como dissemos, relaciona=se intimamente com a

    id"ia de cristal do tempo. &o concentrar=se em seus solos verti)inosos EohnnFKCharlie 'a6

    conver)ir no cristal sonoro as 'or+as espa+o=temporais G'or+as do caos, da terra e do cosmoH,

    promove uma s(ntese dos acontecimentos atrav"s das qualidades expressivas, 'a%ricando assim

    o tempo puro. ? que se ouve nos solos de CarterKParker " o tempo implicado na m%sica, o

    tempo plástico,  paradoal , que atravessa a porosidade do mundo. rata=se de um ritornelo

    altamente desterritorializado em que as 'or+as do cosmo promovem a linha de 'u)a do tema

    central< a cada volta o tema se enrola em nova espiral, cada volta do tema Gou estri%ilhoH se d

    pela di'eren+a, " o retorno da di'eren+a que implica a dura+o, o tempo. ? territ*rio do tema,

    da melodia, " reiteradamente desterritoriali6ado pelos solos de sax que comp5em um ritornelo

    c*smico e mant"m a plat"ia ma)neti6ada, 'ora do tempo, ou melhor, imersa no tempo puro. &

    rela+o temaKsolo pode ser assimilada @ rela+o motivoKcontraponto produ6idas pelo ritornelo

    desterritoriali6ante, con'orme Deleu6e e Luattari a entendem. Davi &rri)ucci tam%"m relaciona

    a questo do tempo com a per'ormance de EohnnF

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    27/39

     

    De 'ato, perse)uindo uma realidade di)na do nome, o instrumento de

    EohnnF " muito mais que um instrumento musicalN " um sax contra o

    tempo, esse tema o%sessivo para o  )azzman. I...J 2a verdade,soprando o sax, EohnnF conse)ue vislum%rar um universo poroso, uma

    realidade=espon8a, o mundo figuaral < constela+5es simult4neas que ele,

     “as ve6es, I...J procura descrever numa lin)ua)em estilha+ada, ca*tica

    e, na apar:ncia, incoerente. & msica lhe concede a viv:ncia

    passa)eira de um tempo que " uma ne)a+o do tempo e que, depois,

    ca(do em si mesmo, ele tenta recuperar em vo pela dro)a.lviiIlviiJ

    ais adiante o ensa(sta recoloca a questo destacando a impossi%ilidade da lin)ua)em racional

    de dar conta das experi:ncias de su%verso do tempo e a aura m(stica, por"m no reli)iosa,

    que envolve estas experi:ncias<

     

    3ssa experi:ncia ins*lita de um tempo diverso ou mesmo da anula+o

    do tempo, que EohnnF conse)ue viver so%retudo atrav"s da msica,

    con'ere, evidentemente, uma import4ncia vital aos momentos em queo artista, a%andonando=se inteiramente @ improvisa+o, %usca acesso

    ao que, depois, no conse)ue explicar em termos racionais. 0o

    verdadeiros momentos epi'4nicos, de intensa e pro'unda revela+o

    espiritual, como os dos m(sticos, em%ora o pr*prio )azzman deixe claro

    que sua %usca nada tem a ver com o Deus de Bruno.lviiiIlviiiJ

    & centralidade da msica, mais especi'icamente do 8a66, no conto “? perse)uidor”, quepretende alcan+ar a pro%lemtica de toda )rande arte, " plenamente 8usti'icada tanto pela

    tradi+o 'ilos*'ica quanto pela recente 'iloso'ia da msica. 3ncontramos o privil")io da msica,

    s* para citar al)uns autores importantes, em Se)el Gpara quem a msica diri)e=se @ mais

    pro'unda interioridade su%8etivaH, em 0chopenhauer Gpara quem a msica " expresso direta da

    ontadeH, em 2iet6sche Gpara quem a msica est estreitamente li)ada ao impulso dionis(aco,

    que tem prima6ia na ori)em da tra)"dia )re)aH, em Deleu6e e Luattari Gpara quem a msica

    possui a caracter(stica de tanto mais se a'inar quanto mais se desterritoriali6aH. & rela+o da

    msica com a questo do tempo, por sua ve6, tem sido o%8eto de estudo em tra%alhos recentes.Liovanni Piana, atrav"s de um exame 'enomenol*)ico, che)a @ 'ormula+o de que o som " um

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    28/39

    ob)eto temporal , conce%ido como um processo, uma duração fenomenol'gica. Para explicitar o

    carter essencialmente temporal do som, Piana escreve<

     

    2a dura+o do som o que se acaba " 8ustamente a duração, pois o

    in(cio e o 'im t:m um sentido %asicamente temporal. ? som passa mas

    no envelhece. ermina, mas no se destr*i. ? tempo " a condi+o, no

    sentido mais 'orte, do seu existir, como se o som contivesse em si

    pr*prio a necessidade do tempo, de maneira que se poderia a'irmar

    que o pr*prio existir do som " como se 'osse feito de tempo.lixIlixJ

    ais pr*ximo ainda da questo paradoxal do tempo, presente no pensamento de Ber)son e de

    Deleu6e, encontra=se o pro%lema da continuidade do som na msica. 2a “sucesso de 'rases

    que passam uma ap*s a outra” o som " um evento, um “avan+ar ultrapassando”, na concep+o

    de Piana. 3ste movimento envolve o som virtual com o som atual de modo que “a escuta do

    som " tensa, e ela " tensa na medida em que " atra!da pela tensão temporal  que pertence ao

    pr*prio somlxIlxJ”. & atra+o e a tenso que presidem a escuta de um continuum  sonoro

    decorrem do paradoxo temporal< o presente atual da audi+o coexiste com o passado virtual do

    que 8 'oi ouvido. ? sentido da msica, seu poder de a'eto, " extra(do do e'eito pro8etado pela

    coexist:ncia presenteKpassado. & dura+o, o tempo, aparece pela produ+o da di'eren+a em um

    todo a%erto. S estreita li)a+o tam%"m entre a '(sica e a meta'(sica do som. Para re'erendar o

    poder de a'eto e conhecimento da msica, podemos citar a interessante o%ra do msico e

    literato %rasileiro Eos" i)uel [isnik, ( som e o sentido. [isnik reconhece que “entre os

    o%8etos '(sicos, o som " o que mais se presta a cria+5es meta'(sicas lxiIlxiJ” e dentre as diversas

    perspectivas que o autor empre)a em seu texto destacamos aqui a do valor m)ico da msica,

    que se a'ina per'eitamente @ concep+o corta6ariana de sonda)em da realidade atrav"s da arte.

     

    & msica, sendo uma ordem que se constr*i de sons, em perp"tua

    apari+o e desapari+o, escapa @ es'era tan)(vel e se presta @

    identi'ica+o com uma outra ordem do real< isso 'a6 com que se tenha

    atri%u(do a ela, nas mais di'erentes culturas, as pr*prias propriedades

    do esp(rito. ? som tem um poder mediador, herm"tico< " o elo

    comunicante do mundo material com o mundo espiritual e invis(vel. ?

    seu valor de uso m)ico reside exatamente nisto< os sons or)ani6ados

    nos in'ormam so%re a estrutura oculta da mat"ria no que ela tem de

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    29/39

    animado. G2o h como ne)ar que h nisso um modo de conhecimento

    e de sonda)em de camadas sutis da realidade.HlxiiIlxiiJ

    Podemos tam%"m encontrar em [isnik uma correla+o entre tempo e msica que corro%ora a

    especula+o de Deleu6e e de Corta6ar a respeito da su%verso da consci:ncia e da ordem do

    tempo<

     

    Desi)uais e pulsantes, os sons nos remetem no seu vai=e=vem ao

    tempo sucessivo e linear mas tam%"m a um outro tempo ausente,

    virtual, espiral, circular ou in'orme, e em todo caso no cronol*)ico,

    que su)ere um contraponto entre o tempo da consci:ncia e o no=

    tempo do inconsciente. exendo nessas dimens5es, a msica no

    re'ere nem nomeia coisas vis(veis, I...J atravessa certas redes

    de'ensivas que a consci:ncia e a lin)ua)em cristali6ada op5em @ sua

    a+o e toca em pontos de li)a+o e'etivos do mental e do corporal, do

    intelectual e do a'etivo.lxiiiIlxiiiJ

    ? poder m)ico de ir direto @ ess:ncia das coisas, ao ser  mesmo, que Cort6ar atri%ui ao poeta

    quando o compara ao ma)o primitivo Gpr"=l*)icoH em “Por uma po"tica” encontra ento, pela

    via 'ilos*'ica, uma sistemati6a+o que lhe d mais consist:ncia. 2o re'erido texto o escritor

    de'ende que a “msica ver%al”, ou se8a, a palavra po"tica, " um “ato catrtico” pelo qual a

    met'ora, a ima)em se li%erta da si)ni'ica+o para assumir a ess:ncia dos o%8etos atrav"s de

    um “tr4nsito ine'vellxivIlxivJ”. 3ntretanto, a teori6a+o e mesmo a 'ic+o de Cort6ar, ao su)erir

    a exist:ncia de um outro mundo que no o mundo aparente e ao 'alar em ess:ncia ou ser  das

    coisas, coloca o pro%lema da transcend:ncia, ou se8a, sua preocupa+o com a %usca meta'(sica

    pode ser interpretada como a %usca do conhecimento de um mundo transcendente. > como

    compreende Davi &rri)ucci para quem Cort6ar, ao explorar a dimenso primitiva do 8o)o,

     “procura dar @ sua po"tica uma dimenso transcendentelxvIlxvJ”. 2este sentido as concep+5es

    de mundo, de arte e mesmo de pensamento deleu6eanas e corta6arianas seriam

    completamente diver)entes, uma ve6 que para Deleu6e " sempre atrav"s da iman:ncia que se

    pode pensar a 'or+a do mundo e da arte e a pot:ncia do pr*prio pensamento.

     

    Te$%o !e i$an5ncia

  • 8/20/2019 A ARTE COMO PERSEGUIÇÃO DO TEMPO: ressonâncias entre Cortázar e Deleuze

    30/39

    2este momento moderno, não nos contentamos mais em pensar a iman"ncia a um transcendente, quer+se pensar a transcend"ncia no interior do imanente, e da iman"ncia que se espera uma ruptura.Deleuze e Guattari, ( que a filosofia6

    & tra8et*ria deste ensaio essa via)em pelos insti)antes territ*rios deleu6eano e corta6ariano

    poderia parecer uma hist*ria de 'ic+o cient('ica em que o 'inal 'osse um verdadeiro anticl(max

    caso nos limitssemos @ interpreta+o transcendente de &rri)ucci e constatssemos que os

    territ*rios visitados no eram sequer vi6inhos< ainda assim a via)em teria sido vlida mas o

    'inal um tanto desinteressante 'rente aos diversos pontos em que, durante o percurso, os dois

    pensamentos enriqueceram=se mutuamente. &creditamos que tam%"m na questo da

    iman:ncia, neste  ponto vlico Gponto onde a 'or+a do pensamento " capa6 de nos tirar do

    prumoH, podemos encontrar resson4ncias que asse)uram a conver):ncia dos territ*rios.

    3m primeiro lu)ar, " importante ressaltar mais uma ve6 que nosso o%8etivo no " identi'icar opensamento de Cort6ar ao de Deleu6e, mas investi)ar as possi%ilidades de dilo)o, as

    passa)ens e as potenciali6a+5es de uma o%ra na outra. Certamente EohnnF Carter “corpori'ica” 

    certos aspectos da 'iloso'ia de Deleu6e, enriquecendo=a. Da mesma 'orma, a 'iloso'ia da

    iman:ncia de Deleu6e, com sua din4mica de a)enciamentos, 'ornece aos “cron*pios” Gseriam

    crono=*pios, ou aqueles em que o tempo " delirante, do *pio; lxviIlxviJH corta6arianos e @ toda

    literatura de Cort6ar um renovado valor est"tico. Ailoso'ia e cr(tica literria so corpos te*ricos

    que mant:m uma rela+o tensa e nem sempre proveitosa. Buscamos, aqui, apenas a

    possi%ilidade de um dilo)o estimulante.

    &o lon)o do tra%alho insistimos em mostrar como a preocupa+o da literatura de Cort6ar "

    com a realidade mesma, se8a ela uma so%re=realidade ou uma entre=realidade, e apresente

    caracter(sticas da est"tica surrealista. 2este sentido, quando 'alamos em “outra realidade” no

    implica um mundo transcendente nos moldes plat-nicos, mas a entendemos como aspectos

    sutis da realidade que a percep+o ha%itual no pode captar. > compreens(vel que pensemos em

    tais aspectos sutis como a “verdadeira realidade” uma ve6 que sua percep+o se d como uma

    revela+o. as " certo que a realidade, dentro da perspectiva corta6ariana, tem que ser

    pensada como um todo aberto e tal concep+o no " menos verdadeira na 'iloso'ia deleu6eana.

    ? que se v: pelas 'issuras do mundo " a pr*pria realidade que se apresenta de 'orma

    di'erenciada em sua multiplicidade. &par:ncia e ess:ncia seriam aspectos di'erentes de uma

    mesma realidade< o campo de iman"ncia no qual estamos inseridos.

    & cr(tica de Cort6ar ao “in):nuo realismo” visa, principalmente, a percep+o automati6ada, e

    por isso mesmo rasa, do cotidiano e @ pretensiosa percep+o cient('ica que se alia ao senso

    comum e ao %om senso para 'ormatar uma realidade paci'icada, re)ular e coerentemente

    racional. > o pr*prio racionalismo cientificista Ge otimistaH da contemporaneidade Gou o que deleso%rou ap*s a se)unda )uerra mund