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  • 7/28/2019 A Geracao Digital

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    Departamento de Sociologia

    A Gerao Digital

    Jos Moreno

    Trabalho submetido como requisito parcial para avaliao na unidade curricular

    Literacia dos Novos Mdia

    Do mestrado em Comunicao, Cultura e Tecnologias de Informao

    Docentes: Professor Tiago LapaProfessor Jorge Vieira

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    Resumo

    Na sociedade em rede conectada por comunicao mediada por computador, a

    produo, distribuio e consumo de informao e de bens culturais cada vez mais

    dominantemente feita no formato digital. E esse facto altera no s os contedos

    informativos e culturais, mas tambm a forma de os apreender e incorporar noquotidiano social dos indivduos. Neste trabalho partimos de uma anlise s

    caractersticas mais marcantes e distintivas do formato digital de codificao face ao

    formato analgico para encontrar uma correspondncia com o tipo de novas literacias

    evidenciadas pelos nativos digitais e desse modo estabelecer uma dicotomia entre esta

    gerao e as anteriores. A hiptese subjacente a este trabalho que os novos formatos

    digitais de produo, distribuio e consumo de informao, conhecimento e cultura

    na sociedade em rede so apropriados socialmente pelos indivduos mediante novas

    literacias de media. Comearemos por analisar quais so as caractersticas distintivas

    dos novos media digitais, depois analisaremos quais as literacias evidenciadas pela

    actual gerao de nativos digitais face gerao anterior a partir de estudos e anlises

    j publicadas e, por fim, concluiremos analisando de que forma essas literacias so

    teis nos outros campos de desenvolvimento da sociedade em rede.

    1 Introduo

    A transio para a Sociedade em rede mediada por computadores produziu mudanasprofundas em muitos aspectos da vida em sociedade e do quotidiano dos indivduos. Amudana das tecnologias que usamos para comunicar j seria razo suficiente paraquestionarmos o tipo de literacias que so necessrias para as utilizar e a forma como essasliteracias so distribudas socialmente. Mas, com a transio para a Sociedade em Redemediada por computadores, estamos perante uma mudana ainda mais profunda e queimplica alteraes no mbito e no modo dos relacionamentos sociais dos indivduos. O queest em causa no apenas a utilizao de novas tecnologias para comunicar comcaractersticas de funcionamento diversas e tipos de apropriao diferentes mas tambm aincorporao no tecido dos usos sociais de uma srie de mudanas profundas que a adopodos media digitais integra na vida social. Como veremos mais frente, a adopo dos mediadigitais traz consigo um conjunto de alteraes no relacionamento dos indivduos com ainformao, o conhecimento e a cultura que implica igualmente uma alterao no modo derelacionamento uns com os outros. Ou seja, no se trata apenas de aprender a usar os novosmedia digitais que a tecnologia pe ao alcance dos indivduos; trata-se tambm eprovavelmente mais importante de aprender a gerir, usar e potenciar socialmente asmudanas profundas que esto por detrs dos novos media digitais e que abrem novasfronteiras aos relacionamentos sociais. A tese subjacente a esta anlise que o surgimentodos media digitais pede aos indivduos no apenas novas literacias de media para a suautilizao mas tambm novas literacias sociais para a domesticao dos seus efeitosprofundos. Entendemos aqui que nalguns casos, as transformaes da tecnologia podemimplicar tambm novas formas de enquadrar socialmente a distribuio da informao.

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    Comearemos por analisar precisamente quais so essas caractersticas dacomunicao digital que esto por detrs dos media digitais que usamos como ferramentas decomunicao e que implicam uma alterao no modelo de transmisso de informao emsociedade. Ou seja, no iremos olhar para as caractersticas dos media digitais em si asredes sociais, a internet, o hipertexto, as plataformas de vdeo, os computadores, etc massim para as transformaes que lhes esto na base e que mais profundamente afectam asociedade. E que resultam argumentamos - da transio do modelo analgico para o digital.Elencaremos as principais mudanas na forma de distribuir informao em sociedade emresultado da transio para o digital e tentaremos perceber que novas literacias mediticas esociais que essa transio reclama.

    Depois, analisaremos os estudos e anlises que tm sido feitas sobre a gerao deindivduos a que chamamos gerao digital, correspondendo queles indivduos - osprimeiros da histria da humanidade que j fizeram a maior parte do seu processo desocializao e de aprendizagem de literacias mediticas profundamente embrenhados nastecnologias de comunicao e informao digitais que estamos a analisar. Tentaremosperceber de que forma essa aprendizagem os dotou das literacias necessrias para usaremas novas tecnologias de informao e comunicao, mas tambm como que a sua forma deagir e interagir socialmente se alterou em funo disso face gerao anterior, cujo processoeducativo foi suportado por tecnologias analgicas.

    Por fim, tentaremos perceber se as caractersticas e as literacias associadas novagerao de nativos digitais vo ou no ao encontro das transformaes profundas resultantesda alterao de paradigma de comunicao que relevmos antes. Tentaremos perceber,sobretudo, se os nativos digitais esto preparados ou em preparao para poderem tirarpartido das novas potencialidades das tecnologias de informao e comunicao digitais e deque forma essas potencialidades esto a ser incorporadas no quotidiano social.

    2. O que (realmente) muda nos media digitais?

    O primeiro passo, portanto, tentarmos perceber o que que mudou na forma decomunicar em sociedade aps o desenvolvimento e a generalizao das novas tecnologias deinformao e comunicao digitais. Obviamente, cada uma dessas tecnologias umsmartphone como o iPhone, uma rede social como o Facebook, uma plataforma de partilha deficheiros como o Dropox, um software de msica como o Spotify, etc tem o seu modo deutilizao prprio e, estudando cada uma em particular, descobriramos formas de as apropriarque so diferentes de indivduo para indivduo e no necessariamente coincidentes com asexpectativas dos criadores dessas tecnologias. Obviamente podemos estudar que alteraestm que ocorrer nas competncias comunicativas dos indivduos (ou que novas competncias

    tm que adquirir) para utilizar cada uma dessas novas ferramentas em particular.Mas o que mais importante perceber que, por detrs de todas as novas tecnologiasde informao e comunicao em relao s quais se levantam estas questes de literacia,est uma transio fundamental de uma codificao da informao predominantementeanalgica para um sistema de codificao que hoje quase integralmente digital. A passagemdo analgico para o digital o fenmeno histrico que est por detrs destas novastecnologias de informao e comunicao e por detrs da emergncia da Sociedade em Rede(Castells, 2010, XVII). ele que explica o funcionamento aparentemente to diferente das

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    novas tecnologias de informao e comunicao e os efeitos aparentemente profundos queelas tm na forma como comunicamos em sociedade. Por isso tambm nos efeitosprofundos desta passagem do analgico ao digital que temos que procurar as respostas paraas novas literacias que preciso desenvolver para tirar pleno proveito das ferramentas digitais.

    O cdigo digital um cdigo bsico composto apenas por dois sinais 0 e 1 combinados de muitas formas diferentes em cadeias (strings) de 2, 4, 8, 16, 32 e maisdgitos. A linguagem digital binria a linguagem usada internamente pelos computadores e oque isso significa que quando uma mensagem produzida em formato digital ou digitalizada,o seu contedo decomposto numa srie de 0 e 1. Cada uma dessas unidades bsicas deinformao um bit, que pode ser considerado o DNA da informao digital (Negroponte,1995, 14). Como todos os computadores usam a mesma linguagem digital isso significa que,uma vez que a informao esteja digitalizada numa mquina pode estar igualmente disponvel,exactamente igual, noutra mquina que esteja ou venha a estar em contacto com ela. Esignifica tambm que, sendo digital, a informao pode ser decomposta nas suas unidadesconstitutivas, que podem ser tratadas individualmente, separadas ou recombinadas de vriasformas. Significa tambm, por fim, que a informao, sendo digital, pode ser mostrada emqualquer aparelho com capacidade de computao, que, obviamente, usa a mesmalinguagem digital, como sejam um smartphone ou um tablet, por exemplo. E, para o formatodigital, informao qualquer contedo que seja digitalizado: um texto, uma imagem, umvdeo ou um nmero. No formato digital, todos os contedos so convertidos numa linguagembinria e podem ser decompostos ou recompostos em qualquer ocasio, em qualquer local eem qualquer aparelho que domine a linguagem. Tambm importante dizer que hoje em diapraticamente todos os contedos informativos (pessoais ou colectivos) so produzidos emformato digital e so transmitidos usando tecnologias de transmisso digitais.

    Esta passagem do analgico para o digital tem vrias consequncias importantes naforma como apropriamos socialmente essas tecnologias, exige novas formas de entender autilizao das mesmas (para receber, para manipular e para enviar informao) e por issoque estabelece uma distino entre a gerao digital e as geraes anteriores.

    A mais importante dessas consequncias a interactividade. Como a informao decomposta nas suas unidades constitutivas fundamentais os bits e recomposta emqualquer computador que elas aceda, a comunicao digital sempre interactiva. Cadaindivduo que entra no processo comunicativo pode sempre responder, manipular e alterar amensagem. primeira vista pareceria que a sociedade em rede potencia este fenmeno, masna realidade o prprio fenmeno que gera a sociedade em rede (Castells, 2010, XXV): cadacomputador ligado em rede um repositrio de cdigo digital e portanto pode semprecomunicar digitalmente com qualquer outro. O que significa que existe bidireccionalidade narede e que h sempre canais de comunicao disponveis. Por outro lado, como a informaodigital fica disponvel em qualquer computador que a ela aceda, via rede ou por qualquer outraforma, isso significa que no h apenas uma verso da informao, mas tantas quantos oscomputadores que acederem a ela. Na realidade nem podemos falar de cpias; uma vezdigitalizado, qualquer documento pode ser recomposto em qualquer terminal de computador(ou num smartphone, por exemplo). A facilidade de replicar contedos converte-se assim numtrao distintivo das tecnologias digitais em relao s tecnologias analgicas e introduz umelemento de alterao na relao dos indivduos com os contedos informativos (individual ecolectiva) que tem que ser incorporado nas prticas sociais. Alm disso, com a mesmafacilidade com que se duplicam contedos tambm se podem recombinar, remisturar e

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    reutilizar quaisquer contedos digitais em qualquer produo, seja ela informativa, esttica,educativa ou de qualquer outro tipo. Da emergncia do prosumer, vai um pequeno passo,uma vez que as ferramentas de produo e remontagem da informao digital so elasprprias digitais e portanto, para alm de consumidor de informao, qualquer individuo podeser tambm seu produtor.

    A convergncia outro efeito importante da passagem da codificao analgica digital(Jenkins, 2006). Convergncia significa que, devido ao facto de cada mensagem digital serredutvel aos seus componentes bsicos e igualmente reprodutvel em qualquer computador,a mensagem pode ser reproduzida em qualquer ecr e portanto, no inverso, todas asmensagens digitais podem ser reproduzidas no mesmo ecr. Ou seja, tudo pode convergirnum nico aparelho. Se esse aparelho for mvel, estamos perante a explicao para aexponencial expanso das tecnologias de informao e comunicao portteis (smartphonese tablets) que se tem vindo a notar. Essa expanso no apenas resultado da estratgiacomercial dos fabricantes; sobretudo resultado da apropriao social da tecnologia quepermite a convergncia. Alm disso, como o udio, o vdeo, as fotos e o texto, escrito ou oral,so igualmente convertveis em sinais binrios, isso significa tambm que todos os antigosmedia podem convergir numa s mensagem. Deixamos de ter estaes de televiso, jornaisou estaes de rdio e qualquer deles pode ser qualquer das outras coisas. Esse umcaminho que os media tradicionais tm vindo a trilhar na adaptao era digital.

    Por outro lado, o facto de qualquer informao ser decomposta em sinais binriosbsicos significa que uma informao interpretada da mesma forma pelos computadores,seja aqui, na China ou nos Estados Unidos. A linguagem dos bits converte-se assim na lnguafranca da informao (Negroponte, 1995, 63). E isso d-lhe necessariamente um alcanceglobal. A informao no teria um alcance global se no fosse interpretada da mesma formapor todos os computadores do globo. Ou seja, convertida digitalmente, a informao pode serobjecto de interaco com os indivduos em qualquer lugar. Mas tambm o pode ser emqualquer tempo, o que d origem comunicao assncrona digital. Por fim, uma vez que acomunicao est registada digitalmente, ela fica disponvel para sempre, o que temconsequncias ao nvel da memria individual e colectiva e no pode deixar de gerarquestes complexas ao nvel da apropriao social que se faz dessa caracterstica datecnologia digital. Alis, os recentes debates acerca do direito ao esquecimento tmprecisamente a ver com essa adaptao que a sociedade ainda est a fazer entre aquilo que socialmente aceitvel e aquilo que a tecnologia digital oferece como potencial.

    Por fim, a codificao digital da informao tambm permite um outro efeito de fundoque pode ser aquele que tem mais consequncias invisveis: a metadata. A metadata resultado facto de a codificao digital da informao (data) permitir a criao de uma camada deinformao igualmente digital com dados relativos informao (metadata). Uma camadaadicional de inormao que no existia nas nossas formas analgicas de tratar a informao.Os bits acerca de bits, como lhes chama Negroponte (1995, 18), tm por funo regular ofluxo da informao, categoriz-la e torn-la mais inteligente. este tipo de meta-dadosque nos permite por exemplo, encontrar uma informao que procuramos usando a pesquisaGoogle, mas ele tambm que permite aos computadores do Facebook registarem todos osnossos passos na rede e criar algoritmos que nos mostram sugestes de amigos com baseno em informao que ns tenhamos dado mas em meta-informao associada nossainformao e informao dos outros utilizadores.

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    3. As literacias dos nativos digitais

    Sonia Livingstone define media literacy como: the hability to acess, analyse, evaluateand create messages across a variety of contexts (Livingstone, 2004b, 1). Nesta definio,que a autora considera vlida para os mass media impressos e transmitidos, mas tambm

    para a internet, cabem portanto quatro exerccios comunicativos diferentes. Primeiro, sercapaz de aceder aos contedos comunicativos. E isso significa encarar a distino entre quemtem acesso e quem no tem acesso s novas tecnologias de informao e comunicaodigital, o conhecido digital divide. Mas, mais ainda, deve alertar-nos para a necessidade deter em considerao as condies em que os indivduos acedem s mesmas tecnologias, poiso contexto em que o fazem (no emprego, em casa, sozinhos, junto da famlia, dos pares, etc)pode condicionar o respectivo uso e o modo de lhes aceder (Livingstone, 2004a, 4).

    Em segundo lugar, ser capaz de analisar criticamente os contedos a que acede.Receb-los no a mesma coisa que interpret-los, tanto nos media tradicionais como nosnovos media digitais. Nesta competncia comunicativa o que est em causa perceber aagncia, as categorias, as tecnologias, as linguagens, as audincias e as representaes

    usadas pelos media no acto de comunicar. Isso necessrio para um usufruto completo dacomunicao, tambm nos novos media digitais. Em terceiro lugar, o individuo tem que sercapaz de avaliar criticamente a informao que recebe. No quadro da abundncia deinformao da era digital, por exemplo, esta uma competncia crucial para se conseguirseparar o trigo do joio, ou seja, identificar que fontes de informao so fiveis ou no fiveisem determinado contexto informativo. Isso reclama um conjunto de conhecimentos adquiridosde teor social, econmico, histrico, etc, que iro permitir formar essa avaliao (Livingstone,2004a, 5). Isto particularmente relevante no quadro de um ambiente informativosuperabundante em que os indivduos so levados a construir filtros para gerir esse fluxo.Para l das literacias necessrias para montar ou construir os prprios filtros, com base nosseus conhecimentos adquiridos que os indivduos decidem o que passa ou o que no passa

    por esses filtros. Por fim, o indivduo com literacias mediticas completas deve ser capaz deele prprio produzir novas mensagens para o mesmo medium. Se isto pode ser maisproblemtico nos media tradicionais, est grandemente facilitado nos novos media digitais, emque a produo de contedos na mesma plataforma em que so recebidos mais fcil e estao alcance de todos os utilizadores pela prpria natureza digital do canal. Obviamente aquesto que se coloca das competncias para o fazer. E, tal como caso anterior, este umaspecto que permite apurar com clareza as competncias digitais de um individuo. O que senota, segundo Livingstone, que muitos utilizadores comeam a desenvolver competnciasde produo de contedos atravs do treino adquirido nas vrias ferramentas de produoque a internet coloca ao seu dispor (Livingstone, 2004b, 6). Isso corresponde ao padro deapropriao destas tecnologia que outros autores identificam na gerao a que chamamos

    digital e de que falaremos mais frente.Obviamente, Livingstone salienta que o facto de um indviduo ser capaz de usar astecnologias digitais aos seu dispor para participar nos processos comunicativos da sociedadeem rede no suficiente para se poder dizer que ele literato nos novos media digitais.

    H pelo menos trs processos de fundo, histrica e culturalmente condicionados, quedevem ser considerados quando falamos de literacias: a representao material e simblicado conhecimento, cultura e valores de uma sociedade; a difuso das capacidadesinterpretativas pela sua populao; e o modo como os poderes institucionais nomeadamente

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    o Estado gerem a distribuio de poder que a capacidade de usar os media traz a quem ossabe e pode usar. Isto vale para os novos media como vale para os media tradicionais eimpe o mesmo tipo de abordagem e de anlise.

    Se bvio que a generalizao dos media digitais tem repercusses profundas ao nvelda forma como representamos simblica e materialmente o conhecimento, os valores e acultura da nossa sociedade (qualquer que ela seja), no menos verdade que as questes daliteracia tm que ser confrontadas com a maior ou menor difuso do respectivo acesso,anlise crtica, avaliao crtica e capacidade de criao. E isso leva-nos de volta sestruturas e processos sociais no quadro dos quais as novas tecnologias de informaosurgem, so propagadas e so apropriadas. Primeiro temos que ver que uma grande parte dapopulao ainda no tem acesso a estas tecnologias e uma percentagem ainda maior no aspode usar na plenitude das suas potencialidades por razes socio-econmicas. Mas, almdisso, temos que questionar o modo institucional como essas tecnologias so usadas poraqueles que realmente as usam. Ou seja, como veremos mais frente, ao apropriarem estastecnologias digitais, os indivduos esto na realidade a participar, como objectos novoluntrios, num processo de apropriao econmica e consequentemente tambm social epoltica de que muitas vezes parecem no se aperceber e muito menos ter as competnciasnecessrias para controlar.

    Mas o conceito especfico de literacia digital foi primeiramente usado por Paul Gilster em1997 (Bowden, 2008, 18), que definiu esse conceito, de uma forma bastante genrica eabrangente, como a capacidade de usar e compreender a informao proveniente de vriasfontes digitais, o que corresponde, claro est, a uma definio que simplesmente aplica aforma mais bsica de entender qualquer literacia ao contexto especfico dos media digitais.Mas, mais frente o prprio Gilster especificou que a definio tinha mais a ver com odomnio das ideias do que com o domnio das tcnicas e que lhe interessava a cognio que oindivduo desenvolve sempre que est frente a um ecr, qualquer que ele seja. Sobretudo eisto aquilo que mais nos interessa para efeitos deste trabalho Gilster enumera ascompetncias que lhe parecem dever estar associadas ao conceito de literacia digital (Bowden,2008, 20): a) capacidade de reunio de conhecimentos, atravs da construo de um conjuntofivel de informaes de diversas fontes; b) capacidade de pesquisa de informaes,conjugada com pensamento crtico para avaliar a validade das fontes pesquisadas; c)capacidade para ler e compreender materiais sequenciais e dinmicos; d) ter conscincia daforma de conjugar as ferramentas tradicionais com os novos media em rede; e) terconscincia e saber usar as redes de pares como fonte conselho e ajuda; f) ser capaz de usarfiltros e agentes para gerir a informao recebida; g) estar to confortvel com a publicao deinformao como com o acesso a ela.

    Como veremos mais frente quando entrarmos na descrio que alguns autores fazemdas caractersticas da gerao digital e das suas literacias, repararemos que muitos destesatributos esto plasmados nos estudos feitos sobre aquilo que existe de diferente nessagerao com relao forma como apreendem e produzem contedos no quando dastecnologias de comunicao e informao digitais. E, como se pode ver, embora Gilster tenhadado inicialmente uma definio bastante aberta do que entende por literacia digital, arespectiva caracterizao acaba por introduzir muitos elementos que no estavam contidosnessa definio (por ser genrica) e que evidenciam a necessidade de introduzir vrioselementos especficos no que se entende por literacia digital por comparao com as literaciastradicionais. Isto, do ponto de vista deste trabalho, est em linha com o argumento, descrito no

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    captulo anterior, de que a adopo dos media digitais consubstanciou uma mudana radicalna maneira de processar informao, tanto para os indivduos (da a questo da literacia)como para a sociedade e para a as suas instituies. Dito de outro modo, a magnitude dastransformaes que a passagem de um mundo analgico para um mundo digital implicam,obriga a redefinir ou pelo menos enriquecer a definio e os componentes do que se entendepor literacia em cada dos campos.

    Mas, afinal, do ponto de vista cientfico, faz sentido falar de uma gerao digital?Buckingham de opinio que, em maior ou menor grau, todos somos afectados pelatecnologia, independentemente da nossa idade e portanto independentemente da gerao aque pertenamos (Buckingham, 2006, 10). A nossa interaco com a tecnologia ir dependerde condies sociais de acesso, manipulao e incorporao dessas tecnologias que podemvariar tanto entre grupos ou geraes como entre indivduos ou grupos de indivduosdentro de uma mesma gerao, por uma variedade de outras razes sociais, econmicas,culturais, etc.

    Don Tapscott, por seu lado, no hesita em delimitar claramente diferentes geraes combase num conjunto de caractersticas comuns maioria dos seus membros, sendo que aforma de apropriar socialmente as tecnologias de comunicao e informao uma delas(Tapscott, 2009, 11-19). Aquela a que ele chama Net Generation e na qual integra osindivduos nascidos entre 1977 e 1997 precisamente aquela cujas caractersticas, desteponto de vista, so fortemente afectadas pelo computador, pela internet e pelas restantestecnologias digitais (2009, 17).

    Palfrey e Gasser, por seu lado, falam em Nativos Digitais, mas resistem em consider-los uma gerao, at porque tm em conta o facto de estarmos a falar de uma minoriadentro do espectro etrio considerado, uma vez que apenas um dos seis milhes dehabitantes do planeta tm acesso s tecnologias digitais (Palfrey; Gasser, 2008, 14). Em vezdisso, preferem falar numa populao. Com caractersticas especficas, mas nonecessariamente com uma vinculao etria. No entanto, nessa caracterizao, estes autoresesto muito prximos do retrato que Tapscott faz desta gerao.

    Porque ento, chamar a esta gerao a gerao digital? Basicamente porque nosparece essa a tese que defendemos que a passagem da codificao de informao ecomunicao em formato analgico para o formato digital tem um conjunto de consequnciasprofundas ao nvel da forma de distribuir informao em sociedade (que enumermos acima)e isso acaba por ter reflexos nas caractersticas desta gerao quanto forma como comunicae se informa. Ou seja, no h aqui uma relao de causalidade entre uma coisa e outra, mash um conjunto de apropriaes da tecnologia que so uma resposta s potencialidades daprpria tecnologia para ser apropriada socialmente. Os nativos digitais esto crescentementea explorar a interactividade das tecnologias digitais porque elas permitem essa interactividade.O mesmo se aplica convergncia, meta-informao ou ao carcter global e assncrono. Oque acabaro por produzir com essas caractersticas em termos de usos e arquitecturassociais algo que ir depender do conjunto de contingncias sociais, econmicas e atpolticas em que o fazem.

    Marc Prensky estabeleceu uma dicotomia clara entre quem j nasceu dentro doambiente digital e quem nasceu fora dele: uns so os nativos digitais e os outros so osimigrantes digitais. Os primeiros pensam e processam a informao de uma formafundamentalmente diferente (Pensky, 2001, 1); os segundos so obrigados a reaprender umalinguagem que no dominam e como tal, mesmo que o aprendam, tero sempre alguma

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    forma de sotaque associado linguagem anterior (2001, 2). Mas h um problema: que soos adultos imigrantes digitais na melhor das hipteses ou iletrados digitais na pior queocupam o papel de educadores, tanto na famlia como no sistema de ensino. Por um lado,tendem a adoptar os mtodos de ensino da sua gerao, que so contrrios ao mtodo deaprendizagem preferido dos nativos digitais. Os imigrantes digitais presumem que que oscomportamentos educativos que dantes eram correctos continuaro a s-lo, mas essa

    presuno j no vlida (2001, 3). Por exemplo, os imigrantes digitais no conseguemperceber como podem os nativos digitais aprender correctamente desenvolvendo vriasactividades diferentes ao mesmo tempo (multitasking). Para Prensky isso resulta do facto deeles prprios no terem aprendido dessa forma e os nativos digitais terem crescido a fazerprecisamente isso. Ou seja, h aqui um treino prtico que uns tm e outros no e que explicaa facilidade com que uns incorporam as tecnologias digitais e as dificuldades que os outrostm para realizar a mesma tarefa. E esta dicotomia tambm a razo de muitas ideiaserradas que os imigrantes digitais (e os no letrados digitais) desenvolvem acerca dos nativosdigitais: o dfice de ateno, a dificuldade em aprender no ensino clssico, o vcio da internet,a crueldade e violncia online, a pirataria, etc. Como veremos mais frente os estudosrealizados (Tapscott, 1996, 2006) no confirmam estes receios.

    Para Tapscott, tal como para Prensky, h diferenas importantes na forma como osnativos digitais abordam estas tecnologias por oposio aos seus adoptantes mais tardios ecuja socializao meditica ocorreu num ambiente completamente diferente (Tapscott, 1998).Enquanto os nativos digitais fazem um processo de assimilao das tecnologias ao seudispor, os no-nativos tm que iniciar um processo de acomodao, que implica em muitoscasos substituir rotinas de apreenso e expresso longamente sedimentadas por outras deteor diferente. E isso torna o processo bastante mais complexo e demorado, como veremos.

    Prensky divide mesmo os contedos digitais em dois tipos: aquele a que chama legacy,e que corresponde aos contedos que j usvamos e aos quais dvamos importncia; e outroa que chama future e que corresponde aos contedos do futuro, associados s novastecnologias digitais (Prensky, 2001a, 4). Segundo este autor ns tendemos a focar-nos nosprimeiros quando devamos estar a focar-nos nos segundos.

    3. As competncias distintivas dos nativos digitais

    Primeiro em Growing up Digital e depois em Grown up Digital, Don Tapscott fez umretrato esttico e evolutivo daquela a que chamou a Net Generation (Tapscott, 1998), aprimeira gerao a crescer rodeada de tecnologias de informao e comunicao digitais, eestabeleceu uma anlise comparativa em relao s geraes anteriores, nomeadamente aque cresceu embebida no relacionamento comunicativo com a unidireccionalidade da

    televiso. Face s transformaes associadas passagem do analgico para o digital queenunciamos acima, so de esperar diferentes apropriaes da tecnologia assim como odesenvolvimento de diferentes literacias mediticas. Para Tapscott a interactividade dos mediadigitais o aspecto que mais peso assume nos novos comportamentos e nas novas literaciasda Net Generation. Mais do que espectadores, ouvintes ou leitores, os novos consumidoresde media digitais querem ser utilizadores, o que significa terem a possibilidade de interagircom qualquer fonte de informao e comunicao que estejam a usar. Querem ser sujeitos doprocesso e no apenas seus objectos. Querem ser actores e no apenas espectadores.

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    Segundo Tapscott, as tecnologias de comunicao e informao anteriores eramunidireccionais, hierrquicas, inflexveis e centralizadas, enquanto as novas tecnologias deinformao e comunicao de cariz digital so interactivas, maleveis e descentralizadas. Issonaturalmente afecta o modo de apropriao de quem cresceu sempre a utilizar essastecnologias, como a gerao digital, e impe novas literacias a quem, no sendo um nativodigital, pretender aceder a elas. No mundo da internet, os utilizadores no se limitam a receberinformao; eles tm que pesquis-la, analis-la criticamente, incorpor-la nas suas dietasmediticas e eventualmente integr-la na sua prpria produo meditica. Perante aquantidade de informao disponvel na rede, os utilizadores so obrigados no s adesenvolver a sua capacidade crtica de seleco, mas tambm de julgamento, questionandocada vez mais os valores implcitos na informao. Para Tapscott isso que leva a umadegradao visvel da noo de autoridade e do peso das hierarquias.

    Tapscott tambm identificou aquelas que eram as principais preocupaes em relao Net Generation (Tapscott, 1998): que estavam a perder as suas aptides sociais por estaremsempre ligados ao ecr; que a sua capacidade de ateno e concentrao ficavagrandemente diminuda; que tendiam a desenvolver comportamentos cruis, nomeadamenteonline; que se tornavam autocentrados e vaidosos; que ficavam mais stressados por teremadicionar mais uma actividade sua dieta meditica; e que tenderiam a ficar viciados na net.Tanto a investigao levada a cabo na poca como a investigao posterior parecem noconfirmar esses receios. Entre 2006 e 2008, uma segunda investigao dirigida por Tapscottentrevistou cerca de 6000 indivduos pertencentes Net Generation e procurou identificar osseus traos mais marcantes em termos de relacionamentos com e apropriaes das novastecnologias, estabelecendo ao mesmo tempo um quadro evolutivo relativamente ao estudo de1998 (Tapscott, 2009).

    Para Tapscott, esta gerao no apenas diferente na forma como usa a tecnologia,mas tambm na sua maneira de ser (Tapscott, 2009,10). E essa diferena resulta do facto deter crescido imersa em tecnologia digital. Para este autor o resultado final positivo, uma vezque a nova gerao digital mais tolerante em relao a diversidade, mais inteligente, mais activa enquanto participante no processo produtivo e mais activista do ponto de vistadas causas sociais.

    Do ponto de vista das suas dietas de media, os indivduos da Net Generation passammuito mais tempo online que os no-nativos dessa gerao, mas esse tempo no roubadoa outras actividades que no sejam a visualizao de programas de televiso (Tapscott, 2009,20), e mesmo esses tendem a ser consumidos em conjunto com outras actividades de media.Ou sejam, usam todos os recursos mediticos ao seu dispor, mas combinam-nos numautilizao conjunta, aquilo que se costuma designar por multitasking: ver televiso, ouvirrdio e fazer vrias coisas diferentes no computador, incluindo comunicar com os amigos,tudo ao mesmo tempo. Este , segundo Tapscott , um padro de actividade de media que osno nativos tm dificuldade em acompanhar (2009, 106) e que, mais do que da falta de umaliteracia, parece resultar da incapacidade de recorrer a vrias literacias simultneas paradescodificao de cada um dos canais de media envolvidos no muktitasking. Ou seja, o queparece resultar desta anlise que a fluncia de um indivduo na relao com umdeterminado medium pode limitar a sua capacidade para incorporar simultaneamente vriosmedia diferentes na sua dieta meditica. Isso algo, portanto, que estabelece uma dicotomiaentre os nativos digitais e os no-nativos digitais.

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    Por outro lado, os Net Geners so, segundo o estudo, activos, iniciadores,organizadores e estrategos, no sentido em que tomam a iniciativa de serem eles a iniciar osprocessos que procura e incorporao das informaes de que necessitam (Tapscott, 2009,21). Por isso so tambm indivduos que tendem a mudar as estruturas sociais e empresariaisno sentido de as tornar mais bottom-up do que top-down. Para Marc Prensky tambmessa necessidade de interactividade e iniciativa que os leva a parecer ter um re duzidacapacidade concentrao; segundo este autor o que se passa no que eles no consigamprestar ateno; na maior parte dos casos o que se passa que eles escolhem no prestarateno (Prensky, 2001b,4)

    Uma terceira caracterstica distintiva da gerao digital, segundo Tapscott, a suanatureza global (2009, 23-27), que se expressa de duas formas: por um lado, so umagerao fluente na utilizao das tecnologias de informao e comunicao que permitem sua produo comunicativa e a sua interaco social ter um alcance global; por outro lado,evidenciam, segundo os resultados do estudo, atitudes, normas e valores geracionais que sosemelhantes em vrios pontos do globo. Ou seja, esto adaptados a outra das caractersticasdo ambiente digital que foram enunciadas no princpio.

    Em quarto lugar, os nativos da era digital revelam uma tendncia muito maior que osseus antecessores para, no caso de alguns media, como a televiso, substiturem o consumoem tempo real por um consumo assncrono, via download ou streaming (Tapscott, 2009, 43).Isso acontece tambm em parte com outros media, como a rdio, mas nota-se maisintensamente na televiso. Esse comportamento possvel, em parte, porque a tecnologiapermite agora esse consumo assncrono, mas tambm porque a vasta oferta de canaistelevisivos, por exemplo, impe uma filtragem, que, usando as ferramentas disponveis, quase sempre feita em funo dos gostos e interesses pessoais de cada indivduo. CitandoTapscott, o Prime Time substitudo pelo My Time (2009, 43). Isto algo que os no -nativos digitais tm mais dificuldade em fazer. Mas isto tem implicaes bvias tambm paraas prprias estaes de televiso. A mudana em curso na forma de consumir televiso ,segundo Tapscott, um aviso para a estaes de televiso, uma vez que estamos peranteuma potencial desregulao dos modo de apropriao desse medium. Ou seja, no caso dateleviso, estamos mais uma vez perante um jogo complexo e puxa-e-empurra entre o que atecnologia permite aos indivduos fazer e o que os indivduos querem fazer com a tecnologia.

    Outra tendncia evidenciada neste estudo a de os nativos digitais transformarem agrande maioria das suas pesquisas de entretenimento ou informao em hipteses deconversao com os seus pares. Isto verifica-se na utilizao de blogues mas tambm, cadavez mais, atravs das redes sociais. Tanto uma coisa como outra so formas de os indivduosse expressarem, nem que seja apenas com a partilha de uma informao que, pelos simplesacto de partilharem, assinalam como relevante. o mesmo princpio que leva uma grandeparte dos nativos digitais a alterarem, remisturarem ou recombinarem contedos queprocuram e encontram na internet com esse fim. Ou seja, o que est aqui em causa materializao prtica do princpio da interactividade, que, como escrevemos atrs, so umadas transformaes mais importantes resultantes da passagem do analgico ao digital.Segundo Tapscott isso algo caracterstico desta gerao e estabelece uma diferenciaopara com a gerao precendente. Essa diferena expressa-se tambm, obviamente, nasliteracias envolvidas (Tapscott, 2009,45).

    Ultimamente, o crescimento da utilizao de aparelhos mveis, nomeadamentesmartphones, veio colocar mais um desafio aos indivduos em termos de domesticao dessa

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    tecnologia e da sua incorporao no quotidiano social. Obviamente, o surgimento deequipamentos portteis que, para alm de telefonar, servem um conjunto vasto de outrasfunes comunicativas, em primeiro lugar uma manifestao da convergncia dos diferentesmedia possibilitada pelo digital que j abordmos acima. Alis, de esperar que muitos dosdesenvolvimentos que iro surgir nos prximos tempos em termos de servios e plataformasde comunicao continuem a passar pelos aparelhos mveis.

    O cientista portugus Antnio Damsio foi um dos pioneiros na anlise cientfica decomo as experincias e os processos de aprendizagem dos indivduos geram consequnciasao nvel de como os circuitos neuronais do crebro se constituem em funo dessasexperincias e aprendizagens. E explicou como isso, por seu lado, tinha reflexos nosprocessos de pensamento (e emoo) revelados posteriormente pelos indivduos (Damsio,1995). Partindo da anlise feita aos nativos da gerao digital, Don Tapscott chega a umaconcluso semelhante: em funo de terem crescido e treinado as suas competnciascomunicativas num mundo de informao abundante, que necessariamente os obrigou aaceder, seriar, categorizar e recordar muitas informaes diferentes, assim desenvolvendo asrespectivas literacias (2009, 30), os nativos digitais exibem caractersticas de intelignciadiferentes das dos seus antecessores. No s mais capazes de enfrentar as exigncias dastecnologias de informao e comunicao digitais, mas tambm globalmente mais inteligentesem determinadas tarefas. Por exemplo, so mais rpidos a processar imagens em movimento(2009, 29). Marc Prensky vai no mesmo sentido: o nosso crebro altamente plstico nosentido em que os padres neuronais tendem a desenvolver-se, muito mais rapidamente doque seria de esperar, na resposta a estmulos externos (Prensky, 2001b, 2). Por isso que osnativos digitais tendem a exibir padres neuronais diferentes dos no nativos e maisadequados s exigncias de lidar com as quantidades e os tipos de estmulos comunicativos aque so sujeitos no ambiente digital. Segundo Prensky os seus crebros tornam-sefisiologicamente diferentes em resultado desses estmulos (2001b,3).

    Obviamente este tipo de anlise requer uma investigao mais aprofundada emultidisciplinar. Mas, para os efeitos pretendidos neste trabalho, suficiente sublinhar queambas as abordagens sugerem que, de facto, a circunstncia de os indivduos da geraodigital terem desenvolvido as suas aptides comunicativas num ambiente digitalprofundamente banhado em informao parece ter tido influncia na sua capacidade paragerir essa realidade atravs de um conjunto de ferramentas e estratgias de apropriao aoseu dispor, de que o referido multitasking o exemplo mais exuberante. O argumento quefazemos neste trabalho que essa precisamente a forma como os indivduos enfrentam onovo paradigma de comunicao digital com que esto confrontados: atravs de umacombinao de ferramentas tecnolgicas (existentes ou desenvolvidas para o efeito) ao seudispor e de estratgias de incorporao e apropriao de teor social. Por exemplo, o alcanceglobal de algumas ferramentas, como o Twitter vai comeando a ser interiorizado pelosindivduos com base em exemplos de utilizao que vo sendo tornados conhecidos. Eportanto s depois de percepcionadas as suas utilizaes potenciais que essas ferramentastendero a ser incorporadas no quotidiano comunicativo dos indivduos. Essa incorporaoser provvel ou improvvel e mais fcil ou difcil em funo das competncias dos indivduospara a sua utilizao, ou seja, das suas literacias mediticas digitais.

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    4. Das competncias digitais s competncias sociais uma problemtica

    A abordagem de Tapscott em relao s caractersticas distintivas da gerao digital obviamente muito optimista. E, em parte, esse optimismo resulta do facto de essa abordagemna realidade s tratar uma parte do problema, aquela que tem mais directamente a ver com a

    domesticao das ferramentas de apreenso, manipulao e emisso de mensagens que atecnologia digital pe ao dispor dos utilizadores. O que fica de lado so precisamente asquestes mais complexas e que, no essencial, decorrem das transformaes profundas eno superficiais que a evoluo do analgico para o digital est a trazer s sociedadeshumanas.

    Desde logo, subsistem dvidas quanto ao contributo positivo que a adopo das novastecnologias de informao e comunicao pela gerao digital pode ter em determinadosaspectos, como sejam o envolvimento cvico e a privacidade, por exemplo.

    Don Tapscott considera que a gerao digital que ele caracteriza exibe uma grandepropenso para se envolver em causas sociais (Tapscott, 2009, 61) e que o seu domnio dastecnologias de participao est a proporcionar uma transferncia de poder das autoridades

    para os indivduos (2009, 62). A verdade no entanto que a observao dos grandesmovimentos de envolvimento cvico registado em vrias partes do globo tem vindo a assinalaruma aparente insuficincia da tecnologias de informao para sustentarem aces realmenteimpactantes sem o concurso de outos mecanismos sociais, nomeadamente a cobertura dosmass media. Ou seja, o potencial para transformao poltica atravs da utilizao dastecnologias de informao e comunicao parece existir. Mas as transformaes polticas defacto ainda no aconteceram nesse sentido e com esse contributo. Neste ponto a insuficinciano parece ser de utilizao das tecnologias para comunicar, mas sim de agir politicamenteem funo dessa comunicao. Ou seja, existir aqui menos um problema de literacias do queum problema de aco poltica e cvica concreta. Embora de facto se possa argumentar que adissonncia notada entre a comunicao e a aco seja um factor que insinua uma incompleta

    ou imperfeita apropriao social das tecnologias de informao e comunicao modernas nocampo poltico. Palfrey e Gasser, por exemplo, consideram que este um problema srio. Osjovens nativos digiatais de facto usam as novas tecnologias ao seu dispor para fins de acocvica e poltica, mas na realidade a concluso a que os prprios chegam que essautilizao no suficiente (Palfrey, Gasser, 2008, 15). Esta discrepncia entre expectativas eresultados pode deixar de ter consequncias sobre os prprios indivduos, suficientementerelevantes para sugerirem um estudo prprio.

    No que se refere questo da privacidade, at um autor optimista como Don Tapscotttem srias dvidas sobre a aparente facilidade com que os indivduos da Net Generationexpem publicamente sobretudo nas redes sociais muitos aspectos da sua vida privada(Tapscott, 2009, 65). Como sabido, as redes sociais colocam normalmente ao dispor dos

    seus utilizadores configuraes de segurana e de privacidade que, se devidamentereguladas, poderiam em muitos casos suavizar ou suprimir o problema de excessivaexposio da privacidade. Mas o que se nota que poucos desses utilizadores as usam emtodo o seu potencial. O que levanta um problema de literacias para o fazer (Tapscott, 2009,69). Para alm de que, como j vimos, isso em nada interfere com a capacidade doscomputadores para constituir, tratar e explorar bases de dados resultantes da aco dosindivduos nessas redes sociais sem que estes tenham conhecimento perfeito desse facto.

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    Por outro lado, h que ter tambm em conta a questo da transparncia ou opacidadeda tecnologia. Segundo Tapscott (1998), uma tecnologia opaca aquela que esconde ofuncionamento interno da mquina, enquanto uma tecnologia transparente , pelo contrrio,aquela que se mostra ao utilizador e lhe permite aceder programao e aos cdigos queesto por detrs do funcionamento da tecnologia, seja ela um smartphone, um website ouuma aplicao. No limite da transparncia, naturalmente, esto os 1 e 0 que constituem alinguagem binria dos computadores e aos quais se acede, quase sempre, usando outraslinguagens de traduo mais prximas da nossa.

    Pois bem, o que Tapscott afirma que, com os nativos digitais, est a surgir uma novaforma de transparncia: eles no vem de todo a tecnologia; o que eles vem e aquilo emque so literatos na utilizao da tecnologia. Para comunicar com os amigos, para filtrarinformao, para produzir contedos, etc. Tapscott estabelece um paralelo com a forma comoa gerao anterior via a televiso: no como uma tecnologia, mas como a imagem e o somque ela transporta at ns. O mesmo se passa hoje, segundo Tapscott, com a gerao digitale os computadores.

    Ora, isto pode ser um problema se tivermos em conta que, como foi referido atrs, acamada de informao digital meta-dados que caracteriza, gere e manipula a prpriainformao aquela que mais peso e importncia assume na comunicao, informao earmazenamento digital. No conhecer essa camada de informao e sobretudo no ter asliteracias para a controlar pode facilmente colocar os seus utilizadores ao alcance da capturados respectivos dados (e do respectivo valor) por outras entidades. Este problema visvel,por exemplo, no tipo de utilizao que feito das plataformas de intercmbio social queactualmente existem, como o Facebook. Como j vimos atrs a propsito da privacidade, agrande maioria dos utilizadores usa aquela rede social abundantemente, mas sem conscinciada quantidade e teor dos meta-dados que sobre a sua actividade e em sua caracterizao soregistados, processados e recombinados. Muitos deles no tm sequer conhecimentos literacias suficientes para conseguirem regular convenientemente as configuraes desegurana e privacidade. E sublinhe-se mesmo que o consigam fazer, isso nem sequerafecta a camada de meta-dados de que temos vindo a falar.

    Manovich, por seu lado, salienta a qualidade de metamedium do computador, umconceito originalmente utilizado por Alan Kay em 1977. Entedido como metamedium, ocomputador simultaneamente um transmissor dos diferentes media e um sistema para gerarnovos media e ferramentas de criao de novos media (Manovich, 2013,102). Comparando osmedia digitais com os analgicos, Kay considera que a capacidade para ler um mediumsignifica que quem o faz consegue aceder a materiais e ferramentas criados por outros; acapacidade de escrever num mdium significa que quem o faz consegue gerar materiais eferramentas para utilizar por outros.

    Enquadrando esta questo das novas literacias e das novas competncias da geraodigital, Manuel Castells recorda, primeiro, que estamos numa sociedade liderada pelainformao e pelos seus agentes e, segundo, que a difuso da tecnologia de impressoinventada por Gutenberg foi muito lenta devido iliteracia das populaes da poca e reduzida preponderncia que a informao tinha na sociedade de ento (Castells, 2010, 30).Hoje ambas as coisas so completamente diferentes: no s o conhecimento e a informaoso centrais nos processos sociais, como as pessoas so em geral literatas e portanto maispreparadas para receber novas tecnologias. O que significa que estas se propagam muitomais rapidamente e muitos mais generalizadamente. Mas no tudo. O efeito mais importante,

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    segundo Castells, que as tecnologias digitais em particular tm o condo de instituir umcircuito de feedback (Castells, 2010, 31) em que cada nova tecnologia usada pelosindivduos de forma a agir sobre as restantes gerando mais inovao tecnolgica. SegundoCastells passmos de uma fase em que os utilizadores aprendiam as tecnologias usando-aspara uma outra em que os utilizadores aprendem as tecnologias fazendo-as (2010, 31).

    Manovich tambm cita um artigo publicado em Maro de 2012, no New York Timesindicando uma procura crescente pelos cursos de formao em linguagens de programao(Manovich, 2013, 17), deduzindo da que os indivduos querem, no apenas saber usar astecnologias de informao e comunicao que a internet pe ao seu dispor, mas tambmperceber como funcionam e como afectam e condicionam o mundo em que vivem. Por issoeste autor considera que na realidade, o mais importante divide em termos de literacia digital hoje aquele que se estabelece entre quem sabe programar e quem no sabe. Uma tesemuito semelhante defendida por Douglas Rushkoff no livro Program or be Programmed:When human beings acquired language, we learned not just how to listen but how to speak.When we gained literacy, we learned not just how to read but how to write. And as we move

    into an inscreasingly digital reality, we must learn no just how to use programs but how to

    make them. In the emerging, highly programmed landscape ahead, you will either create the

    software or you will be the software. Its really that simple: Program or be programmed.

    Choose the former, and you gain acess to the control panel of civilization. Choose the later,

    and it could be the last real choice you get to make . (Rushkoff, 2010, 7-8). Dentro do mesmoesprito, Lev Manovich prope a criao de uma rea de investigao a que chama softwarestudies, considerando que o estudo de como funcionam os computadores no manejo dainformao uma parte importante do estudo da cultura e da comunicao em formato digital(Manovich, 2013, 10).

    Seja como for, uma coisa parece poder concluir-se da anlise efectuada: consideradostodos os factores, a gerao que cresceu imersa nas tecnologias digitais e a que chammosGerao Digital est especialmente preparada para enfrentar os desafios da domesticaodestas tecnologias e para lidar com as surpresas e incertezas que ela pode implicar. Atporque, argumenta finalmente Tapscott (2009, 71), o seu domnio das tecnologias digitais eportanto a sua literacia digital tem vindo a evoluir na exacta proporo da evoluo datecnologia. E isso pode ser um bom augrio para o futuro.

    5. Concluso

    A hiptese inicial colocada neste trabalho recorde-se era a de saber se a passagemde uma realidade comunicativa sobretudo analgica para outra predominantemente digitalimplicava novas literacias e novas formas de apropriar socialmente a tecnologia, por um lado,

    e se isso era evidenciado pela primeira gerao de indivduos nascidos e criados emambiente digitalA resposta parece ser sim e no. Os estudos levados a cabo por Don Tapscott

    confirmam que os nativos digitais so de facto diferentes, nas suas capacidades para usarema tecnologia e nas formas sociais de a apropriar, e que esto mais bem preparados, do pontode vista das literacias, para as colocarem ao seu servio. Alis, estabelece-se desse ponto devista um processo de apropriao pelo uso que leva a que as novas tecnologias surgidassejam domesticadas com relativa facilidade e mesmo rapidez.

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    Mas essa uma anlise que apenas vale para a manifestao mais superficial datransformao digital em curso. Uma coisa olhar para a forma como os nativos digitais lidamcom as ferramentas de comunicao e informao que a tecnologia digital pe ao seu dispor;outra coisa diferente avaliar de que forma essa apropriao vai ou no ao encontro dasmudanas profundas que essas tecnologias insinuam, possibilitam e nalguns casos impem.Exemplifiquemos: a maior parte dos nativos digitais usa sem problemas de literacias uma redesocial como o Facebook, desfrutando das vantagens que ela oferece em termos decomunicao com os outros indivduos, estejam onde estiverem, em sncrono ou assncrono,usando imagens, textos ou vdeos, recebendo, partilhando ou criando os seus prprioscontedos. Ou sejam: usam a ferramenta em todo o seu potencial. No entanto, poucos tmnoo que enquanto a usam est a ser capturada e capitalizada comercialmente informaosobre a sua presena na rede. Poucos tm noo disso e nenhuns o podem controlar. Omesmo, por exemplo, para a forma como o twitter usado para potenciar manifestaespolticas, mas depois dessas manifestaes nada resulta em alterao da realidade; ou para afacilidade e frequncia com que os nativos digitais fazem o upload ou download de msicaignorando quaisquer consideraes acerca dos direitos de autor eventualmente envolvidos.

    Ou seja, os nativos digitais e os imigrantes digitais tambm no tm dificuldade emutilizar as ferramentas que a tecnologia coloca ao seu dispor. Mas a sociedade quecolectivamente constituem tem bvias dificuldades em lidar com alguns dos problemas que, aum nvel mais profundo, as condies de funcionamento dessas tecnologias lhe colocam.Esses problemas relacionam-se com aquelas profundas transformaes decorrentes do digitala que j aludimos atrs. A recolha de meta-dados, por exemplo, uma das reas que se temtornado mais importante e influenciadora de como funciona a comunicao digital nos nossosdias. E tambm uma das reas com maior potencial transformativo no futuro, como se podever pelas referncias ao big data e inteligncia colectiva (e artificial) que ele pode gerar. Noentanto, a recolha, tratamento e utilizao desses meta-dados est dentro poder discricionriode alguns indivduos (e empresas) e longe de qualquer tipo de enquadramento institucionalem termos sociais. Outro exemplo: os nativos digitais no tm qualquer dificuldade emprocurar, encontrar, utilizar, propagar e eventualmente remisturar e recompor as notcias quecirculam na rede sobre os assuntos que lhes interessam, aproveitando a flexibilidade permitidapela sua natureza digital. Mas a sociedade como um todo ainda no encontrou uma forma deassociar a essa utilizao a remunerao do trabalho dos profissionais de comunicao queproduziram essas notcias. Ou seja, a forma institucional de distribuir informao na eraanalgica ainda no tem uma institucionalizao correspondente na era digital.

    O que isso significa que no h nenhum problema com as literacias digitais. Mas, sim,h um problema ao nvel mais profundo da incorporao na sociedade nas suas estruturas,nos seus processos e nos seus actores - dos efeitos dessas tecnologias sobre a prpriasociedade. Por isso que alguns autores, por exemplo, propem um reforo do conhecimentoe do controlo por parte dos indivduos, da camada de meta-informao que circula noscomputadores e nos servidores ligados em rede (Manovich prope os software studies, porexemplo). A mesma falta de uma resposta social se pode apontar questo da privacidade,por exemplo, ou ao problema da gratuitidade/qualidade da informao, etc.

    Em suma, a gerao digital que aqui procurmos caracterizar no apenas a primeira aconfrontar-se com as novas tecnologias de informao e comunicao digitas; tambm aprimeira a confrontar-se com a necessidade de inventar uma sociedade nova para lidar comelas.

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