tres seculos e uma geracao

368
TRÊS SÉCULOS E UMA GERAÇÃO

Upload: daniel-paes-de-souza

Post on 26-Jul-2015

175 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

TRS SCULOS E UMA GERAO

MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES

Ministro de Estado Secretrio-Geral

Embaixador Celso Amorim Embaixador Antonio de Aguiar Patriota

FUNDAO ALEXANDRE DE GUSMO

Presidente

Embaixador Jeronimo Moscardo

A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo, Sala 1 70170-900 Braslia, DF Telefones: (61) 3411-6033/6034 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

Trs sculos e uma gerao

Braslia, 2010

Copyright Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 3411-6033/6034 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected]

Capa: Tomie Ohtake, 1986 Serigrafia - 96 x 64 cm Equipe Tcnica: Maria Marta Cezar Lopes Henrique da Silveira Sardinha Pinto Filho Andr Yuji Pinheiro Uema Cntia Rejane Sousa Arajo Gonalves Erika Silva Nascimento Fernanda Leal Wanderley Juliana Corra de Freitas Programao Visual e Diagramao: Juliana Orem

Impresso no Brasil 2010 L869t Lorenzo Fernandez, Oscar. Trs sculos e uma gerao / Oscar Lorenzo. Braslia : FUNAG, 2010. 368p. : il. ISBN: 978-85-7631-261-1 1. Poltica externa - Brasil. 2. Poltica econmica internacional. I. Ttulo. CDU: 327(81)

Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

a Maria Luiza.

Sumrio

Prefcio, 9 Introduo, 11 Captulo 1 - Alguns elementos de uma Linha de Tempo, 19 Captulo 2 - A Supernova, 39 A contribuio de Marx, 41 Da teoria para o mundo real, 44 O cenrio de ps-guerra, 50 A perplexidade da condio brasileira, 55 A militncia armada, 57 O modelo cannico de interpretao do mundo, 58 A trajetria russa, 59 A guinada de geraes: Khruschov, 64 A flecha descendente, 67 O olhar no espelho retrovisor, 71 A problemtica do desenvolvimento, 76 Fim e princpio, 78 Captulo 3 - Crescimento e Desenvolvimento econmico, 85 A origem da temtica do desenvolvimento, 86 Preliminares Brasileiras, 89 Da teoria para o contexto brasileiro e a CEPAL, 91 Elementos da experincia brasileira, 98

O cenrio evolutivo terico, 103 As prescries do ps-guerra, 119 Caminhos ps-1964, 122 A guinada terica e a nova ortodoxia, 123 Algumas questes de fundo, 135 A inflexo ideolgica, 138 Perplexidade, 145 Captulo 4 - A dinmica do cenrio internacional, 149 O ramo descendente da parbola, 158 A transio do ps-guerra, 163 O esgotamento da concepo de Bretton Woods, 168 Mudana de configurao do sistema internacional, 171 O aumento da assimetria, 179 A trajetria brasileira, 183 Novas faces do sistema e novos atores, 186 O potencial de conflitos, 191 Evoluo da problemtica, 197 A complexidade e os atores, 201 Bens intangveis e poder regulatrio, 206 O novo contexto das perspectivas brasileiras, 211 Captulo 5 - Conhecimento e Universo Material, 217 A disputa homem-natureza, 218 Paradigmas do conhecimento, 221 Segunda Revoluo Industrial e fordismo, 232 A Revoluo da Informao e das Telecomunicaes, 242 A evoluo quantitativa da informao e das comunicaes, 250 Redes, 257 Impacto das mudanas da sociedade da informao, 267 Algumas anotaes sobre o Brasil, 278 Observaes finais, 288 Captulo 8 - O posto do homem no Cosmos, 291 Notas, 359

PrefcioCelso Amorim Ministro das Relaes Exteriores

O Embaixador Oscar Lorenzo Fernandez foi um diplomata de grande distino. Desempenhou funes importantes ao longo de sua carreira, dentro e fora do Itamaraty. Trabalhou no antigo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDE), no Ministrio da Indstria e Comrcio, do qual foi Secretrio-Geral, no Ministrio da Fazenda e na Presidncia da Repblica de Juscelino Kubitschek. Serviu em Buenos Aires, Washington, Bonn, Genebra, Roterd, Londres e, finalmente, regressou a Bonn na qualidade de Embaixador do Brasil na Alemanha. um servidor pblico do qual o Itamaraty tem orgulho de j ter tido em seus quadros. Intelectualmente inquieto e movido por desafios, o Embaixador Lorenzo Fernandez foi um dos primeiros diplomatas brasileiros a enxergar a poltica externa em cenrios de longo prazo. Tendo trabalhado com o Embaixador Miguel Ozrio de Almeida no Plano de Metas de JK e depois no BNDE, aprendeu com um dos pioneiros da diplomacia econmica no Pas. Sempre se empenhou e continua a faz-lo em pensar o desenvolvimento do Brasil de uma perspectiva mais larga que aquela da conjuntura. Seu livro Trs sculos e uma gerao, como o prprio ttulo j antecipa, transcende o gnero das memrias diplomticas. Traz reflexes sobre a evoluo das relaes internacionais, sobre a construo do Brasil e sobre nossa insero internacional. Trata-se de um registro da Histria a partir de um ngulo eminentemente brasileiro.9

CELSO AMORIM

A Fundao Alexandre de Gusmo oferece uma importante contribuio para as novas geraes de estudiosos ao trazer a pblico uma verso da Histria contada por um observador participante da vida poltica e diplomtica brasileira nos ltimos decnios.

10

Introduo

Dizia J. Ortega y Gasset que o homem no tem natureza, e sim histria, e cada gerao tem de reescrever a sua prpria (a expresso mtodo histrico das geraes do seu discpulo Julian Marias). Embora estes filsofos estejam hoje meio esquecidos, pode ser uma designao til para as irregularidades da paisagem humana. Nasci numa gerao surgida no intervalo de alguns anos em torno da dcada de 1920. Os pouco mais de dez anos entre o fim da I Guerra e o comeo da Depresso testemunharam o incio daquilo a que Hobsbawm daria o nome curiosamente apropriado de curto Sculo XX, e uma ruptura e compresso do tempo histrico, com formidvel transformao nas relaes entre o homem e o seu contorno material, a acelerao sem precedentes da tecnologia, do domnio sobre a natureza fsica, traumaticamente sobreposta aos tremendos cmbios do universo histrico e cultural, cada vez mais intensos desde o incio da Era Moderna. Ao fim de um sculo de paz e de orgulhosa hegemonia mundial ostentada com pompa e circunstncia, I Guerra provocara, na Europa, ademais da inimaginvel devastao, um desafio a todo entendimento: a impermeabilidade e inconsequncia de elites que se haviam alegremente precipitado na matana e destruio, a incompetncia do estabelecimento militar, e a estupidez das atitudes e decises da precria paz que se seguiu. A Revoluo Russa de 1917, ao varrer, no momento mais grave da Guerra, o mais ptreo Imprio existente, parecia, a muitos, sinalizar o fracasso definitivo da Civilizao11

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

Ocidental, e a alguns, augurar tempos novos, mas j se prenunciavam os totalitarismos incompreensveis na era de regimes parlamentares civilizados. Por outro lado, a exploso econmica e tecnolgica americana abria a sociedade de consumo, na qual as antigas virtudes da moderao eram descartadas sem dores de conscincia. O Brasil dos anos 20, com os novos fermentos da industrializao e crescimento, j comeava a sentir-se e pensar-se na primeira pessoa, no mais como plida projeo da Europa sem, contudo, sentimentos de compulso trgica ou agnica. Embora j se estivesse a caminho de patamares menos simplistas de percepo da realidade, ainda ressoavam abafadas notas do ufanismo declamatrio da transio do sculo, da cultura do soneto perfeito. Pairava no ar uma espcie de perplexidade ldica, conquanto fossemos no se duvidava uma terra abenoada por incontveis riquezas, e um povo cordial (o termo de Ribeiro Couto, posto depois em circulao por S. Buarque de Holanda), cujas maiores dificuldades correriam por conta de mazelas como passado colonial, natureza, topografia, clima, insetos, doenas, e escassez de combustveis fsseis. Dificuldades um dia seguramente remediveis. De 1920 a 1950, o Brasil, longe do novo consumismo, permanecia segmentado em um vasto arquiplago social e econmico: comunicaes difceis, transportes precrios, indstria e servios insignificantes, mercados locais pequenos, base agrria de baixa produtividade, tecnologicamente estacionria, educao miservel e participao poltica mnima (em 1920, eram analfabetos 2 em cada 3 adultos, e um votavam em cada 20). O pas vivia em um espao-tempo seu particular, em condies de insularidade de que escassa conscincia tinha. No se percebia alienado o prprio conceito de alienao no se tornara ainda moeda corrente em todas as transaes intelectuais, legtimas ou no. At a afirmao hegemnica dos Estados Unidos na II Guerra, a modesta elite ilustrada ainda enxergava na Frana o centro intelectual do mundo. O problema da modernidade estava no ar desde o Imprio. Assumiria cores polticas com a influncia positivista, forte no estamento militar, que ganhara conscincia de si na Guerra do Paraguai. A ideia do progresso indefinito calaria a ideologia republicana. Mas eram tintas de superfcie: a esttica estrutura agrria continuaria a dominar na Repblica Velha, ao preo de contnuos atritos entre grupos oligrquicos no comando dos diferentes Estados, e de mal-estar crescente no setor urbano em expanso. Em questes12

INTRODUO

econmicas, numa perspectiva totalmente ateortica, o pas oficial anunciava sua condio essencialmente agrcola. O desabamento da Era Liberal Clssica com o choque da Depresso, ao atingir em cheio o caf o vigamento das classes dominantes, e principal objetivo da rala poltica econmica, que So Paulo comandava, sob crescentes reclamos das regies perifricas do pas impor-nos-ia, de repente, uma reinterpretao do mundo, para a qual no havia parmetros definidos. S por reflexo se percebia a desagregao da ordem liberal: os anos 20 haviam sido de ldica efervescncia literria e artstica. A reflexo mais penosa teria de esperar pela dcada seguinte, quando se veria, no prprio centro hegemnico da civilizao ocidental, um tenebroso apagamento geral das referncias ticas e intelectuais. A Revoluo de 30, marco miliar do segundo dos trs sculos da minha gerao, no estava na ordem natural das coisas. Simplesmente aconteceu, quando, na sucesso presidencial um tpico jogo de Estados perifricos contra os dois maiores, o caf com leite, So Paulo e Minas um Presidente teimoso resolveu mudar a ordem das posies contra esta ltima, que reagiu, aliando-se ao Rio Grande e Paraba. O candidato oficial, como esperado, ganhou nominalmente e, no fosse a crise, tudo se teria resolvido da forma habitual. O governo de exceo de Getlio Vargas que define, no tempo, a insero da minha gerao seria aceito pelas classes mdias e pela massa da populao, aversa aos polticos carcomidos da Repblica Velha (termo de ento), e se embrenharia numa ampla modernizao do Estado, e numa industrializao de vis nacionalista. Mas outras foras tambm procuravam chegar superfcie. Em 1935 acontecimento incompreensvel em termos do momento e do pas real o Brasil veria, a nica tentativa revolucionria comunista em todo o Continente, patrocinada pelo Comintern. Salvo o convoluto caso do Mxico a nica grande revoluo social latino-americana, que em uns dez anos, provocou 1 milho de mortes, para degenerar em 71 anos de um regime corrupto, quase de partido nico a praxe latino-americana limitava-se a disputas oligrquicas e quarteladas de opereta. As dificuldades causadas pela desagregao da ordem econmica internacional seriam exacerbadas pela II Guerra. Sem refinarias de petrleo, e fechadas as fontes de suprimento, o Brasil, beira do colapso, dependeu de ajuda americana. Por outro lado, sua posio geogrfica e alguns recursos naturais eram militarmente essenciais para os Aliados. Numa onda de indignao popular pelo torpedeamento de vrios navios, com muitas vtimas,13

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

o pas declararia guerra ao Eixo, apenas meses depois dos Estados Unidos, e participaria com tropa, fora area de combate e patrulhas navais. Trs misses conjuntas com o governo americano (duas na Guerra) seriam organizadas para diagnosticar os problemas econmicos e organizacionais, e na sua esteira, viriam a Comisso Mista Brasil-Estados Unidos e a BNDE/ CEPAL. Desses trabalhos resultariam subsdios tcnicos para a avaliao dos estrangulamentos fsicos e das deficincias infraestruturais da economia brasileira, que serviram de base, nos anos 50, para os projetos do 2o Governo Vargas, e o Programa de Metas de J. Kubitschek. O pas nunca chegou a passar por traumatismos realmente violentos. A Independncia foi um ato formal do prncipe portugus. A Repblica nasceu da insubordinao de uns poucos oficiais jovens. Deodoro, ao que parece no momento em que levantou o bon na saudao regulamentar ao Imperador no teve noo de que estava proclamando um novo regime. E o povo assistiu a tudo bestificado, conforme a frase definitiva do republicano Aristides Lobo. A Revoluo de 30, divisor de guas entre o pas antigo e o atual, se fez com toques de comdia burlesca. E assim se deu com a deposio de Vargas, a posse de Kubitschek, a renncia de J. Quadros, a deposio de J. Goulart, a pacfica devoluo democrtica de 1985, e o impedimento de Collor, em 92. O mais brutal episdio da histria do Brasil independente foi a farsa tragicmica da campanha de Canudos, de um desvairado recente governo republicano. Nos primeiros anos depois de 1945, a gerao de entre-guerras deparavase com duas alternativas de organizao social e econmica, a capitalista amenizada e a socialista ambas propondo, por meios diversos, o mesmo objetivo do domnio ilimitado do homem sobre a natureza material. Tanto a Unio Sovitica, quanto os Estados Unidos haviam sado vencedores e demonstrado, em paralelo com as suas proezas militares, enorme eficincia organizacional e industrial. A intelligentsia brasileira de entre-guerras inclinavase mais para a esquerda a tendncia intelectual dominante tipicamente francesa. Mas o pas no tinha uma teoria de si mesmo uma experincia que, no ISEB, H. Jaguaribe, eu, e outros tentaramos. As contradies que seriam exacerbadas pelo desenvolvimentismo encontrariam uma sociedade desprovida de matrizes de autointerpretao solidamente configuradas. Ortega y Gasset perguntou, certa vez, qu insuficiencias radicales padece la cultura europea moderna? Com restries, algo parecido se poderia indagar sobre o pas. Mas a reflexo crtica retida pelas categorias14

INTRODUO

analticas que emprega. Euclides o ilustra bem: intenso, srio e corajoso, valeuse, como cientficos, de conceitos raciais que nos estigmatizavam como povo inferior. E ainda hoje bastante acrtico, de segunda mo, o menu ordinrio servido pelas universidades, imprensa e polticos. Talvez no seja, porm, o caso de falar-se em insuficincias radicais na cultura brasileira, no pensamento brasileiro sobre o Brasil. Mas, enquanto a hiprbole de Ortega dizia invertebrada, mais representativa pode ser a ideia da geleia geral brasileira, dos tropicalistas dos agitados (e, no final, fracassados) anos 68. Neste trabalho, como dissemos, propomo-nos apenas recordar o percurso feito mas, (parafraseando Claude Lvi-Strauss, que viveu no Brasil nos anos 30 a 50), os fatos no chegam prontos para o consumo, vm crus, no cozidos. Este texto disposto em uma Introduo e seis captulos que, primeira vista, podem afigurar-se como ensios isolados. Foram pensados, porm, como janelas de uma torre, voltadas em outras tantas direes diferentes. Sua unidade dada interiormente pela experincia intelectual do autor, que se desculpa mincias tcnicas talvez excessivas, que lhe pareceram, porm, apropriadas. O Captulo 1 traz uma breve abordagem das seis inflexes maiores no processo evolutivo do pas desde o incio da minha gerao. O Captulo 2 procura abordar as tentaes, contradies, encantos e desencantos do horizonte aberto pelo pensamento marxista e pelo grande choque mobilizador da Revoluo Russa no ambiente mundial e nacional dos anos 20 e 30. Hoje um assunto antigo, para muitos, talvez esgotado. A busca da utopia no resistiu bem s sucessivas contradies da realidade. Entretanto, foi central para uma gerao que se descobriu entre as runas de um mundo anterior j alheio, e um projeto novo de realizao do homem, num momento em que a pergunta sobre a civilizao ocidental, o destino humano e da cultura, parecia chegar a uma zona opaca. A proposta de Marx de devolver ao homem o controle do seu destino, ainda no nos parece exaurida. uma lembrana em que entram elementos pessoais e geracionais. Como em Fernando Pessoa sobre o Natal, fui-o ento agora. O Captulo 3 focaliza o desenvolvimento econmico, questo que, at meados dos anos 70, no pas e no mundo, ficou no centro das preocupaes poltico-econmicas. Ainda que surgida no bero da prpria teoria econmica, essa temtica s viria a atrair interesse aps a Depresso dos anos 30, quando os pases centrais tiveram de buscar respostas empricas imediatas para a15

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

estabilidade e o crescimento. Esse interesse descreveu como que uma grande parbola, com o ponto mais alto entre 1946 e 1973, decaindo, depois das crises dos anos 70 e 80, at o seu nvel residual de hoje. Por boas ou ms razes, tanto as teorias, com pretenes universalistas, quanto as tentativas de engenharia centralizada do processo econmico, acabaram por falhar, e numa reverso brusca, o sistema-mundo retornaria a mecanismos de mercado, que as esquerdas batizariam de neoliberalismo. O Captulo 4 considera o contexto externo no perodo. A economia brasileira sempre esteve intimamente ligada ao sistema-mundo, mas da Depresso at o fim do governo de Kubitschek, houve certa desconexo: o pas, at ento acomodado num canto geopolticamente pouco ativo do planeta, voltou-se mais para dentro, e certo sentido de autarquia tendeu a colorir as concepes da economia e da poltica externa. E assim, o Brasil se viu em posio privilegiada para assumir a liderana do que se chamaria de desenvolvimentismo, e impregnaria a interpretao oficial da realidade, at a vazante de 1973 a 1982, desde quando, at o final da dcada de 90, o pas encontraria dificuldades na sua relao com o invlucro externo. O Captulo 5 (longo, ainda que sumrio) focaliza a acelerao transformativa das relaes materiais homem-mundo o esforo para dominar a natureza os passos consecutivos dados nas cincias, na tecnologia, e no universo da informao. O homem aquilo que faz: dominar a natureza a essncia da sua condio no mundo, e se traduz num ininterrupto processo cumulativo de coleta, processamento, armazenamento, transmisso e organizao da informao, sua metabolizao sob a forma de conhecimento, a interao interminvel deste, a sua sistematizao como cincia, e seu retorno sobre o concreto sob a forma de tecnologia. O carter no linear da progresso do domnio do homem sobre o mundo assumiu, desde o Sc. XVIII, aspetos to dramticos que, no Sc. XIX justificou o nome de Revoluo Industrial. Nem a minha gerao, nem o pas, nem o mundo, so inteligveis na medida em que o sejam seno quando projetados sobre essa tela. O Captulo 6 transpe o foco para uma reflexo mais ntima sobre o pas e a condio humana. Na pergunta sobre o que est subentendida O qu fazer?, como no ttulo do pequeno livro de Lenin, de 1902. Sua epgrafe se inspirou em Max Scheler, e relembra bem mais de meio sculo de meditaes, partilhadas com H. Jaguaribe, sobre a condio e o destino humano. Se repostas no so alcanveis, ao menos as perguntas a esto para nos atormentar.16

INTRODUO

O ttulo, Trs Sculos e uma Gerao, como dito de incio, tomou de Hobsbawm a noo do Curto Sculo XX. Dos anos 20 ao atual raiar do terceiro Milnio, as trajetrias do sistema externo e do Brasil convergem com contradies, e o pas passa de uma sociedade semicolonial, ainda prxima do tempo escravista, cliente passivo de naes da Revoluo Industrial, a outra certamente j de crescente relevncia na ordem no contexto global, emergente e, ainda que em escala discreta, uma sociedade de consumo altamente urbanizada, e (modestamente) de classe mdia, parte de um contexto global que prossegue em transio acelerada para onde, no se vislumbra. Algum que j tenha acumulado bastantes anos encontra facilmente quem lhe sugira escrever uma biografia sempre existe curiosidade humana na bisbilhotagem de qualquer vida. O autor viveu a sua to intensamente quanto pde participou, de modos vrios, da coisa pblica e enquanto girava o seu caleidoscpio, aconteciam o pas e o mundo. Mas este texto uma proposta sem pretenses biogrficas ou histricas. Ao deixar fluir suas reflexes, sabe o autor correr o risco de que lhe lembrem Giovani Pico dela Mirandola aquele que nos deixou a bela Oratio de Hominis Dignitate, admirvel documento inicial do humanismo moderno, e chegaria a ser condenado pelo Papa Inocente VIII (o que instituiu a Inquisio contra a feitiaria) mas que tambm lembrado por jovem e impertinente, ao fim do Sc. XV haver proposto publice disputandae 900 teses, de omni re scibili, de todas as coisas sabveis, (a que Voltaire depois maliciosamente acrescentaria et quibusdam aliis...). O autor, em todo o caso, no pretendeu expor teses disputa pblica, meramente deter-se sobre o caminho percorrido.

17

Captulo 1 - Alguns elementos de uma Linha de Tempo

O universo do Brasil, ainda era, na dcada de 20, a bem dizer-se, o da transio do Sculo XIX para o Sculo XX. A eletricidade s seria produzida industrialmente em 1907. A educao, para aqueles que tinham acesso a ela, era tradicional lembro-me ainda dos manuais franceses FTD. E ningum estranharia neles, como num curioso texto para uso no Senegal, a meno a nos anctres les Gaullois. A condio tpica do brasileiro era a vidinha. O cinema comeava, mudo, com um pianista ou um indeciso arremedo de orquestrinha; s depois de 30 principiaram a ser mostrados filmes sonoros. Vivia-se na famlia, em casa: piqueniques, espao, rvores, molecada solta, sem discriminao social, brigas de rua sem maldade, futebol com bola de meia, subir em rvore, pegar passarinho com alapo, pescar. Comida simples. Alguns jornais, com edies da manh e da noite (no Rio, pelo menos), concentradores das opinies prevalentes; em minha casa, o luxo dominical era La Nacin, da adiantada (e quietamente invejada) Argentina, com seu ento fabuloso suplemento. Na rua, alguma gente ainda descala; mas sem a degradao macia das favelas atuais, apenas a diluio geogrfica da pobreza nos subrbios (ainda se podia at falar em arrabaldes). Lembro-me do leite de estbulo, das dvidas cientficas dos meus tios sobre a tuberculose bovina, e da campanha oficial pelo leite pasteurizado (Beba mais leite). Pouco se ia comer fora; penses, marmitas, aluguel de quartos anunciados por pedaos de cartolina pendurados da janela; frango, caro; canja, coisa para doentes,19

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

como uvas, mas e peras, importadas, um tanto de gente abastada. Festas, em casa de famlia, as meninas cercadas por mes, avs e tias. Ler, lia-se bastante. Claro, no existiam as mass media. E dois teros da populao, analfabetos, no faziam propriamente parte do sistema social: achavam-se, de certo modo, confundidos na paisagem, no percebidos coletivamente (embora, no mbito da vida familiar tpica, existisse certa acomodao humana quase clientelstica com a pobreza). Livrarias eram centros de convvio e troca de ideias, e os sebos uma delcia espiritual, e no s para menos abonados. O horizonte intelectual era literrio, gramatical, jurdico, retrico, esttico; e a perorao empolada, o equivalente cultura. Interesse terico no que hoje dizemos cincias sociais, quando no singularidade individual, era simplesmente desconhecido. Comearia a tomar forma na metade dos anos 30 e nos 40, com professores estrangeiros visitantes, notadamente franceses, e alguns ainda viriam depois, tocados pela guerra. Em matria de cincia, principalmente medicina, alguma pesquisa biolgica, e pouco mais ainda assim, esse pouco como feito individual, porque no existia um engate econmico onde fix-lo. Sociologia, antropologia, economia, a reflexo marxista, realmente comeam por esse tempo. O povo (nas cidades, pelo menos) manifestava abertamente seu desapreo pelos parlamentares, os carcomidos, como se dizia (palavra que despertou minha grande curiosidade aos seis anos, quando as tropas gachas chegaram com lenos vermelhos no pescoo, alegremente distribuindo, a quem estivesse por perto, pentes de munio (eu, moleque, consegui um). A intensidade ideolgica aumentaria muito em meados da dcada de 30, com os Levantes comunistas de 1935, a Guerra Civil espanhola (na minha famlia, antifranquista, com particular fora), as aventuras blico-grotescas de Mussolini, e a tempestade nazista que se formava no horizonte. Mas sempre existiu algum interesse quase crtico pelo pas, porque sempre pareceu preciso, de algum modo, decifr-lo dentro, claro, do contorno intelectual do tempo. Seis momentos de inflexo definem, a nosso ver, o curso geral do pas desde ento. Seriam: (1) a Revoluo de 30, que marca, com o governo de G. Vargas, a modernizao do Estado e a Depresso mundial, a ruptura com o Brasil antigo;20

ALGUNS ELEMENTOS DE UMA LINHA DE TEMPO

(2) a II Guerra, foramento dos nossos limites materiais e do nosso recato geopoltico, participao nas operaes militares, tomada de conscincia do nosso atrazo econmico; (3) o impulso desenvolvimentista: decepo com a ordem internacional e com os aliados americanos (antes mascarados pela Poltica da Boa Vizinhana, o Estado como orientador da industrializao e da expanso da infraestrutura; (4) ruptura: a desordem econmica, a crise geral de governana, desde o trmino do mandato de J. Kubitschek, passando pela renncia de J. Quadros, pela protrada crise de J. Goulart, colapso da ordem poltica, regime militar de 1964; (5) o desenvolvimentismo sob regime autoritrio, penosa casa em ordem, xito do milagre brasileiro e os simplismos do Brasil Grande, e esgotamento da viabilidade do modelo no choque da crise dos anos 71-73 a 82 (manipulao dos preos do petrleo, endividamento, insolvncia, esgotamento das alternativas econmicas); (6) crise e superao no contexto de uma nova ordem internacional, com a imploso do Bloco Socialista e da URSS, a enorme expanso e globalizao da economia de mercado, uma dcada de crises internas sem aparente alternativa, por fim, caminho para um equilbrio com integrao ampla no sistema internacional, esvaziamento das propostas ideolgicas de transformao do mundo, tranquilidade sistmica. A Revoluo de 30 foi, de fato, uma ruptura, mas as mudanas tomaram seu tempo. Porqu, at que a Depresso forasse a progressiva substituio de importaes num mercado interno ainda muito distante de uma sociedade de consumo, a base econmica primria, o caf e as culturas de exportao latifundirias, ainda que em crise, permaneceria estacionria. No quadro geral, cada um mais ou menos ficava na sua classe social, embora probabilisticamente, no sobre base adscritcia, ou fora. A esperana de vida s em 1940 passaria dos 41 anos. O Cdigo Eleitoral de 1932 concederia o voto s mulheres, tendncia que se generalizava no mundo. G. Vargas governava por decretos-lei, tentando coordenar as foras polticas dispersas que o haviam imprevistamente levado ao poder, num Estado de Compromisso numa forma ditatorial que, aceita inicialmente com indiferena, seria depois questionada pela Revoluo Constitucionalista de 1932, promovida pelos velhos interesses polticos centrados no So Paulo21

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

cafeeiro, mas com algum apoio difuso no pblico mais ilustrado, com o gosto do brilhareco e do anel no dedo e ficou inevitvel a convocao da constituinte de 1933, e a promulgao da nova Constituio em 1934. Mas no tinha havido ainda suficiente decantao das ideias. Estavam frescas as inovaes constitucionais de Weimar, na Alemanha, e da Espanha republicana, e alguma experimentao institucional seria feita, por exemplo, com o voto secreto, as Justias do Trabalho, Eleitoral e Militar, a definio dos direitos do trabalhador, e a representao classista, deputados eleitos pelos sindicatos, inspirao do corporativismo fascista, ento na crista do sucesso. Sobretudo, avultou uma onda nacionalista, cujos pontos altos foram a nacionalizao do subsolo (irritante nacional, polarizador ideolgico, desde quando, depois de empreendimentos pouco claros, o poderoso especulador americano P. Farquhar, em bom estilo robber baron, tentou um grande projeto de minerao e siderurgia, Itabira Iron Ore Company (encampada por G. Vargas em 1935), que tivera a simpatia inicial do Presidente Epitcio Pessoa, em 1920, mas provocara furioso conflito com o sucessor deste, Arthur Bernardes, que queria fundar em Minas, seu Estado, a grande siderurgia brasileira. A grande inflexo viria, de fato, com a guerra. A economia comeava a voltar-se da Europa para os Estados Unidos, que conquistavam simpatias populares com a poltica da Boa Vizinhana do Presidente americano Roosevelt ele prprio, antema aos olhos das foras polticas tradicionais norte-americanas, ainda embebidas da ideologia do Destino Manifesto. De um momento para outro, o Brasil sofria um choque de realidade. Internamente, as carncias materiais se agravariam quase instantaneamente. Nenhuma fantasia retrica podia justificar a realidade intratvel que se revelava nesse arquiplago de ilhotas econmicas quase incomunicantes, e no vazio de infraestrutura em que faltava de tudo: o Brasil era muito mais atrasado do se acreditava no andar superior das elites. Alguma conscincia crtica do atraso brasileiro evidentemente existia uma mixrdia de noes antropolgicas, sociolgicas, histricas, geogrficas, econmicas e polticas. Mas, em verdade, no era compreenso verdadeiramente crtica dos problemas poltico-institucionais e culturais do pas real. Impelidos, na guerra, pela necessidade crua, comeamos a intuir com a contribuio das misses tcnicas mistas com os Estados Unidos a possibilidade de uma poo salvadora universal, o desenvolvimento: planos, programas, projetos, investimentos, indstrias, estradas, portos, minas,22

ALGUNS ELEMENTOS DE UMA LINHA DE TEMPO

tratores, tcnicas agricolas. No era uma novidade, nem mesmo no Brasil: D. Joo VI fora um proto-desenvolvimentista, e Joo Pinheiro, industrial, brilhante governador de Minas Gerais, de 1906 a 1908, aparecera meio sculo antes de J. Kubitschek. Mas em pleno liberalismo clssico, no haveria como descolar-se do contexto externo uma economia brasileira dependente e pouco dinmica. E a viso tpica era retrica, no crtica. As ideias de nacionalismo e industrializao, quando comearam a tomar corpo, se enovelariam numa base ideolgica confusa, na qual pouco impacto exerceram as colocaes doutrinrias de fundo marxista embora a prioridade atribuda s indstrias bsicas fosse tambm parte da concepo marxista, confirmada pela prtica leninista-stalinista. S na segunda metade dos anos 30 se iniciaria, com o DASP, sob Simes Lopes, um esforo consistente de modernizao da mquina do Estado, ao mesmo tempo centralizador e racionalizador da autoridade do Executivo Federal. A estrutura e as prticas administrativas anteriores, primitivas e corruptas, j h muito haviam deixado de ser compatveis com a eficincia mnima exigida de uma sociedade cada vez mais urbanizada, que comeava a acelerar sua industrializao. A tnica geral, em voga desde os primeiros anos de ps-guerra, eram os dirigismos, que embrulhavam vagas ideias econmicas antiliberais em formatos estatistas e corporativistas os receios de lutas de classe abertas, exasperadas pela Depresso, favoreciam um clima internacional at certo ponto dirigista. Assumindo poderes ditatoriais no final de 1937, Vargas comeou a esboar uma poltica de desenvolvimento industrial bsico de carter nacionalista, com um insistente (e nas circunstncias, difcil) esforo para criar a siderurgia pesada, ento o smbolo maior do status de potncia industrial e, oportunisticamente, declarou moratria da dvida externa (o que, ento, no constitua objeto de escndalo internacional). A economia estava crescendo para dentro relativamente bem, por espontnea substituio de importaes, fenmeno para o qual primeiro chamou ateno Celso Furtado. Mas as difceis contingncias da Guerra poriam em dramtica evidncia a fragilidade e o carter lacunar da economia. Uma primeira tentativa de resposta sistemtica viria, em 1939, com o recmcriado Departamento Administrativo do Servio Pblico-DASP, o qual, concebido como o mecanismo propulsor da modernizao do Estado sob Vargas, formulou o Plano Especial (cinco anos), de Obras Pblicas e Aparelhamento da Defesa Nacional; e em 1943, o Plano de Obras e Equipamentos (1944-48). Mas era pouco, e a gravidade imediata da situao23

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

problemas exigiria a vinda de misses tcnicas americanas para avaliao dos problemas e gargalos da economia e, em especial, da infraestrutura produtiva. Durante a guerra, foram duas, a Misso Taub (1942) e a Misso Cooke (1943), cuja principal concluso foi que no havia, no pas, uma estrutura administrativa adequada ao seu novo estgio de desenvolvimento industrial. Ambas as Misses apontaram o setor eltrico como um dos principais gargalos, e sugeriam uma programao de investimentos a longo prazo. Na realidade, porm, no houve resultados concretos imediatos. O Brasil depressa sairia do horizonte das prioridades norte-americanas, deslocadas para a Europa e o Japo, e logo submetidas ao foco polticomilitar da Guerra Fria com a Unio Sovitica e os Estados Unidos que, por volta de 1946, dispunham de cerca de metade do Produto mundial, eram a nica fonte realisticamente pensvel de recursos e tecnologia para quaisquer programas de recuperao e desenvolvimento. Em 1947, por ocasio da Conferncia Internacional Sobre a Defesa do Continente, sempre na tica da Guerra Fria (no ano seguinte, seria criada a Organizao dos Estados Americanos - OEA), criou-se a Comisso Tcnica Brasil-Estados Unidos, que viria a ser conhecida como Misso Abbink, para discutir formas de incentivar o investimento privado no Brasil. Esta Misso decepcionaria as expectativas da parte brasileira (limitando-se a recomendar o aumento da produtividade, a reorientao dos capitais formados internamente e um maior afluxo de capital estrangeiro para o pas), mas sistematizou recomendaes de poltica monetria e fiscal bem acolhidas pelas autoridades econmicas, e contribuu para a identificao do conjunto de prioridades que vieram a originar o Plano Salte (1949), com o objetivo de coordenar e ampliar os investimentos governamentais nos setores de sade, alimentao, transporte e energia. Associado ao DASP, mas burocrtico e sem adequada base poltica e operacional, o Plano SALTE seria a primeira tentativa abrangente de planificao econmica. Juntamente com a Misso Abbink, no entanto, abriu caminho para a Comisso Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econmico-CMBEU, em dezembro de 1950. Nesse momento, a situao internacional, com a Guerra da Coreia elevando o risco de uma confrontao militar entre os Estados Unidos e o Bloco sovitico, favorecia temporariamente a Amrica Latina (cuja importncia numrica na ONU ainda no se havia diludo) e, em particular, o Brasil. A CMBEU produziu um aprofundado diagnstico tcnico dos problemas do desenvolvimento24

ALGUNS ELEMENTOS DE UMA LINHA DE TEMPO

brasileiro, e entre outros pontos, definiu que o BNDES, criado em 1952, e em operao no ano seguinte, seria o responsvel pelo financiamento do investimento agroindustrial. O Brasil no dispunha, ento, de qualquer rgo habilitado para analisar projetos e efetuar financiamentos de mdio e longo prazo: limitava-se Carteira de Crdito Agrcola e Industrial do Banco do Brasil, que operava por cadastro, sujeito a influncias polticas. Antes desse tempo, fora da Unio Sovitica, polticas e programas de desenvolvimento ou de industrializao de razovel sucesso limitavam-se a objetivos de carter setorial ou regional (v. g., a Tennessy Valley Authority, de Roosevelt, e as de Mussolini, na Itlia). Por outro lado, tampouco existiam os instrumentos tericos e a informao estatstica tecnicamente indispensveis programao econmica. Haveria pensamento pioneiro em outras partes. Mas seria na Amrica Latina, na CEPAL, e mais decididamente, no Brasil, nos anos 50 no 2o Governo Vargas e no de J. Kubitschek que se formularia uma concepo terica ampla do planejamento econmico, segundo a prpria tica dos pases em desenvolvimento. Compreensvel, porque s a Amrica Latina, enquanto regio, preenchia objetivamente as condies bsicas para justificar a busca de frmulas especficas de desenvolvimento apoiadas nos meios de ao do Estado nacional. E nela, s o Brasil havia adquirido massa crtica de capacidade industrial e de mercado interno. Antes do Programa de Metas, no teria sido vivel alguma tentativa de planejamento integrado (ainda mais, como no caso, sem centralizao autoritria). Nas suas linhas gerais, as Metas no chegaram a usar instrumentos tericos refinados. Concentraram-se nos setores produtivos ou de infraestrutura, nos quais se identificavam deficincias de capacidade de oferta (medidas, por exemplo, pelas importaes correspondentes), e no se tratou de equacionar (e, alis, no seria poltica e administrativamente exequvel) os conjuntos dos aspetos monetrios, creditcios e fiscais, apesar de alguns problemas j reconhecidos, e outros que teriam de aparecer no curso das mudanas na economia. interessante referir-se, de passagem, a confusa transio ideolgica que se processava desde o fim do Estado Novo. No apenas os elementos mais ilustrados de populao, mas tambm boa parte dela, de fato havia tomado conscincia das enormes lacunas, falhas e descompassos da economia revelados pela II Guerra. Havia, porm, um geral vazio de ideias e explicaes como que uma enorme bomba de suco intelectual, que aspirava formulaes ideolgicas desencontradas, de toda natureza. A represso aps 1935 destroara a estrutura poltica dos25

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

comunistas e, em 1947, o Governo Dutra valeu-se de uma desnecessria inbil declarao do lder Luiz Carlos Prestes para tornar ilegal o Partido e cassar seus mandatos parlamentares. Mas numerosas linhas de esquerda comeavam a multiplicar-se no novo ambiente de ps-guerra, utilizando o biombo poltico que mais e mais polarizava as frustraes acumuladas e a falta de perspectivas da situao brasileira, o nacionalismo. Processo complexo, que se repetiria pelo mundo a fora, e que no possvel analisar mais detidamente neste ponto. De modo geral, nesse perodo, as intelligentsias latino-americanas foram marcadas, de modo quase totalmente excludente, por variados matizes de esquerdas antiestabelecimento, anticapitalistas, antiamericanas, e antiocidentais. Esse fenmeno est distantemente relacionado com o aparecimento e o papel do intelectual na Era moderna quando este se postula como portador privilegiado de um saber de salvao mal reconhecido e ingratamente retribudo e se mostra mais intenso em sociedades economicamente marginais ou, pelo menos, no to exitosas quanto as naes centrais. O Programa de Metas funcionou como uma grande lente convergente, concentrando as expectativas e energias antes dispersas da Nao em uma srie de objetivos concretos, que se realimentavam uns aos outros, por feedbacks recprocos. Cada projeto viabilizava a demanda para outros projetos a juzante (e em certos casos, tambm a montante), e cada iniciativa estimulava outras novas, no apenas dentro dos setores especficos das Metas, mas em outros, interconectados por ligaes potenciais de oferta ou procura no mercado que se ampliava. Isso caracterstico, naturalmente, das fases de expanso em qualquer economia moderna, mas ia bastante alm das modestas perspectivas das economias latinoamericanas, em geral, limitadas por numerosos gargalos e deficincias estruturais o que o pensamento da CEPAL poria em evidncia, dando alimento para speras polmicas, hoje esquecidas, entre estruturalistas e economistas mais convencionais. Os estruturalistas (preferidos pelas esquerdas) no acreditavam que o mecanismo do mercado fosse suficiente para resolver tais gargalos e deficincias: seria preciso a mo do Estado para puxar o pas sucessivos degraus para cima. No eram propriamente irracionais essas colocaes. Eram reais os gargalos, e razovel a preocupao com uma melhor distribuio da renda, e o alargamento do mercado de trabalho. Mas o estruturalismo ficaria limitado pela falta de compreenso dos problemas macroeconmicos, em especial dos efeitos incapacitantes da inflao.26

ALGUNS ELEMENTOS DE UMA LINHA DE TEMPO

Nos anos de entre-guerras, praticamente inexistia uma reflexo terica sobre o desenvolvimento. Seria razovel dizer-se, porm, que j no 2o Governo de Vargas, sob o impulso dos trabalhos da Comiso Mista Brasil-Estados Unidos e, subsequentemente, do Grupo BNDE-CEPAL, havia uma teoria tentativa implcita, talvez no totalmente conscientizada pelos tcnicos apoiada numa concepo (no matematizada) de relaes interindustriais. Os grandes projetos de indstrias de base correspondiam a necessidades reconhecidas, e abriam, com poder multiplicador, oportunidades de mercado para novas atividades industriais. Os elementos tericos se tornariam um pouco mais explcitos no Programa de Metas de Kubitschek. Mas no faltaram tentativas de interferncia poltica nas decises tcnicas. Um bem intencionado deputado de esquerda por um triz no conseguiu fazer passar um projeto para obrigar o BNDE a aplicar uma quarta parte dos seus recursos em siderurgias de fundo de quintal, por imitao do que estava sendo tentado na China, no Grande Salto para a Frente de Mao Zedong projeto tecnicamente absurdo, que logo daria com desastrosos resultados. O Programa de Metas foi razoavelmente bem sucedido por uma variedade de fatores circunstnciais, no apenas pela sua concepo. Uma avaliao pessoal, por experincia direta, desse Programa, leva-nos a pensar que o fator mais relevante para o esse xito foi o firme apoio de J. Kubitschek sua slida base tcnica e emprica, e a preservao do carter eminentemente pragmtico do seu enfoque central: no se tratava de uma proposta polticoideolgica expressa em termos universais, mas de um esforo objetivo concentrado sobre deficincias infraestruturais e produtivas concretas j longamente estudadas e debatidas. Por outro lado, o choque de realidade, que a Guerra fizera sentir na economia brasileira, no se estendera aos problemas sociais, polticos e institucionais do pas. Quanto a estes, no houve nenhum esforo de avaliao sistemtica, nem concepes de conjunto. O debate poltico imediato reduziase, essencialmente, s posies adotadas pela oposio conservadora ilustrada da UDN em relao a G. Vargas. Este, por sua vez, ficara preso sua proposta populista de Pai dos Pobres, ligada manipulao do aparelho sindical corporativo. Como um todo, porm, a tomada de conscincia do desenvolvimento iniciaria a importao, para o cotidiano e para a nossa reflexo socioantropolgica e poltica, de abundante safra terminolgica: donos do poder, paternalismo estatal, corporativismo, cartorialismo, coronelismo, compadrismo, clientelismo, oligarquias, classes27

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

dominantes, excluso social, marginalidade, e por a vai expresses que intentavam indicar a conscincia das deficincias estruturais e culturais do pas, em especial, as mltiplas faces de um fenmeno real, a apropriao da coisa pblica por interesses privados, e a corrupo e manipulao do Estado (favores a indivduos e grupos) por grupos de alguma forma tradicionalmente embutidos na estrutura do Poder e nos mecanismos operacionais da coisa pblica. Sem muito exagero, pode dizer-se que a percepo dos problemas sociais, polticos e institucionais do pas tendeu, porm, de modo geral, a ser tpica. At os anos 80, a tela de fundo continuaria a ser uma forma difusa de ideologia do progresso, segundo a qual, as deficincias sociais iriam ser aos poucos resolvidas pelo avano material se bem que diferissem as propostas sobre como chegar at l. No regime militar, foi explcita a ideia da percolao da renda, de cima para baixo, com o crescimento econmico. preciso, porm, entender as perspectivas brasileiras no tempo e nas circunstncias. At sculo e meio atrs, a pobreza era entendida no mundo como um dado do destino, no controlvel, mas amenizvel, talvez, pela caridade e alguma assistncia pblica. Getlio Vargas antecipou-se a um papel poltico futuro das massas trabalhadoras, copiando o esquema corporativo de organizao sindical e legislao trabalhista do modelo fascista italiano, e o fez basicamente pelas mesmas razes, o receio da luta de classes. Mas era um alvio apenas temporrio dos problemas: em sociedades de renda baixa e muito assimtrica, improvvel que se chegue a solues estveis por ajustes espontneos ou simples dos conflitos distributivos. Por outro lado, o esquema de Vargas no valeria indefinidamente, uma vez que, no Brasil, o sistema poltico levava a um extremo fracionamento regional, a alianas partidrias instveis, precariamente mantidas por prticas clientelsticas cada vez menos controlveis. E essa foi a origem da crise dos anos 1961-64. Os problemas distributivos agravar-se-iam de forma muito real dentro do quadro da inflao descontrolada, dos problemas de pagamentos externos, e da turbulncia da eleio de J. Quadros, cuja demagogia da limpeza do pas, extravagante personalismo, e gosto pela provocao, levaria a choques pelo controle poltico do Congresso, renncia, resistncia dos militares posse do VicePresidente (e adversrio poltico) J. Goulart, soluo de compromisso com o parlamentarismo, subsequente campanha para retorno ao presidencialismo, ao jogo partidrio insensato das Reformas de Base, com as rupturas da disciplina militar e a ameaa das massas nas ruas, para atemorizar as classes28

ALGUNS ELEMENTOS DE UMA LINHA DE TEMPO

mdias (provavelmente visando possibilitar a reeleio de Goulart) tudo, por fim, desembocando no golpe militar de maro de 1964. Tais Reformas, improvisadas e com objetivos fortemente populistas, seriam: reforma agrria, terras com mais de 600 hectares teriam que ser distribudas, prevendo-se a desapropriao de terras com ttulo da dvida pblica, o que forosamente obrigava a alterao constitucional; reforma urbana: as pessoas com mais de uma casa, teriam que dar as casas excedentes ao Governo, ou seja, vender as casas a preos baixos, e o pagamento da indenizao de imveis urbanos desapropriados pelo interesse social com ttulos da dvida pblica; a encampao das refinarias de petrleo particulares e a possibilidade de desapropriao das propriedades privadas valorizadas por investimentos pblicos, situadas s margens de estradas e audes; direito de voto para analfabetos e para praas das Foras Armadas; proibio de escolas particulares; nacionalizao de empresas estrangeiras; reforma tributria, impostos seriam proporcionais ao lucro pessoal; e aplicao severa da lei das remessas de lucros, com obrigatoriedade do reinvestimento no pas. A reforma agrria, o carro-chefe de Goulart, era uma antiga proposta de esquerda, e as demandas do campo, na Rssia, que haviam desembocado na tentativa revolucionria de 1905, haviam sido decisivas para a Revoluo de 1917, po, terra e paz mas, como examinado em outro captulo, seriam violentamente reprimidas pelo regime sovitico. O surto de modernizao, de qualquer maneira, mudaria o perfil da agricultura brasileira depois de 1970, num sentido de tecnificao e eficincia parecidos com o que se observara nos Estados Unidos e, em geral, nos pases industrializados. Goulart, estancieiro de famlia muito rica, apresentara de incio um perfil hesitante: comeara por nomear o banqueiro W. Moreira Salles para a Fazenda, sugerindo uma linha ortodoxa, fizera uma viagem aos Estados Unidos, para suavizar as incertezas dos investidores internacionais, e encarregara Celso Furtado, ministro extraordinrio do Planejamento, de preparar o Plano Trienal de Desenvolvimento Econmico e Social (que tendeu, alis, mais para receitas ortodoxas de controle inflacionrio do que para o estruturalismo da Cepal, de que Furtado era notvel representante). Mas Goulart que, em 1954, fora o principal responsvel pela crise que levaria ao suicdio de Vargas, ao induzi-lo a dobrar, de golpe, o salrio mnimo, com bvios riscos desestabilizantes era dado a rompantes, e logo retomaria medidas populistas, acelerando de vez, o descontrole inflacionrio, acompanhada de recesso e dificuldades de pagamentos externos, e comeando explicitamente a estimular29

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

atos de indisciplina nas Foras Armadas. Em 12 de setembro de 1963 estourou em Braslia uma rebelio liderada por sargentos da Aeronutica e da Marinha, revoltados contra a deciso do STF de no reconhecer a elegibilidade dos sargentos para o Legislativo (princpio da Constituio de 1946, ento em vigor). A ostensiva neutralidade de J. Goulart gerou suspeitas nos setores polticos conservadores e na oficialidade de que se preparava um golpe de Estado de esquerda (e Cuba estava promovendo ativamente o treinamento de guerrilheiros na Amrica Latina) suspeitas que pareceram confirmadas quando, no dia 28, eclodiu uma revolta de marinheiros e fuzileiros navais no Rio, concentrados na sede do Sindicato dos Metalrgicos. Goulart recusouse a punir os insubmissos, deixando-os sair livres, o que gerou uma profunda crise com a oficialidade da Marinha. No dia 30, Goulart compareceu, na condio de convidado de honra, a uma festa promovida pela Associao dos Sargentos e Suboficiais da Polcia Militar, na sede do Automvel Clube. Foi o fim. O edifcio institucional simplesmente no suportaria as tenses cumulativas. A desordem econmica, notadamente os intratveis problemas da inflao e das contas externas, projetada sobre uma estrutura institucional j inviabilizada pela acumulao de problemas antigos e mal-remendados, realimentava a instabilidade poltica embutida no sistema federativo. O primeiro governo militar concentrou-se nos problemas da extrema disfuncionalidade do Estado e dos obstculos operao racional da economia. E, de fato, a mquina do Estado, esgotados os efeitos modernizadores do primeiro governo de Vargas, havia cado a um ponto de incapacidade para lidar com os novos problemas internos e externos. A questo mais premente e difcil consistia na inflao: a taxa anual havia mais do que dobrado de 1955 a 1959 (de 18,4% para 42,7%) e atingira 85,6% em 1964, enquanto o crescimento do PIB, de 9,8% em 59, cara para o,63% em 1963: no existindo mecanismos de correo monetria, seriam cada vez menos contornveis as reivindicaes salariais e a gritaria contra a carestia. A terapia de choque, ento o tratamento ortodoxo, seria rejeitada pelo governo de Castello, mas o gradualismo adotado traria resultados decepcionantes e descontentamento: a taxa cairia apenas para 25,3% em 1967, e o crescimento do Produto permaneceu baixo (com um bom resultado, de 6,7%, apenas em 1966). Hiperinflaes podem s vezes ser controladas muito rapidamente, mas no caso brasileiro de ento, no se havia chegado a um exemplo tpico, e o caminho, inevitavelmente doloroso e lento, exigiria reformas institucionais30

ALGUNS ELEMENTOS DE UMA LINHA DE TEMPO

profundas. Parte das reformas voltaram-se para a Previdncia, cuja desconjuntada estrutura achava-se beira de inviabilidade. Nesse governo, e nos seguintes, questes de sade, educao, eliminao do analfabetismo, moradia popular, e outras, seriam atacadas de maneiras vrias, mas limitadas, sem que se pensasse em algum programa amplo para a reduo da exageradas assimetrias da renda. O regime acreditava piamente em primeiro, o crescimento do bolo, mas eventualmente tambm atacaria problemas sociais, inclusive com uma legislao agrria que, depois, no seria devidamente aplicada. A orientao liberal conservadora de Castello Branco (1964-67) promoveria a uma srie de reformas para pr a casa em ordem concebidas em funo dos problemas institucionais e jurdicos postos em imediata evidncia durante o Programa de Metas. Esse governo, inicialmente previsto para 2 anos e meio (prorrogados por mais um), previa o retorno ao regime civil e terminaria sob forte impopularidade, e uma gritaria pblica contra o arrocho salarial. A expectativa de um rpido retorno normalidade civil, tpica da tica burocrtico-legalista do estamento militar, no se daria, porm, porque ia, na verdade, ao arrepio da lgica interna prpria das rupturas institucionais. A imposio do Gal. Costa e Silva sucesso de Castello, empossado em maro de 1967, um golpe dentro do golpe, e a ocorrncia de atentados (inclusive uma ao com explosivos, sem precedentes no pas, que matou, no Aeroporto de Recife, um almirante e um jornalista), assim como atitudes pouco contidas, dentro do Congresso, que os setores militares mais exaltados interpretavam como provocaes, e por fim, as rivalidades entre grupos militares (a tropa, a linha dura, e os intelectuais da Escola Superior de Guerra), levariam ao brutal endurecimento do regime com o Ato Institucional no. 5, em dezembro de 1968, ao mesmo tempo em que surgia entre jovens, em parte em ressonncia com o ambiente internacional efervescente dos anos 60, a guerrilha urbana. De modo geral, os governos militares deram nfase a uma gesto pblica ordenada e continuao das polticas desenvolvimentistas, preservando o foco na expanso dos setores de base como na concepo marxista do departamento da reproduo ampliada orientao especialmente firme nos anos do Milagre, quando a produo de bens de capital alcanou mdia superior a 18% ao ano, a de bens durveis de consumo, quase 24% ao ano e uma taxa anual de crescimento prxima de 12%, comparvel dos Planos Quinquenais soviticos.31

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

O pas no era uma exceo nica na ordem das coisas no mundo. A dcada de 60 foi caracterizada por uma efervescncia prxima do revolucionrio. Viriam tona, quase de repente, reaes sociais, econmicas e culturais retardadas da Depresso e da II Guerra, no meio de enormes mudanas tecnolgicas (remdios, vacinas, aviao comercial em larga escala, a plula anticoncepcional, a televiso, o papel ampliado das mulheres na economia, o terror nuclear, o computador, o incio da era digital, a qumica fina, as polticas cientficas e tecnolgicas). um formidvel panorama de tremendas transformaes na ordem das coisas: movimentos estudantis de rebeldia e de direitos civis, nos Estados Unidos, alargamento das demandas sociais, a prosperidade geral sem paralelo, a Guerra Fria e seus efeitos colaterais na periferia (guerras de independncia na frica e na sia, a derrota da Frana na Arglia na Indochina, o fracasso anglo-francs no ataque a Suez, o envolvimento americano no Vietn), mudanas culturais profundas, hippies, Flower Children, liberao sexual, autonomismos locais exacerbados, progressiva perda de controle nacional sobre as transferncias financeiras internacionais, a denncia dos crimes de Stalin por Khruchov em 1956, o sucesso da Revoluo Cubana, as dimenses espantosas das experincias da China comunista (a coletivizao forada da agricultura, o Grande Salto para a Frente, as siderurgias de fundo de quintal, a Revoluo Cultural). Ambiente tal que, em maio de 1968, os estudantes de Paris, com apoio de sindicatos, promoveram uma baderna geral, com pretenses onricas a barricadas revolucionrias tema ilusoriamente recorrente na Frana desde 1789. O Brasil anterior a 64, embora atrasado, pelos padres e valores de ento que no eram os de hoje no constituia um caso excepcional. E no quadro tecnolgico-institucional de ento, no haveria meios satisfatrios para a gesto de programas sociais de grande abrangncia. As primeiras mquinas eletromecnicas para cartes de 80 colunas haviam sido introduzidas pela IBM em 1928, e a primeira fbrica da empresa no pas seria de 1939. A Seguridade Social inovao poltica de Bismark e marco da socialdemocracia europeia s surgiria no Brasil 40 anos mais tarde, em 1923, com a Lei Eloy Chaves, que criou a Caixa de Assistncia e Previdncia dos Ferrovirios. E o padro tpico ento como, em geral, no resto do mundo no seria a universalizao, mas sim o das Caixas de Aposentadorias e Penses com base em empresas ou categorias funcionais, e financiadas por capitalizao tripartite (trabalhadores, empregadores e32

ALGUNS ELEMENTOS DE UMA LINHA DE TEMPO

Estado), que geralmente ofereciam alguma assistncia mdica, e outros servios. Em 1933, esse modelo foi substitudo pelos Institutos de Aposentadorias e Penses (IAPs), de vinculao exclusiva ao gnero ou categoria profissional. Mas no cobriam todos os setores, nem trabalhadores informais e rurais, de modo que, por volta de 1960, ainda estavam fora do sistema uns 70% da fora de trabalho. Nesse ano, a Lei Orgnica da Previdncia Social passou a cobrir potencialmente a quase totalidade dos trabalhadores urbanos, e em 1966, os IAPs foram fundidos num Instituto nico, o INPS. Em 1977, a Lei 6.439 criou o Sistema Nacional de Previdncia e Assistncia Social (Sinpas). Em 1977, a Lei 6.439 criou o Sistema Nacional de Previdncia e Assistncia Social (Sinpas), que se manteria at a Constituio de 1988, a qual definiu um conceito de Seguridade Social abrangente, ampliando direitos de cobertura previdenciria, sade e assistncia social para a totalidade da populao, independentemente do exerccio profissional e da existncia de vnculo contributivo. O imenso horizonte das carncias desde a assimetria da distribuio da renda (muito politizada desde 1970, quando o Censo revelou uma realidade pior do que se supunha), pobreza extrema, e s deficincias na educao, na sade, e no escopo das polticas assistenciais no apresentava a atual visibilidade, sem dvida porque a maior escala da pior pobreza estava no setor rural, no mato, e no era claramente revelada pelas deficientes estatsticas. Alm disso, prevalecia a suposio implcita de que o homem rural, ainda parcialmente fora da economia monetria, seria mais ou menos autosuficiente quanto alimentao e moradia e, por isso, teria menores necessidades. Medidas previdencirias visaram inicialmente atender o setor moderno: o trabalhador das indstrias e dos servios, que j comeavam a aparecer no palco poltico domstico. A educao (durante a Colnia, de longe, a pior das Amricas), continuaria, at hoje, de qualidade reconhecidamente fraca, e privilegiaria corporativamente o nvel universitrio vale dizer, a base do mandarinato. O regime militar fracassou ao tentar um programa de erradicao do analfabetismo de adultos (Mobral). S perto do fim do sculo XX que seria nominalmente atingida a universalizao do ensino fundamental. O regime militar tampouco teve xito com seu insuficiente modelo estatal e centralizado de habitao social e saneamento bsico. A oferta de bens e servios fazia-se atravs do setor pblico, gerida por empresas estatais. No plano federal, uma agncia centralizava a formulao das polticas e a arrecadao da principal fonte de financiamento da poltica,33

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

o Fundo de Garantia por Tempo de Servio FGTS. Com base nesse modelo, constituiu-se no pas uma rede de 44 empresas pblicas municipais e estaduais de habitao social, assim como 27 companhias estaduais de saneamento. Em 1976, foi criado o Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social (Inamps) como rgo responsvel por toda a assistncia mdica populao dependente de trabalhadores formais. Nos anos 70 e 80 ampliaram-se os segmentos populacionais no contribuintes incorporados ao sistema de sade, como os rurais e os indigentes, bem como estratgias de descentralizao. O Sistema nico de Sade viria a ser institudo pela Constituio de 1988. Nenhum governo, claro, teria como resolver definitivamente esses problemas que, pela sua natureza, requerem, grande empenho e ao contnua. Mas faltou ao regime militar uma compreenso crtica dos dois maiores problemas envolvidos: (i) o tamanho dos fenmenos da pobreza, e a complexidade da dinmica das carncias e do conjunto dos problemas, e (ii) a ineficincia da burocracia centralizada, agravada pela pluralidade, m definio, e excessiva ambio das propostas e programas habitualmente, sem a previso de recursos adequados. O regime, no ufanismo do milagre, cometeu o erro terico de esperar que o crescimento acelerado seria suficiente para resolver os problemas distributivos pela percolao da renda de cima para baixo, e desconfiava pouco racionalmente de qualquer insistncia maior sobre as carncias sociais, seja porque lhe parecesse pessimista, seja porque lhe soasse como esquerda. Por exemplo, o Projeto Rondon, criado em 1966, que levava estudantes universitrios para trabalhos sociais voluntrios em regies carentes do pas, foi extinto, porque as perguntas a que o conhecimento da realidade induzia comeou a ser visto como subversivo. Por fim, ressalte-se que a falta de compreenso dos efeitos cumulativos da bolha populacional. Esse fenmeno que, na dcada de 90, se evidenciaria por uma enorme massa de favelados e marginalizados nas periferias urbanas, em boa parte, egressos do campo. Qualquer anlise, sequer de mero bom senso, evidenciaria problemas em escala cada vez menos tratvel, que requereriam a sria previso de polticas sociais positivas em muito ampla escala. Uma ideia das dimenses da matria que, de 1940 at 2000, a populao total foi multiplicada por um fator de 4,12 e a urbana, por cerca de 11. Acrescente-se a isso o contraste entre as duas metades, o Sudeste relativamente moderno (o Sul maravilha), e as regies mais pobres em recursos naturais, principalmente o Nordeste. Uma persistente tendncia34

ALGUNS ELEMENTOS DE UMA LINHA DE TEMPO

histrica (de 1960 a 2000, perodo para o qual se dispe de estatsticas, ainda que imperfeitas) revela que a metade mais pobre da populao recebeu, em mdia, entre 12 e 14% da Renda global (ficando numa faixa comparvel a Bangladesh, Benin, Monglia e Nicargua), enquanto a metade superior teve, em mdia, 88 a 86% da Renda (situando-se em nvel intermdio entre a Argentina e o Chile, abaixo de Portugal e da Grcia). Observe-se que distribuio da renda dentro de cada uma dessas metades menos assimtrica do que entre elas. O fim dos quase 21 anos do regime militar abriu o tempo presente do pas, que aqui no ser abordado. So conhecidas as dificuldades institucionais e econmicas de uma transio de perto de uma dcada, at o Plano Real, em 1994. Os problemas econmicos, em especial, haviam se tornado intratveis depois de 1979 em parte, porque, no primeiro choque dos preos do petrleo, o Governo Geisel subestimara a seriedade da situao internacional, e no quisera reduzir nem o ritmo do crescimento da economia nem sequer o consumo dos derivados, ao contrrio do que fez nos grandes pases industriais optando, ao contrrio, por financiar o II Plano Nacional de Desenvolvimento por meio do endividamento externo. A grande facilidade inicial dos financiamentos externos escondia, porm, um alapo surpreendentemente no percebido: taxas de juros em regra revistas semestralmente. Isso induziu numerosos pases, no apenas o Brasil, a um excessivo endividamento, que se revelaria inadministrvel quando do segundo choque do petrleo, seguido da recesso mundial e da exploso dos juros provocada pela brusca poltica contracionista americana, em 1979-80. A inadimplncia do Mxico em setembro de 1982 inesperada para um exportador de petrleo secou instantneamente todas as fontes financeiras externas da Amrica Latina e do Brasil, obrigando o governo brasileiro a sucessivas pouco srias promessas de boa gesto econmica (as vrias Cartas de Intenes, aos credores e seus clubes, o Fundo Monetrio Internacional, e os Estados Unidos. Nos anos 1986 a 1994, desarvorados diante da inflao e da inadimplncia externa, e obnubilados por um ambiente de primarismo ideolgico, os vrios governos impuzeram uma sucesso de medidas disparatadas: moratria externa, sete pacotes econmicos, e trs trocas de moeda (divididas por mil cada vz) comeando pelo Plano Cruzado, e terminando pelo Plano Real tudo isso acompanhado de muita improvisao, violncia contra direitos adquiridos, interferncias arbitrrias em contratos privados e outros35

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

atos jurdicos perfeitos, congelamentos de ativos financeiros, e improvises irracionais tais como adoo de tablitas, e expurgos nos ndices de correo monetria um clima, em suma, teoricamente incompetente, e de todo alheio ao Estado de Direito. Em 1990, o governo Collor deu uma guinada forada pelas circunstncias externas e internas praticamente sem sada em que o pas se achava. A inflao basicamente causada pela desordem das contas pblicas, pelas deficincias infraestruturais e institucionais, e pela m gesto geral tornara-se absolutamente intratvel, devido progressiva generalizao de mecanismos de indexao (introduzidos limitadamente no Governo Castello Branco para estimular a poupana) e chegaria aos caticos 2.751% ao ano de fevereiro de 89 a fevereiro de 90. Como resultado, deuse a estagnao do PIB per capita (e at declnio, em termos absolutos), entre 1980 e 1992. O Governo que o substituu depois do impedimento pelo Congresso, patrocinou o Plano Real que, com o uso inteligente de duas moedas alternativas (como no fim da hiperinflao alem de 1923) daria resultados imediatos brilhantes, e favoreceria a eleio, em 1994, de F. H. Cardoso, sob cujo mandato se aprofundaria a abertura da economia, com ampla privatizao e desregulamentao, e um esforo mais consistente de equilbrio macroeconmico. Entretanto, o fim do grave processo inflacionrio iria ter, por fora, o alto custo de revelar toda a extenso e gravidade dos problemas institucionais, das ineficincias de gesto, e das dvidas e compromissos do setor pblico (esqueletos) que, ao longo de dcadas, haviam ficado escondidas pela inflao. Em especial, tornaria ostensivo o grave endividamento dos Estados, at ento totalmente sem controle, cujo saneamento (ainda hoje incompleto) custaria mais de R$100 bilhes da poca (o equivalente a mais de 300 bilhes do comeo de 2010). Na dcada de 90, o crescimento do Produto Interno foi insignificante, da ordem de 2,2% ao ano, e o desemprego aberto, antes de pouco visvel, subiu para 15%, reflexo da persistentencia de problemas institucionais de baixa governabilidade, e de cultura pblica pouco favorvel racionalidade operacional. Por outro lado, na dcada e meia de razovel estabilidade monetria e institucional, operou-se uma notvel transformao na economia e na sociedade brasileira. O pas pde aproveitar-se da enorme expanso da economia internacional, em especial do como que completou a transio de uma condio subdesenvolvida para a de grande potncia emergente, com crescente peso internacional como produtor de matrias-primas e alimentos36

ALGUNS ELEMENTOS DE UMA LINHA DE TEMPO

(de que o mundo tem, hoje, demanda cada vez mais intensa), e um setor industrial robusto. De certo modo, contudo, tratou-se de uma evoluo natural, prenunciada na viso ento essencialmente potica do gigante pela prpria natureza, do Hino nacional. Por fim, coincidiram no tempo mltiplas novas tecnologias para o aproveitamento timo da vasta dotao de recursos naturais oferecida pelas gigantescas dimenses do pas, e antes, com os meios da era do carvo e do vapor, no explorveis com suficiente densidade econmica. E em consequncia, os setores produtivos domsticos principiaram a entrealimentar-se por demanda recproca, parcial, em muitos casos, mas significativa, de modo que as oportunidades internas e externas passaram a estimular-se atravs do mercado interno, no dependendo mais do papel estratgico estreito de um setor exportador basicamente ligado a atividades primrias de baixo valor agregado. Mudanas deram-se, tambm, no cenrio mundial. A China vem crescendo a taxas explosivas, Rssia, ndia e Brasil formam o grupo que tem sido chamado de BRIC, o que se poderia mais ou menos traduzir como novas superpotncias econmicas todas, alm do mais, fundadas sobre gigantescos territrios e populao, quando menos, relativamente grande. Internamente, um processo que vinha em longa gestao desde os anos 30, como que um amadurecimento, resultou em uma sociedade urbanizada, com uma estrutura j francamente consumidora de classe mdia (as classes A, B e C somando, em 2008, 68% da populao), escolaridade praticamente universal, grande participao na economia internacional da informao e comunicaes. H fatores cuja avaliao ainda no pode ser conclusiva: o efeito Bolsa Famlia (vale dizer, dos mltiplos programas assistenciais); a baixssima avaliao do sistema poltico pela opinio pblica; e a irritao generalizada a respeito dos abusos reais ou supostos de nepotismo, corporativismo, improbidade, violncia e fraude. Os programas sociais em operao no Brasil apresentam, obviamente, vantagens polticas para os ocupantes do Poder, e Lula no apenas extremamente hbil, como, alm do mais, muito popular pela simpatia pessoal. Entretanto, na perspectiva atual, foi antes um conciliador do que um renovador, disposto a atacar de frente os muitos defeitos e vcios institucionais do pas. Mas o fato que o Brasil, hoje, de fato merece a ateno que tem recebido como potncia emergente e ator internacional a ser levado em conta. No se pode, atualmente, antever nenhum novo grande momento de inflexo. As grandes propostas ideolgicas excludentes que dominaram o37

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

curto Sculo XX perderam poder de mobilizao. Algum radicalismo imprevisvel ainda sobrevive no mundo islmico. Mas o cenrio global apresenta-se aparentemente plano, com perpectivas de processos cumulativos sem rupturas como, de resto, tem sido o panorama da Europa Ocidental, do Japo, dos NICS, os novos pases industriais da sia e, na verdade, foi o ambiente geral do secular perodo de expanso de Europa do fim de Napoleo at a I Guerra Mundial. Por outro lado, ganha forma uma problemtica de abrangncia planetria ainda sem mecanismos eficazes de tratamento degradao e riscos ambientais, descontrole demogrfico, pobreza e aumento das desigualdades socioeconmicas.

38

Captulo 2 - A Supernova

Minha gerao coincidiu, no tempo, com a grande experincia histrica sovitica do marxismo o Curto Sculo XX de Hobsbawm, ele prprio marxista. Qualquer que seja o prisma segundo o qual se olha, a extraordinria importncia do marxismo no pensamento e na viso do mundo, a supernova no nosso firmamento viria a ser, desde a segunda metade do Sculo XIX, um ingrediente essencial na nossa maneira de encarar a vida, a sociedade, os valores e a ao do homem. Para interpret-lo, contudo, preciso considerarse o contexto do mundo de meados do Sculo XIX. Avanava, ento, a forma mais crua do capitalismo da Revoluo Industrial Inglesa que, por um lado, comeava a impor-se decisivamente hegemnico, tecnolgica, econmica e militarmente, sobre o mundo alm das fronteiras da Europa Ocidental e do seu rebrote norte-americano. E fronteiras a dentro, o novo modo de organizao econmica demonstrava extrema dureza na explorao da fora de trabalho recm-imigrada do campo e de ocupaes tradicionais, a qual, um tanto maneira dos ocupantes das atuais periferias urbanas pobres, era em parte expulsa e tangida, e em parte, atrada, pelas oportunidades que se abriam, ainda que, na nossa tica de hoje, em condies inconcebivelmente penosas. A formao do capitalismo industrial no foi um processo rpido. O Ocidente comeara a acelerar-se a diferenciao material e tecnologica a partir do Sculo XV num processo de enorme complexidade, caracterizado39

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

por uma quase ininterrupta violncia interna que, a partir do ciclo das Navegaes, transborda para o resto do mundo sob a forma de expanso predatria. Seu principal aglutinante interno, o catolicismo romano, que conseguira manter-se estruturalmente funcional por doze sculos (apesar do Cisma do Oriente, em 1054, que apartou de vez do Papado a Igreja bizantina, e do Grande Cisma que, ao fim do Sculo XIV, por quase 40 anos, dividiu a cpula catlica entre dois Papas), comeou a desfazer-se no cotidiano, por assim dizer-se, com as navegaes e as conquistas, a monetizao crescente da vida cotidiana pelo afluxo do ouro das Amricas, o crescimento do comrcio e das cidades, que impulsiona o Renascimento, e com a explosiva inovao gutenberguiana da impresso por tipo mvel. Mas, mau grado dessas mudanas, a base material da existncia cotidiana para a grande maioria da populao consinuaria basicamente agrria. S por volta de 1820 depois de um quarto de sculo de guerras que a industrializao, a urbanizao, e o comrcio entram em expanso rpida, trazendo contradies, acelerao dos contrastes em escala internacional, e agravando conflitos sociais que, antes no haviam chegado a passar de episdios mais ou menos locais. Foi um longo caminho que, desde vai desde o humanismo, ao fim da Idade Mdia, passando pelo Iluminismo e, nas ltimas dcadas do Sculo XVIII, culminando na Revoluo Americana (os founding fathers eram uma elite intelectual profundamente influenciada pelo Iluminismo escosss) e, 13 anos depois, na Francesa at o Ocidente aquietar-se, na Era Burguesa, com sua f inabalvel no progresso indefinido. At ento, as pessoas mais ou menos aceitavam as diferenas das condies sociais como um dado no questionvel da ordem natural das coisas, presidida pela vontade divina. O Sculo XVII marca, no entanto, na Europa, o incio de uma viso nova do universo, a introduo da cincia moderna, que segue de perto uma srie de inovaes tecnolgicas cruciais. No sculo seguinte, com combatividade racionalizante da Ilustrao, combativamente racionalizante, surge o questionamento sistemtico das certezas herdadas, da religio, da ordem poltica, e com ela, vm os primeiros contornos do culto do progresso indefinido. O Conde de Saint Simon, que combatera pela independncia americana e, depois, aderira ao movimento revolucionrio na Frana, conceberia uma primeira verso de engenharia social, tecnocrtica e meritocrtica. Seu secretrio A. Comte formularia o positivismo, que reduzia a trs estgios lineares (teolgico, metafsico e cientfico) a evoluo do gnero humano. A proposta saintsimoniana de uma engenharia social no se assentava40

A SUPERNOVA

sobre alicerces tericos, e depois, a concepo positivista, com a sua lei dos trs estgios da humanidade apenas poucos anos antes do Manifesto Comunista perder-se-ia logo, apesar da inteno cientfica do seu mtodo, numa acrtica religio da humanidade. O cientificismo positivista influenciaria o pensamento em pases como o Brasil e o Mxico, e mesmo, pensam alguns, os Estados Unidos. A religio recolhia-se definitivamente, na Europa, ao mbito privado. Darwin (de quem Marx seria entusiasta) introduziria, na segunda metade do sculo, a noo da evoluo das espcies pelo mecanismo da sobrevivncia dos mais aptos a mudanas aleatrias. E, em 1882, Nietzsche afirmaria: Deus est morto. Em meados do Sculo XIX, nenhum substituto existia para a religio no papel organizador da sociedade: a f no progresso interminvel universalizara-se, mas sem trazer uma estrutura de andaimes que ocupasse o seu lugar. A contribuio de Marx Marx representaria uma inflexo decisiva no pensamento moderno, formulada com dois componentes essenciais: as condies tcnicas e materiais, isto , a base produtiva da sociedade, como suporte de toda a multiplicidade da superestrutura social, das ideias, das instituies, da cultura, da religio; e (invertendo a colocao dialtica hegeliana da liberdade) o carter dialtico da evoluo histrica e da explorao do homem pelo homem, isto , a sucesso de contradies e snteses causadas, que impelem as sociedades, atravs da luta de classes, a um destino ltimo. A contribuio marxista , no entanto, bem mais complexa do que esses dois componentes. Numerosos pormenores da sua extensa obra, com a colaborao de Engels, so, no raro, tirados de contexto por seus detratores. Por outro lado, obviamente razovel que no se deve tomar essa obra de modo no crtico, como uma espcie de texto religioso fundamental, o Talmud, o Novo Testamento, ou os quatro Vedas atitude de esprito que contribuiu, sem dvida, para a fragilidade terica de muitos marxistas. E a reificao, os simplismos, e o mecanicismo das noes da luta de classes concorreram especialmente para expor e agravar essa fragilidade. Vamos mais adiante abordar alguns dos seus aspetos que nos parecem mais relevantes para a viso do mundo contempornea. Mas justo reconhecer que foi Marx quem ofereceu ao mundo moderno uma interpretao de conjunto, sistmica, dos processos fundamentais que ainda prosseguem, acelerados, diante dos nossos41

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

olhos viso que oferece o mais amplo espao Razo e autonomia do homem. Viso que tem limitaes, como, claro, no poderia deixar de ser, at porque Marx um homem do seu tempo, preso, de certo modo, s suas circunstncias, ao momento histrico do auge do industrialismo manchesteriano de meados do sculo XIX, que viria a ser, entretanto, desde ento, suplantado pelas subsequentes transformaes tecnolgicas e econmicas e, portanto, socioculturais e polticas que sobreviriam em sucessivas grandes vagas, de fato revolucionrias, at a incerta configurao do mundo atual. Em todos os campos da existncia histrica, contradies e conflitos evidenciavam que o processo no tinha a simplicidade inerente de um progresso linear. Hegel concebera a evoluo histrica em termos dialticos de tese, anttese e sntese, que Marx inverteria, como materialismo histrico, situando-a, no mais no reino ideal do Esprito, mas sim sob a ao concreta das foras produtivas, prevendo que as contradies seriam resolvidas com o fim revolucionrio da explorao do homem pelo homem e, consequentemente, da Histria, pelo estabelecimento do comunismo. No mundo avanado de 1848, a viso de transcendncia inerente velha ordem pr-industrial na qual cada um tinha o seu lugar definido, de acordo com um desgnio sobrenatural encontrava-se j, diante dos olhos de todos, em desagregao, a um tremendo custo social. Essa era uma extraordinria ponte lanada sobre as dvidas humanas, numa poca em que propostas sintticas de religio para ocupar o vazio de crenas j no resistiam dureza metdica das cincias. Alguns (L. Kolakowski, por exemplo) encontrariam na doutrina revolucionria marxista uma semelhana com a concepo dicotmica da ideia da salvao no cristianismo a salvao pela negao, um tudo ou nada no marxismo, com uma viso prometeica da autorredeno da humanidade. Talvez no seja o caso de se levar muito longe a comparao. Como quer que seja, no Sculo XIX um vcuo de transcendncia, de crenas e esperanas j se havia rarefeito no seio da civilizao ocidental. O marxismo, enquanto proposta poltica definida dentro de contextos histricos especficos como o caso das vrias experincias socialistas concretas, revolucionrias ou no tem de ser encarado tambm como algo demarcado no tempo, no como um saber de salvao com pretenses universais. Sob o ponto de vista do que mais pode interessar o pensamento contemporneo, a considerao mais relevante que Marx deslocou o foco da condio humana, antes distribuido pelas potencialmente incontveis abstraes religiosas ou intelectuais, de algum modo pensveis, para o terreno42

A SUPERNOVA

slido da relao do homem com o mundo material em que vive, e que ele modifica por sua ao, sendo, porm, tambm por ele condicionado. Assim muito especialmente, pensamos, no caso brasileiro num nvel de mais alta abstrao, convm distinguir entre, por um lado, as receitas ideolgicas, revolucionrias ou no, que (desde o prprio Manifesto Comunista de Marx e Engels) tm sido oferecidas s mais diferentes sociedades, nas mais variadas circunstncias histricas, e, por outro lado, aquilo que constitui o ncleo irredutvel da contribuio marxista compreenso do homem por si mesmo, a crucial percepo de que o homem seu autocriador, , e continuamente torna-se, aquilo que faz, e no ato de produzir, cria a si mesmo, e a seus sistemas de compreenso do mundo. A distino entre a contribuio fundamental do marxismo, e a multiplicidade de propostas ideolgicas e de remendos oportunistas que prolifereram no pas desde a dcada de 20, nunca foi ntida no domnio da intelligentsia brasileira. Muitos, claro, aderiram a alguma viso quase religiosa dele, valendo-se do esquema de interpretao do mundo como conveniente instrumento de dar fora a formas, que se tentava fazer no contestveis, de dominao poltica. Para a minha gerao, que tomava conscincia de si, no Brasil, nos anos 30, entender o mundo no parecia, entretanto, (ao menos, de incio, para muitos) uma tarefa j feita. Mas tampouco lhe bastava a muito abusada citao do ainda jovem Marx, na XI das Teses sobre Feuerbach: os filsofos apenas tm interpretado o mundo de vrias maneiras; a questo, porm, transform-lo. No sem perplexidade, alis. No nosso mundo, e nosso caso especial, no Brasil, a presso era simultnea e encadeada: entender e transformar. O que se compreende, em retrospecto. A ideia inicial que Marx tinha sobre a condio dos povos menos desenvolvidos era simplista: teriam de seguir o caminho dos mais avanados. Por outro lado, deve ressaltar-se, Marx, no fim da vida, havia aberto uma exceo no caso da Rssia Imperial, e estvamos diante de uma experincia revolucionria sovitica ainda em processo, mal conhecida, e muito atacada e difamada. No havia, ento, no Brasil, um proletariado industrial significativo, e o campons era uma tola fico semntica conhecia-se o lavrador, parceiro, meeiro, o escasso trabalhador rural, mas era uma vasta massa sem forma, espalhada pela geografia despropositada, sem nada em comum com a forma tpica da aldeia campesina, nas regies onde esta existia como unidade bsica de organizao econmica, social, e administrativo-institucional, principalmente produtora de excedentes43

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

alimentares, como na Rssia, no Oriente, em geral, em partes da frica e do Oriente Mdio, e nas Amricas, das civilizaes andinas, mesoamericanas e mexicana. Como conceber, ento, a luta de classes? Em que consistiria? Qual seria a classe revolucionria ativa? Da teoria para o mundo real Pouco se sabia, nos anos 30, do que estava acontecendo na Rssia depois da Revoluo de 1917. Mas o mundo, como um todo parecia, de fato, beira de uma comoo decisiva. A Guerra Civil espanhola arrebataria entusiasmos, como que a divisria entre o bem e o mal, mas tambm aceleraria dissenses. Por outro lado, havia confusas indagaes sobre Trotsky, as ento mal conhecidas depuraes de Stalin, e o acordo de 1939 com Hitler. Seriam superadas, porm, quando a Guerra, cindindo os lados em linhas irredutveis de sobrevivncia ou barbrie, serviu como um clarim de retorno aos estandartes. muito complicado tentar destrinchar das colocaes revolucionrias monistas, em termos de luta de classes, os aspetos tericos, analticos, do marxismo. A colocao de Marx chega de entender, preciso transformar o mundo quando olhada sob certas perspectivas, d alguma impresso de validade emprica. Mas pensar e agir no mundo no so de todo separveis, e a teoria a ferramenta necessria da ao deliberada. Entretanto, se a concepo terica postulada como condio imanente de fundamentao da compreenso do homem e do mundo, inevitavelmente somos levados aos mesmos insolveis problemas de todos os juzos absolutos postulados a priori, e no haveria como distinguir uma opo marxista por mais que esta buscasse caracterizar-se como objetivamente cientfica de qualquer crena fundamentalista, religiosa, poltica, ou o que seja. Nem o tempo, nem a minha gerao, pararam nos anos 30, e todo o processo que se desenvolve ao longo das dcadas que se seguiram tem de ser identificado, no possvel, medida que novos marcadores paream significativos. Em verdade, o solo em que penetram as razes intelectuais brasileiras da minha gerao, embora se sentissem fortemente os tremendos abalos tectnicos da transio da poca Vitoriana e da Depresso, pouco havia mudado desde o final do Sculo XIX. A tica sob a qual os problemas da sociedade e da condio humana eram percebidos e, de um modo ou de outro, equacionados, continuava condicionada por dois fatores dominantes44

A SUPERNOVA

concretos: (i) a persistncia do modo de produo latifundirio-exportador, e (ii) uma camada superior (o termo elite no l muito simpatizado, mas tecnicamente vlido) muito dependente do Estado patrimonialista, e do limitado arco de oportunidades que este oferecia pequena burguesia, privilegiando notadamente as classes mdias ilustradas. O ambiente intelectual e poltico das esquerdas por volta da I Guerra e da dcada de 20, no mundo, era borbulhante, s vezes, exuberante. A Primeira Internacional, estabelecida, de incio, como Organizao Internacional dos Trabalhadores, em que Marx esteve ativo, fora um movimento confuso e fraco, resultado da convergncia conflitante de uma variedade de grupos, anarquistas, sindicalistas, e at alguns no socialistas, que acabaria dividido entre a linha marxista e outras, especialmente os anarquistas. Estes ltimos derivariam para formas de atentados (no que hoje seria terrorismo), causando medo, e sendo perseguidos, em alguns casos, executados. Fundada em 1864, em Londres, transferida para os Estados Unidos em 1872, a Primeira Internacional foi dissolvida em 1876. Em 1889, seis anos depois do desaparecimento de Marx, no meio de numa complicada disputa entre socialistas franceses e outros, foi estabelecida uma Segunda Internacional, formada base de partidos polticos com lideranas eleitas, que logo excluiria os anarquistas, e que, dissolvida em 1916 na Conferncia de Zimmerwald, quando Lenin comandou a reao de esquerda contra os governos de unio nacional, duraria oficialmente at 1923, quando seria definitivamente suplantada pela Terceira Internacional, formada na Rssia Revolucionria em 1919. A Segunda Internacional foi, sobretudo, um movimento pouco realista de intelectuais e sindicalistas, que promoveu mais de uma dezena de congressos na Europa, e cujas ideias sobre a fraternizao das classes trabalhadoras em oposio I Guerra acabariam em fracasso completo (incidentalmente, Mussolini, ento importante lder socialista italiano, divergiu, e apoiou a guerra). O cenrio ideolgico era bastante difuso. Em 1883, na Inglaterra (onde estava enraizada uma disposio essencialmente prtica dos movimentos trabalhistas), foi fundada a Sociedade Fabiana, que repudiava a luta de classes. No Brasil, at a dcada de 20, a repercusso das ideias socialistas foi insignificante. As primeiras greves de alguma repercusso, no Brasil, deram-se em So Paulo, nos anos de 1907, 1912 e 1917, expandindose depois de 1920, mas, apesar de certos esforos intelectuais para pint-las como aes de vanguarda, no passaram de meros movimentos45

OSCAR S. LORENZO FERNANDEZ

reivindicatrios, sem conotaes ideolgicas propriamente de esquerda. A pouca movimentao ideolgica que havia nesse tempo devia-se a elementos anarquistas. Tambm a fundao do Partido Comunista, em 1922, foi um evento sem maior repercusso e no final dos anos 20, ainda seria ouvido com naturalidade o Presidente Washington Luiz dizer que questo social era caso de polcia. Em verdade, o Brasil vivia at ento numa era ideolgica anterior ao seu tempo, na mais tranquila ignorncia dos problemas sindicais ou socialistas. Evidentemente, no seria de esperar-se uma conscientizao ideolgica correspondente s condies de um industrialismo capitalista avanado, que no existiam entre ns. A dcada de 30, no entanto, abriria perspectivas distintas. A Grande Depresso, cuja gravidade no tinha precedentes, devastava as economias industriais, e repercutia no Brasil reduzindo a renda agrria fortemente no setor cafeeiro mas sem o fenmeno do desemprego em massa. A populao do campo, duas teras partes do total do pas, simplesmente achava-se aqum da conscincia de classe, e participava polticamente. A Revoluo de 30 s foi revolucionria na medida em que promoveu uma dana das cadeiras no topo da pirmide, e assim, abriu s classes mdias urbanas maior acesso ao poder, pela via do aparelho do Estado. O cenrio internacional estava longe de mostrar-se ntido. Praticamente incapacitado desde 1922, Lenin morreria dois anos depois. Trotsky, o terico da Revoluo Permanente, seria removido do Comit Central do Partido em 1925, e as disputas subsequentes seriam definidas, com sua expulso do Partido, em 1927, seu exlio em 1928, e sua expulso da Unio Sovitica em 1929, e com a vitria incontrastada de Stalin, proponente do Socialismo em um S Pas. Tudo isso, que, nesse tempo, filtrava mal para o mundo exterior, praticamente no tinha repercusses no Brasil. No pesado ambiente dos anos 30 que comearia a configurar-se algo como um pensamento de esquerda brasileiro. Mas preciso referi-lo s condies internas e externas. Na ecologia interna, apontem-se condies quase paramtricas (isto , pouco variveis), que vinham de muito antes: (i) inexistncia de uma sociedade de consumo (que comeara a definir-se nos Estados Unidos na dcada de 20); (ii) cadeias produtivas bastante simples; (iii) relativamente modesta diferenciao de classes burguesas: a boa sociedade ainda era, em boa parte, definida por status adscritcio, ou adquirido (havia, porm, alguma permeabilidade, seja pelos caminhos do poder, seja pelos da ilustrao: o mero dinheiro tinha de46

A SUPERNOVA

passar por certa purificao). Era, pois, uma sociedade nitidamente perifrica, pr-industrial, no de todo sada de uma condio semicolonial (a desagregao do sistema hegemnico estava se dando de fora para dentro). No mundo l fora ferviam as crticas ao estado de coisas, e o desemprego e a desordem econmica justificavam, por um lado, o alargamento imediato das atribuies do Estado, e por outro, pareciam coonestar, em parte, as ideias centrais marxistas. Figuras como Trotsky mantinham, para alguns, uma aura herica mas a realidade revolucionria passara a chamar-se Stalin, e comeava a espantar pela obra dos Planos Quinquenais, uma escala de transformao do mundo como nunca se vira. No Brasil, as indagaes intelectuais que surgiriam nas dcadas de 30 e 40 no estavam bem delineadas na cultura ldica pr-racional de Macunama, difcil discernir evidncias indiscutveis de um vazio ou de transcendncia. A aspirao de mudar o mundo podia considerar-se talvez universal, mas