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A GEOGRAFIA DO VINHO EM MINAS GERAIS: PATRIMÔNIO, RURALIDADES E TERRITORIALIDADADES 1 MARCELO CERVO CHELOTTI 2 Resumo A presente pesquisa teve como objetivo central discutir as expressões contemporâneas da ruralidade associada ao cultivo da uva e do fabrico do vinho no sul de Minas Gerais, em especial nos municípios de Caldas e Andradas. Em relação aos procedimentos metodológicos, esses foram divididos em etapas, sendo elas: A primeira etapa correspondeu a pesquisa bibliográfica, distribuída nos meses de fevereiro, março e abril de 2018 primeiros meses das atividades. Numa segunda etapa realizamos a coleta em dados secundários: (a) na enciclopédia dos municípios Brasileiros buscamos informações referentes a histórica econômica dos municípios de Andradas e Caldas, em que evidenciamos a importância que a vitivinicultura representava para esses municípios na década de 1950; (b) na Pesquisa Agrícola Municipal/PAM/IBGE buscamos uma série história da evolução da área plantada com uvas em Minas Gerais; (c) Nos Censos Agropecuários do IBGE buscamos informações para as décadas de 1960, 1970 e 1980 referentes a área cultivada com uvas em Minas Gerais, (d) no Banco de Dados de Uva, Vinho e Derivados/VITIBRASIL, e (e) em sites institucionais da EPAMIG, EMBRAPA, IBRAVIN. Na terceira etapa realizamos a pesquisa de campo, com objetivo de coletar os primários nos municípios de Caldas e Andradas, realizada no mês de julho de 2018. Os resultados da pesquisa demonstraram que a centenária tradição em cultivar a uva e realizar o processo de fabrico do vinho produziram inegavelmente fortes traços identitários sobre o território sul mineiro, forjando uma identidade territorial associada as expressões materiais e imateriais da vitivinicultura. Os parreirais com elementos da paisagem estão associados a uma ruralidade típica de agricultura familiar em pequenas propriedades. A modernização da vitivinicultura no sul de Minas Gerais ocorreu com o desenvolvimento da técnica de dupla poda, desenvolvida pela EPAMIG, alterando o ciclo de produção para a colheita nos meses mais secos, obtendo assim no inverno uma uva com melhor qualidade. Além dos vinhos finos, a nova vitivinicultura mineira conecta-se com outras experiências associadas ao mundo do vinho, como por exemplo o enoturismo. As expressões contemporâneas da vitivinicultura sul mineira se manifestam territorialmente a partir de dois grandes grupos sociais. De um lado, a vitivinicultura associada a produção artesanal de vinho de mesa mantida como herança e patrimônio cultural; e por outro, uma nova vitivinicultura desenvolvida a partir da produção de vinhos finos com investimentos de sujeitos com pouca tradição no cultivo da uva e no fabrico do vinho. Portanto, a geografia do vinho no sul de Minas Gerais está forjada entre relações que permeiam tradição e modernidade. Palavras-chave: Patrimônio. Ruralidades. Territorialidades. Vitivinicultura. Sul mineiro. 1 Parte integrante da pesquisa desenvolvida no âmbito do estágio Pós-Doutoral realizado junto ao Núcleo de Estudos Agrários/NEAG e Centro do Patrimônio e Cultura do Vinho/CEPAVIN vinculados ao departamento de Geografia do Instituto de Geociências da UFRGS, sob supervisão da profa. Dra. Rosa Maria Vieira Medeiros. 2 Docente no Programa de Pós-Graduação em Geografia (Mestrado e Doutorado) do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia/Minas Gerais. Coordenador do Laboratório de Geografia Agrária/LAGEA. E-mail: [email protected]

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Page 1: A GEOGRAFIA DO VINHO EM MINAS GERAIS: PATRIMÔNIO ... · é crescente as paisagens residuais de uma vitivinicultura tradicional, e por outro, é evidente uma nova vitivinicultura

A GEOGRAFIA DO VINHO EM MINAS GERAIS: PATRIMÔNIO, RURALIDADES E TERRITORIALIDADADES1

MARCELO CERVO CHELOTTI2

Resumo

A presente pesquisa teve como objetivo central discutir as expressões contemporâneas da

ruralidade associada ao cultivo da uva e do fabrico do vinho no sul de Minas Gerais, em especial

nos municípios de Caldas e Andradas. Em relação aos procedimentos metodológicos, esses

foram divididos em etapas, sendo elas: A primeira etapa correspondeu a pesquisa bibliográfica,

distribuída nos meses de fevereiro, março e abril de 2018 primeiros meses das atividades. Numa

segunda etapa realizamos a coleta em dados secundários: (a) na enciclopédia dos municípios

Brasileiros buscamos informações referentes a histórica econômica dos municípios de Andradas

e Caldas, em que evidenciamos a importância que a vitivinicultura representava para esses

municípios na década de 1950; (b) na Pesquisa Agrícola Municipal/PAM/IBGE buscamos uma

série história da evolução da área plantada com uvas em Minas Gerais; (c) Nos Censos

Agropecuários do IBGE buscamos informações para as décadas de 1960, 1970 e 1980

referentes a área cultivada com uvas em Minas Gerais, (d) no Banco de Dados de Uva, Vinho e

Derivados/VITIBRASIL, e (e) em sites institucionais da EPAMIG, EMBRAPA, IBRAVIN. Na

terceira etapa realizamos a pesquisa de campo, com objetivo de coletar os primários nos

municípios de Caldas e Andradas, realizada no mês de julho de 2018. Os resultados da pesquisa

demonstraram que a centenária tradição em cultivar a uva e realizar o processo de fabrico do

vinho produziram inegavelmente fortes traços identitários sobre o território sul mineiro, forjando

uma identidade territorial associada as expressões materiais e imateriais da vitivinicultura. Os

parreirais com elementos da paisagem estão associados a uma ruralidade típica de agricultura

familiar em pequenas propriedades. A modernização da vitivinicultura no sul de Minas Gerais

ocorreu com o desenvolvimento da técnica de dupla poda, desenvolvida pela EPAMIG, alterando

o ciclo de produção para a colheita nos meses mais secos, obtendo assim no inverno uma uva

com melhor qualidade. Além dos vinhos finos, a nova vitivinicultura mineira conecta-se com

outras experiências associadas ao mundo do vinho, como por exemplo o enoturismo. As

expressões contemporâneas da vitivinicultura sul mineira se manifestam territorialmente a partir

de dois grandes grupos sociais. De um lado, a vitivinicultura associada a produção artesanal de

vinho de mesa mantida como herança e patrimônio cultural; e por outro, uma nova vitivinicultura

desenvolvida a partir da produção de vinhos finos com investimentos de sujeitos com pouca

tradição no cultivo da uva e no fabrico do vinho. Portanto, a geografia do vinho no sul de Minas

Gerais está forjada entre relações que permeiam tradição e modernidade.

Palavras-chave: Patrimônio. Ruralidades. Territorialidades. Vitivinicultura. Sul mineiro.

1 Parte integrante da pesquisa desenvolvida no âmbito do estágio Pós-Doutoral realizado junto ao Núcleo de Estudos Agrários/NEAG e Centro do Patrimônio e Cultura do Vinho/CEPAVIN vinculados ao departamento de Geografia do Instituto de Geociências da UFRGS, sob supervisão da profa. Dra. Rosa Maria Vieira Medeiros. 2 Docente no Programa de Pós-Graduação em Geografia (Mestrado e Doutorado) do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia/Minas Gerais. Coordenador do Laboratório de Geografia Agrária/LAGEA. E-mail: [email protected]

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Abstract

The present research had as main objective to discuss the contemporary expressions of the rurality associated to grape cultivation and wine making in the south of Minas Gerais, especially in the municipalities of Caldas and Andradas. In relation to the methodological procedures, these were divided into stages: The first stage corresponded to the bibliographic research, distributed in the months of February, March and April of 2018 the first months of the activities. In a second stage, we collected secondary data: (a) in the encyclopedia of Brazilian municipalities, we searched for information about the economic history of the municipalities of Andradas and Caldas, where we showed the importance of viticulture to these municipalities in the 1950s; (b) in the Pesquisa Agrícula Municipal / PAM / IBGE we look for a series of history of the evolution of the area planted with grapes in Minas Gerais; (c) In the Agricultural Census of the IBGE, we sought information for the 1960s, 1970s and 1980s regarding the area planted with grapes in Minas Gerais, (d) in the Grape, Wine and Derivatives Database / VITIBRASIL, and (e) in institutional sites of EPAMIG, EMBRAPA, IBRAVIN. In the third stage we carried out the field research with the objective of collecting the primary in the municipalities of Caldas and Andradas, held in July 2018. The results of the research demonstrated that the centuries-long tradition of growing the grape and carrying out the process of manufacturing the wine produced undeniably strong identity traits over the southern mining territory, forging a territorial identity associated with the material and immaterial expressions of winemaking. The vines with elements of the landscape are associated with a rurality typical of family agriculture in small properties. The modernization of winemaking in the south of Minas Gerais occurred with the development of the double pruning technique, developed by EPAMIG, changing the production cycle for the harvest in the drier months, thus obtaining in winter a grape of better quality. In addition to fine wines, the new Minas Gerais wine industry is connected with other experiences associated with the world of wine, such as wine tourism. The contemporary expressions of viticulture south of Minas Gerais manifest themselves territorially from two great social groups. On the one hand, the viticulture associated with the artisanal production of table wine maintained as an inheritance and cultural patrimony; and on the other hand, a new winemaking developed from the production of fine wines with investments of subjects with little tradition in grape growing and wine making. Therefore, the geography of wine in the south of Minas Gerais is forged between relations that permeate tradition and modernity.

Keywords: Patrimony. Ruralities. Territorialities. Vitiviniculture. South mining.

Introdução

A valorização da ruralidade contemporânea passa pela consideração de

seus conteúdos e significados das práticas sociais. Assim, devemos em nossas

análises ir para além da dimensão do econômico, e incorporar também a

perspectiva cultural em seus sentidos materiais e imateriais. A partir dessa

premissa, compreendemos que muitas manifestações e práticas socioculturais

permanecem no rural, mesmo diante do processo de modernização, pois ambos

podem conviver nos mesmos territórios, apenas com diferentes expressões e

territorialidades.

Embora não tenha uma larga tradição na produção de vinhos, como

ocorre em muitos países europeus, no Brasil existe um considerável patrimônio

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vitivinícola que merece ser preservado. Há que se destacar também que esse

patrimônio não se encontra localizado somente em territórios tradicionais do

vinho como o Rio Grande do Sul, mas também em Santa Catarina, Paraná, São

Paulo e Minas Gerais.

As recentes discussões sobre as expressões territoriais da vitivinicultura,

sejam elas associadas às práticas tradicionais do saber fazer o vinho

(colonial/artesanal), ou as novas práticas associadas a saber fazer associado

aos processos modernos (finos/castas), produzindo novas ruralidades

associadas a uva e ao vinho. Portanto, faz-se necessário compreender as

expressões contemporâneas da vitivinicultura, ou melhor, dos novos e velhos

territórios da uva do vinho.

Para Cavicchioli (2013) o vinho passou a ocupar um espaço bastante

especial no rol do patrimônio cultural, sendo que uma das preocupações atuais

reside na preservação deste patrimônio cultural do vinho. Acreditamos, que a

divulgação e o acesso das pesquisas a um público leigo ou não acadêmico é um

elemento essencial na preservação e valorização do patrimônio cultural do vinho,

pois, na medida em que as pessoas o conhecem podem identificar-se com ele,

compreendendo ser de interesse público a sua preservação.

O patrimônio e a cultura do vinho no Brasil de maneira ampliada requerem

investimentos em pesquisa e ensino de qualidade, a exemplo de outros países,

como França, Portugal, Espanha, entre outros. Há carência de informações,

dados e conhecimentos nesse campo, e o patrimônio do vinho no Brasil, com

poucas exceções, vai se perdendo a cada ano (VALDUGA, 2015).

O estudo da Geografia das regiões, na ótica dos territórios, da cultura e

do patrimônio da uva e do vinho, evidenciou que há no Brasil, estados e regiões

com identidade vitivinícola, cuja relevância enseja pesquisas específicas

(FALCADE, 2017).

Assim, motivados pela provocação de Medeiros (2017), Valduga (2015),

e Falcade (2017), a presente pesquisa teve como objetivo central discutir as

expressões contemporâneas da ruralidade associada ao cultivo da uva e do

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fabrico do vinho no sul do estado de Minas Gerais, em especial nos municípios

de Caldas e Andradas (Mapa 1).

Os municípios sul mineiros de Andradas e Caldas se apresentam

enquanto excelente laboratório para discutirmos as expressões contemporâneas

da vitivinicultura. Ao mesmo tempo que possuem uma secular tradição no cultivo

da uva e do fabrico do vinho, também são palco de novas experiências na

modernização da vitivinicultura no Brasil tropical. Assim, tradição e modernidade

comparecem lado a lado na vitivinicultura do sul de Minas Gerais. Por um lado,

é crescente as paisagens residuais de uma vitivinicultura tradicional, e por outro,

é evidente uma nova vitivinicultura alicerçada em novos paradigmas técnico-

científicos.

Mapa 1 – Minas Gerais: localização da área de estudo da pesquisa

O espaço se organiza de forma distinta em razão da expansão da

viticultura. O vinho, pouco a pouco, ocupa espaços com a instalação de novas

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vinícolas ou com a expansão das antigas nos novos territórios. São esses

territórios que atraem turistas ávidos em explorar e consumir de forma lenta e

suave os produtos locais plenos de sabores e saberes (MEDEIROS, 2017, p. 9).

Procedimentos metodológicos

Em relação aos procedimentos metodológicos, esses foram divididos em

etapas, sendo elas: A primeira etapa correspondeu a pesquisa bibliográfica,

distribuída nos meses de fevereiro, março e abril de 2018 primeiros meses

das atividades. Destaca-se que em relação ao levantamento bibliográfico,

buscamos nas principais obras teóricas discussões que contribuíssem como

a pesquisa em curso enriquecendo e alicerçando a elaboração dos resultados

e consequentemente a interface entre a teoria e a práxis.

Numa segunda etapa realizamos a coleta em dados secundários: (a) na

enciclopédia dos municípios Brasileiros buscamos informações referentes a

histórica econômica dos municípios de Andradas e Caldas, em que

evidenciamos a importância que a vitivinicultura representava para esses

municípios na década de 1950; (b) na Pesquisa Agrícola Municipal/PAM/IBGE

buscamos uma série história da evolução da área plantada com uvas em Minas

Gerais; (c) Nos Censos Agropecuários do IBGE buscamos informações para as

décadas de 1960, 1970 e 1980 referentes a área cultivada com uvas em Minas

Gerais, (d) no Banco de Dados de Uva, Vinho e Derivados/VITIBRASIL, e (e)

em sites institucionais da EPAMIG, EMBRAPA, IBRAVIN.

De acordo com Falcade (2017, p. 114) não há para todo o Brasil um

cadastro vitícola como existe, por exemplo, para o Rio Grande do Sul. Assim,

para considerar dados com igual metodologia/fonte sugere-se os dados do

IBGE.

De posse desses dados elaboramos uma série de mapas temáticos,

demostrando a dinâmica da vitivinicultura em Minas Gerais. A partir dos mapas

ficou evidente uma mudança no padrão espacial, ou seja, historicamente

concentrada no sul do estado, mas pós-1990 verificamos um deslocamento para

o norte, principalmente no Vale do Rio São Francisco, e com isso configurando

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um novo padrão espacial da vitivinicultura em Minas Gerais.

A terceira etapa, correspondeu a pesquisa de campo que foi realizada no

período de 18 a 28 de julho de 2018. Para tal definimos duas frentes de trabalho:

(a) nos primeiros dias nos dedicamos a visitar as instituições, tais como

EMATER, EPAMIG e Prefeitura Municipal. No município de Andradas visitamos

a Casa da Cultura, que possui rico acervo sobre a história da vitivinicultura local.

Também visitamos a secretaria municipal de Agricultura, Turismo e Lazer, onde

tivemos acesso as discussões sobre o Plano Museológico do Museu do Vinho

de Andradas. No município de Caldas visitamos a EPAMIG, onde podemos

conhecer de perto os projetos de melhoramento vitícola em curso, bem como

suas instalações industriais e parreirais com diversas cepas plantadas. Outra

visita importante foi realizada na EMATER, no qual foi possível ter contato com

os nomes dos vitivinicultores, bem como seus endereços. Também visitamos a

Casa de Cultura de Caldas que contém rico acervo sobre a tradição da

vitivinicultura no município.

De posse de todo material documental e secundário, nos dias

subsequentes realizamos a pesquisa de campo com os vitivinicultores em suas

propriedades rurais. Nessa etapa foram realizadas as entrevistas, sendo

importante destacar que realizamos duas entrevistas por dia, pois valorizamos

as longas conversas e visitação ao parreiral e as instalações das adegas.

Outra estratégia metodológica utilizada no decorrer da pesquisa de campo

foi a prática do Diário de Campo. Depois de um dia inteiro de atividades de

campo, tomamos como prática a sistematização das informações obtidas em

forma de diário.

O presente texto, está estruturado em duas partes, além da introdução e

considerações finais. Na primeira caracterizamos a vitivinicultura mineira no

contexto brasileiro, e na segunda destacamos suas as expressões.

A vitivinicultura do sul de Minas Gerais no contexto brasileiro

Em 2018 a área de produção vitivinícola no Brasil corresponde a 79,1 mil

hectares. São mais de 1,1 mil vinícolas espalhadas pelo país, a maioria instalada

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em pequenas propriedades (média de 2 hectares de vinhedos por família), sendo

o quinto maior produtor da bebida no Hemisfério Sul (IBRAVIN, 2018).

Ao desagregarmos os dados, observamos que de acordo com o

PAM/IBGE (2015), o estado do Rio Grande do Sul é o maior produtor brasileiro

de uva com uma área de 49.739 hectares, seguido por São Paulo (7.803 ha),

depois Pernambuco (6.814 ha), acompanhado por Santa Catarina (4.846 ha),

posteriormente o Paraná com (4.465 ha), e Minas Gerais com (856 ha).

Embora o estado de Minas Gerais compareça na sexta posição em área

de vinhedos, não podemos desconsiderar sua secular tradição no cultivo da uva

e no fabrico do vinho, em especial no sul do estado, concentrado historicamente

nos municípios de Caldas e Andradas. No entanto, nos últimos anos ocorreu

uma significativa expansão no cultivo de uvas para o norte do estado,

principalmente no perímetro irrigado do rio São Francisco (Mapa 2).

A consolidação desse movimento de espraiamento da produção vitícola

em Minas Gerais é realmente evidenciada nos dados do IBGE para o ano de

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2015 (Mapa 2). Além da região sul com sua histórica tradição, outros polos se

consolidaram como o entorno de Pirapora e de Jaíba. No entanto, faz-se

necessário caracterizar melhor essa produção vitícola. Enquanto no Sul ocorre

o predomínio de uvas destinadas ao fabrico do vinho, no Norte a produção é

destinada a uvas in natura cultivadas com alta tecnologia e irrigação.

As expressões da vitivinicultura no sul mineiro

Nesse desafio de pesquisar novas e velhas regiões vitivinícolas, não

podemos negligenciar as experiências existentes em outras partes do território

brasileiro. No caso do sul mineiro a produção de vinho tem uma tradição que

remonta ao final do século XIX e início do XX.

De antemão, destacamos alguns elementos que corroboram com a

formação da identidade territorial vitivinícola no sul mineiro em especial em

Andradas e Caldas: (a) A existência da Festa da Uva e Festa do Vinho que vem

sendo realizadas desde a década 1950; (b) O papel histórico desempenhado

pela EPAMIG/Caldas desde os anos 1930 na difusão de tecnologia vitivinícola;

(c) O patrimônio material das antigas adegas; (d) O patrimônio imaterial contido

nos modos de cultivar a uva e fabrico do vinho; (e) A paisagem vinícola; e (f) as

novas experiências no cultivo e na fabricação do vinho que indicam uma

atividade viva, e não em extinção.

Durante o processo de formação territorial também se formou um

patrimônio cultural vitivinícola, pois na medida em que o tempo passa são

materializados no território distintas marcas do cultivar a uva e de fabricar o

vinho. No caso do município de Andradas (MG) existe a tradição da

vitivinicultura, como um traço da predominância da colonização italiana, que por

meio das famílias que se instalaram, passaram a reproduzir seus costumes e a

técnica de cultivo da uva e produção de vinhos.

É notável a tradição vitivinícola no município de Andradas, resguardada pelos produtores, que, em sua inscrição terrestre, têm a uva, o vinho e o modo de vida relativo a eles como valores geográficos (KALIL, 2016, p.62)

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Assim, o passado foi reconstituído neste estudo tendo como principal fonte as histórias orais das famílias produtoras de vinho em Andradas, que possuem uma identidade baseada na tradição do vinho, marcada pela descendência italiana (KALIL, 2016, p.64)

O patrimônio cultural da vitivinicultura no sul mineiro se expressa de

maneira plural e difusa. As marcas desse patrimônio são visíveis na paisagem,

embora boa parte dos antigos parreirais estejam em declínio. O patrimônio

material em forma de antigas adegas é o registro histórico do tempo áureo dessa

atividade no município de Andradas. O patrimônio imaterial está nas memórias

dos descendentes de imigrantes italianos que por décadas produziram o vinho

colonial, e que apesar dos novos conceitos da vitivinicultura a tradição se

mantém.

Kalil (2013) propôs três possíveis cenários para a vitivinicultura em

Andradas: a tradicional, a comercial e a científica. A vitivinicultura tradicional

composta por vinícolas menores e artesanais, defronta-se com a inviabilidade de

manter a produção da uva Jacques e do seu vinho; a vitivinicultura comercial

formada apenas por duas vinícolas estão renovando seus parreirais com

cultivares para produção de vinhos finos e espumantes, além da aposta no

enoturismo; e a vitivinicultura científica, na qual tem-se investido em produção

apenas de viníferas para vinhos finos visando substituir a uva Jacques.

A grosso modo identificamos na pesquisa de campo, três grandes grupos:

1) Agricultores familiares/camponeses (apenas a família envolvida no cultivo da

uva e produção do vinho, podendo contar com trocas de dias de serviços,

mutirão, etc); 2) Institucional (EPAMIG enquanto incubadora vinhos finos, o

papel do Estado); e 3) Empresarial (São empresas familiares, estão na gestão

das empresas, mas contratam mão de obra para o processo produtivo, possuem

relações de trabalho assalariado).

No caso de Minas Gerais o grande marco do desenvolvimento tecnológico

para a vitivinicultura foi a técnica de dupla poda da videira3, que implica na

3 Técnica desenvolvida pelo pesquisador Murillo Alburquerque Regina da EPAMIG/Caldas, inverteu o ciclo biológico da videira, para que começasse a amadurecer no inverno evitando o verão com suas intensas chuvas.

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inversão do ciclo produtivo da videira, alterando para o inverno o período de

colheita das uvas destinadas à produção de vinhos finos, em que o método

consiste na realização de podas em janeiro. As uvas colhidas no inverno

apresentam mais aroma e maior concentração de cor, o que contribui para o

aumento qualidade do vinho.

A modernização da vitivinicultura no sul de Minas Gerais ocorreu com a

alteração do ciclo de produção para colheita nos meses mais secos do ano, ou

seja, no inverno, contribuindo com a maturação das bagas e a melhoria da

qualidade do mosto, expresso principalmente pelo teor de açúcar, acidez e

compostos fenólicos. A nova técnica desenvolvida pela EPAMIG, realiza duas

podas anuais, e com isso a maturação da uva ocorre no inverno (período seco),

e não mais no verão (período chuvoso).

É inegável o conhecimento desenvolvido pelo Núcleo Tecnológico

EPAMIG-Uva e Vinho em aprimorar a vitivinícola mineira. Em pouco mais de

cinco anos, Minas Gerais saiu de uma condição inexpressiva na produção de

vinhos finos, para um cenário onde já se cultivam mais de 120 mil pés de videiras

finas, colocando o estado entre aqueles que mais produzem vinhos finos no país

(EPAMIG, 2017).

Portanto para Carvalho (2013. p.13) cai a antiga crença de que vinhos finos

só nascem de videiras plantadas entre os paralelos 30º e 50º de altitude tanto ao

norte, quanto ao sul. Hoje, encontramos vinhos finos nas mais diversas latitudes,

incluindo o paralelo 8°, no vale do rio São Francisco, entre a Bahia e Pernambuco

– nordeste brasileiro - , e no pararelo 14°S, em Ica, Peru.

A inclusão de Minas Gerais no cenário dos vinhos finos brasileiros parece

possível. Neste processo, tem-se buscado a valorização de tipicidades regionais,

que dentro em os consumidores poderão apreciar o “vinho do Cerrado”, o vinho

da região cafeeira” e o “vinho do Vale do Rio São Francisco” (REGINA, et al,

2006).

No contemporâneo, a vitivinicultura em Minas Gerais, mais

especificamente no sul do estado, se expressa entre uma territorialidade

tradicional associada a produção familiar artesanal, e uma outra territorialidade

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moderna associada a produção industrial com novas técnicas de cultivo e

manejo.

Considerações finais

A centenária tradição em cultivar a uva, e realizar o processo de fabrico

do vinho, produziram inegavelmente fortes traços identitários sobre o território

sul mineiro, em especial nos municípios de Caldas e Andradas, forjando uma

identidade territorial associada as expressões materiais e imateriais da

vitivinicultura.

Nas últimas décadas a área vitícola diminuiu consideravelmente. A

tradicional vitivinicultura não acompanhou o processo de modernização da

atividade. Apresenta-se como uma atividade decadente, especificadamente

formada pelas paisagens residuais da vitivinicultura, com considerável

patrimônio material e imaterial.

No entanto, essa vitivinicultura está viva e em transformação. Pois existe

um forte movimento dotado de novas tecnologias para o cultivo de uvas para

produção de vinho fino. Mas, evidencia-se que não se tratam dos mesmos

sujeitos. Os novos vitivinicultores com caráter mais empresarial, não possuem

laços históricos e identitários com o cultivo da uva e com o fabrico do vinho.

Portanto, assistimos no sul mineiro um movimento que combina tradição

e modernidade. Em Caldas, por exemplo, existem vários produtores de vinho

artesanal/colonial que resistem diante de todo esse processo em curso, com

suas uvas rústicas e engarrafamento em garrafões. O mesmo ocorre com o

incentivo por parte do poder público municipal em reativar a tradicional Festa da

Uva de Caldas, que ocorre desde o ano de 1951, com o lema o “Resgate de uma

tradição”.

A modernidade se expressa na constante pesquisa científica em

encontrar tecnologias capazes de produzirem bons vinhos finos. O papel da

EPAMIG enquanto difusora de tecnologia e conhecimento é central nesse

processo. As novas vinícolas são incubadas pela EPAMIG, com isso recebendo

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todo respaldo para seu funcionamento, desde a seleção das videiras a serem

plantadas, até a fase de elaboração e engarrafamento do vinho.

A viticultura contemporânea se expandiu territorialmente em todo estado

de Minas Gerais. Há, portanto, uma nova geografia da uva e do vinho. Outrora

concentrada quase que exclusivamente no sul mineiro, nos últimos anos a

viticultura avançou significativamente para o norte mineiro, em especial para a

região do rio São Francisco. O vinho produzido na Mantiqueira mineira batizado

de vinho de inverno, se propõe apresentar um novo terroir, ou seja, combinando

altitude, tropicalidade e novas técnicas de cultivo.

Pelo que que foi exposto no decorrer dessa pesquisa, não há como

negligenciar o tradicional cultivo de uva e o fabrico do vinho no sul mineiro. Como

também, não há como desconsiderar a efervescência de novas técnicas visando

a elaboração de vinhos finos dentro dos mais modernos processos produtivos.

Minas Gerais amplia sua geografia dos alimentos, além de produzir cafés,

cachaças e queijos, também pela condição de produtora de bons vinhos finos.

Portanto, essa é uma agenda de pesquisa que não se esgota nos limites desse

trabalho, pelo contrário, abre portas para novas inquietações.

Referências bibliográficas

CAVICCIOLI, Marina Regis. Desafios e perspectivas na preservação do patrimônio cultural do vinho. ANAIS... Colóquio internacional “Vinho, Patrimônio, Turismo e Desenvolvimento. Florianópolis/SC, 03 a 05 de dezembro de 2013. p. 26

CARVALHO, Rogério D. Vinho & prazer: apreciação de vinhos com...um sexto sentido. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013

FALCADE, Ivanira. A geografia da uva e do vinho no Brasil: território, cultura e patrimônio. MEDEIROS, Rosa Maria Vieira; LINDNER, Michele. (Orgs.) A uva e o vinho como expressões da cultura, patrimônio e território. Porto Alegre: IGEO - Instituto de Geociências, 2017. p. 103-123 MEDEIROS, Rosa Maria Vieira. Centro do Patrimônio e Cultura do Vinho/CEPAVIN. MEDEIROS, Rosa Maria Vieira; LINDNER, Michele. (Orgs.) A uva e o vinho como expressões da cultura, patrimônio e território. Porto Alegre: IGEO/UFRGS, 2017

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KALIL, Thalassa. O vinho em Andradas (MG): sabor, paisagem, lugar, memória e perspectivas dos produtores. Geograficidade, v6, n.2. 2016

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