a função social da propriedade e os conflitos sobre a terra ou

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106 107 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E OS CONFLITOS SOBRE A TERRA OU A FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA E OS CONFLITOS SOBRE A PROPRIEDADE Artigo classificado em 3° lugar na XII Jornada De Iniciação Científica de Direito da UFPR - 2010 Daniela Pessoa de Goes Calmon David Bachmann Pinto

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106 107

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E OS CONFLITOS SOBRE A TERRA

OU A FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA E OS CONFLITOS SOBRE A PROPRIEDADE

Artigo classificado em 3° lugar na XII Jornada

De Iniciação Científica de Direito da UFPR - 2010

Daniela Pessoa de Goes Calmon

David Bachmann Pinto

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“Do ponto de vista de uma formação econômica superior da sociedade, a propriedade

privada da terra, por parte de alguns indivíduos, parecerá tão absurda como a proprie-

dade privada de um homem por um outro homem.”

Karl Marx

1. Considerações iniciais

1.1 A história da terra e do Direito que a cercou

Se devemos sempre ter cautela ao usar, na caracterização dos hábitos

humanos, a expressão “natural”, já tendo sido ela empregada historicamente

das formas mais perversas e desprovidas de fundamento126, ao menos em uma

situação podemos usá-la seguramente: para referir-nos à função natural da

terra de prover alimentos, de prover abundância e de prover vida, e como a

história humana se construiu naturalmente em torno dela. Diz MARÉS que

“as sociedades humanas sempre tiveram, em todas as épocas e formas de or-

ganização, especial atenção ao uso e ocupação da terra. A razão é óbvia: todas

as sociedades tiraram dela seu sustento.”127 A terra, para o ser humano, cumpre,

portanto, uma função social primordial, que possibilita toda a produção e re-

produção da vida. A relação do homem com a terra, embora natural, assumiu

126 Para absolutizar direitos historicamente construídos, para enaltecer a propriedade privada, para man-

ter incólumes os papéis de gênero, para reprimir formas de sexualidade alternativas à forma heteronorma-

tiva, enfim: para manter e legitimar uma realidade histórica opressiva, naturalizando-a.127

MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra, p. 11

diferentes formas históricas, que inclusive lograram condicionar ou impedir o

acesso de determinadas classes sociais à terra. Ao contrário do postulado pelo

senso comum, a apropriação privada da terra é bastante recente na história

humana e a forma da propriedade capitalista moderna data de apenas alguns

séculos, diferindo-se radicalmente das formas anteriores de apropriação da

terra.

Conforme explica Ellen WOOD, nos modos de produção pré-capita-

listas já divididos em classes, os produtores (camponeses), em geral, tinham

a posse dos meios de produção (a terra) e, conseqüentemente, o acesso direto

aos seus meios de reprodução: a apropriação do trabalho excedente dos produ-

tores era realizada pelas classes dominantes através de meios extra-econômi-

cos, como a tributação. Apenas no capitalismo os produtores vêm a perder até

a sua posse da terra, através da expropriação128 (forçada diretamente ou pela

competição incitada pelo crescente mercado capitalista), o que permite que os

mesmos sejam forçados a vender a sua força de trabalho e que a apropriação

do trabalho excedente realize-se por meios econômicos (a mais-valia). Nas

origens (agrárias) do capitalismo na Inglaterra, é notável a construção de uma

nova forma de propriedade, “não apenas privada, mas excludente, literalmente

128 Isso explica em grande parte por que “o capitalismo constitui a primeira sociedade que, mediante

a estrutura e força social, condena classes inteiras da população a lutar quotidianamente pela satisfa-

ção das necessidades existenciais puras e simples, desde a época da acumulação primitiva até hoje.” PEREIRA,

Potyara A. P., Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos vitais. apud ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso

à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia, p. 23.

129 WOOD, Ellen. As origens agrárias do capitalismo, p. 14.

110 111

excluindo outros indivíduos e a comunidade, através da eliminação das regu-

lações das aldeias e das restrições ao uso da terra, pela extinção dos usos e

direitos costumeiros”129. Até então, havia não apenas terras estabelecidas como

comunais, que podiam ser eventualmente usadas por membros da comunida-

de, como havia mesmo uma série de direitos de uso sobre terras privadas.130

Em acompanhamento a essa nova forma histórica de relação com a terra,

constrói-se também a forma jurídica capitalista da propriedade, caracterizada

como um poder absoluto e exclusivo sobre coisa determinada131, e sustentada

por teorizações do século XVII e XVIII, em especial, pela teoria de John Lo-

cke. Locke quebra de vez com a noção de propriedade como utilidade para

configurá-la como direito subjetivo independente, cuja origem é o trabalho ou

o melhoramento promovido pelo homem132. MARÉS nota que, embora Locke

defenda que a apropriação esteja limitada à possibilidade de uso, essa regra

só se aplica verdadeiramente aos bens corruptíveis – portanto, a acumulação

ilimitada seria legitimada desde que fosse feita em capital (isto é, desde que

se troque os bens não-duráveis por bens duráveis, ou por moeda)133. O pensa-

mento lockeano apresenta não apenas a legitimação teórica moderna da pro-

priedade, como fornece a base para que a terra possa ser considera mercadoria

130 Como o direito ao recolhimento dos restos da colheita em certos períodos do ano.

131 COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres em matéria de propriedade. O autor especi%ca as duas car-

acterísticas básicas do direito subjetivo de propriedade como “a submissão da coisa à utilidade própria do seu

titular (usus, fructus, abusus) e a exclusão de todos os demais sujeitos de direito”. Idem, p. 133.132

Ver, nesse sentido, a interessante crítica de Ellen Wood à origem do termo improvement (melhoramento) e o

sentido que ela atribui ao “trabalho” na justi%cativa lockeana da propriedade. WOOD, Ellen. Op cit., p. 12-15.133

MARÉS, Carlos Frederico. Op cit., p. 23-26.

e que seu sentido de provedora de alimento seja esquecido em favor de sua

função de reprodutora do capital. O capitalismo maduro e seus juristas de

plantão irão ainda além de Locke ao permitir que o proprietário tenha o direito

até de destruir seus bens ou de sequer os usar, especulando ociosamente (ou

contra-produtivamente) sobre o valor deles. A própria terra, cujo valor de uso

é essencial ao sustento humano, passa a ser medida primordialmente pelo seu

valor de troca no mercado capitalista.

Fez-se necessária ainda outra construção jurídica para que as cercas –

físicas e jurídicas – se fechassem por inteiro: a distinção entre a posse (relação

de fato entre o homem e a terra) e a propriedade (relação jurídica abstrata).

Segundo BALDEZ, a abstração jurídica da propriedade serviu também para

garantir que as classes dominantes mantivessem seu domínio sobre a terra

mesmo à distância (sem a posse), uma vez transferida a estrutura econômica

do campo para a cidade. Porém, toma-se o cuidado de garantir que os poderes

típicos da posse (uso, fruição e disponibilidade) sejam atribuídos à proprieda-

de e sejam identificados como próprios dela134.

Percebe-se que o capitalismo e a propriedade privada típica desse modo

de produção (não por acaso) esquecem a função social que a terra sempre

cumpriu - impedindo o seu acesso mesmo àqueles que só pretendem tirar dela

134 BALDEZ, Miguel. A terra no campo: a questão agrária, p. 97. Ainda, “a propriedade burguesa capitalista deixa [...] de ser

uma posse &utuante e instável, uma posse puramente de fato, passível de ser contestada a todo momento [...] transforma-

se numa direito absoluto, estável, que segue a coisa por todo lado...”. PRESSBURGER, Miguel. Terra, Propriedade, Reforma

Agrária e Outras Velharias, p. 299.

112 113

o seu sustento - e qualificam-na primariamente como mercadoria. Se o poder

sobre a terra deveria se ligar ao seu cultivo, ao seu uso (e assim já o foi por

milênios), no capitalismo é possível concentrá-la apenas para fins de especu-

lação, ou é possível produzir somente commodities que nunca chegarão aos

pratos dos famintos.

Deve se ressaltar, ainda, que o desenvolvimento da apropriação da ter-

ra no Brasil tem as suas próprias especificidades135, passando por um processo

ainda mais violento de expulsão, escravização e extermínio dos povos nativos

e logrando configurar uma estrutura agrária concentradora e excludente desde

o início da colonização136, voltada para a satisfação do mercado externo e para

o enriquecimento de uma poderosa classe latifundiária.

1.2 O Direito redescobre a função social

“O uso ou função da terra e de outros bens sempre existiu na sociedade, mas há

pouco tempo o Direito passou a reconhecê-lo e integrá-lo na chamada Ordem Jurídica.

Isto quer dizer, a transformação da terra em propriedade privada foi um processo teórico,

ideológico contrário à realidade, à sociedade e aos interesses das pessoas em geral, dos

grupos humanos e dos povos, porque todos dependem da terra para viver. Exatamente

por isso foram se criando exceções, no início chamadas públicas, hoje coletivas ou difu-

sas, estreitando, ou aproximando da realidade, a idéia da propriedade”. 137

Carlos Frederico Marés

Se o capitalismo essencialmente esquece a função social da terra e se

135 Para conhecer as especi%cidades brasileiras, vide MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra.

136 Embora a propriedade no formato tipicamente capitalista só passe a se consolidar no Brasil a partir da Lei de Terras de 1850.

137 MARÉS, Carlos Frederico. Op cit, p. 48.

a propriedade privada, individualista e absoluta, sufoca-a, podemos dizer que,

no século XX, esse modo de produção e seu sistema jurídico, pressionados

pelas insurgências dos oprimidos e pela contraproposta socialista, vêem-se

forçados a redescobrir a função social da terra através do instituto da “função

social da propriedade”. Já no século XIX expandem-se as teorias e movimen-

tos contestatórios do capitalismo, centrados na organização dos proletários em

luta de sua emancipação e tendo como ápice as tentativas revolucionárias ao

final da Primeira Guerra Mundial. Os camponeses também não estiveram pa-

rados, buscando uma distribuição mais justa da terra: PRESSBURGER aponta

que, apesar de não ser considerada essencialmente uma classe revolucionária,

nenhuma revolução à época do imperialismo foi feita sem os camponeses138 .

É com o fortalecimento da “ameaça socialista” e da mobilização trabalhadora,

que o sistema capitalista vê-se forçado a estabelecer uma série de concessões

e reformas que permitam a manutenção do modo de produção. Não por aca-

so, a Constituição alemã de 1919 que contém uma das primeiras referências

constitucionais à função social é consolidada no momento em que a Alemanha

também enfrenta a maior efervescência revolucionária. Surge, assim, na Euro-

pa uma proposta apaziguadora de Estado de bem-estar social, que promete não

mais ignorar as necessidades sociais e preocupar-se com o trabalho, o pleno

emprego, a educação e a distribuição de renda. O surgimento da “função social

138 PRESSBURGER, Miguel. A reforma inacabada, p. 115. Nesse sentido também, MARÉS aponta que as “insurgências

latino-americanas [...] viriam a ter um forte acento camponês”, em razão da terra ter se submetido ao capital com ainda

mais força na América Latina em sua situação colonial e pós-colonial, com sua produção agrária voltada para mercados

externos. MARÉS, Carlos Frederico. Op. cit., p. 81.

114 115

da propriedade” enquanto instituto jurídico reconhecido insere-se, portanto,

dentro desse movimento de rearranjo capitalista, e contém essa ambiguidade

de ser conquista e concessão, avanço e freio, transformação e manutenção do

status quo.

No Brasil, o reconhecimento jurídico da função social da propriedade

e da necessidade de reforma agrária não se dá somente por uma importação de

tais conceitos. Os trabalhadores e desterrados brasileiros também se insurgem

e influenciam significativamente a conjuntura brasileira – pode-se entender

a própria instalação da ditadura civil-militar em 1964 como reação sufocan-

te às demandas por reforma agrária, reivindicada principalmente pelas Ligas

Camponesas nas décadas de 1950 e 1960. Não por acaso, em 1964 é editado

o Estatuto da Terra, que representa um avanço escrito, mas não tem imple-

mentação real nas décadas seguintes.139 Com o fim da ditadura, ganham força

novamente os movimentos sociais de luta pela terra, em especial, com a fun-

dação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984.

É nesse contexto, de ascenso das lutas populares e de redemocratização, que é

promulgada a Constituição Federal de 1988, a qual incorpora definitivamente

a “função social da propriedade”. É através dessa Constituição que o Direito

brasileiro finalmente acorda para a existência da função social da terra e para

139 Segundo Miguel BALDEZ, a intenção do Estatuto da Terra era justamente congelar as reivindicações num documento

jurídico que não seria implementado. BALDEZ, Miguel. Op. cit., p. 99. Marés ressalta também a dimensão do Estatuto como

resposta às pressões dos Estados Unidos para que o Brasil realizasse uma reforma agrária de mercado (útil aos moldes

capitalistas), sendo, portanto, somente “para americano ver”. MARÉS, Carlos Frederico. Op. cit., p. 108.

as necessidades dos sem-terra e camponeses, embora dentro das contradições

e limites inerentes ao capitalismo: a atenção constitucional à função social,

como bem aponta MARÉS, é uma exceção. Porém, uma exceção com efeitos

jurídicos e sociais da maior importância, dentre os quais se encontra a própria

mudança no conceito jurídico de propriedade. O novo regime constitucional

da propriedade rural e da reforma agrária contribuiu, ainda, para o fortaleci-

mento da construção do ramo do Direito Agrário, que tem como referência

maior a Constituição, mas que engloba também o Estatuto da Terra, as leis

agrárias (como a Lei 8.629/93) e a vasta matéria infraconstitucional pertinente

à terra. A expansão do ramo evidencia que a terra não pode ser confinada ao

Direito Civil, uma vez que os efeitos da Constituição e da previsão da função

social da propriedade espraiam-se para todo o ordenamento e que se deve

atentar para a realidade da questão agrária brasileira.

A Constituição Federal de 1988 opera uma transformação da proprie-

dade, em razão não apenas de sua funcionalização explícita, mas também da

interpretação da propriedade à luz da totalidade dos valores constitucionais,

em especial na atenção dada ao meio ambiente, aos índios, ao objetivo fun-

damental de redução das desigualdades sociais, etc. Não cabe mais dúvida de

que a Constituição tornou-se norte e fundamento do ordenamento jurídico,

140 “Em suma: a Constituição %gura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia sua força normativa, dotada de

supremacia formal e material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional,

mas também como vetor de interpretação de todas as normas do sistema.” BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito con-

stitucional contemporâneo. p. 364.

116 117

ao que só pode corresponder realmente uma ressignificação do conteúdo e

um redirecionamento da hermenêutica de todo o direito infraconstitucional.

Nesse sentido, a concepção de normas constitucionais como meramente pro-

gramáticas não pode ser mais admitida, eis que a Constituição se torna ponto

de partida e limite para as estipulações infraconstitucionais. Estabelece-se, por

conseguinte, que a interpretação dos institutos jurídicos deve ocorrer à luz da

Constituição, verificando a conformidade daqueles a ela140.

É em vista das transformações empenhadas pela Constituição Federal

de 1988 e das construções do Direito Agrário informadas por ela que descre-

veremos os novos contornos da função social da propriedade – com ênfase na

propriedade rural - no ordenamento brasileiro e seus efeitos sobre as ações

reivindicatórias e possessórias.

2. Três contornos da função social

da propriedade

Se a propriedade, com o advento da Constituição, é efetivamen-

te outra é porque o princípio da função social se aplica imediatamente141,

como integrante do direito de propriedade. Ademais, pode-se compreender

a função social como um dever fundamental aliado à garantia da proprie-

dade no texto constitucional. Em linhas gerais, está-se a falar que a função

social é indissociável do direito de propriedade segundo o nosso sistema

constitucional.142A seguir, então, exploraremos três contornos desse prin-

cípio: enquanto conteúdo do direito de propriedade, percepção da conver-

gência de direitos sobre a terra e como retomada do valor de uso da terra.

2.1 Função social como conteúdo do direito de propriedade

Conforme já se disse, a concepção individualista e absoluta de

propriedade foi abandonada em prol de uma nova forma de legiti-

141 Nesse sentido, há de se concordar com José Afonso da SILVA: “A norma que contém o princípio da função

social da propriedade incide imediatamente, é de aplicabilidade imediata, como o são todos os princípios con-

stitucionais.” SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 282.

142 Fábio Konder COMPARATO entende a função social como um dever fundamental ligado ao direito de pro-

priedade estipulado na Constituição, de modo que assevera: “Importa não esquecer que todo direito subjetivo

se insere numa relação entre sujeito ativo e sujeito passivo. Quem fala pois em direitos fundamentais está

implicitamente reconhecendo a existência correspectiva de deveres fundamentais. Portanto, se a aplicação

das normas constitucionais sobre direitos humanos independe da mediação do legislador, o mesmo se deve

dizer em relação aos deveres fundamentais.” COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e Deveres Fundamentais em

Matéria de Propriedade, p. 142.

118 119

mação da propriedade privada no direito capitalista: a função social143.

Fruto que também é da pressão política dos trabalhadores144, deve-se tomá-la

como determinante de um novo conteúdo ao direito de propriedade. Ou seja, a

previsão constitucional que assegura a propriedade privada para logo em seguida

enunciar que “a propriedade atenderá a sua função social” (arts. 5º, XXII e XXIII),

sendo que tal sequência se repete no elenco dos princípios orientadores da ordem

econômica (art. 170, II e III), significa que o direito de propriedade sofreu mudan-

ça em sua estrutura interna145: a função social consubstancia aquilo que justifica,

no nosso ordenamento jurídico, a atribuição dos poderes inerentes à proprieda-

de.146. O usar, gozar e dispor só podem ocorrer a partir da autorização concedida

143 Eros Roberto GRAU a%rma que “a consagração do princípio da função social da propriedade em si, tomada iso-

ladamente, pouco signi%ca, ao par de instrumentar a implementação de uma aspiração autenticamente capitalista:

a de preservação da propriedade privada dos bens de produção – à função social está assujeitada porque é privada.”

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 248.

144 A função social foi alçada aos textos constitucionais como forma de preservação do modo de produção, mas

também como resultado de lutas concretas das classes oprimidas. Assim, não se deve entendê-la como uma

evolução do direito em direção a uma dimensão mais solidária, buscando acriticamente sua origem em autores

remotos como Tomás de Aquino (%lósofo cristão do século XIII) sem considerar que o direito se constitui a partir

de uma materialidade histórica imbuída de contradições. Por outro lado, é necessário rechaçar tentativa de, dentro

dos limites do direito capitalista, identi%car a propriedade com a função social, como o fez León DUGUIT, já que a

propriedade privada jamais será função social; ela é em seu fundamento anti-social, excludente, conforme se viu

anteriormente no ponto 1.1.145

Eros Roberto GRAU esclarece que “o princípio da função social da propriedade, desta sorte, passa a integrar o

conceito jurídico-positivo de propriedade [...], de modo a determinar profundas alterações estruturais em sua in-

terioridade.” GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 247. Já José Afonso da SILVA diz: “En%m, a função social se manifesta na

própria con%guração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento quali%cante

na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens.” SILVA, José Afonso da. Curso de Direito

Constitucional Positivo, p. 284.

146 Ver SILVA, José Afonso da. Op cit., p. 283. Para TEPEDINO e SCHREIBER, “a funcionalização da propriedade é in-

trodução de um critério de valoração da própria titularidade”. TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. O Papel do

Poder Judiciário na Efetivação da Função Social da Propriedade, p. 122.

pela função social.

Aqui cabe discordar, consequentemente, da posição que afirma a função

social como referência apenas ao uso ou exercício do direito de propriedade. É

que a função social não se destina meramente a coibir abusos do proprietário ou

delimitar a forma de atuação dos poderes do domínio; com a Constituição, ela efe-

tivamente refundou o conteúdo do direito de propriedade. Pode-se argumentar, nessa

mesma linha, que no direito de propriedade reverbera uma ordem de atendimento aos

valores constitucionais: seria absurdo tomar como legítima a proteção da propriedade

que fira o princípio da função social, eis que ele define o conceito de propriedade esti-

pulado constitucionalmente.

Por isso não se admite que a função social diga respeito tão somente aos limites

do direito de propriedade.147 Além de impor abstenções (não fazer), a função social

impõe também comportamentos positivos (fazer) “ao detentor do poder que deflui da

propriedade”: este tem “o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas,

de não o exercer em prejuízo de outrem”, o que revela uma “vinculação inteiramente

distinta, pois, daquela que lhe é imposta mercê de concreção do poder de polícia.”148

Para Pietro PERLINGIERI, “o conteúdo da função social assume um papel do tipo

promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas

147 “A função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes

dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade.”

SILVA, José Afonso da. Op cit., p.281-282.148

GRAU, Eros Roberto. Op cit., p. 246.149

PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil, p. 226.

120 121

interpretações deveriam ser atuadas para garantir e promover os valores sobre

os quais se funda o ordenamento.”149

Por fim, necessita-se retornar à questão de se abordar a função social como

um dever fundamental correlato do direito de propriedade. A Constituição alterou

a propriedade de forma a não ser mais viável concebê-la como mera pertinência

de bens a um sujeito, como um vínculo monolítico. Do contrário, concebe-se con-

temporaneamente a propriedade como uma situação jurídica complexa, da qual se

extraem direitos, deveres, ônus etc.150 E é nesse aspecto que se evidencia a função

social como um dever fundamental frente ao conjunto de faculdades do proprietá-

rio, demonstrando-se, assim, o conteúdo largo da propriedade.

2.2 Função social como reconhecimento da convergência de direitos so-

bre a terra

Estabelecemos que a propriedade sob o princípio constitucional da função

social da propriedade é uma situação complexa constituída por direitos e deveres,

sendo o interesse social componente de seu próprio conteúdo. Cabe agora pergun-

tar: os deveres fundamentais em matéria de propriedade correspondem, no pólo

ativo, a que direitos? De que sujeitos? Quando falamos em “social”, falamos num

sentido apenas abstrato, ou referimo-nos a sujeitos concretos? Parece-nos evidente,

pela própria função social cumprida naturalmente pela terra e seu estreito vínculo com

150 “A propriedade afasta-se, deste modo, de sua tradicional feição de direito subjetivo absoluto, ou, ainda, limitado

apenas negativamente, para converter-se em uma situação jurídica complexa, que enfeixa poderes, deveres, ônus

e obrigações, e cujo conteúdo passa a depender de interesses extra-proprietários, a serem regulados no âmbito da

relação jurídica de propriedade.” TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Op cit., p. 123.

as necessidades básicas humanas, que os deveres impostos ao proprietário pela função

social da propriedade têm como correlato os direitos fundamentais ligados ao acesso à

terra.

Se, como expusemos anteriormente, a propriedade capitalista em sua origem

busca encobertar ou excluir os direitos costumeiros das comunidades sobre a terra,

a função social da propriedade revela novamente que a terra é um bem sobre o qual

convergem diversos direitos alheios ao do proprietário, em especial os direitos funda-

mentais de alimentação e de moradia dependentes do acesso à terra. ALFONSIN bem

traduz esse significado da função social: “à função social da propriedade corresponde,

então, um interesse difuso dos não proprietários, aí compreendidos, evidentemente, os

necessitados de terra para se alimentar e para morar.”151 Conclui ele: “a satisfação de

necessidades vitais de alimentação e moradia dos não proprietários integra o conteúdo

dos seus direitos humanos fundamentais à terra, podendo ser exigida de qualquer pro-

prietário desse bem, enquanto bem de produção, que deixa de respeitar o dever (fun-

ção) que, por sua vez, integra, também, o conteúdo de seu direito”152. Sérgio Sérvulo

da CUNHA inclusive põe essa relação jurídica entre proprietários e não-proprietários

nos termos de uma obrigação: “o credor da obrigação concernente ao exercício social

da propriedade rural é o trabalhador rural necessitado de terra como condição de sua so-

brevivência.” Isso implica que, em casos concretos, é possível, em referência ao mesmo

151 ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação

e à moradia, p. 170.152

Idem, p. 185.

122 123

bem, a colisão de direitos patrimoniais e direitos fundamentais, o que impõe ao juiz a

ponderação de valores constitucionais.

2.3 Função social como reencontro da propriedade com a posse

Constatamos acima que o capitalismo opera uma distinção jurídica entre a pro-

priedade e a posse, permitindo o domínio sobre a terra à distância – garante-se o direito

real e os poderes decorrentes dele mesmo sem a posse. Conforme também vimos,

isso possibilitou que o valor de uso da terra fosse substituído por um mero valor de

troca. “Essa é a propriedade capitalista, em que o trinômio “uso, gozo e disposição”

pende fatalmente para a possibilidade de disposição, ou seja, para o caráter de valor de

troca, não para o valor de uso dos bens sob apropriação individual,”153 constata Tarso

de MELO. Porém, a função social da propriedade rural prevista na Constituição tenta

um retorno ao valor de uso, o que pode ser interpretado como uma busca por fazer

coincidir a posse e a propriedade.154 Nesse sentido, a aplicação da função social à posse

é explicada pelo posicionamento de Fredie DIDIER JR, que afirma ser a posse “o

instrumento da concretização do dever constitucional de observância da função

social da propriedade.”155

153 MELO, Tarso de. Direito e ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural, p. 56.

154 Diz MELO, ainda: “De certo modo, o princípio da função social da propriedade rural signi%ca um esforço

no sentido de fazer coincidir a propriedade a posse, para que, segundo os critérios %xados, as propriedades

rurais sejam efetivamente utilizadas, a %m de impedir o simples exercício da propriedade, que, em regra, é

apenas especulatório.” Idem, p. 56. Poderia-se argumentar, então, que a exigência do “aproveitamento racional

e adequado” (art. 186, CF) pretende que o exercício de propriedade seja exercido também segundo seu valor

de uso, mediado pela posse.

155 DIDIER Jr., Fredie. A função social da propriedade e a tutela processual da posse, p. 12.

156 MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra, p. 109.

157 Note-se tendência em sentido contrário da doutrina que defende que a “justa indenização” prevista cor-

responde não ao preço de mercado, mas a uma indenização inferior – a justiça no caso requer sanção.

3. A função social da propriedade

rural e seus efeitos

Cabe-nos agora descobrir quais as principais consequências

previstas no ordenamento jurídico brasileiro para o descumprimento

da função social da propriedade rural. É evidente, de acordo com

as disposições do art. 184 da Constituição Federal, que o descum-

primento da função social possibilita a desapropriação por interes-

se social, para fins de reforma agrária, do imóvel rural, mediante

prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária. Com essa

previsão, deparamo-nos logo com uma contradição: segundo Carlos

Frederico MARÉS, a desapropriação mediante indenização em caso

de descumprimento da função social, ao invés de contestar, reafirma

o conceito liberal de propriedade, uma vez que remunera a proprie-

dade mal-utilizada (premia o descumprimento da lei): a desapro-

priação não seria, em sua essência, nada mais do que “um contrato

público de compra e venda”156 157 . Mas se a função social integra o

próprio conteúdo do direito de propriedade, se obriga a atenção aos

direitos alheios aos do proprietário que convergem sobre a terra, se

124 125

a função social deve ter eficácia real (devendo, então, aquele que

a descumpre sofrer sanção), como se explica tal contradição? Eros

Grau também nota esse tratamento ambíguo e comenta que, partindo

da premissa que é o cumprimento da função social que legitima o

direito, seu descumprimento deveria implicar no simples perdimento

do bem, e se a “propriedade” que não cumpre função social sequer

propriedade é, a “desapropriação” com indenização prevista seria

injustificada e geraria pagamento ilícito e enriquecimento sem cau-

sa – porém, tal conclusão não se coaduna com a Constituição e é,

segundo ele, insustentável158.

A explicação para essa (aparente) contradição é dupla. Pri-

meiramente, impõe-se reconhecer que a previsão de desapropriação

com indenização, conforme o art. 184, foi uma escolha conserva-

dora da Constituinte de 1987-1988, ligada à articulação realizada

na ocasião pela UDR e do “pacto” feito com ela pelo “Centrão”159.

A Constituição brasileira poderia (e deveria) ter sido muito mais

audaciosa (e muito mais sensível à questão agrária brasileira), se

tivesse esclarecido que a “propriedade” que não cumpre função so-

cial, propriedade não é.160 Em segundo lugar – e aqui chegamos ao

158 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, p. 314.

159 Ver a descrição do tratamento do tema da reforma agrária na Constituinte em GOMES DA SILVA, José. O

Buraco Negro.160

Nesse sentido, as Constituições Mexicana, Boliviana e Colombiana foram muito mais avançadas, segundo

se lê em MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra.

cerne da questão -, torna-se evidente que a desapropriação não é

a única consequência para o descumprimento da função social, e

talvez sequer seja a principal. A função social integra, sim, o con-

teúdo do direito de propriedade e tem plena eficácia. Isso implica,

no nosso ordenamento, em caso de descumprimento da função so-

cial, não na eliminação do direito de propriedade por inteiro, mas

na modificação substantiva de sua eficácia, que se traduz na perda

das proteções que não lhe sejam constitucionalmente previstas, em

especial, na perda da proteção possessória161. Conforme explica Luiz

Edson FACHIN, “o descumprimento da função social da propriedade

não permite dar-lhe garantias outras que a Constituição não lhe de-

fere. [...] Isto posto, é defensável concluir que é incongruente com

a norma constitucional e a mens legis deferir proteção possessória

ao titular de domínio cuja propriedade não cumpre integralmente

sua função social.”162 De fato, seria inconcebível conferir tratamento

igual à propriedade que cumpre e à que não cumpre sua função so-

cial (afinal, qualquer propriedade pode ser desapropriada163 mediante

161 A propriedade que não cumpre função social não perde toda proteção. Parece-nos que ela perde todas as

proteções, exceto uma: a previsão constitucionalmente explícita, de ser desapropriada dentro dos moldes do

art. 184, mediante indenização. Está para além do escopo desse artigo investigar se o proprietário cujo bem

descumpre função social pode vendê-lo: deixamos a questão para outros ponderarem.

162

FACHIN, Luiz Edson. A Justiça dos Con+itos no Brasil, p. 285.163

A desapropriação para %ns de reforma agrária difere-se da desapropriação genérica principalmente pela

sua %nalidade pré-estabelecida e pela indenização em títulos da dívida agrária, mas não são essencialmente

distintas.

126 127

indenização – esta não é uma diferença substancial).

Expliquemo-no de outro modo. Como já dito, a propriedade

sob a Constituição de 1988 apresenta-se como uma situação jurídica

complexa, constituída não apenas de direitos e poderes, mas também

deveres, ônus e obrigações. Diz Pietro PERLINGIERI que “colocar

em evidência as obrigações, os ônus, os vínculos, os limites, etc.,

é importante na medida em que, se de tal situação tem-se uma con-

cepção unitária, a inadimplência de um deles se reflete sobre toda a

situação.”164 A conseqüência do descumprimento do dever social do

proprietário reflete sobre toda a situação da propriedade, removen-

do-lhe as garantias normais, em particular a garantia de exclusão

das pretensões possessórias de outrem, conforme aponta COMPA-

RATO165. O descumprimento do dever acarreta a perda de garantias

dentro dessa situação jurídica complexa.

Um último argumento deve ser apresentado nesse sentido. De

acordo com MARÉS, a desapropriação para fins de reforma agrária,

comumente chamada de “desapropriação-sanção”, não é verdadei-

ramente uma sanção, e sim uma política pública de implementação

da reforma agrária. A verdadeira sanção para o descumprimento da

164 PERLINGIERI, Pietro. Per/s do Direito Civil, p. 224.

165COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade, p.145.

166MARÉS, Carlos Frederico. Desapropriação sanção por descumprimento da função social?

167MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. p. 117.

função social é a perda da proteção possessória166. E esta sanção é

aplicada por razões claras: “ao não cumprir essa condição imposta

pela lei [a função social], não pode o detentor de um título invocar

a mesma lei para proteger-se de quem quer fazer daquela terra o que

a lei determina que se faça.”167 Em outros termos, “o proprietário da

terra cujo uso não cumpre a função social não está protegido pelo

Direito, não pode utilizar-se dos institutos jurídicos de proteção,

como as ações judiciais possessórias e reivindicatórias, para reaver

a terra de quem as use, mais ainda se quem as usa está fazendo cum-

prir a função social, isto é, está agindo conforme a lei.”168 Encaixa-se

nessa abordagem, especialmente, as ocupações massivas de terras

empreendidas pelos movimentos sociais de luta pela terra. A função

social da propriedade clama, pois, por uma “nova proteção posses-

sória” 169.

A questão, em síntese, é simples: o proprietário cujo imóvel não

cumpre a função social não tem direito à proteção possessória, mais

especificamente, perde o “direito de reavê-la [a coisa] do poder de

quem quer que injustamente a possua ou detenha”170(art. 1228 do

Código Civil), independente do instrumento que utilize para tentar

169 A expressão faz referência à doutrina de Sérgio Sérvulo da CUNHA.

170Até porque, como a%rmamos, quem ocupa uma terra que não cumpre função social não a possui ou detém

injustamente, mas está, ao contrário, fazendo cumprir a lei.171

171 A ação reivindicatória é uma ação petitória, assim como as ações de imissão na posse.

128 129

reavê-la. Se o Processo Civil é instrumento a serviço do direito ma-

terial consoante pensamento assente, isso significa que essa conse-

qüência imposta pela função social repercute inevitavelmente sobre

as ações reivindicatórias e possessórias.

3.1 Implicações da função social da propriedade rural no

Processo Civil

Não obstante serem as ações possessórias o freqüente instru-

mento processual utilizado pelos proprietários, há também a possi-

bilidade de se propor ação reivindicatória171. Nesta última se discute

o domínio172, de modo que fica mais fácil a constatação da neces-

sidade de se apresentar prova do cumprimento da função social:

tutelar a propriedade sem atentar para a função social é algo que

não se coaduna com a Constituição.

As ações possessórias, por sua conta, são três: a reintegração

de posse, a manutenção de posse e o interdito proibitório. A pri-

meira consiste na ação que corresponde à situação em que a posse

foi perdida por ato de agressão, o esbulho. Já a segunda requer

172 “[...] e por isso as alegações de defesa são ampliadas.” MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz.

Procedimentos Especiais, p. 90.173

Idem, p. 97 e 109.174

“Segundo descreve o art. 927 do CPC, na ação de manutenção e de reintegração de posse, deve o autor

alegar e provar: (a) a existência de sua posse; (b) a violação a essa posse, pela turbação ou pelo esbulho; (c) a

data do ato violador (que terá importância para a aferição do rito a ser empregado); (d) o prosseguimento da

posse, embora turbada, no caso de manutenção, ou a perda da posse, na medida reintegra tória.” MARINONI,

Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Procedimentos especiais, p. 103.

que tenha ocorrido incômodo ao exercício da posse, a turbação.

A terceira contém caráter inibitório e tem por fundamento evitar

atos de agressão à posse, concretizáveis em turbação ou esbu-

lho.173

Destarte, o art. 927 do Código de Processo Civil trata daqui-

lo que incumbe ao autor provar nas ações de manutenção e reintegra-

ção de posse.174 Diz Laércio Alexandre BECKER que: “em primeiro

lugar, é preciso lembrar que, desde a Constituição de 1988, há no

art. 927 do CPC um ‘inciso V’ implícito, ou seja, que além da

prova da posse e de sua perda, além do esbulho e de sua data, cabe

ao autor - e não ao réu, como bem frisa o caput - o ônus de provar

o cumprimento da função social.” 175 Ou seja, em primeiro lugar,

fica claro que ônus probatório recai sobre o autor; em segundo lugar,

este só pode ter sua posse protegida quando provar o cumprimento

175 E prossegue o autor: “Isso é fruto da doutrina de no mínimo sete doutrinadores brasileiros: Nilson Marques,

Sérgio Sérvulo da Cunha, Gustavo Tepedino, Jacques Távora Alfonsin, Rui Portanova, Fernando Antônio

Nogueira Galvão da Rocha e Antonio Jurandy Porto Rosa.” BECKER, L. A.; SILVA SANTOS, E. L.. Elementos para

uma teoria crítica do processo, p. 119. Inclua-se Fredie DIDIER JR, que aduz: “Deste modo, pode-se a%rmar que a

Constituição de 1988 criou um novo pressuposto para a obtenção da proteção processual possessória: a prova

do cumprimento da função social. Assim, o art. 927 do CPC, que enumera os pressupostos para a concessão

da proteção possessória, deve ser aplicado como se ali houvesse um novo inciso (o inciso V), que se reputa um

pressuposto implícito, decorrente do modelo constitucional de proteção da propriedade. A correta interpreta-

ção dos dispositivos constitucionais leva à reconstrução do sistema de tutela processual da posse, que passa a

ser iluminado pela exigência de observância da função social da propriedade.” DIDIER JR, Fredie. A função social

da propriedade e a tutela processual da posse, p. 14. Ver também FOWLER, Marcos Bittencourt; PASSOS, Cynthia

Regina L.. O Ministério Público e o direito à terra, p. 241-244.176

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Procedimentos especiais, p. 109.

130 131

da função social. Confirma-se o diagnóstico dos parágrafos antece-

dentes. Necessário fazer referência também ao que preceitua o art.

928 do Código de Processo Civil: neste encontramos a disposição de

que o deferimento de mandado liminar, sem citar o réu, nos casos

de reintegração e manutenção de posse, depende da apresentação

de petição inicial devidamente instruída. Ora, petição devidamente

instruída é aquele que contém em seu bojo a prova do cumprimento

da função social, pois quem lesa a ordem constitucional não pode

invocar a lei para ter sua posse salvaguardada. Quanto ao interdito

proibitório, “aplicam-se [...] as normas que tratam das demais ações

possessórias”176, conforme o art. 933 do CPC.

No entanto, tudo o que foi dito em relação a esses dispositi-

vos do CPC depende de um pressuposto: a possibilidade de se exigir

a função social nas ações possessórias, nas quais teoricamente não

177 Fredie DIDIER JR assevera que: “a tutela jurídica da posse (enérgica e bastante minuciosa) justi%ca-se como

um mecanismo de tutelar, ainda que mediatamente, o titular do domínio. Protege-se o possuidor, pois ele,

porquanto exerça poderes inerentes ao domínio, muito provavelmente é o titular do direito sobre a coisa.”

DIDIER JR, Fredie. Op. cit., p. 11.

178 “Durante o século XIX, com inspiração formal nos princípios do Direito Romano (modo de produção an-

tigo), dando um salto sobre o feudalismo, construiu-se o sistema de proteção da posse, o que signi%ca proteção

à propriedade. Foi no %m desse século, na Alemanha, que um importante jurista burguês, Ihering, explicitou

que a posse era o indicativo da propriedade cuja proteção deveria dar-se com presteza, e eficiência. C o m

o aperfeiçoamento dos interditos possessórios e a sua caracterização como procedimento especial de caráter

administrativo (embora no campo judicial) caracterizado pela previsão de medida liminar, cercou-se a posse

de modo absoluto da proteção exigida pela propriedade. Na proteção da posse, veja-se bem, sem cogitar-se

da propriedade, o que na verdade se protege é a propriedade mesma. Perguntado a Ihering se se protegendo

a posse não se estaria, eventualmente, protegendo o ladrão, Ihering respondeu que melhor seria proteger a

posse do ladrão do que correr o risco de perder-se a propriedade.” BALDEZ, Miguel Lancelotti. A terra no campo:

a questão agrária, p. 97.

se discute domínio, apenas posse. Já apontamos que a perda do di-

reito de reaver a coisa em caso de descumprimento da função social

independe do instrumento processual utilizado. Mas é possível en-

dereçar a questão de outras formas. Há autores que afirmam que, em

geral, a proteção da posse visa sobretudo à proteção da propriedade.

Teria-se que a garantia legal que tem o possuidor de ser mantido na

posse no caso de turbação e ser restituído no caso de esbulho (CC

art. 1.210) embasaria as ações possessórias, de modo que o termo

possuidor aí inscrito haveria de ser entendido a partir da visão de

Jhering de que a proteção possessória é a guarda avançada da pro-

priedade. Nessa linha, o possuidor é definido pelo art. 1196 do Có-

digo Civil como “todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou

não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.” 177 De fato, his-

toricamente, o objetivo de proteger a propriedade permeou a cons-

trução da proteção possessória, conforme aponta BALDEZ.178 São

os proprietários de terra, efetivamente, os maiores desfrutadores da

proteção possessória, sendo que, na maior parte das vezes, as ações

possessórias acabam por serem apresentadas com base tão somente

178 BECKER, Laércio Alexandre. A repercussão da função social da propriedade no Processo Civil. apud DIDIER JR,

Fredie. A função social da propriedade e a tutela processual da posse, p. 15.

179 A Constituição delineia um quadro jurídico para a relação dos sujeitos com a terra. No mínimo do que se

possa falar, a Constituição não tolera que quem na terra trabalhe o faça sem as garantias das leis trabalhistas,

nem que essa relação com a terra seja a de destruição (com lesão das leis ambientais), nem que dessa relação

resulte frutos a menos do que a sociedade espera e do que a terra possibilita, nem que não haja nenhuma

relação, deixando-se a terra a relento, como sórdida especulação individualista.

132 133

no título dominical, contrariando o art. 927 do CPC e confirmando

certa aderência ao art. 1.196 do Código Civil. Laércio Alexandre

BECKER, então, trata de estabelecer que “na ação possessória, o

descumprimento da função social desqualificaria a posse; e tanto nas

possessórias quanto nas petitórias, para a prova da propriedade não

bastaria o título, sendo também necessário provar o cumprimento da

função social.”179

Para finalizar o tema, diremos que, se nas ações possessó-

rias acaba-se por discutir domínio, a necessidade de cumprimento

da função social é, por todo o visto, inquestionável. Por outro lado,

mesmo se admitirmos que só se discute posse, a exigência é também

inquestionável, tendo em vista o caráter amplo da função social, que

atinge, em última análise, a relação dos sujeitos com o bem terra.

Se, como afirma MARÉS, a função social faz referência em verdade

ao bem terra e a sua utilização180, há de se reconhecer que o cumpri-

mento da função social atravessa também a posse e tem implicações

também sobre ela. As ações possessórias, afinal, não podem consti-

tuir atalho para escapar da incidência da função social anunciada na

Constituição.

181 Pensamos que já deixamos claro que o juiz não pode se ater à mera aplicação mecânica dos institutos do

direito infraconstitucional, sendo-lhe obrigado em seu julgamento a garantir a e%cácia plena da Constituição.

Nesse sentido: “a função social é também critério de intepretação da disciplina proprietária para o juiz e para os

operadores jurídicos.” PERLINGIERI, Pietro. Per/s de Direito Civil, p. 216.182

ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação

e à moradia, p. 239-242.

3.2 Poder Judiciário e outras tutelas possíveis

Apesar dessa eficácia da função social da propriedade,

que obriga o juiz a avaliar o cumprimento dela nas ações reivindi-

catórias e possessórias, é fato notório que o comportar generalizado

do Poder Judiciário tem sido ainda a rápida (por vezes, fulminan-

te) concessão de liminares em favor do proprietário, muitas vezes

sequer levando em conta os princípios constitucionais.181 Segundo

ALFONSIN, é comum os juízes até reconhecerem em suas sentenças

a gravidade da miséria brasileira, a necessidade da reforma agrária,

mas logo em seguida escusarem-se, atribuírem a responsabilidade

de resolução desses problemas exclusivamente aos outros Poderes182.

Não é possível, sob a égide da Constituição Federal de 1988, conti-

nuar a permitir que o Poder Judiciário se esquive da responsabilida-

de, compartilhada pelos três Poderes, de zelar pela função social da

propriedade e de implementar a reforma agrária, enfim, de tutelar os

direitos fundamentais ligados à terra. E tem havido julgados nesse

sentido, construindo-se aos poucos uma jurisprudência que garante

a eficácia plena do princípio da função social da propriedade. Nes-

se sentido, é notável a decisão da ação de reintegração de posse nº

02100885509/RS da Comarca de Passo Fundo: o juiz Luiz Christia-

183 Ver esse despacho na Revista de Direito Agrário nº 18.

134 135

no Enger Aires indeferiu liminar, afirmando que “apesar de terem

os autores juntado comprovante de terem adquirido a área em ques-

tão há longo tempo e afirmarem sua produtividade, deixaram de de-

monstrar a adequação legal do exercício do direito de propriedade,

através do atendimento de sua função social. [...] Para alguém exigir

a tutela judicial de proteção à sua posse ou propriedade, necessita

fazer prova adequada de que esteja usando ou gozando desse bem

secundum beneficium societatis [...]”.183

Também podemos encontrar esse raciocínio na ementa da de-

cisão unânime do Tribunal de Alçada de Minas Gerais no agravo de

instrumento 468384-9:

“Agravo de instrumento com pedido efetivo ativo – Reintegração liminar da posse dene-

gada em 1º grau. Grande propriedade invadida pelo MST – Não cumprimento da função

social da propriedade – Imóvel improdutivo – Descumprimento dos requisitos elencados

no art. 186 da Cf/88 – Não satisfação dos elementos econômico, ambiental e social

necessários ao atendimento da função social – Requisito para proteção possessória – im-

provimento. Não havendo o agravante comprovado tratar-se seu imóvel de propriedade

produtiva, tem-se que dito imóvel não cumpre sua função social na forma prevista no

art. 186 da CF/88.

Com a interpretação sistemática de seu texto constitucional, a função social da proprie-

dade passa a ser requisito para a proteção possessória, de forma que, apenas se o imóvel

atender aos requisitos previstos no art. 186 da CF/88, é que deve ter ele proteção na

forma dos arts. 1210 do NCC e 927 do CPC.”

184 Nesse sentido, vide agravo de instrumento 698360402, da 19ª Câmara Cível do TJRGS, de 1998. Consta

em sua ementa: “Prevalência dos direitos fundamentais das 600 famílias acampadas em detrimento do direito

puramente patrimonial de uma empresa.”

E é preciso ir mais além: vários julgados também já reconhecem

que os conflitos de terra envolvem ampla gama de direitos fundamen-

tais, frequentemente ocorrendo a colisão entre os direitos patrimoniais

do autor e os direitos à moradia, à alimentação, à vida digna, à reforma

agrária, entre outros, dos não-proprietários.184 Ainda, a função social da

propriedade rural e os princípios constitucionais com um todo deman-

dam não apenas a “defesa” do réu que tem seus direitos fundamentais

violados por quem quer removê-lo da terra que ocupou, mas também a

garantia de proteção ativa, concreta desses direitos fundamentais.

É simples: da Constituição (art. 5º, XXXV) extrai-se que a todo

direito corresponde uma ação. O direito infraconstitucional tem apre-

sentado, até hoje, uma vasta gama de opções para o proprietário defen-

der sua propriedade ou posse – mas quais opções de ação oferece aos

que têm seus direitos fundamentais violados? Assim, Laércio Alexandre

BECKER enuncia: “quando falamos que a função social deve também

repercutir sobre o pólo ativo da relação processual, queremos dizer que

o processo civil brasileiro deveria pôr à disposição dos jurisdicionados

ações, procedimentos especiais, o que for necessário, para conferir aos

interessados o direito à terra, o direito à moradia, o direito à refor-

ma agrária.”185 Não há dúvida: novas tutelas processuais precisam ser

pensadas em leitura constitucional do Processo Civil.

185 BECKER, Laércio Alexandre. Elementos para uma teoria crítica do processo, p. 121. Nas páginas seguintes, o

autor arrola o que já foi ensaiado nesse sentido.

136 137

4. Para além das cercas

e para além do Direito

4.1 Limites estruturais do princípio da função social

da propriedade

Expusemos ao início desse artigo que a função social da proprie-

dade representa o despertar do Direito capitalista para a importância

da terra para a vida humana – ou, podemos especificar, para a vida das

classes oprimidas cujo acesso a ela é restringido ou impedido tipica-

mente no capitalismo. Tal despertar, porém, como também assinala-

mos, não se dá por uma “evolução” ou “sensibilização” do Direito, e

sim como reação direta às contestações anticapitalistas e às mobilizações

das classes oprimidas, como tática de permitir reformas para impedir revo-

luções. Assim, a função social da propriedade cumpre não apenas a função

de legitimação do capitalismo como um todo, mas cumpre uma função bem

específica de legitimação ideológica: esconde-se os objetivos reais das classes

dominantes e o funcionamento estrutural do capitalismo atrás de promessas

belas, que são garantidas por escrito – e, como nota Tarso de MELO, muitas

vezes são garantidas somente por escrito. Aqui entramos num dos problemas

186 Quando falamos em e%cácia anteriormente, referimo-nos à e%cácia jurídica, da qual, sem dúvida, a função

social é dotada plenamente. Mas o Direito e a realidade, ou melhor, o discurso jurídico e a realidade, como

sabemos, raramente coincidem.

estruturais da função social da propriedade, o qual não podemos deixar de

observar: a sua falta de eficácia real, ou efetividade186. Apontamos já que

o Poder Judiciário frequentemente ignora esse princípio, havendo

praticamente uma presunção em favor do proprietário que ingressa

com ações possessórias. Também o Poder Legislativo e Executivo

negam-se a dar efetividade à Constituição, não tendo havido no país

uma reforma agrária e mantendo-se uma política permissiva quanto

à concentração de terras e à permanência dos latifúndios187. A partir

dessas constatações, é mais do que razoável questionar-se até que

ponto a previsão da função social pode fazer a propriedade con-

trariar a sua função capitalista ou pode opor-se às determinantes

econômicas. Voltaremos a esse ponto ao final, após perquirir quais

determinantes e quais atores estão envolvidos nesse processo.

Outras críticas podem ser feitas à qualificação dada em nos-

so ordenamento à função social da propriedade rural: em particular,

187 Brasil está em último lugar no índice comparativo de reforma agrária da América Latina: entre 1985 e 2002,

7,6% das terras cultiváveis foram distribuídas entre 3,4% dos camponeses. Em comparação, na Bolívia, em 2,4

anos, 30% das terras foram distribuídas entre 52,7% dos camponeses e em Cuba, 81,2% das terras foram dis-

tribuídas entre 75% dos camponeses em 4,6 anos. Mesmo com os ditos avanços do governo Lula, a reforma

ao total bene%ciou apenas 5% da força de trabalho agrícola e distribuiu 11,6% das terras cultiváveis. CARTER,

Miguel. Desigualdade social, democracia e reforma agrária no Brasil, p. 50-51, 61. Quando falamos em reforma

agrária, referimo-nos à uma política de desconcentração de terras que altera as relações de poder no campo, e

não uma mera política de assentamentos. As provas de que esse tipo de reforma agrária não ocorreu minima-

mente estão no Censo Agropecuário do IBGE de 2006, que constata que o GINI rural (índice de concentração

de terras) do país aumentou de 1985 a 2006. Também segundo o Censo, menos de 1% dos estabelecimentos

rurais têm área acima de 1000 hectares e concentram cerca de 44% da terra. Ver COCA, Estevan Leopoldo de

Freiras; FERNANDES, Bernardo Mançano. Uma discussão sobre o conceito de reforma agrária: teoria, institu-

ições e políticas de governo para as conceituações de reforma agrária.

138 139

pela escolha de não integrar a esse princípio um limite à proprieda-

de da terra, um “módulo máximo”. “Até quando a não previsão de

um máximo permitirá a sobrevivência dos mínimos, conhecido que

é o apetite expansionista ilimitado do poder econômico aplicado à

terra?”188 indaga acertadamente ALFONSIN. Não há como atentar

à função social da terra quando se permite concentração ilimitada

dela. Ainda, há de se reconhecer que as ações possessórias e reivin-

dicatórias, quando aplicadas frente a ocupações de terras por movi-

mentos sociais, representam uma individualização, uma juridicização

de um conflito social de extensão muito maior. A tradução de conflitos

sociais em categorias jurídicas permite a sua neutralização, e o enco-

bertamento da extensão real do conflito189.

4.2 A extensão do conflito e a conjuntura

atual do campo brasileiro

O conflitos jurídicos que têm, em um pólo, grandes proprietá-

rios de terras e em outro, sem-terra, posseiros ou camponeses em geral,

são a juridicização de contradições estruturais entre o latifúndio e o

campesinato (ou agricultores familiares) e sem-terra.

188 ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimenta-

ção e à moradia, p. 122.189

“Quando os fatos são tomados pela ótica viciada das categorias jurídicas e, assim, interpretados segundo

dogmas consagrados, em que se cristalizam as ideologias dominantes, o Direito encobre a problemática real

em que se inserem os problemas tratados separadamente. Assim, ao menos provisoriamente, evita-se que se

revelem as dimensões sociais dos con&itos, para impedir um avanço que inviabilize o sistema como um todo,

na sua relação com a sociedade.” MELO, Tarso de. Direito e ideologia, p. 29.

Bernardo Mançano FERNANDES prefere explicar essa contra-

dição não em termos de luta de classes (uma vez que, segundo ele, o

campesinato não é uma classe propriamente inserida no capitalismo),

mas em termos de disputa pela territorialização. Diz ele: “No Brasil,

existem hoje 360 milhões de hectares de terras agriculturáveis, mas

somente em torno de 100 milhões estão produzindo. Portanto, existem

260 milhões de hectares que podem ser utilizados. Assim sendo, os

sem-terra constituem, antes de mais nada, um contingente populacio-

nal organizado disposto a recriar a condição camponesa ao ocupar os

260 milhões de hectares de terras ‘que não estão produzindo’, mas que

são, em grande parte, potencialmente produtivas para a agricultura.”190

Esses 260 milhões, apesar de improdutivos, “produzem” lucros ou ex-

pectativas de lucros para seus proprietários, através da especulação e da

reserva de valor.

Apesar de não configurarem as classes centrais do capitalismo,

pode-se colocar a relação entre latifúndio e camponeses em termos de

190 FERNANDES, Bernardo Mançano. Das ocupações de terra à reforma agrária: territorialização, renda capital-

izada e sobretrabalho, p. 87.191

PRESSBURGER, Miguel. A reforma inacabada, p. 115. O autor, conforme já se assinalou, ressalta também que

apesar de o campesinato não ser considerado uma classe revolucionária, teve um papel signi%cativo em toda

revolução importante do século XX.

“Desde o século XVI, com o sistema das sesmarias, passando pela concessão de terras devolutas instituídas em

1850, sempre houve no Brasil uma política de impedimento aos pobres, camponeses e indígenas de viverem

em paz na terra. Uma permanente e nem sempre surda luta entre o latifúndio e os camponeses cada vez mais

despossuídos esteve latente no Brasil desde 1500, e foi severamente agravada nos últimos 150 anos.” MARÉS,

Carlos Frederico. A função social da terra, p. 103-104.

140 141

classe (ainda mais, por sua inserção dentro da totalidade das relações).

Segundo PRESSBURGER, a luta pela terra está inexoravelmente ligada

a uma questão de classe e de etnia: os que lutam pela terra são “clas-

ses sociais cuja sobrevivência, inclusive física, depende da posse e do

uso da terra.”191 Na história brasileira, sistematicamente perseguiu-se

aqueles que tentaram ocupar a terra de forma não voltada à produção

agroexportadora192. Em contraposição, as eventuais contradições en-

tre latifúndio e capital193 não se apresentaram da maneira clássica no

Brasil: explica PRESSBURGER que houve uma certa junção entre essas

classes em nosso país, no qual possibilitou-se que o capitalista se tornasse

proprietário da terra e o proprietário se tornasse empresário rural194 . BAL-

DEZ aponta que os incentivos e benefícios tributários da ditadura militar

192 “Desde o século XVI, com o sistema das sesmarias, passando pela concessão de terras devolutas instituí-

das em 1850, sempre houve no Brasil uma política de impedimento aos pobres, camponeses e indígenas de

viverem em paz na terra. Uma permanente e nem sempre surda luta entre o latifúndio e os camponeses cada

vez mais despossuídos esteve latente no Brasil desde 1500, e foi severamente agravada nos últimos 150 anos.”

MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra, p. 103-104.

193As quais buscou-se resolver nos países centrais através da reforma agrária de mercado, a qual, usando-se

da desapropriação mediante indenização, transforma terra improdutiva em produtiva e ainda libera dinheiro

(público) para novos negócios, conforme é explicado em MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra.

194 PRESSBURGER, Miguel. Op. cit., p. 118.

195 BALDEZ, Miguel. A terra no campo: a questão agrária, p. 100. Note-se que esse foi também o período da

“modernização conservadora”, no qual se muda a base técnica da agricultura e aumenta-se a quantidade de

insumos e maquinário, na chamada “Revolução Verde”. Quanto a isso: DELGADO, Guilherme Costa. A questão

agrária e o agronegócio no Brasil, p. 85-88.

196 “Observe-se que agronegócio na acepção brasileira no termo é uma associação do grande capital agroin-

dustrial com a grande propriedade fundiária. Essa associação realiza uma aliança estratégica com o capital

%nanceiro, perseguindo o lucro e a renda da terra, sob patrocínio de políticas do Estado.” DELGADO, Guilherme

Costa. A questão agrária e o agronegócio no Brasil, p. 93-94.

garantiram que o capital pudesse ingressar com força no campo, resolven-

do-se, em grande escala as possíveis contradições195 . Assim, o capital e o

latifúndio não só se unem, como se fundem no projeto do agronegócio.196

A atual conjuntura brasileira é, de fato, de preocupante fortalecimento do

agronegócio, cuja produção, segundo DELGADO, apareceu como “solução”

nos momentos de crise de liquidez internacional (notadamente, 1983-1993,

2000-2005), fornecendo um saldo positivo na balança comercial. Os cam-

poneses, que em geral não adotam a estratégia tipicamente capitalista197,

são excluídos desse processo – e, politicamente, muitos dos movimentos

campesinos e sem-terra apresentam não a vontade de serem incluídos, mas re-

jeitam frontalmente o projeto do agronegócio e da agricultura capitalista, que

produz para o lucro e não para a vida198. Apresenta-se, assim, uma resistência:

organizações como o MST, em escala nacional, e a Via Campesina, em escala

internacional, contestam não apenas a concentração da terra, o não-cumpri-

mento da função social, mas todo o projeto agrário capitalista, que necessa-

riamente exclui e explora. Por fim, voltamos a indagar sobre

a possibilidade de o Direito – e da função social da propriedade – con-

197 Embora lhes sejam forçados, cada vez mais, os “pacotes tecnológicos” que os colocam nas mãos das em-

presas de sementes, insumos, etc.

198 Não por acaso é a agricultura camponesa que produz cerca de 70% dos alimentos que os brasileiros con-

somem, apesar de ocupar apenas 24,3% da área dos estabelecimentos agropecuários brasileiros, segundo o

Censo Agropecuário do IBGE de 2006.

199 MELO, Tarso de. Direito e ideologia, p. 36.

142 143

seguir se opor a tal conjuntura. Tarso de MELO afirma que “decisões

jurídicas que se sustentam são aquelas a que correspondem fatores reais

do poder”199 . Apresentamos neste trabalho conclusões jurídicas – por

óbvio, não neutras – de que o princípio da função social da proprieda-

de impõe àqueles que não a cumprem que não tenham sua propriedade

protegida, frente aos que querem usar a terra para fazer cumprir sua

função social. A efetividade dessas conclusões depende não apenas dos

esforços de juristas, mas da correlação de forças, isto é, da capacidade

de organização e mobilização das classes oprimidas. Chega-se, não

estranhamente, à conclusão de que os mesmos atores que ocupam as

terras, que querem produzir, se alimentar e viver, são os que podem

dar, em última instância, a efetividade ao Direito200 que lhes permita

fazer isso: realizam-se, assim, como sujeitos históricos plenos.

200 Ou a extinção do Direito e a criação do Novo.

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Artigo classificado em 4° lugar na XII Jornada

De Iniciação Científica de Direito da UFPR - 2010

Eduardo Borges Araújo*

Evandro de Nadai Sutil**

*Acadêmico do 4º ano diurno da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná

**Acadêmico do 4º ano diurno da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná