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A FUNÇÃO DISCURSIVA DO NEOLOGISMO LITERÁRIO Elis de Almeida Cardoso (USP) [email protected]

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A FUNÇÃO DISCURSIVA DO NEOLOGISMO LITERÁRIO

Elis de Almeida Cardoso (USP)

[email protected]

O DISCURSO LITERÁRIO

• O discurso literário é uma forma de expressãoartística e apresenta, emrelação a outras esferasdiscursivas, traços singulares que precisamserlevados em consideração quando se toma essediscursocomoobjetodeanáliselinguística.discursocomoobjetodeanáliselinguística.

• O discurso literário visa à estética, ultrapassa asimples informação referencial, afasta-se dosdiscursos cotidianos, busca a atemporalidade e auniversalidade, valoriza o ficcional sobre o real.

NEOLOGISMOS LITERÁRIOS

• Ao se iniciar o estudo dos neologismos no discurso literário, épreciso ter emmente que se está frente a uma forma de criaçãoque está ligada à originalidade de expressão do indivíduocriador, à sua facilidade para criar, à sua liberdade deexpressão.expressão.

• Se o objetivo é estudar as criações lexicais literárias, tambémchamadas de criações estilísticas, é importante não só apreocupação como processo de formação desses neologismose seu significado no contexto, como tambémpassa a serfundamental verificar os efeitos de sentido e a expressividadedeles no discurso literário.

A EXPRESSIVIDADE NO DISCURSO LITERÁRIO

Na descrição e análise linguística de umtexto, não só aexpressão de valores como tambémposicionamentos sócio-históricos devemestar no foco do pesquisador. Elementosextralinguísticos como a situação, o contexto, os papéis sociaisassumidos revelamnão só a intencionalidade discursiva, mastambémos valoresideológicos. São os diferentesefeitos detambémos valoresideológicos. São os diferentesefeitos desentido produzidos, revelados pelas escolhas, que mostramaintenção do autor e seu posicionamento frente ao contexto.

A expressividade “nasce do ponto de contato da palavra comarealidade concreta e nas condições de uma situação real,contato esse que é realizado pelo enunciado individual”(BAKHTIN, 2003, p.294).

A FUNÇÃO DISCURSIVA DO NEOLOGISMO LITERÁRIO

• A função discursiva do neologismo literário pode servariada. Muitas vezes percebe-se comele a críticasocial, outras vezes umefeito de humor ou de ironia.

“... é o léxico que recorta nossa percepção do mundoem seus aspectosnaturais, biológicos, sociais eem seus aspectosnaturais, biológicos, sociais eculturais. Sendo assim, nossa representaçãolinguística do mundo é feita por meio das unidadeslexicais, aquelas que possuemuma significação porelas mesmas, já que categorizam(a partir de modelosque podemser tomados como gerais) o mundo anosso redor” (BATISTA, 2011, p.34)

• A palavra nova, inusitada chama a atenção do leitor,provoca uma reação de estranhamento, por mais quese compreenda seu significado e se reconheça seuprocesso de formação. É o neologismo literáriocumprindo o seu papel.

• Quer se trate de uma nova palavra, quer de umsentido novo, ou de uma transferência de categoriagramatical, o neologismo literário suspende oautomatismo perceptivo, obriga o leitor a tomarconsciência da forma de mensagemque estádecifrando... (RIFFATERRE, apud VALENTE,2012, p. 103).

O significado discursivo de neologismos literários

• Para mostrar a preocupação de escritores modernoscom o mundo que os cerca, tentamos aqui, levantarneologismos literários que contribuempara otratamento de temas sociais como:

• acríticaaohomemmassificadoe animalizado,• acríticaaohomemmassificadoe animalizado,

• à falta de comunicação,

• à sociedade consumista,

• à burguesia,

• à polícia,

• à miséria,

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Muitos poemas de Carlos Drummond de Andrade criticamcomportamentos sociais mostrando umautor preocupado coma modernidade.

O poemaAo Deus KomUnik Assão, que abre o livroAsimpurezasdo branco, critica o homemanimalizado,que nãoimpurezasdo branco, critica o homemanimalizado,que nãopensa por si, o homemmassificado e submisso.

O título do poema, coma desagregação da lexiacomunicação,mostra a intenção do autor emmostrar que emtemposmodernos é venerada a anticomunicação.

Genuncircunflexadovos adouro

Vos amouro, a vós sonouro

Deus da buzina & da morfina

• Para fazer a crítica, o autor se utiliza de criações lexicaispróprias e originais, como por exemplo, a dos verbosadourar(cruzamento entreadorar e ouro), sonourar(cruzamento entresomeouro)eamourar(cruzamentoentreamar/amoeouro).someouro)eamourar(cruzamentoentreamar/amoeouro).

• Além de criar o adjetivogenucircunflexado, em que há umcruzamento entregenuflexado(a forma atestada égenuflexo) ecircunflexado(a forma atestada écircunflexo). A reverência aesse deus tão poderoso não pode ser apenas de joelhos, épreciso se curvar frente a ele, alémde se ajoelhar, emumaposição de vassalageme subserviência completa

• No mesmo poema, nota-se o adjetivo neológicoescãocaradoque se refere às bocas abertas de seres que se deixamanimalizar ou se possuir pelocão.

Nossa goela sempre sempre sempre escãocarada

engole elefantesengole elefantes

engole catástrofes

tão naturalmente como se.

E PEDE MAIS.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

• No poemaEu, etiqueta, a crítica de Drummond vaipara o indivíduo que pensa apenas emmarcasfamosas e que perde sua individualidade. O homempassa a ser coisa:Meu nome novo é Coisa. Eu sou aCoisa, coisamente. Por meio da formação doCoisa, coisamente. Por meio da formação doadvérbio coisamente(coisa + sufixo adverbial –mente), o autor mostra que o discurso literário poéticopode ter uma função social.

Em minha calça está grudado um nome

Que não é meu de batismo ou de cartório

Um nome... estranho

Meu blusão traz lembrete de bebida

Que jamais pus na boca, nessa vida,

Em minha camiseta, a marca de cigarro

Que não fumo, até hoje não fumei.

Minhas meias falam de produtos

Que nunca experimentei

......

Por me ostentar assim, tão orgulhoso

De ser não eu, mar artigo industrial,

Peço que meu nome retifiquem.

Já não me convém o título de homem.

Meu nome novo é Coisa.

Eu sou a Coisa, coisamente.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

No poemaFim de feira (ANDRADE, 2002, p. 774), CarlosDrummond de Andrade descreve a ação de “mulheres magras”e “crianças rápidas” que catamos detritos e fazemdeles seu“estoque de riquezas”:

No hipersupermercadoaberto de detritos,No hipersupermercadoaberto de detritos,

ao barulhar de caixotes em pressa de suor,

mulheres magras e crianças rápidas

catam a maior laranja podre, a mais bela

batata refugada, juntam no passeio

seu estoque de riquezas, entre risos e gritos.

O prefixo hiper- (grego) designa, ao lado desuper- (latino), um grauaumentativo. Porém, comumente, encontramos entre eles umagradação.Hiper- ganha um grau a mais quesuper-. Daí, podemos citar comoexemplo supermercado e hipermercado. Se o supermercado é o local emque se vendem basicamente alimentos, o hipermercado é um supermercadode grandes proporções, em que se vendem também móveis,eletrodomésticos, etc. Drummond utiliza os dois prefixos na formaçãohipersupermercado.

• O hipersupermercadopara o autor é, na verdade, uma feira livre. Essadesignaçãonão surge pelo fato de essa feira apresentarenormesdesignaçãonão surge pelo fato de essa feira apresentarenormesproporções, e sim porque a cena que lá ocorre é chocante. Trata-se de um“hipersupermercado aberto de detritos”, ou seja, no fim de feira, sobramapenas laranjas estragadas, batatas jogadas e esquecidas,que ninguém, compoder aquisitivo, quer. Entretanto, essas sobras todas fazem a alegria de“mulheres magras e crianças rápidas”. A dupla prefixação é extremamenteexpressiva no texto. A feira acabou, só resta para quem é pobre umhipersupermercadode detritos.

• É o neologismo em função da crítica contra a desigualdade social e amiséria.

MANOEL DE BARROS

• Manoel de Barros no poema 16 do livroRetrato do artistaquando coisa (2010, p. 368) tambémfala da falta decomunicação do mundo moderno. O poeta quer retroceder aoantesmenteverbal. O advérbio formado como sufixo –menteunido a uma baseadverbialcausaestranhamento,mas comunido a uma baseadverbialcausaestranhamento,mas comesse choque de novidade, o leitor percebe que o poeta buscaum tempo que não existe mais. Ele espera adespalavra, apalavra sem forma, sem som, anterior ao verbo, semcontaminação. A palavra que ainda não foi criada, nemusadapor ninguém. O prefixo des-, com valor de nulidade, unido auma base substantiva que não aceitaria a negação faz comqueo neologismo mostre a valorização do niilismo almejado pelopoeta emum momento emque não se dá mais conta de tantainformação.

Agora só espero a despalavra: a palavra nascida

para o canto - desde os pássaros.A palavra sem pronúncia, ágrafa.Quero o som que ainda não deu liga.Quero o som gotejante das violas de cocho.A palavra que tenha um aroma ainda cego.Até antes do murmúrio.Que fosse nem um risco de voz.Que só mostrasse a cintilância dos escuros.A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma

imagem.O antesmenteverbal: a despalavramesmo.

MÁRIO DE ANDRADE

• As críticas sociais passamtambémpela poesia e pela prosa deMário de Andrade. O neologismodespoliciamento, formadotambémpelo prefixo des- unido a uma base substantiva éencontrado emNelson, umdos contos deContos Novos.

• Qualquer cidadão que paga seus impostos quer que osgovernos sejam responsáveis pela segurança pública,promovendopoliciamentonasruas. Emboranãosejacomum,promovendopoliciamentonasruas. Emboranãosejacomum,seria esperado que o significado dedespoliciamentofosse aausência ou falta depoliciamento. Entretanto, Mário deAndrade se utiliza do neologismo de forma bastante irônica.

• A presença do policial indiferente parece nula, aponto do policiamento existente não surtir nenhumefeito. Há polícia, mas é como se não houvesse. Oneologismo é responsável pela crítica aocomportamento do policial e por extensão docomportamento do policial e por extensão dogoverno.

Agora vinha lá do lado oposto da alameda o rondante,na indiferença, bemno meio da rua, batendo o tacãona botina, no despoliciamento proverbial destacidade.

Mário de Andrade

Em Ode ao burguês, Mário de Andrade demonstra claramenteseu desprezo ao homemda classe média, o chamado burguês,representante das elites retrógradas do século 19. Lido naSemana de Arte Moderna em1922, o poema, na verdade umadenúncia social, ataca a mentalidadepequeno-burguesa,odenúncia social, ataca a mentalidadepequeno-burguesa,oindivíduo que permanece no passado, que é avesso amudanças, que só se preocupa consigo mesmo, que valoriza oluxo, mas ao mesmo tempo é ignorante.

• Para criticar suas atitudes, o autor cria váriosneologismos por composição. São formadospor dois substantivos emrelação desubordinação: burguês-burguês, burguês-cinema, burguês-níquel, burguês-tílburi,homem-curva, homem-nádegas. São formadospor substantivoe adjetivo burguês-funestoepor substantivoe adjetivo burguês-funestoeburguês-mensal.

• A crítica de Mário aponta para as diferenças de classe; édeclarado o ódio à aristocracia e à elite de São Paulo.

• O reforço emburguês-burguêsfaz comque se entenda que areferência é feita aoburguês mesmo a quemcomparaprimeiramente como níquel. Trata-se do indivíduo que sóvaloriza o dinheiro (burguês-níquel), a diversão (burguês-cinema) e o conforto (burguês-tílburi), emuma alusão ao meiode transporte da classe endinheirada do século 19. Pelo fato degostardecomerbem,enquantooutrospassamfome,o burguêsgostardecomerbem,enquantooutrospassamfome,o burguêsé gordo (homem-curva), mas não passa de umretrógrado(homem-nádegas). A crítica atinge o homem decomportamento regular, que preza a rotina, esse é oburguês-mensal. Para o poeta, o burguês é uma criatura odiosa(burguês-funesto).

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,o burguês-burguês!A digestão bem-feita de São Paulo!O homem-curva! o homem-nádegas!O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto o burguês-funesto!Eu insulto o burguês-funesto!O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!Fora os que algarismam os amanhãs!Olha a vida dos nossos setembros!Fará Sol? Choverá? Arlequinal!Mas à chuva dos rosaiso êxtase fará sempre Sol!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

• Segundo Marcuschi (2008, p. 240) “a produção textual não éuma simples atividade de codificação e a leitura não é umprocesso de mera decodificação”, logo o que se pode concluirdessa afirmativa é que tanto o processo de criação de textoquanto a leitura são procedimentos que requeremsaberesprévios acerca dos conteúdos e sua exploração implicaprévios acerca dos conteúdos e sua exploração implicacompreender os significados e a finalidade do texto.

• Para se conseguir a compreensão total do significado doneologismo literário é preciso uma inserção do leitor nouniverso da obra literária, na intenção que existe por trásdaquela criação. Para isso é preciso que o texto literário sejaanalisado juntamente como seu contexto.

• Pretendemos mostrar de que forma os neologismos literáriospodemfavorecer a crítica social, expondo a visão de mundodos autores que buscam, por meio de sua criatividade lexical,soltar sua voz e marcar sua posição. O objetivo foi mostrarque, formados pelos mesmos processos que os neologismos delíngua, os neologismos literários são criativos e chamamaatenção, podendo daí ser analisados estilisticamente, porqueestão,muitasvezes,em funçãode uma expressãoprópria deestão,muitasvezes,em funçãode uma expressãoprópria deum escritor que quer atingir o leitor de forma extremamenteoriginal.

• Quando se leva emconta os aspectos contextuais, as criaçõesneológicas literárias mostramsua força discursiva e daí suaexpressividade. Pode-se dizer, então, que esses neologismossão o produto criativo de uma conjunção de fatores linguísticosa serviço de umdeterminado efeito de sentido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

• ANDRADE, Carlos Drummond de Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

• ANDRADE, Mário de. Contos novos.Rio de Janeiro: Iitatiaia, 1999.

• ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: EDUSP, 1987.

• BAKHTIN, M Estética da criação verbal, São Paulo: Martins Fontes, 2003.

• BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.

• BATISTA, Ronaldo de Oliveira. A palavra e a sentença. São Paulo: Parábola, 2011.

• CARDOSO, Elis de Almeida. Drummond: um criador de palavras. São Paulo: Annablume, 2013.

• MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.

• PRUVOST, Jean e SABLAYROLLES, Jean François. Les néologismes. Paris: PUF, 2003.

• VALENTE, André. Neologia na mídia e na literatura: percursos linguístico-discursivos. Rio de Janeiro: Quartet,2012.