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A Fragmentação e a Reconstrução do Eu Frida Kahlo e o Espelho Carolina Melillo de Camillo Alves Ciclo 2 Turma: 4 a feira - Manhã Fotografia de Lola Álvarez Bravo, 1944

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Page 1: A Fragmentação e a Reconstrução do Eu Frida Kahlo e o Espelho · Matilde Kahlo, nasceu em 6 de julho de 1907; no entanto, em alguns de seus escritos e inclusive em uma inscrição

A Fragmentação e a Reconstrução do Eu

Frida Kahlo e o Espelho Carolina Melillo de Camillo Alves – Ciclo 2 – Turma: 4a feira - Manhã

Fotografia de Lola Álvarez Bravo, 1944

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“Pouco depois que entramos no ônibus houve a colisão. Antes disso, tínhamos subido

em outro ônibus, mas como eu tinha perdido a minha sombrinha, descemos para

procurar e foi por isso que acabamos entrando no ônibus que me destruiu. O

acidente aconteceu numa esquina em frente ao Mercado de San Juan, exatamente

em frente. O bonde veio se aproximando devagar, mas nosso motorista era jovem e

nervosa. Quando o bonde fez a curva na esquina o ônibus foi prensado na parede.

Eu era uma menina inteligente, mas muito pouco prática, apesar de toda a liberdade

que eu tinha conquistado. Talvez por causa disso, não avaliei a situação nem o tipo

de ferimento que eu tive. A primeira coisa em que pensei foi em um ‘balero’

[brinquedo mexicano] com cores bonitas que eu tinha comprado naquele dia e que eu

estava carregando comigo. Tentei procurar o brinquedo, achando que o que tinha

acontecido não teria maiores consequências.

É mentira que a pessoa tem consciência da batida, é mentira que a pessoa chora. Em

mim não houve lágrimas. A colisão nos jogou para a frente e um corrimão de ferro

me varou do mesmo jeito que uma espada rasga a carne do touro. Um homem me

viu tendo uma tremenda hemorragia. Ele me carregou e me deitou em cima de uma

mesa de bilhar até que a Cruz Vermelha chegasse”.

(Recordação de Frida Kahlo em Herrera, 2011)

Frida Kahlo, Retábulo, 1940

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Frida Kahlo

Magdalena Carmen Frida Kahlo y Coyoacán, terceira filha de Guillermo e

Matilde Kahlo, nasceu em 6 de julho de 1907; no entanto, em alguns de seus escritos

e inclusive em uma inscrição que adorna a parede de seu quarto na Casa Azul, onde

nasceu e morreu (hoje Museo Frida Kahlo), sua data de nascimento aparece como

sendo 7 de julho de 1910, mas em um dado momento de sua vida, Frida tomou a

liberdade de escolher nascer em 1910 ano da eclosão da Revolução Mexicana. Ela e

o México moderno haviam nascido no mesmo ano.

Pouco depois de seu nascimento, sua mãe caiu doente e durante certo período

a menina foi amamentada por uma ama de leite indígena. Matilde, ao se aproximar da

meia-idade, começou a sofrer “desmaios” ou “ataques”, parecidos com os do marido.

Quando jovem, Guillermo sofreu uma queda que resultou em lesões cerebrais e, a

partir de então, começou a

sofrer ataques epiléticos.

(Herrera, 2011)

Frida Kahlo, Minha babá e eu, 1937

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Frida descrevia a mãe como um sininho de Oaxaca, artesanato feito de argila,

em formato de mulher com vestido longo e armado, bem preso à cintura, originário da

cidade natal da mãe. “Quando ia ao mercado, ela apertava bem a cinta, marcando

graciosamente a cintura, e carregava a cesta com ar coquete” (Herrera, 2011). Matilde

era a mais velha de doze filhos de mãe de origem espanhola e pai de ascendência

indígena mexicana. De acordo com Frida, a mãe era inteligente, embora analfabeta:

o que lhe faltava em educação formal ela compensava em devoção religiosa. Antes

de conhecer o marido, Matilde namorara outro jovem alemão, que se suicidou na

presença dela, e cujas cartas guardou consigo até o fim da vida.

Guillermo (Wilhelm Kahlo) era Alemão, filho de judeus húngaros e ateu por

convicção. Seu pai era joalheiro e também negociava suprimentos fotográficos,

suficientemente abastado para mandar o filho para a universidade de Nuremberg. No

entanto, a queda de Guillermo, que resultou nas lesões cerebrais, somada à morte de

sua mãe, que ocorreu mais ou menos na mesma época, mudaram o rumo da família.

O pai casou-se com uma mulher de quem Wilhelm não gostava e, para resolver a

situação, deu ao filho dinheiro suficiente para comprar uma passagem para o México.

Wilhelm mudou seu nome para Guillermo e nunca mais voltou a seu país.

Em novas terras, Guillermo seguiu os passos do pai, trabalhou como joalheiro,

e se casou com uma mexicana, que morreu quatro anos depois, ao dar à luz a

segunda filha do casal. Já viúvo, se apaixonou por Matilde, que na época era sua

colega de trabalho na joalheria. Foi ela quem o convenceu a seguir a carreira de

fotógrafo, profissão de seu pai. Guillermo registrou a herança cultural mexicana e se

torou o primeiro fotógrafo oficial do patrimônio cultural do México.

Frida dizia ser fisicamente parecida tanto com o pai como com a mãe: “Tenho

os olhos do meu pai e o corpo da minha mãe” (Herrera, 2011), mas sua maior

afinidade era com o pai, e o sentimento era recíproco. Das seis filhas (duas do

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primeiro casamento e quatro com Matilde), era por Frida que Guillermo Kahlo sentia

mais afeição. Ele reconhecia nela algo de sua própria sensibilidade intensa, sua

própria introspecção e inquietude. “Frida é a mais inteligente das minhas filhas... ela é

a que mais se parece comigo”. Embora Kahlo não tivesse intimidade com as filhas,

era atencioso com sua favorita. Estimulava a audácia intelectual de Frida,

emprestando-lhe livros de sua biblioteca, composta principalmente por livros alemães,

incluindo obras de Schiller e Goethe, bem como inúmeros volumes de filosofia; e

encorajava a curiosidade e a paixão da menina por todas as manifestações da

natureza.

A relação de Frida com a mãe, foi muito marcada pela ausência. Desde seu

nascimento, as impossibilidades emocionais e físicas de Matilde não permitiram que

ela acolhesse a filha em seus momentos de maior fragilidade. A substituição da mãe

pela ama, logo após o seu nascimento, foi apenas a primeira de uma série de lacunas

que Matilde deixaria, as quais tentaria preencher buscando outros objetos de desejo.

Segundo Frida, devido a saúde da mãe, ou de seu temperamento, ela e a irmã mais

nova, Cristina, eram entregues aos cuidados das irmãs mais velhas, Matilde e

Adriana; ou das meias-irmãs, Maria Luísa e Margarita, quando estas estavam em

casa, já que tinham sido mandadas para um convento quando seu pai se casou pela

segunda vez. A ambivalência de Frida em relação à mãe – seu amor e seu desprezo

– ficou evidente quando, em uma entrevista, ela descreveu a mãe como “cruel” e

“muito amável, ativa e inteligente” (Herrera, 2011).

Antes do acidente que iria marca-la para toda a vida, Frida passou por um

grande infortúnio. Aos seis anos, a menina contraiu poliomielite e passou nove meses

confinada no quarto. Quando narra esse episódio de sua vida, a figura da mãe, ainda

que estivesse presente, não aparece em seus relatos; ao contrário da do pai, que foi

lembrado por mostrar-se surpreendentemente terno e preocupado, além de figura

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ativa no processo de recuperação da filha. Esse episódio seria o preambulo do que,

após doze anos, viria a ser a vida de Frida. Já nesse momento pode ter nascido o

gérmen de consciência da discrepância entre o mundo interior dos devaneios e o

mundo exterior das relações sociais.

Aos sete anos, Frida ajudou a irmã Matilde - segundo ela a favorita de sua mãe

- então com quinze anos, a fugir com o namorado para outra cidade. Nas palavras

dela, a fuga da irmã deixou a mãe histérica, e esta ficou doze anos sem falar com a

filha mais velha.

Em seu diário, Frida escreveu: “Minha infância foi maravilhosa porque, embora

o meu pai fosse um homem doente (tinha vertigens a cada mês e meio), para mim ele

era um imenso exemplo de ternura, de trabalho (era fotografo e pintor) e, acima de

tudo, de compreensão dos meus problemas” (Herrera, 2011).

Sua obra, reflexo de sua vida, certamente foi muito influenciada por sua relação

com seus pais. Reconhecendo a ligação entre a arte do pai e a sua própria, Frida

afirmou que suas pinturas eram como as fotografias que o pai tirava para ilustrar

calendários; a única diferença era que, em vez de pintar uma realidade exterior, ela

pintava os calendários que existiam dentro de sua cabeça.

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Frida Kahlo, Meu Nascimento, 1932 Frida Kahlo, Retrato de don Guillermo Kahlo, 1952

A Fragmentação

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Frida Kahlo, A coluna partida, 1944

O acidente ocorreu no fim da tarde de 17 de setembro de 1925, um dia depois

da celebração do aniversário de independência mexicana da Espanha, e deixou a

jovem de dezoito anos com a coluna quebrada em três lugares na região lombar.

Quebrou a clavícula, fraturou a terceira e a quarta vertebras, teve onze fraturas no pé

direito (o atrofiado), que foi esmagado; sofreu luxação do cotovelo esquerdo; a pélvis

se quebrou em três lugares. A barra de aço tinha literalmente entrado pelo quadril

esquerdo e saído pela vagina, rasgando o lábio esquerdo.

Sobre o trabalho dos médicos que a receberam no Hospital da Cruz Vermelha

da Rua San Jeronimo, um velho amigo de Frida disse: “Eles tiveram que remontá-la

por partes, como se estivessem fazendo uma fotomontagem”. No entanto as

habilidades dos médicos, ainda que questionáveis (ao que tudo indica foram

negligentes e não verificaram as condições da coluna da paciente antes de manda-la

para casa) só permitiam a reconstrução de seu corpo.

Lola Alvarez Bravo, fotógrafa e amiga íntima da pintora, explica: “Em certo

sentido, Frida de fato morreu no acidente (…) A batalha das duas Fridas esteve

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sempre presente nela. A luta entre a Frida que morreu e a Frida que ainda estava

viva” (Herrera, 2011).

Frida Kahlo, As duas Fridas, 1939

A menina que corria loucamente pelos corredores da escola feito um

passarinho em pleno voo, que saltava dos bondes e ônibus, de preferência ainda

quando estava em movimento, agora se viu imobilizada e presa a uma série de

gessos e outras geringonças. “Foi uma colisão estranha”, ela disse, “não foi violenta,

mas sim bastante silenciosa, lenta e que machucou todo mundo. E a mim, acima de

tudo” (Herrera, 2011).

Assim que recobrou a consciência, Frida pediu que chamassem sua família.

Seus pais não puderam ir vê-la. “Minha mãe ficou tão impressionada que perdeu a

fala durante um mês. Meu pai ficou tão triste que adoeceu, e não pude vê-lo por mais

de vinte dias”, recordava Frida. “Nunca houvera mortos na minha casa”. (Herrera,

2011) A irmã Adriana, ficou tão perturbada ao receber a notícia que desmaiou; Matilde

foi a única parente de Frida a ir imediatamente ao hospital.

Alejandro Gómez Arias, namorado de Frida na época, estava com ela no

acidente e presenciou tudo, mas não sofreu ferimentos tão graves. Com a ajuda de

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outros homens, ele inclusive ajudou no resgate da namorada e ficou ao seu lado até a

chegada da ambulância. Mas as circunstâncias acabaram afastando-o de Frida.

A desconfiança de uma traição por parte dela, antes do acidente, somada à

pressão de seus pais, que passaram a patrocinar suas viagens à Europa, para que

ele estudasse e se desligasse da menina; fizeram com que Alejandro visitasse sua

Friducha cada vez menos. A partir daí o namoro se resumiu a trocas de cartas, nas

quais Frida expunha seu amor, suas aflições, sua solidão e sua angústia. Sua

sensação de impotência por não poder mais acompanhar seu amado em suas

aventuras e nem fazer muito para reconquistá-lo, grita nas cartas que ela

constantemente lhe enviava; até o fim definitivo do relacionamento, por volta de dois

anos e meio depois, quando Alejandro se apaixona por uma amiga de Frida.

Se a morte física não ocorreu nos dias seguintes ao acidente, as

fragmentações de seu corpo a levaram de volta para a condição primitiva semelhante

ao que Lacan chamaria de estágio de infans: incapaz de se manter ereta, de caminhar

e de viver uma vida autônoma. Frida voltou a depender dos outros para tudo, como

uma criança quando nasce; sem saber se iria se recuperar ou o que poderia esperar

da vida daquele momento em diante. As feridas físicas foram muitas: a coluna, a

clavícula, o pé, o cotovelo; e além dessas, Frida sofreu graves ferimentos em sua

genitália e em outros órgãos de seu aparelho reprodutor, partes do corpo que

representam a feminilidade e a fertilidade. Frida estava em pedaços, já não era a

mesma. A sensação de morte e de renascimento alcançaram o limite da fronteira do

imaginário, posicionando-se bem próximo à fronteira do real. Em uma de suas cartas

a Alejandro ela diz:

“... a morte dança toda noite em volta da minha cama. (...) Além de me sentir

fisicamente bastante desconfortável, embora eu tenha dito aos Salas que não

acreditava que a minha situação fosse muito grave, sofri muito mais moralmente já

que você sabe que a minha mãe ficou muito doente, e o meu pai também, e dar

esse golpe repentino neles me dói mais do que quarenta machucados, imagine

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você, a minha pobre mãezinha me disseram que ela ficou três dias chorando feito

louca e o meu pai que estava melhorando ficou muito mal...”.

Ao final da carta, para simbolizar seus sentimentos, ela desenha um rosto chorando e

escreve: “A vida começa amanhã!”. Mas será que o sofrimento que Frida menciona na

carta é realmente um sofrimento moral, de culpa? Ou será que Frida não suportava

sentir-se mais uma vez abandonada por sua mãe, que nunca tinha condições para lhe

acolher; e por seu pai, que desta vez também não pôde fazer esse papel. Frida

acabara de renascer e mais uma vez não tinha o conforto do seio materno, nem lhe

foi possível encontrar um substituto a altura. Buscou o amor na figura do amado

Alejandro, como uma possibilidade de objeto para o destino libidinal, porém também

não teve a correspondência necessária. Restava-lhe contentar-se com as visitas dos

amigos e com o amor fraternal de sua irmã; mas Frida precisava de mais. Já não

podia se identificar com o outro, pois não sabia mais quem era; uma vez que não se

reconhecia como a Frida de antes. Precisava reconstruir a imagem que tinha de si

própria, para novamente se objetivar na dialética da identificação com o outro.

A Reconstrução

Já em casa, ainda “recém-nascida”, na companhia de suas dores físicas e das

fantasias produzidas pelo trauma do acidente, a mãe lhe oferece um substituto de si

própria. Na impossibilidade de servir como referência para sua filha, ela lhe oferece

um espelho.

Na busca da reconstrução de seu eu, Frida não encontra seu reflexo no olhar

do outro, mas no espelho. O espelho pendurado sobre sua cama, a caixa de tintas

que ganhou de seu pai e, quando não havia mais espaço para pintura em seu colete

de gesso, as telas apoiadas em seu cavalete adaptado, foram seus companheiros por

meses nesse processo de reconstrução de sua imago.

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Juan Guzmán, Frida segurando um espelho no hospital,1951 Fotógrafo anônimo, 1940

Seu reflexo no espelho e a reprodução da imagem em seus autorretratos,

assim como a Gestalt que ocorre com o bebê no estádio de espelho, foi mais

constituinte do que constituída, estava “... prenhe das correspondências que unem o

[eu] à estátua em que o homem se projeta e aos fantasmas que o dominam...”.

(Lacan, 1949)

Frida Kahlo, Autorretrato,1926 Frida Kahlo, Pensando na morte, 1943

Pintando seus autorretratos, Frida encontrou uma forma de reconstruir sua

imagem, sua história, inclusive sua filiação, e de sublimar suas pulsões. O retorno de

Frida a um suposto estádio de espelho possibilitou que ela juntasse seus fragmentos

e construísse uma nova imagem de si, ainda que alienante e com características

psicóticas.

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“ O estádio de espelho é um drama cujo impulso interno

precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o

sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que

se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma

de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura

enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua

estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental” (Lacan, 1949),

A fragmentação (real e imaginária) e o espelho acompanharam Frida por toda a vida.

Em diário produzido nos seus últimos dez anos, ela se desenhou em pedaços e

escreveu: “Yo soy la desintegración.”

Eu sou a desintegração, em O Diário de Frida Kahlo, p.59

Vivia, enroscada nos escombros e pântanos, entre os dois campos de luta opostos do

estádio descrito por Lacan, em busca do que ele chamou de altivo e longínquo castelo

interior, cuja forma simboliza o isso. Suas pinturas são a metáfora de seus próprios

sintomas.

“Ela revirou seu corpo, colocando o coração na frente do seio e mostrando sua

coluna partida como se sua imaginação tivesse o poder de uma visão de raios x ou o

gume do bisturi de um cirurgião: se a fantasia de Frida não viajava para muito longe

dos confins de si mesma, ela a sondava profundamente. A menina cuja ambição era

estudar medicina voltou-se para a pintura como uma forma de cirurgia psicológica”.

(Herrera, 2011)

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Uma outra possibilidade de ressignificação de si mesma, e até de reconstrução

do eu de Frida, a partir da projeção narcísica, seria a chegada de um filho. No

entanto, o filho nunca veio e, mais um vazio, uma ferida se abriu nela. Durante sua

vida Frida foi privada de muitos objetos de desejo e teve que achar formas de

redirecionar suas pulsões.

Frida Kahlo, Hospital Henry Ford, 1932

Nesse nó de servidão imaginária, como mencionado por Lacan, em que a

natureza e a cultura se juntam, em que o amor sempre tem que redesfazer ou

deslindar, desse parto simbólico, produzido do contato do imaginário com a

realidade, nasceu a Frida de 1910, a Frida da Revolução Mexicana, filha de sua

terra.

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Frida Kahlo, O abraço amoroso do universo, a Terra (México), Diego, eu e Señor Xolotl, 1949

Frida encontrou um lugar suportável para si mesma em seu imaginário.

Pintou-se como filha de sua terra, de um México cheio de fissuras e sofrimentos,

assim como ela. Criou sua persona mexicana, filha da dor, cuja mãe teve o rosto

substituído por uma imagem da Mater Dolorosa (Nossa Senhora das Dores), em

sua obra Meu Nascimento. Filha que mamou do leite dos seios de uma nativa e

cuja fertilidade falhou em dar continuidade a sua arvore genealógica. A pulsão

que não pôde seguir seu destino para o objeto filho, se voltou para o marido,

Diego Rivera, que teve seu rosto reproduzido em muitos filhos pintados por ela; e

para si própria, num processo de grande investimento libidinal de reconstrução do

eu. “Frida é a única pintora que deu luz a si mesma”, diz Lola Alves Bravo.

Frida Kahlo, Meus avós, meus pais e eu, 1936

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Na pintura Quatro Habitantes do México, Frida pinta a imagem de si própria

quando ainda criança, confrontando os emblemas de sua herança cultural. “Ao seu

lado estão quatro personagens: um ídolo pré-colombiano de Nayarit, um boneco de

Judas, um esqueleto de barro e um ginete de palha. Cada habitante teve como

modelo um artefato mexicano que os Riveras de fato tinham em casa; (...) esses

objetos tinham significado pessoal para Frida (...) eram uma espécie de família, e

ofereciam a ela conforto familiar em um mundo que muitas vezes parecia vazio”

(Herrera, 2011).

Frida Kahlo, Quatro habitantes da Cidade do México, 1938

Segundo Hayden Herrera, os quatro habitantes eram os companheiros de Frida em

seu drama pitoresco e doloroso. À medida que criou sua persona mexicana, ela

própria tornou-se a quinta habitante do México. Anos se passaram, para que ela se

transformasse nesse “quinto habitante”. Ao olhar para o espelho sem se reconhecer,

Frida se reconstruiu, compensando, de alguma forma, a perna defeituosa, a coluna

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partida, a infertilidade e a fragmentação do seu eu, dando à luz a mais mexicana de

todos os mexicanos.

Bibliografia

FAGES, J.B. “O Espelho”. Jaques Lacan: Uma introdução. Rio de Janeiro:

Editora Rio, 1977

HERRERA, Hayden. Frida: A Biografia. 1a ed. São Paulo: Editora Globo, 2011

JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan: Vol. 1: As bases conceituais. Zahar, 2000

LACAN, Jacques. “O estádio do espelho como fundador da função do eu." LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 1998 (1949)

MORAIS, Frederico. O Diário de Frida Kahlo: Um autorretrato íntimo. 3a ed. Rio de Janeiro: José Olimpo Editora, 2012

SOUTER, Gerry. Frida Kahlo: Beneath the Mirror. 1a ed. Nova York: Parkstone Press International, 2007