frida kahlo: a pintura como processo de busca de si...

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Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 43, n. 2, 49-60 · 2009 49 Frida Kahlo: a pintura como processo de busca de si mesmo 1 Gina Khafif Levinzon, 2 São Paulo Resumo: A partir do estudo da vida e da obra da pintora Frida Kahlo, este trabalho propõe reflexões sobre a natureza das forças que impeliam a artista a retratar seus estados emocionais de forma pungen- te. As falhas na maternagem e suas consequências são examinadas na relação que Frida tinha com seu corpo, seus relacionamentos afetivos e sua feminilidade. Seus autorretratos criavam uma função especular restituidora, e sua arte denotava um intenso processo de busca de integração e de encontro consigo mesma. Palavras-chave: Frida Kahlo; a arte como cura; compulsão; espelho. As criações artísticas representam formas privilegiadas de expressão do interior hu- mano, com seus diversos tons e matizes emocionais. Permitem-nos refletir sobre as emo- ções e nuanças que são comunicadas pelo seu autor, ao mesmo tempo em que nos intrigam e nos inspiram. A obra de Frida Kahlo, viva, pungente, às vezes chocante, nos convida para o estudo das forças que impelem a artista em direção a um objetivo permanentemente perseguido: o encontro consigo mesma. Compulsão, sublimação, criação? Será possível identificar o que está por trás de pinturas, especialmente autorretratos, que insistem em expor um mundo cheio de dor, feridas e depressão, e ao mesmo tempo denotam esperança e inspiração, e em alguns momentos até irreverência? Este trabalho tem como objetivo fazer conjecturas a respeito dessas questões, baseando-se na análise de dados de sua vida e de sua obra, consi- derados similares às associações livres produzidas dentro do processo psicanalítico. A história de Frida Frida Kahlo nasceu em 6 de julho de 1907, em Coyoacán, México. Era a terceira filha do segundo casamento de um imigrante alemão judeu e de uma mãe mestiça mexicana católica devota. Sua mãe, Matilde, ainda estava em processo de luto pela morte de seu único filho homem, falecido ao nascer. não pôde dar o peito à filha por ter ficado doente em seguida ao parto, e entregou-a aos cuidados de uma ama-de-leite índia, o que era uma prática comum no México. Há evidências de que Matilde sofreu de depressão pós-parto, e de que essa condição depressiva foi aumentada em função de sua nova gravidez, dois meses depois do nascimento de Frida. A chegada precoce de uma irmã, uma rival na atenção e 1 Artigo “Tema Livre” do XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro, 2009. Prêmio Fábio Leite Lobo para membros efetivos. 2 Membro efetivo da SBPSP. Doutora em Psicologia Clínica, USP, Professora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica – USP.

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RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume43,n.2,49-60·2009 49

Frida Kahlo: a pintura como processo de busca de si mesmo1

GinaKhafifLevinzon,2SãoPaulo

Resumo:ApartirdoestudodavidaedaobradapintoraFridaKahlo,estetrabalhopropõereflexõessobreanaturezadasforçasqueimpeliamaartistaaretratarseusestadosemocionaisdeformapungen-te.AsfalhasnamaternagemesuasconsequênciassãoexaminadasnarelaçãoqueFridatinhacomseucorpo,seusrelacionamentosafetivosesuafeminilidade.Seusautorretratoscriavamumafunçãoespecularrestituidora,esuaartedenotavaumintensoprocessodebuscadeintegraçãoedeencontroconsigomesma.Palavras-chave:FridaKahlo;aartecomocura;compulsão;espelho.

Ascriaçõesartísticasrepresentamformasprivilegiadasdeexpressãodointeriorhu-mano,comseusdiversostonsematizesemocionais.Permitem-nosrefletirsobreasemo-çõesenuançasquesãocomunicadaspeloseuautor,aomesmotempoemquenosintrigamenosinspiram.

AobradeFridaKahlo,viva,pungente,àsvezeschocante,nosconvidaparaoestudodasforçasqueimpelemaartistaemdireçãoaumobjetivopermanentementeperseguido:oencontroconsigomesma.Compulsão,sublimação,criação?Serápossívelidentificaroqueestáportrásdepinturas,especialmenteautorretratos,queinsistememexporummundocheiodedor,feridasedepressão,eaomesmotempodenotamesperançaeinspiração,eemalgunsmomentosaté irreverência?Este trabalho temcomoobjetivo fazerconjecturasarespeitodessasquestões,baseando-senaanálisededadosdesuavidaedesuaobra,consi-deradossimilaresàsassociaçõeslivresproduzidasdentrodoprocessopsicanalítico.

a história de Frida

FridaKahlonasceuem6dejulhode1907,emCoyoacán,México.Eraaterceirafilhadosegundocasamentodeumimigrantealemãojudeuedeumamãemestiçamexicanacatólica devota. Suamãe,Matilde, ainda estava emprocesso de luto pelamorte de seuúnicofilhohomem,falecidoaonascer.nãopôdedaropeitoàfilhaporterficadodoenteemseguidaaoparto,eentregou-aaoscuidadosdeumaama-de-leiteíndia,oqueeraumapráticacomumnoMéxico.HáevidênciasdequeMatildesofreudedepressãopós-parto,edequeessacondiçãodepressivafoiaumentadaemfunçãodesuanovagravidez,doismesesdepoisdonascimentodeFrida.Achegadaprecocedeumairmã,umarivalnaatençãoe

1 Artigo“TemaLivre”doXXIICongressoBrasileirodePsicanálise,RiodeJaneiro,2009.PrêmioFábioLeiteLoboparamembrosefetivos.

2 Membro efetivo da SBPSP. Doutora em Psicologia Clínica, USP, Professora do Curso de Especialização emPsicoterapiaPsicanalítica–USP.

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afetodamãe,pareceteralimentadoaconvicçãoemFridadenãoseramadaedetersidoabandonadapelamãe(Dosamantes-Beaudry,2007).

ArelaçãodeFridacomamãepareciaserdepressivae inadequada.SuaprofundasensaçãodeestarsónasuapresençaestádocumentadanoquadroMeu nascimento(fig.1)3.Apinturaéumretratovívidodesuasensaçãodeabandonomaterno.nacama,amãemorta,comorostototalmentecobertoporumlençoldáàluzumbebê.Sobreacama,naparede,estáoretratodaVirgemdosLamentosemprantos.Fridapareceestarnascendoporsisó,lutandopelasuasobrevivência,sempodercontarcomapresençavivadamãe.Aocomentarestequadro,aartistaafirmouqueestaeraaformacomoimaginouseunasci-mento,oquesugerequeseuprofundosentimentodedesamparoesolidãocomeçoumuitoprecocementeemsuavida.

Oquadro:Minha ama e eu(fig.2)retrataumgrausimilardedistanciamentoentreacuidadoraeobebê.Afaltadevinculaçãoemocionalentreaama-de-leiteíndiaeacriançaéevidente.Emcontrastecomaclássicaimagemdeumbebêedeumamãe,queexpressariacarinhoeintimidade,estequadromostraooposto.nãohácontatodeolhoentreababáeFrida,nemumsentimentodeapego.Afacedababáestácobertaporumamáscara,oleitecaisobreoslábiosdobebê,masestenãoosugaepareceabsortoemsimesmo.Pode-severclaramenteosentimentodeinadequaçãonosprimeiroscuidados,queseinscreveramnasprincipaisestruturasdesuapersonalidade.

OsquadrossugeremquehouveumafalhanafunçãodamãedeFridacomo“escudoprotetor”,ocasionandooqueMasudKhan(1963/1974)considerou“traumacumulativo”.Olutomalelaboradodamãepeloirmãomorto,odesencontroentremãeefilhanasetapasiniciaisprimordiaisdodesenvolvimentodacriança,onascimentoprecocedairmã,funcio-naramcomotraumascumulativos,aosquaissesomaramoutrosqueforamamplificandoestasfendasprimordiais.

OpaideFrida,GuilhermeKahlo,teveumaprofundainfluênciaemsuavidaenodesenvolvimentodesuasaptidõesartísticas.Erafotógrafo,epiléptico,ecompartilhavacomelaseuhobby,apintura.Suapresençaemsuavidapossibilitou-lhe introjetarumobjetobom,acolhedor,uminterlocutorqueerabuscadonastelasenastintascomqueexpressavaseussentimentos.

Fig.1–Meu nascimentoFig.2–Minha ama e eu

3 As figuras expostas, originalmente coloridas, fazem parte do texto original premiado. Foram retiradas daInternet,pelaautora,etêmoobjetivodeilustrar,semcomprometimentodereproduziraobradeFridaKahlo.n.E.

FridaKahlo:apinturacomoprocessodebuscadesimesmoGinaKhafifLevinzon 51

Um corpo engessado: a imaginação e a pintura como janelas da psique

UmaexperiênciaquemarcouFridaKahlofoiapoliomielitequesofreuaosseisanosdeidade.Padeceucomadoençaecomointensivotratamentodereabilitaçãoquetevequerealizar.nessaépoca,Fridacriouumduploimagináriodesimesma,umameninaalegrecomquemadoravadançar,comoummeiodelidarcomosintensossentimentosdevazioesolidão.Recorria,dessaforma,àimagemdeumcorpointactoqueatranquilizavaquantoaomedodenãovoltaraandarouaindaquantoaomedodemorrer.

noseudiário,Fridadescreveessaexperiência:

Eudeviater6anosquandoviviintensamenteaamizadeimagináriacomumameninamaisoumenosdamesmaidade.najaneladaquelequeeraentãomeuquarto,equedavaparaaruaAl-lende,sobreumdosprimeirosvidrosdajanela.Ecomumdedoeudesenheiuma“porta”(…)Poressa“porta”eusaíanaminhaimaginaçãocomumagrandealegriaeurgência.AtravessavatodoocampoqueseviaatéchegaraumaleiteriaquesechamavaPInZÓn(…)Pelo“O”emPInZÓneuentravaedescia intempestivamenteao interior da terra,ondeminhaamigaimaginária“meesperavasempre”.nãomelembrodesuaimagemenemdesuacor.Masseiqueeraalegre.Elariamuito.Semsons.Eraágiledançavacomosenãotivessepesoalgum.Euaseguiaemtodososseusmovimentoseenquantoeladançavaeulhecontavameusproblemassecretos.Quais?nãomelembro.Maselasabiapelaminhavoztodasasminhascoisas(…)Quandoeuvoltavaparaajanelaentravapelamesmaportadesenhadanovidro.Quando?Porquantotempoficavacomela?nãosei.Podiatersidoumsegundooumilharesdeanos(…)Euerafeliz.Apagavaa“porta”comamãoe“desaparecia”.Corriacommeu“segredo”eminhaalegriaatéoúltimocantodopátiodeminhacasa,esemprenomesmolugar,debaixodeumcedro,gritavaeriaassombradadeestarsócomminhagrandefelicidadeealembrançatãovivadamenina.Passaram-se34anosdesdequeviviessaamizademágicaecadavezquearecordoelaseavivaecrescemaisemaisdentrodemeumundo.PInZÓn1950.(Kahlo,2005,p.82)

EssedepoimentoemocionantemostracomoFridasonhavacomoencontrodeuminterlocutorvivo,criativo,comquempudessecompartilharsuasfantasias,suasdores,seusmedoseanseios.Eraapartedesimesmaqueaajudariaasobreviveraummomentodeangústia,medoesolidão.Setivessepodidocontarmaisprofundamentecomapresençamaterna, este personagem seria amãe viva e continente, diferentementedamãemortapresentenosseusquadrossobrenascimentoeamamentação.Éinteressanteobservarqueseimaginava“contandoseussegredos”,comoseestivesseinstaurandoumprocessodeau-toanálise,“criandoumdivãparasiprópria”…

Aos 18 anos, Frida sofreu um acidente: o bondeno qual estava colidiu comumtrem.Elasofreumuitosferimentosgraves,quelhedeixaramsequelasportodaavidaefoiobrigadaapermanecernacama,imobilizadapormaisdetrêsmeses.Para“vencerotédio”,começouadesenhar.AcamafoicobertaporumdosselondefoifixadoumespelhoquepermitiaaFridasevere,destamaneira,tornar-seseuprópriomodelo.Elacomeçouentãoalongasériedeautorretratos,queconstituemapartemaissignificativaeimpressionantedesuaobra.

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Diego Rivera: paixão e sofrimento

OcasamentodeFridacomDiegoRivera,pintormexicanovinteanosmaisvelhoqueela,foimarcadopormuitapaixãoassimcomoporconstantessentimentosdetraiçãoeabandono.FridaeDiegotinhammuitoemcomum:oamorpelapintura,osideaismexica-nistasecomunistas,acuriosidadeeointeressepelavida.Seurelacionamento,noentanto,foimarcadopelainfidelidadeconstantedeDiego,quechegouinclusiveaterumcasocomairmãmaisnovadeFrida.noquadroO coração partido(fig.3),Fridaretrataumenormecoraçãopartidoaosseuspés,simbolizandoaintensidadedesuadorpeloromancedoma-ridocomairmã.Afaltademãosexpressaseussentimentosdeincapacidadeedesespero.

OcasamentodeFridaeDiegoeraumasucessãodeaproximaçõeseseparações,mo-mentosdegrandeternuraedeintensador,raiva,dependência,construçãoedestruição.Atéofinaldesuavida,Fridaoamoucomobsessão,esofreucomigualmagnitude.Assimcomoomarido,Fridatambémteverelacionamentosextraconjugais,comhomensemu-lheres.Diego,noentanto,eraopivôdesuaexistência,seupontodereferência.Amaioriadeseusquadrosretrataoquesentiaporele,especialmenteseulugarcentralemsuamente(fig.4,5,6,7).

Emseudiário,Fridaescrevetudooqueelerepresentaparaela:“princípio,constru-tor,minhacriança,meunamorado,pintor,amante,“meumarido”,minhamãe,meupai,meufilho,=amim,Universodiversidadenaunidade”(Kahlo,2005,p.60).Aomesmotempo,háumgrandelamento:“DIEGO,estousó”(p.79),ouaindaummomentodedurareflexão:“PorqueeuochamomeuDiego?Elenuncafoiouserámeu.Elepertenceaelemesmo”(p.61).

DequenaturezaeraaforçamotivadoraqueimpeliaFridaemdireçãoaDiego,ape-sardetantosofrimentonarelação?Estadosdepaixãosãoinerentesàvidahumana,esãoexpressosemversoeprosapelospoetas,artistas,cantores.Representamocombustívelvivoquepreencheaspessoas.FridapareciabuscardesesperadamenteemDiegoalgoquelheeraimprescindível,equeelaconstantementesentialheescapar.

Bollas(1992)serefereaoprimeiroobjetomaternocomoumobjeto transformacio-nal,oqualéidentificadopelobebêcomooprocessodaalteraçãodaexperiênciadoself.Estaidentificaçãosurgedeummododerelaçãosimbiótico,pormeiodoqualamãeajudaaintegraroserdobebê,dopontodevistainstintivo,cognitivo,afetivo,ambiental.Certasformasdeprocuradeobjetonavidaadultavisamencontraresseprocessodetransforma-çãodosprimeirostemposdevida,experimentadonocontatocomamãe.Podemosimagi-narqueFridabuscavaemDiegoestasqualidadestransformadorasdesimesma,eoqueserepetiainexoravelmenteeraofracassodestaprocura.Amãeinacessível,queelaprocuravaalcançar, era identificadaemDiego,quepareciaa sereiaencantadoraqueescorregavaedesapareciaacadamomento.Acadaseparação,Fridasedeprimiaseveramente,erecorriaaoálcooldeformaexcessiva.Ospensamentossobresuicídiotambémeramrecorrentes,eapareciamemváriasdesuaspinturas(fig.8).Elesretratavamseudesesperodiantedadecepçãoqueaassolava…

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Fig.3–Recordação ou o coraçãoFig.4–Frida e Diego Rivera

Fig.5–O abraço amoroso entre o universo, a terra, México, eu, Diego e o señor Xolot

Fig.6–Diego em meuspensamentosFig.7–Diego e eu

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Fig.8–Pensando na morte

Dores físicas e psíquicas

AexperiênciadadorcaracterizoudemodomarcanteavidaeaobradeFridaKahlo.Desdeoacidentecomoônibus,elapassoupor39cirurgiasparacorrigirsuacolunaesuapernadireita.Muitasdessasoperaçõeseramvoluntárias,eparecemtercoincididocomaépocanaqualDiegoestavacomoutrasmulheres.Emquasetodassuaspinturashárefe-rênciasàsdores,físicasepsíquicas.Sãotraçosdesangue,flechasqueindicamoslugaresdedor,cicatrizes,lágrimas,pedaçosdesimesmasoltos,orostoabsortonador(fig.9,10).

As cirurgias, que ocorriamprincipalmente em épocas emque estava afastada deDiego,representavamumgritoporatenção,ealiviavamseussentimentosdedesconexão.Umdeseusmédicosafirmouquesuasaúdedependiadeseussentimentosporseumarido.Aosesentirabandonadaporeleounasuaausência,ascrisesocorriam.Quandoelevoltavaaestaraoseulado,elaserecuperava.

AhistóriadevidadeFrida,eespecialmente suaspinturas,nos fazempensarquenãohouveumambientesuficientementebomnosprimórdiosdesuavida,paraqueelapudesseterdesenvolvidoumaintegraçãopsique-somaadequada(Winnicott,1949/1988).Quandoissonãoocorre,obebêprecisadesenvolverumacapacidadeprecocedecuidardesimesmo,substituindoamãeetornando-adesnecessária.Oresultadoéumamente-psiquepatológica.Há, no entanto, um congelamentoda situação traumática, e a esperança deencontraroutra pessoaqueapresenteomeioambientesuficientemente bom.Oretornoaopsique-somadependenteéopontodepartidaparaaconquistadeumlugarparaexistir.

PodemosconjeturarqueDiegorepresentavaparaFridaoobjetoemquemeladepo-sitavaapossibilidadedevoltaraoestadodedependênciainicial,docuidadomaternobási-co.Elasentiaospedaçosdeseucorposoltos,àesperadecondiçõesquelhepossibilitassemfazeraelaboração imaginativadesuaspartescorporais.Apólioeoacidentecomoônibusagravaramenormemente essas fendas e as cirurgias representavamapelosdesesperadosporessacosturapsíquica,emboraissofossevividodemodoconcreto.

noquadroDuas Fridas(fig.11),podemosverasduasrepresentaçõesdesimesmasedaremasmãos,talvezexpressandoseudesejodeconstruirumaponteentreasdiferençasquesentiaexistirememtornodesuaidentidadeculturaleafetiva.AFridaíndiaàdireita

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temumcoraçãointacto,cheio,equebombasangue.AFrida“colonialeuropeia”àesquerdaéincapazdedeterahemorragiadeseucoração.AopintaressequadroFridatentavaencon-trarumaformadepoderintegrarpartesdesimesmacindidas,comoobjetivodelidarcomador.EssequadrofoicriadoquandoDiegoiniciouoprocessodedivórcio,oquegerounelamuitotumultoedesespero.Eraummomentoemqueestavaparticularmentevulnerávelàfragmentaçãodeseuself,esevêclaramentequeaFridaTehuanaeraaquelaquepareciaestaràpartedetodoessesofrimento,comoseencarnasseumaespéciedemantodeinvul-nerabilidade.Adualidadepresentenos remeteà suaamiga imagináriada infância,quedançavaalegrementeenquantoFridasofriacomasconsequênciasdadoençadepólio.

Fridasofreuváriosabortos,quefrustraramseugrandedesejodesermãe.Osenti-mentodeestaraospedaçospodeservistodemodoclaronoseuquadroHenry Ford Hos-pital(1932)(fig.12),noqualseretratanua,deitadanumacamaquepareceestarflutuandonoar.Umalágrimacaideseuolho,esuamãoestáconectadacomseisimagens,querepre-sentamfragmentosdeassociaçõesesentimentosquepairamemsuamenteemseguidaaoaborto.Asfitasqueligamasfigurasparecemcordõesumbilicais,comafunçãodemantê-laatadaàssuasdiversaspartesedeintegrarseussentimentosdolorosos.

Ofracassodaelaboraçãoimaginativadaspartesdocorpoedeseuself,assimcomodeformaçãodeumsercoeso,podeservistonapinturadesesperadadoseudiário:Eu sou a desintegração(fig.13)naqualelaaparececomoumamarionetesemvida,emcimadeumacolunaclássica.Partesdelavãocaindo,umolho,umamão,umacabeça,retratandoseuintensosentimentodedesintegração…

Fig.9–Sem esperançaFig.10–Árvore da Esperança, mantém-te firme

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Fig.11–Duas FridasFig.12–Henry Ford Hospital

Fig.13–Eu sou a desintegração

as falhas na identidade feminina

AsexualidadedeFridatinhaumpapelcentralemsuavida,assimcomoemsuaobra.Há,namaioriadeseusquadros,umclimasensualquecoexisteaoladodosofrimentoporsuasferidas.Asreferênciasaoselementos,masculinosefemininos,oscorposdesnudos,asimagenssobreconcepção,mostramumaatmosferadevigoremagnetismo.AambivalênciadeFridaemrelaçãoàidentidadefemininajápodiaservistaquandoadolescente,aoseves-tirdehomem(fig.14).Talvezsentissequesepudessesubstituiroirmãomortoquenasceulogoantesdela,ocupariaumlugarespecialnocoraçãodospais.

noquadroO veadinho ferido(fig15),elaserepresentanocorpodeumveadomacho,comgalhosnacabeça.Oseucorpoestáperfuradoporflechasquelocalizamasmúltiplasferidasfísicaseafetivas,eseurostoexpressaprofundador.Arenúnciaaogênerofemininopareciaassociadaaumabuscademaisforçasparalidarcomasdificuldades.Comorespos-taaodesesperoqueasinfidelidadesdomaridoprovocavamnela,Fridacortouseuscabelos

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esevestiudehomem.Pedaçosdecabelosãopintadosportodaatela,mostrandoseuódioeosentimentodeumafeminilidadedespedaçada(fig.16).Kettenmann(2006)sugerequeasdiversasrepresentaçõesdocabeloemseusquadrosmostramasflutuaçõesnaaceitaçãoourepulsaemsermulher.

Aurgênciaporumcontatoíntimoesintônicoparecia,emalgunsmomentos,abar-carosdoisgênerosnosobjetosamorososdeFrida(fig.17).nofundo,elaprocuravaasimesmanapeledasmulherescomquemserelacionou,buscandorestauraraspectosnarcí-sicosdanificadosemfunçãodeumamaternagemdeficienteedeseguidasdecepçõesnosrelacionamentosobjetais.ComoafirmaZimerman(1998),aprocurapelooutrodomesmosexopodeindicarumdistúrbiodonarcisismo,umabuscapeloseuduplo,comoumespe-lhoousuporteidentificatórioqueindicaqueapessoaexistedefato…

Fig.14–Frida vestida de homemFig.15–O veadinho ferido

Fig.16–Autorretrato comcabelo cortadoFig.17–Dois nus na floresta

autorretratos: espelhos do self

Dopontodevistapsicanalítico,oquemaischamaaatençãonaobradeFridaKahloéapredominânciaabsolutadeautorretratos.Seutemacentraleraelamesmaeseexpunhademodoprofundoedramáticonosretratosquefaziadesi.Eladiziaquenãopintavasím-

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bolos,pintavasuaprópriarealidade.Seusautorretratostinhamumafunçãoprimordialemsuavida:adefuncionarcomoumespelhovivodesuaalma.

Winnicott (1971/1975a) afirma que no desenvolvimento emocional individual, oprecursor do espelho é o rosto da mãe.Estas sãocondiçõesadequadasparaa integraçãodo bebê e suamaturação, e quandonão são encontradas repercutem emdistúrbios nodesenvolvimento.Quando,poralgummotivo,amãenãotemapossibilidadedefuncionarcomoesseespelho especial,eobebênãovêasimesmonorostodamãe,masumolharfixo,distante,ouumapreocupaçãodestaconsigomesma,elerecorreadefesasquelhepermitamsobrevivereescaparaosentimentodecaospsíquico.

Fridacriavapormeiodeseusautorretratosumespelhopróprio,umolharquetinhaafunçãodeautossustentaçãoereconhecimentodesimesma.ComomostraDoin(1985),afunçãoespecularhumanapermiteoconhecimentodesimesmo,aaquisiçãoeconsolida-çãodaidentidadeeaintegraçãomental,porintermédiodeoutrapessoa.

nosautorretratosdeFridapodemosnotarqueelanãoestáolhandoparanós,masparasimesmaeparasuasdores.Tentavacomissorestauraraimagemdesimesma,quemaispareciaumespelhoquebrado,econstruíaailusãodequepodiaseconverternoespe-lhomaternoquenuncateve.Elacriouumduploimagináriodesimesma,quepareciaterfunçõescorretivasparaadepressãoeparaasustentaçãodesimesma.

a arte como forma de cura

AcaracterísticamaismarcantedaobradeFridaKahloésuanecessidadevitaldeex-pressarestadosemocionais.Mesmoquandopessoaslheencomendavamquadros,elanãoproduzianecessariamenteoque lhehavia sidopedido,masaproveitavaaoportunidadeparatransmitirseudesesperopessoal.noquadroO suicídio de Dorothy Hale(fig.18),porexemplo,FridatransformouahomenagemqueumaamigafariaàfalecidaDorothyHale,nadescriçãominuciosadeseusuicídio,numaépocaemqueaprópriaFridaseviaàsvoltascom intensos sentimentosdepressivos.Eladiziaquenão faziaarte, apenaspintava seustemasprivados.Haviaquasequeumacompulsãoausaroespaçodatelacomojaneladapsique,numabuscadesesperadaporumsentimentodeintegração.

Maisdoqueumprocessodesublimação,noqualaspulsõesinstintivassãodesviadasdesuasmetasparaobjetivossocialmentevalorizados,apinturadeFridaparecerepresentarummovimentodramáticoerepetido,visandocontençãoeintegraçãopsíquica.

PodemosdizerqueaarteparaFridaKahloseconverteuemumabuscadecura,aolhepermitirrepresentaraquiloqueeramaisgenuínodentrodesi.Seutrabalhoartísticolhepossibilitouexpressareelaborarpensamentoseemoçõesprofundas.Issopodeservisto,porexemplo,napinturaemseudiário:Pés para que te quero, se tenho asas para voar(fig.19),porocasiãodaamputaçãodeseupé,quandoestavatomadaporterríveissentimentosdeperdadepartesdesimesma.Defato,pormeiodeseusquadros,Fridadesenvolveuasasimagináriasquelhepermitiamsobreviverdiantedeintensosestadosdedor.Seusofrimen-tosetornoumaissuportávelaopintarsuaprópriahistória.

FridaKahlo:apinturacomoprocessodebuscadesimesmoGinaKhafifLevinzon 59

Fig.18–O suicídio de DorothyHaleFig.19– Pés para que te quero se tenho asas para voar

ParaGoldsmith(2006),pintarconstituiumcampopsicossomáticounitário,incluin-dooartista,atelaeomeio.Osritmosdocorpodopintor,suaspulsaçõeseemoçõespreen-chematela.Aoretratarsuasimagenspsíquicas,Fridaeraumadançarinaemfrenteaumatela,comosuaamigaimagináriaaosseisanosdeidade.

SegundoWinnicott(1971/1975b),oeunãopodeserencontradoapenasnoqueéconstruídocomprodutosdocorpooudamente,pormaisvaliosasqueestasconstruçõespossamseremtermosdebelezaouarte.Abuscadoeudependedeumarelaçãocomoam-bientequepropicieodesenvolvimentomaturacionalecriativodosujeito.Paraesseautor,acriatividaderelaciona-secomoestarvivo,comoreal,pessoaleoriginaldecadaum.

EncontramosnaobradeFridaKahlo,ameuver,umaforçaimperiosaqueaimpe-liaadesenvolverumsentimentodeexistênciaprópria,quelhepermitissesuprirburacospsíquicoscausadoresdemuitador.Suaarte lheserviacomoponteparaasobrevivênciapsíquica.Aoladodisso,contavacomumdesejodevivereumacriatividadequepodiaservistanascoresvibrantesdesuasobrasenohumoreironiadesuascartas,assimcomoemseusmomentosdeirreverência.nessesmovimentospode-seidentificarovivercriativoeúnicoquecaracterizasuavidaeproduçãoartística,equenosimpressionapeloseuimpactoafetivo.

Suaspalavrasfalamporsi:

nãomepermitirampreencherosdesejosqueamaioriadaspessoasconsideranormal,enadamepareceumaisnaturaldoquepintaroquenãofoipreenchido(…)Minhaspinturassão(…)amaisfrancaexpressãodemimmesma,semlevaremconsideraçãojulgamentosoupreconceitosdequemquerqueseja(…)Muitasvidasnãoseriamsuficientesparapintardaformacomoeudesejariaetudoqueeugostaria.(Herrera,2002,p.317)

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Frida Kahlo: La pintura como proceso de búsqueda de sí misma.

Resumen: A partir del estudio de la vida y obra de la pintora Frida Kahlo, este trabajo propone reflexiones sobre la naturaleza de las fuerzas que la estimulaban a la artista a retratar sus estados emocionales de manera punzante. Las fallas en maternagem y sus consecuencias son examinadas en la relación que Frida tenía con su cu-erpo, sus relaciones afectivas y su feminidad. Sus autorretratos creaban una función especular restituidora, y su arte denotaba un intenso proceso de búsqueda de integración y de encuentro con ella misma.Palabras clave: Frida Kahlo; el arte como cura; compulsión; espejo.

Frida: Kahlo: the painting as a process of searching herself

Abstract: This paper is based on the study of Frida Kahlo´s life and work, and it takes into consideration the nature of the strengths that impelled the artist to depict her emotional inner states in a touching form. The failure in her maternal supply and its consequences are discussed considering Frida’s connection with her body, her relationships and her femininity. Her self-portraits created a mirror´s repairing function, and her art showed a strong process of searching integration and contact with herself.Keywords: Frida Kahlo; the art as a cure process; compulsion; mirror.

Referências

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Homossexualidade:formulaçõespsicanalíticasatuais.PortoAlegre:ArtesMédicas.

[Recebidoem4.5.2009,aceitoem11.5.2009]

GinaKhafifLevinzon[SociedadeBrasileiradePsicanálisedeSãoPauloSBPSP]RuaArturdeAzevedo,243,CerqueiraCesar05404-010SãoPaulo,[email protected]