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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras: Doutorado em Ciência da Literatura Teoria Literária PENAS E PINCEIS: RETRATOS DE FRIDA KAHLO por FRANCINE PEREIRA FONTAINHA DE CARVALHO Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras como requisito ao título de doutor em Ciência da Literatura. Orientadora: Professora Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva. UFRJ 2014/1

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Page 1: Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras ... · Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo / Francine Pereira Fontainha de Carvalho. – Rio de Janeiro: UFRJ/PPGCL,

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Programa de Pós-Graduação em Letras:

Doutorado em Ciência da Literatura – Teoria Literária

PENAS E PINCEIS: RETRATOS DE FRIDA KAHLO

por

FRANCINE PEREIRA FONTAINHA DE CARVALHO

Tese de doutorado apresentada

ao Programa de Pós-Graduação

em Letras como requisito ao

título de doutor em Ciência da

Literatura.

Orientadora: Professora Doutora

Flávia Trocoli Xavier da Silva.

UFRJ

2014/1

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Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo

FRANCINE PEREIRA FONTAINHA DE CARVALHO

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura,

Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura.

Aprovada por:

_______________________________________________________

Presidente, Prof.ª Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva - UFRJ

___________________________________________________

Prof.ª Doutora Ana Alencar –UFRJ

___________________________________________________

Prof.ª Doutora Aline Magalhães Pinto- PUC

___________________________________________________

Prof. Doutor Víctor Manoel Lemos Ramos -UFRJ

___________________________________________________

Prof. Doutor Paulo Sérgio de Souza Júnior -UNICAMP

Suplentes:

______________________________________________

Prof.ª Doutora Danielle dos Santos Corpas - UFRJ

______________________________________________

Prof.ª Doutora Daniela Samira da Cruz Barros UFRRJ-

Rio de Janeiro

Agosto de 2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Carvalho, Francine Pereira Fontainha de.

Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo / Francine Pereira Fontainha de Carvalho.

– Rio de Janeiro: UFRJ/PPGCL, 2014.

XI, 115 f.: il.

Orientador(a): Professora Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva.

Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ/

PPGCL/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2014.

Referências Bibliográficas: f. 116 - 120

1. Ciência da Literatura. 2. Teoria da Literatura. 3. Letras - Teses.

I. Silva, Flávia Trocoli Xavier da. (Orientadora). II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Instituto de Pós-Graduação em Ciência da Literatura/PPGCL. III. Título.

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Às mulheres marcantes da minha vida: minha mãe, às irmãs Cristiane e Gabrielle, à querida

avó Jacira, que mesmo com tantos percalços nunca perdeu a alegria de viver e, precocemente,

me ensinou a lição da confiança, do destemor e a aceitação dos desafios. À querida madrinha,

tia Lilinha, que muito cedo partiu, deixando em nossas memórias a lembrança de uma pessoa

alegre e feliz - pelo simples fato de estar viva - e que em meio aos inúmeros atropelos que a

vida impôs, nunca abandonou o sorriso sincero e entusiasmado. Descanse em paz. À todas as

mulheres dilaceradas, que todos os dias encontram forças e formas de sobrevivência, para não

desistirem da vida.

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AGRADECIMENTOS

A presente tese de doutorado, Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo, foi construída a partir do

interesse no diário íntimo e nas cartas da referida pintora. Para além das telas, que despertam em mim

profundo interesse e admiração, as missivas e o caderno íntimo, desvelaram outros retratos da artista,

em que a pena é utilizada para construir a representação, tanto de si mesma, quanto da dor que se fez

presente em grande parte da existência. Nessa perspectiva, os desdobramentos dos dilaceramentos,

retratados com as palavras, trouxeram encanto e impulsionaram a pesquisa.

À família e a Deus, força motriz presente em todos os momentos da existência.

À Universidade Federal do Rio de Janeiro; À Coordenação do Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da UFRJ pelo empenho na execução e excelência do presente Doutorado em

Ciência da Literatura. À Coordenadora do referido Programa, Professora Doutora Danielle dos Santos

Corpas, pela disponibilidade e atenção dispensadas.

Aos Professores Alberto Pucheu Neto, André Luiz de Lima Bueno e Ronaldo Lima Lins, que

representaram mais que docentes, verdadeiras fontes de conhecimento e descobertas.

À Professora Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva, por aceitar a orientação com a pesquisa em

transcurso, agradeço a paciência e a disponibilidade, principalmente, a generosidade em apontar

caminhos em meio aos descaminhos que a investigação encontrava-se. Agradeço, outrossim, a

oportunidade em poder conviver, ainda que por pouco tempo, com uma professora séria e competente,

compromissada com o trabalho, a pesquisa e os discentes. Agradeço, finalmente, por transmitir-me a

importância da pesquisa acadêmica e o grau de responsabilidade que deve-se ter com os compromissos

assumidos.

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A linguagem e a vida são uma coisa só.

Quem não fizer do idioma o espelho de sua

personalidade não vive; e como a vida é uma

corrente contínua, a linguagem também deve

evoluir constantemente. Isto significa que como

escritor devo me prestar contas de cada palavra

e considerar cada palavra o tempo necessário

até ela ser novamente vida. O idioma é a única

porta para o infinito, mas infelizmente está

oculto sob montanha de cinzas.

(Guimarães Rosa)

Uma vez que meus temas sempre foram

minhas sensações, meus estados de espírito e as

reações profundas que a vida tem causado

dentro de mim, muitas vezes materializei tudo

isto em retratos de mim mesma, que eram a

coisa mais sincera e real que eu podia fazer

para expressar o que sentia a meu respeito e a

respeito do que eu tinha diante de mim.

(Frida Kahlo)

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RESUMO

Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo

FRANCINE PEREIRA FONTAINHA DE CARVALHO

Orientadora: Professora Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte

dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura.

A presente tese, intitulada: Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo, propõe um estudo

acerca da artista mexicana Frida Kahlo a partir de suas cartas e diários e pretende traçar a

trajetória da dor e do dilaceramento presentes em sua vida, portanto, ganharão relevo os

escritos em que a expressão e o percurso do sofrimento estão mais visceralmente expressos e

transmitidos. A principal e pulsante questão que este trabalho propõe desvendar é: Por que e

para quem se escreve? Para a artista, a escrita funciona como um contradepressor, por permitir

o registro dos sentimentos e a comunicação com o mundo exterior, nos longos exílios e

prolongadas internações. Nesse sentido, a pintura e a escrita - por nós privilegiada na pesquisa -

desenvolvem papel essencial na existência de Frida Kahlo por proporcionarem mecanismos de

sobrevivência e convivência com a dor.

Palavras-chave: Dor. Dilaceramento. Diário. Cartas. Retratos.

Rio de Janeiro

Agosto de 2014

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Abstract

Feathers and paintbrushes: pictures of Frida Kahlo

Francine Pereira Fontainha de Carvalho

Adviser: Professor Dr. Flávia Trocoli Xavier da Silva

Abstract of the PhD thesis submitted in post - graduate program in Science literature,

Language Art College, Federal University of Rio de janeiro - UFRJ, as part of the needed

requirements to the achievement of the title in Dr. in Science literature.

This thesis, entitled: Feathers and paintbrushes: pictures of Frida Kahlo, proposes a

study about the Mexican artist from her letters and diaries and intend to draw the trajectory of

pain and tear present in her life, therefore, they will win flash in writings in which expression

and the path of suffering are more viscerally expressed and transmitted. The main and

pulsating question in this work proposes unveil is: why and for who writes? For the artist, the

writing works as a contradepressor, to allow the register of feelings and communication with

the outside world, in long exiles and extended hospitalizations. In this way, the painting and

the writing - privileged by us in the research - develop an essential role in Frida Kahlo

existence by providing survival mechanisms and acquaintanceship with the pain.

Key - words: Pain. Tear. Diary. Letters. Pictures

Rio de Janeiro

August 2014

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RESUMEN

Plumas y pinceles: Retratos de Frida Kahlo

Francine Pereira Fontainha de Carvalho

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Flávia Trocoli Xavier da Silva

Resumen de la Tesis de Doctorado presentada al Programa de Posgrado en Ciencias de la

Literatura, Facultad de Letras, de la Universidad Federal de Rio de Janeiro – UFRJ, como parte

de los requisitos necesarios para la obtención del título de Doctor en Ciencias de La Literatura

La presente tesis titulada: Plumas y pinceles: Retratos de Frida Kahlo, sugiere un estudio

sobre la artista mexicana Frida Kahlo desde sus cartas y diarios, y pretende trazar la trayectoria

del dolor y de los destrozos presentes en su vida, por lo tanto recibirán relieve los escritos en

que la expresión y el recorrido del sufrimiento están más visceralmente expresados y

transmitidos. La principal y pulsante cuestión que este trabajo propone es: ¿Por qué y para qué

se escribe? Para la artista, la escrita funciona como un contra-depresor, por permitir el registro

de los sentimientos y a comunicación con el mundo exterior, en los largos exilios y prolongadas

internaciones. En este sentido, la pintura y la escritura – privilegiada por nosotros en el estudio

– tiene papel esencial en la existencia de Frida Kahlo por proporcionarle mecanismos de

supervivencia y convivencia con el dolor.

Palabras claves: Dolor. Destrozos. Diario. Tarjetas. Retratos.

Rio de Janeiro

Agosto de 2014

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SUMÁRIO

1 . INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11

2. DILACERAMENTOS .......................................................................................................... 15

2.1. A CONCHA E A OSTRA .............................................................................................. 33

3. O RETRATO DE UM DOS BONDES ................................................................................. 48

3. 1. O MAIOR DOS BONDES ........................................................................................... 58

4. SOBRE A (DES)NECESSIDADE DA ESCRITA ................................................................ 77

4.1. A (DES)UNIÃO FAMILIAR .......................................................................................... 93

4.2. MÃE MARTE OU A MÁSCARA DE FERRO .............................................................. 97

5. CONCLUSÃO: ..................................................................................................................... 112

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: .................................................................................... 116

ANEXOS .................................................................................................................................. 121

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1 . INTRODUÇÃO

A presente tese, intitulada: Penas e pinceis: retratos de Frida Kahlo, propõe um estudo

acerca da artista mexicana Frida Kahlo, a partir de suas cartas e diários e pretende traçar a

trajetória da dor e do dilaceramento presentes em sua vida. A principal e pulsante questão que

este trabalho propõe desvendar é: Por que e para quem se escreve? Fornecer pistas e respostas

sobre essa complexa interrogação será, portanto, o principal objetivo da tese. De acordo com os

questionamentos efetivados, ressalta-se que o lembrar será um conceito analisado e discutido

ao longo da nossa investigação.

Ao deter-me nas correspondências, escritas entre os anos de 1924 até 1948,1 pude

observar a necessidade e a importância que as cartas ocuparam na vida de Frida, tal como o

diário produzido entre os anos de 1944 e 1954,2 com pena e tinta, em uma profusão de pinturas

e textos, que desvelam e identificam sua vida - imensamente impregnada pela pintura e pela

escrita.

Considerando que o locus principal do presente trabalho centra-se nas produções

escritas da artista, privilegiaremos, no referido estudo, as correspondências escritas ao longo

dos anos, com trechos do diário e telas representativas da vida da artista, segundo seus próprios

critérios. Como o tema escolhido orbita em torno da trajetória da dor, ganharão relevo os

1 Segundo Marta Zamora, no livro Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo (2006): “As cartas de Frida Kahlo, aqui

compiladas pela primeira vez, representam uma profusão de informações sobre a vida conturbada e trágica dessa

grande pintora mexicana. Em mais de oitenta cartas a amigos, familiares, inimigos e amantes, Frida revela um

humor negro, uma impressionante intensidade e um genuíno calor humano”. 2 Segundo Carlos Fuentes, na obra El Diário de Frida Kahlo, un íntimo autorretrato (2010, p. 292; tradução livre

minha): “A piora física de Frida Kahlo torna-se aguda durante os anos restantes de sua vida. Dessa maneira, recebe

banhos na coluna, utiliza diversos coletes e é submetida a numerosas e complicadas operações na coluna e em sua

perna durante a década seguinte. Frida Kahlo inicia a escrita do seu Diário, que continuará até o dia de sua morte”.

No original em espanhol: “El empeoramiento físico de Frida Kahlo se agudiza durante los años restantes de su

vida. De esta manera, recibe baños en la espalda, debe utilizar diversos corsés y se somete a numerosas y

complicadas operaciones en la columna y en la pierna durante la década siguiente. Frida Kahlo inicia la escritura

de su Diário, que continuará hasta el dia de su muerte”.

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escritos em que a expressão e o percurso do sofrimento estão mais visceralmente expressos e

transmitidos. Para tanto, as indagações sobre o porquê da escrita, seja ela em diários, telas ou

cartas ganhará maior destaque na medida em que o acesso a tais materiais for realizado, uma

vez que os mesmos apresentam um sem número de questões a serem problematizadas: Para

quem, de fato, Frida escreve? Por que ela endereça inúmeras cartas para as mesmas pessoas?

Por que a artista quase nunca responde às cartas recebidas? Por que, em contrapartida, ao

escrever suas correspondências, espera rapidamente a resposta? Por que, mesmo quando

escreve no diário, escreve cartas (algumas, de amor a Diego, com até oito páginas de

extensão)? E por fim, outra importante questão: Como Frida realiza o trabalho de escavação da

memória, já que registra fatos importantes sobre sua vida, desde a infância?

Assim como as telas, pintadas posteriormente aos eventos vividos, muitos dos registros

feitos no diário íntimo, assim como nas cartas, remontam a um passado longínquo. A distância

em relação aos eventos transcorridos remete-nos ao papel da memória na escrita. A fim de

corroborar as considerações a respeito da (re)leitura dos eventos passados, mostram-se

eficientes as palavras de Susan Sontag, na obra Sob o Signo de Saturno, ao analisar o

comportamento de Walter Benjamin:

“O grau de compreensão está na proporção exata da presença da morte

e do poder de deterioração”, Benjamin escreve na sua obra sobre o

Trauerspiel. É isto que permite encontrar o sentido da própria vida, nos

“eventos mortos do passado eufemisticamente conhecidos como

experiência”. Somente é possível ler o passado porque está morto

(SONTAG, 1986, p. 97).

O passado morto, traduzido através das rememorações pretéritas e o presente pulsante,

preenchido por dores lancinantes, são lidos por Frida nas longas páginas do diário – não um

diário cotidiano, em que os fatos comezinhos são escritos, mas antes um diário à maneira de um

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livro de memórias – lugar em que existem abundantes referências à sua infância, ao acidente, às

cirurgias realizadas e ao longo e conturbado relacionamento com Diego Rivera.

Há que se ressaltar a vertente assumidamente autobiográfica das obras da pintora. As

telas são seu retrato, exprimem seu estado de espírito, perturbações e inquietações. Em carta a

Carlos Chávez, datada de 1939, Frida explica como surgiu sua motivação:

Comecei a pintar há doze anos, quando me recuperava de um acidente

de automóvel que me manteve na cama por quase um ano. Em todos

esses anos, sempre trabalhei com o impulso espontâneo de meus

sentimentos. Nunca segui nenhuma escola nem a influência de

ninguém; nunca esperei nada de meu trabalho, a não ser a satisfação

que podia extrair dele, pelo próprio fato de pintar e de dizer o que eu

não conseguiria dizer de outra maneira (Apud ZAMORA, 2006, p. 105).

Tal qual a pintura, os escritos ora produzidos representam suas dores e sentimentos. A

artista escreve sobre si e para si. As cartas retratam sua vida e descrevem as inúmeras dores

pelas quais foi submetida desde a infância. Registram-se as doenças, o grave acidente, as

inúmeras cirurgias, os três abortos... esquadrinha, de variadas maneiras, o lugar da dor.

Diferente das outras pintoras, tanto pela originalidade quanto pela temática

autobiográfica presente nas telas, Frida produz – com exuberância e vastidão – um diário

singular. As cores, vibrantes e carregadas, acompanham a escrita da pintora da primeira à

última página, seja através da narrativa colorida, seja através dos inúmeros desenhos

produzidos ao longo do diário. Parece impossível para ela apartar a pintura de algo tão íntimo e

pessoal. Algumas páginas traduzem episódios de sua vida vista pelos olhos agudos do

distanciamento – como quando, já adulta, detém-se sobre a infância e reflete sobre o pai.

A escrita funciona para a artista como um contradepressor, por permitir o registro dos

sentimentos e a comunicação com o mundo exterior, nos longos exílios (a pintora permaneceu

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por largos estágios nos Estados Unidos da América3 e lá sofreu algumas intervenções

cirúrgicas) e prolongadas internações. De acordo com Sontag, (1986), na citada obra, Sob o

signo de Saturno, acerca da importância da criação, podemos transpor a assertiva acerca de

Benjamin, para a pintora, no que tange à escrita: “Pensar e escrever são fundamentalmente

questões de resistência”. A escrita desenvolve papel essencial na existência de Frida Kahlo por

proporcionar mecanismos de sobrevivência e convivência com a dor.

3 Segundo Kettenmann (2006, p. 93): “Em 1930 Diego Rivera (esposo de Frida Kahlo), recebe encomendas dos

EUA, e em novembro, o casal muda-se para São Francisco. Em julho de 1931, o casal regressa do México. Em

1932, o casal muda-se para Detroit, onde Rivera foi incumbido de outro trabalho. Em 1933, no mês de março, o

casal muda-se para Nova Iorque, onde Rivera vai pintar um mural no Rockefeller Center. Regressam ao México

no final desse mesmo ano. Em 1935, Frida Kahlo viaja para Nova Iorque com algumas amigas. Em 1936, a pintora

retorna ao México. Em setembro de 1940, Frida Kahlo viaja para São Francisco para ser sujeita a um tratamento

pelo Dr. Eloesser. Em 1946, viaja para Nova Iorque para ser operada à coluna. Regressa ao México no mesmo

ano”.

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2. DILACERAMENTOS

Eu sou a desintegração.

Frida Kahlo

Dilacerar: 1 .(v.t.) Rasgar, cortar em pedaços com violência; lacerar, retalhar, espedaçar

ou despedaçar. 2. (Figurado) Torturar ou atormentar; provocar aflição. (Etimologia do latim:

dilacerāre). Frida Khalo parece ter vivenciado todos os sentidos do termo dilacerar, inclusive

os conotativos. As obras por ela produzidas nos confrontam com o dilaceramento expresso

através das telas, cartas e textos registrados no Diário íntimo. Dificilmente perceberemos

alguém que tenha vivenciado com mais propriedade esse termo que a artista. Raramente,

encontraremos registros de pessoas que tenham feito a experiência do sofrimento, de forma tão

intensa, e tenha conseguido transpô-la, já que a experiência da dor, por vezes, cala, emudece.

Nesse sentido, nos deteremos nas palavras expostas por Fuentes, quando, ao analisar o

“sufrimiento” expresso na obra de Frida Kahlo, a partir da afirmativa de Virgínia Wolf, a qual

afirma que “a dor destrói a linguagem”4, impressiona-se com as produções da artista vindas da

e sobre a dor. A nós, nos parece que o dilaceramento é fator motriz em suas produções. É o

que impulsiona a escrita e a inspira a pintar. Talvez, por esse motivo, as pinturas a retratem. Ao

contrário de emudecer, o antídoto de Frida para superar a dor, é expô-la, traduzida em obras.

Ainda sob a análise do tema “sufrimento”, Fuentes apropria-se do texto de Scarry, que

nos afirma que “a dor, (...) se resiste a converter-se em objeto da linguagem. Por isso a dor é

4 Texto original em espanhol: “...el dolor destruye el lenguaje.” (KAHLO, 2010, p. 12). Livre tradução minha.

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melhor expressa por quem não a sente, mas, fala em seu nome.”5 No caso de Frida,

verificamos o contrário, pois a dor e o corpo são as fontes de arte da artista. É justamente por

ter vivenciado tão intensamente a experiência da dor que ela a descreve, pois, a necessidade de

compartilhar o dilaceramento é intensa, logo, a premissa acima não enquadra-se no estudo das

obras da artista, já que ela fala em nome da dor, intensamente, de variadas formas.

A dor e o dilaceramento espelham-se nas obras da artista, nas variadas fases da vida, uma

vez que desde muito cedo, o sofrimento fez-se presente, culminado com o espedaçamento, o

qual torna-se mais evidente em Frida Kahlo justamente quando a morte a obseda. Acostumada

ao sofrimento devido a inúmeras intervenções cirúrgicas, habituada à solidão das internações

hospitalares e forçada a ser só – tanto pelas mazelas físicas quanto pelas espirituais – Frida

sente mais fortemente as dores, à medida em que as cirurgias e o intervalo entre elas, tornam-se

cada vez mais breves.

Nos meses que precedem sua morte, no fatídico ano de 1953, Frida não envia cartas,

atendo-se a escrever e desenhar em seu diário – talvez pelo fato de estar tão íntima e próxima

de Diego Rivera, seu grande amor, e certa de que as cirurgias eram necessárias. Nesse sentido,

são abundantes no diário íntimo as referências ao estado de saúde e aos médicos do hospital

que a operaram.

Ao discorrer sobre o Diário de Frida Kalho, em que são evidentes os desenhos e

comentários sobre as cirurgias e internações hospitalares, Le Clézio registra o comportamento

da artista, nos dias que se seguiram a comemoração da primeira exposição realizada em sua

homenagem:

5 Texto original em espanhol: “a dor, (...) se resiste a convertirse en objeto del lenguaje. Por eso el dolor es

expresado mejor por quienes no lo sienten pero hablan en su nombre.” (KAHLO, 2010, p. 12). Livre tradução

minha.

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Os dias que se seguiram à festa foram, de fato, terríveis. Alguns meses

depois, estando a perna direita atacada pela gangrena, Frida Kahlo foi

levada ao hospital, onde o doutor Velasco e o doutor Farill lhe

anunciaram que ela devia ser amputada. Ela enfrentou a situação com a

coragem habitual, exorcizando a angústia por meio do desenho em seu

Diário, que representa a perna direita seccionada, com este único

comentário: “Pés, por que eu os quereria, Se tenho asas para voar?”.6

(Le CLÉZIO, 2010, p. 225).

Nesse período, o diário passa a ser o único registro possível, a única fonte de

comunicação, visto que ela estava extremamente fragilizada e esgotada para pintar. Nas

palavras de Le Clézio (2010): “O esgotamento nervoso, a depressão consequente do uso de

entorpecentes não lhe permitem mais lutar com as armas dos pincéis e das cores.” Logo, restam

apenas a pena e as páginas do diário para que Frida possa inscrever sua dor. As pinturas, nele

feitas, retratam o sofrimento face à amputação e ao longo período em que esteve internada,

assim como os registros produzidos pela artista após a grande cirurgia, em que percebemos o

agigantar da dor, como podemos depreender da confidência endereçada a amiga Bambí:

Minha perna foi amputada, e nunca sofri tanto. Sobra-me um choque

nervoso, um desequilíbrio que muda tudo, até a circulação do sangue.

Faz sete meses que fui operada, e veja, ainda estou aqui, amo Diego

mais que nunca, e espero servir-lhe ainda de alguma coisa, e continuar a

pintar com toda a minha alegria, e que nada aconteça a Diego, porque

se Diego viesse a morrer eu partiria com ele, de qualquer jeito.

Enterrarão a nós dois (Le CLÉZIO, 2010, p. 226).

O comentário de Frida é incompreensível para os que nunca comungaram sua dor.

Impossível imaginar que em sua vida sobrevenham, sempre, dores cada vez mais intensas em

comparação às já vivenciadas pela pintora, durante a vida.

6 Segundo Kettenmann (2006), durante o período que se seguiu à amputação, Frida alternava momentos de

proclamação eufórica ( “Para que é que preciso dos pés quando tenho asas para voar? “) e de tristeza.

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So-fri-men-to. A partição deste vocábulo assemelha-se às amputações, cortes e

interrupções vivenciados por Frida, ao longo de sua frutífera existência. Identifica, também, a

demora, a pausa que os sofrimentos causaram na vida da artista. Tal vocábulo parece, de certa

forma, perseguir a pintora, dado que a frase “nunca sofri tanto”, é repetida em vários momentos

de sua existência. A cada vez que se vê o registro dessa expressão, fica-se a imaginar que o

sofrimento, descrito no momento da composição da frase é o maior dilaceramento de sua vida,

o derradeiro, mas, eis que outros surgem, que a maltratam cada vez mais, até a total destruição

de seu corpo.

Embora as dores da amputação pareçam insuportáveis, a experiência do corte já tinha se

feito presente, quase como um ritual de aprendizado. Entre os anos de 1950 e 1951, ela passou

por sofrimentos terríveis. Nesse período, deu-se o início de uma gangrena no pé direito, que

exigiu a amputação dos artelhos.7 Concomitante a esse procedimento, ela passou por mais uma

cirurgia, no Hospital Inglês, na tentativa de implantar um osso em sua alquebrada coluna

vertebral. O procedimento ocasionou uma infecção e a paciente precisou ser submetida a seis

outras intervenções entre março e novembro de 1950. Segue-se um período de vários meses

presa ao leito do hospital, sofrendo dores indescritíveis, afastada da pintura, tendo as cartas e o

diário como forma de externar sua dor. As páginas do diário funcionam como uma válvula de

escape e registro de todo o sofrimento. Talvez como uma forma de alívio, Frida lista as partes

do corpo que serão amputadas e desenha-se tal como ficará, ou como será vista. Ao

representar-se, ao ilustrar-se, personifica o sofrimento vindouro. A representatividade, então,

7 Segundo Carlos Fuentes, na obra: El Diário de Frida Kahlo, un íntimo autorretrato (2010, p. 292; tradução livre

minha): “Em 1949, a gangrena apodera-se do pé direito da artista. Em 1950, no decurso do ano, Frida Kahlo foi

submetida a seis operações na coluna. Ela teve que ser hospitalizada, em parte, por uma infecção grave causada

por enxertos ósseos. Permanece a maior parte do ano no hospital, enquanto Rivera pernoita, durante quase todo o

tempo, em uma habitação contígua”. No original em espanhol: “El 1949, la gangrena se apodera del pie derecho de

la artista. El 1950, durante el transcurso del año, Frida Kahlo se somete a seis operaciones de columna. Tuvo que

ser hospitalizada en parte por una grave infeccíon causada por los injertos óseos. Permanece la mayor parte del año

en el hospital, mientras Rivera pernocta casi todo el tiempo en una habitación contigua”.

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assume a aceitação da extirpação, da perda, da fragmentação, apesar de essa fragmentação não

significar aceitação ou abstração desse dilaceramento. As cicatrizes evidenciadas no diário

expressam os cortes que irão transformar o corpo e o interior da artista, modificado pela dor.

Presume-se, por conseguinte, que Frida escreve sobre o dilaceramento – provavelmente como

forma de dividir o indivisível, uma vez que não há compartilhamento possível para a mazela

física, mas, tão somente o desejo que o outro reconheça a dor, como ela registra nas páginas do

diário, a respeito da agonia de ficar quase nove meses acamada, imobilizada e afastada do

convívio social, fatos que a levam quase ao desespero, como podemos constatar através da

escrita:

Não sofro. Apenas cansaço [...] e, como é normal, muitas vezes sinto

desespero, um desespero que nenhuma palavra poderia descrever. [...]

Desejo muito a pintura. Acima de tudo, transformá-la, para que sirva

para alguma coisa, já que, até agora, só fiz pintar a expressão de minha

honorável pessoa, absolutamente estranha a tudo o que na pintura possa

ser útil ao Partido. Tenho de lutar com todas as minhas forças para que

o que sobrar de positivo em meu estado de saúde sirva à Revolução. É a

única razão que tenho para continuar vivendo (Le CLÉZIO, 2010, p.

218-219).

É na escrita do diário que Frida encontra refrigério para as dores. O registro dos

sentimentos torna-se muito profícuo nesse período e a escrita, nessa perspectiva, ganha vasta

proporção, pois os fatos mais íntimos são expressos através das palavras, já que o estado físico

a impede de retratar as dores e sofrimentos, de outras formas.

Em diversas missivas, Frida relata o cansaço provocado pelo dilaceramento, além do

desespero experimentado pelo fato de passar dias, semanas, meses inteiro acamada, cheia de

dor. O esmorecimento da artista é compatível com o sofrimento prolongado e os desalentadores

prognósticos.

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Diferentemente das cartas, em que há desejo e ensejo de contato com o outro, ainda que

a necessidade de comunicação seja primeiramente de quem remete a missiva, no diário existe a

necessidade de registrar os fatos importantes para quem escreve, como se houvesse a

necessidade de pontuar para si mesmo, os medos, desejos e intenções.

O questionamento feito por Frida sobre as pinturas: "só fiz pintar a expressão de minha

honorável pessoa", ratifica o balanço que a pintora faz de sua vida, das telas autobiográficas,

selando um pacto de que as forças sobejas serão utilizadas em prol da revolução, revolução essa

que sempre esteve presente em sua vida - aliás, Frida marca o ano de seu nascimento pela

Revolução. Ela, nascida aos 06 de julho de 1907, mais tarde, passa a dizer que nasceu no ano

de 1910, ano da Revolução Zapatista, no México.8 Como se a Revolução tivesse, de fato,

marcado sua existência.

O diário revela o sofrimento, sem necessidade de escamoteação. A Revolução ocupa,

uma vez mais, tal qual na mocidade, lugar central em sua vida. Lutar pela Revolução significa

encontrar forças e motivos para prosseguir. Significa dar sentido à sua vida. Significa externar

que, apesar da diferença física, sua força intelectual se faz mais forte. Significa estar apta e em

condições de combate, de luta. Significa o esquecimento das dificuldades, das limitações

impostas pelas cirurgias, pelas extirpações.

As palavras escritas no diário, ainda que não compartilhadas, ensejam um trato de Frida

consigo mesma e revelam as aspirações e desejos por ela sentidos. A Revolução foi a

motivação dos últimos meses de sua existência, já que, incrivelmente debilitada, fez questão de

lutar pelo Movimento até às últimas forças... Esse movimento foi muito marcante em toda a

história pessoal da pintora, uma vez que no início da década de 1940, ela descreve no diário

8 Frida Kahlo decidira aparentemente que ela e o novo México tinham nascido ao mesmo tempo. Na verdade,

porém, ela era três anos mais velha: Magdalena Carmen Frieda Kahlo Calderón nasceu no dia 06 de julho de 1907

em Coyoacán [...] A Revolução Mexicana foi de 1910 – 1920 (Kettemann, 2006, p. 7).

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(2010) as recordações da Decena Trágica – os dez dias trágicos de fevereiro de 1913: “Lembro-

me que tinha sete anos quando se deu a Decena Trágica. Testemunhei com os meus próprios

olhos a batalha dos camponeses de Zapata contra os Carrancistas”.

No ano de 1954, após algumas amputações, Frida está cada vez mais enfraquecida. O

registro do desespero consta no diário, no mês de fevereiro do mesmo ano:

Amputaram-me a perna há seis meses, deram-me séculos de tortura e há

momentos em que quase perco a razão. Continuo a querer matar-me. O

Diego é quem me impede de o fazer, pois a minha vaidade faz-me

pensar que sentiria a minha falta. Ele disse-me isso e eu acreditei. Mas

nunca sofri tanto em toda a minha vida. Vou esperar mais um pouco...

(KAHLO, 2010, p. 278) Livre tradução minha.9

Frida sofre, todavia, seu amor por Diego a mantém viva, ainda que intimamente admita

que esse apego à vida não durará muito tempo. A clareza com que ela imprime os sentimentos

impressiona – o dilaceramento está no limite do insuportável, o longo sofrimento físico a está

enlouquecendo e ela mantém a lucidez necessária para externar o turbilhão de emoções que

existem em seu interior. Seu confidente – refúgio e reconforto nos momentos mais importantes

e graves da vida – é o diário. Nele Frida expressa, com autenticidade, as mazelas, à espécie de

um desabafo e descreve as dores. Ressente-se da amputação, que causou grandes dores físicas e

traumas emocionais, apesar de a artista, com a coragem habitual, declarar que, a despeito da

falta do pé, tinha asas para voar. Ela fica meses no hospital, sem pintar, sem escrever cartas e,

no vazio dos dias e das noites, nos momentos de desamparo, o diário apresenta-se como

sustentação, companhia, além de variado atributo, muito mais valioso que qualquer outro:

9 No original em espanhol: “11 de Febrero de 1954. Me amputaram la pierna hace 6 meses. Se me han hecho

siglos de tortura y em momentos casi perdi la razón. Sigo sintiendo ganas de suicidarme. Diego es el que me

detiene por mi vanidad de creer que le puedo hacer falta. El me lo há dicho y yo lo creo. Pero nunca em la vida he

sufrido más. Esperaré un tempo”.

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confidente, uma vez que não existem cerceamentos ou censura nos escritos da artista - no

caderno íntimo ela encontra-se disposta a falar sobre si mesma, inclusive sobre o desejo de

morte, que é patente na escrita de Frida, já que os dilaceramentos são tão intensos que a fazem

pensar na morte como solução para as dores. Senão no diário, onde mais ela poderia confiar

esses sentimentos?

Apesar do grave estado de saúde, ela segue, sobrevivendo. Mesmo em estado de

convalescência e tomada de fortes dores, em 02 de julho de 1954, sai de casa para acompanhar

Diego e o pintor Juan O'Gorman num comício contra a intervenção americana na Guatemala,

em apoio ao então presidente e aos comunistas guatemaltecos. As dores não a impedem de

participar, pois a Revolução e a luta por um México igualitário são razões importantes pelas

quais a artista militou durante a existência e, apesar das dores, Frida participa ativamente do

movimento. Porém, em meio ao frio da tarde chuvosa, a pneumonia mal curada de Frida

reaparece.

A despeito da febre, encontra-se lúcida e escreve no diário sobre a certeza de morrer em

breve. Registra sobre um dos maiores temores do indivíduo: a morte e mais que isso, a morte

iminente. Sozinha, o diário é o único interlocutor possível nesse momento difícil, porém de

extrema coragem e lucidez. Consoante Le Clézio: "Ela está sozinha na casa de Coyacán,

cercada apenas pelas empregadas. No jardim, seus cães inquietos se abrigam da chuva diante da

porta fechada"(2010, p. 228).

As últimas páginas do diário de Frida são compostas da pintura Muertos en relajo10

– os

10

- Mortos de férias: as caveiras da morte estão presentes em todos os festejos relativos ao Dia dos Mortos, que

no México, duram vários dias. O dia 1º de novembro, por exemplo, é dedicado às almas das crianças e o dia

seguinte ao dos adultos. A festa termina no 3º dia de novembro, quando as almas retornam ao Mictlán, o lugar

onde vivem, e as famílias comemoram o fim da visita com uma festa onde são consumidos os alimentos que

fizeram parte da oferenda. Situado no coração da capital mexicana, no Claustro, foi instalado um altar em

homenagem ao artista mexicano José Guadalupe Posada, criador da gravura de "La Calavera de la Catrina",

popularizada pelo muralista Diego Rivera em sua obra "Sueño de una tarde dominical en la Alameda". La Catrina,

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desenhos são representações diversas da morte, através das caveiras - “calaveiras o muertes”11

,

pintadas nas páginas do caderno íntimo. A iminência da morte presentifica-se na vida da artista,

como nos comprovam as páginas em que a mesma torna-se tema recorrente e nos remetem ao

sentido da morte no México, país onde o falecimento possui sentido bastante singular, uma vez

que a data em comemoração aos mortos é celebrada com festejos - incluindo oferendas, flores,

representações dos mortos, comidas e as inúmeras caveiras - inclusive em formas de doces e

açúcar para as crianças. Fuentes nos elucida sobre a tradição existente na cultura mexicana:

Frida Kahlo salta abruptamente da civilização antiga para a cultura

popular, representando a morte mediante as conhecidas figuras

denominadas caveiras da morte. Em 02 de novembro, Dia dos Mortos,

os mexicanos tem o hábito de fabricar jogos, doces e figuras

comestíveis em forma de caveira. [...] O mito da caveira,

profundamente enraizado no México, indica uma atitude face a morte

que poderíamos denominar de fatalismo nacional (KALHO, 2010, p.

262).12

Livre tradução minha.

Consoante o “Mito da Caveira” presente na cultura mexicana, as pinturas e escritos

sobre os “Muertos en relajo” são freqüentes, como podemos depreender do seguinte

comentário: “Posada descreveu com originalidade o espírito do povo mexicano desde os

assuntos políticos, a vida cotidiana os desastres naturais, o terror pelo fim do século, que fazia

temer pelo fim do mundo, as crenças religiosas e a magia através das imagens que

na cultura popular mexicana, é a representação humorística do esqueleto de uma dama da alta sociedade. É uma

das figuras mais populares da festa do Dia dos Mortos no país. A pintora Frida Kahlo é protagonista do altar da

Galeria José María Velasco, situado na colônia Morelos. Capturado do site:

http://info.abril.com.br/noticias/cultura. Uma das representações feitas por Frida, dos Muertos en relajo, encontra-

se reproduzida no ANEXO I.

11 - Caveiras da morte.

12- No original em espanhol: Frida Kahlo salta abruptamente de la civilización antigua a la cultura popular,

representando a la muerte mediante las conocidas figuras denominadas calaveras o muertes. El 02 noviembre, Dia

de los Muertos, los mexicanos suelen fabricar juguetes, dulces y figuras comestibles en forma de calavera. [...] El

mito de la calavera, de profundo arraigo en México, indica una actitud hacia la muerte que cabría denominar

fatalismo nacional. Livre tradução minha.

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denunciavam cruamente a desigualdade existente entre a sociedade submetida à ditadura de

Porfírio Diaz, uma vez que questionava sua moralidade e seu excêntrico culto pela

modernidade. Essa situação fez da sua obra um pilar fundamental no imaginário mexicano, um

artista proveniente do povo, que se nutriu do imaginário popular mexicano a quem se dirigiu

como público, o que significou ataques cruéis e perseguições. As caveiras de Posada não

tinham como objetivo falar da morte em um sentido religioso ou transcendente, mas sim, como

recorda a historiadora Montserrat Galí, “É uma reflexão sobre os vivos, seus defeitos, suas

fraquezas e vícios. Assim, as caveiras não tinham, verdadeiramente, muito a ver com a morte e

muito menos com reflexões transcendentes, mas sim, com todo aquilo que os vivos emprestam

à sátira, ao escárnio e ao „relaxamento‟”.13

Frida debruça-se sobre a morte: pinta, escreve, faz

desenhos, verbaliza a palavra morte. O culto aos “Muertos en relajo” presentifica-se nas

páginas do diário.

Além dos desenhos, ela registra um agradecimento à equipe médica que cuidou de sua

saúde no hospital: “Gracias al Dr. Vargas a Navarro al Dr. Pólo y a mi fuerza de voluntad.

Espero alegre la salida – y espero no volver jamais – Frida” (KAHLO, 2010, p. 285). A

derradeira frase do diário: “Espero alegre a saída e desejo não voltar jamais”, está impregnada

de ambigüidade, o desejo de não retornar refere-se ao hospital, onde esteve internada por largos

períodos e foi submetida a inúmeras e lancinantes intervenções, ou refere-se ao desejo de não

13

No original em espanhol: “Posada describió con originalidad el espíritu del pueblo mexicano desde los asuntos

políticos, la vida cotidiana, los desastres naturales, el terror por el fin de siglo que hacía temer por el fin del

mundo, las creencias religiosas y la magia a través de las imágenes que denunciaban descarnadamente la

desigualdad existente en la sociedad sometida a la dictadura de Porfirio Díaz, a la vez que cuestionaban su

moralidad y su extranjerizante culto por la modernidad. Esta situación hizo de su obra un pilar fundamental en la

imaginería mexicana, un artista proveniente del pueblo que se nutrió del imaginario popular mexicano y al que se

dirigió como público, lo que le significó ataques despiadados y persecuciones.Las calaveras de Posada no tenían

como objetivo hablar de la muerte en un sentido religioso o trascendente, sino, como recuerda la historiadora

Montserrat Galí, „Es una reflexión sobre los vivos, sus defectos, sus flaquezas y sus vicios. Así, las calaveras no

tienen en el fondo mucho que ver con la muerte y mucho menos con reflexiones trascendentes, sino con todo

aquello de los vivos que se presta a la sátira, la burla y al „relajo‟.” Capturado da internet:

encontrarte.aporrea.org/expo/e30.html

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querer viver, de não prolongar o sofrimento, de ter a certeza da falibilidade física, uma vez que

a morte apresenta-se certeira?

As palavras dúbias, presentes no discurso de Frida, nos fazem refletir sobre as

verdadeiras intenções das palavras e nos remetem ao texto: Por que se escreve?, escrito por

Sartre, na obra Situações II, onde o autor contrapõe os silêncios, as palavras não ditas pelo

autor, o inexprimível, às armadilhas - que são arquitetadas pelo autor - as quais demandam

perícia e cuidado por parte do leitor, que precisa completar o texto e ir além das palavras:

Mas, por outro lado, as palavras estão presentes como armadilhas para

suscitar os nossos sentimentos e reflecti-los na nossa direcção; cada

palavra é um caminho de transcedência, informa os nossos afectos, dá-

lhes nome, atribui-os a uma personagem imaginária que se encarrega de

os viver por nós e em quem estas paixões emprestadas são a sua única

substância; confere-lhes objetivos, perspectivas, um horizonte.

(SARTRE, 1948, p.91)

A subjetividade do texto nos faz pensar na difícil arte da interpretação das escritas

íntimas, uma vez que o diário e as cartas nos dão pistas, mas, não nos apontam, de forma

inquestionável, a direção. Depreender o sentido do texto, completar as lacunas deixadas pelo

escritor e entender os anseios de quem escreve são tarefas que exigem cuidado. Frida escrevia

somente para se entender melhor? Os inúmeros registros feitos no diário tinham a pretensão de

serem lidos por outrem ou serviriam somente para abrandar o sofrimento?

Em uma das páginas do diário, Frida faz uma retrospectiva das inúmeras intervenções

cirúrgicas que sofreu durante a vida. A forma peculiar de registrar os acontecimentos, inclusive

com a indicação cronológica das datas, apontam para a ratificação dos fatos vivenciados. O

esquecimento do sofrimento não seria possível, já que os escritos deixariam os fatos inscritos

no diário e na memória. Nesse caso excepcional, a artista não indica o texto produzido pelo ano

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da escrita do diário, mas sim, pela duração de sua existência. A primeira data – 1910 –

simboliza o ano escolhido para o ser a indicação de seu nascimento, o ano da Revolução, e a

data limite – 1953 – indica a data de produção dos escritos. As datas contrapõem vida e

finitude, representadas através dos anos que tradicionalmente representam início e fim de uma

existência. Parece-nos que Frida, após tantos cortes, esboça o balanço de sua vida, pois,

segundo a artista:

1910-1953

Em toda a minha vida, fui submetida a 22 operações cirúrgicas – O Dr.

Juanito Farril quem considero um verdadeiro homem da ciência e

ademais um ser heróico porque passou a sua vida inteira salvando aos

enfermos sendo ele mesmo enfermo também enfermidade aos seis anos

paralisia infantil (poliomielite 1926 – acidente de ônibus com ALEX

(KAHLO, 2010, p. 251).14

Livre tradução minha.

A falta de pontuação indica o impulso contínuo da escrita da artista. Ao acompanharmos

seu relato, falta-nos fôlego, talvez o mesmo ar que tenha escasseado para Frida, ao longo das

intervenções cirúrgicas. Em poucas palavras, a artista demarca, cronologicamente, os

acontecimentos marcantes e dolorosos em sua vida: ela faz referência às cirurgias, à marcante

e, portanto, inesquecível poliomielite e, ao acidente de ônibus, sofrido em 1926. Frida resume-

se de forma intensa e pontual. Não poupa nenhum dilaceramento ao realizar a sinopse de sua

existência.

No diário, a artista faz importantes anotações e escreve cartas, além dos registros de

agradecimento, como observado no trecho supracitado. Nesse sentido, escrever no diário

14

- Original em espanhol: 1910-1953

En toda mi vida, he tenido 22 operaciones quicurgicas – El Dr Juanito Farril a quien considero un verdadero

hombre de ciencia y además un ser heróico por que há pasado su vida entera salvando a los enfermos siendo él un

enfermo también enfermedad a los seis años parálisis infantil (poliomielitis 1926 – accidente en camion com

ALEX. ((Kahlo, 2010, p. 251) Livre tradução minha.14

Há que se ressaltar que, no México, camion siginifica,

outrossim, autocarro, ou seja, ônibus em Língua Portuguesa.

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significa realizar a ação intentada, proferir o agradecimento. Ela não só escreve, pinta suas

operações, cortes e dilaceramentos. Representa de variadas formas as experiências da dor.

O diário, escrito por Frida Kahlo durante os últimos dez anos de sua vida, documenta a

deterioração física, como podemos comprovar através das palavras de Sarah Lowe, escritas no

prefácio do diário de Frida Kahlo (2010), “O Diário reflete sua incansável luta na busca de

soluções ao seu sofrimento, sua resignação ante às prescrições médicas, assim como seu

freqüente estoicismo ante aos contínuos fracassos”.15

O diário é um desabafo, cheio de tintas e sentimentos. Nele estão presentes questões

sobre a saúde, a deterioração e a vida. Os escritos estabelecem um diálogo interno, uma relação

com ela mesma, em que estão presentes os temas que perseguiram sua vida – sem máscaras.

Sem a preocupação da leitura por outrem, ela expressa uma escrita verdadeira e sincera,

cercada de desenhos fortes, escuros, vibrantes, mal contornados, além das palavras rabiscadas.

O interior de Frida pode ser sentido no vivo diário, escrito sem retoques.

Ainda que tenha sido escrito quando Frida estava com, aproximadamente, trinta e seis

anos de idade, constam no diário registros da infância da artista - os relatos sobre Diego e as

cirurgias dividem espaço e cores com as memórias. Não existe somente o exercício da escrita,

outrossim, o esforço da lembrança, o trabalho de escavação da memória, o qual nos remete às

palavras de Benjamin ao discorrer sobre a escrita de Proust, em que este lembra a vida pelas

experiências vividas, com as perspectivas unilaterais promovidas pelas diversas sensações que

ativam a memória. Para aquele, não se trata exatamente do que aconteceu, mas, como os fatos

vivenciados registram-se na memória e, assim sendo, quais experiências, dentre as vividas

habitualmente, merecem ficar armazenadas. Nesse sentido, tornam-se eficazes as palavras de

15

Texto original em espanhol: “El Diario refleja su incansable lucha en la búsqueda de soluciones a su

sufrimiento, su resignación a las prescripciones de los médicos, así como su frecuente estoicismo ante los

continuos fracasos. (KAHLO, 2010, p. 29) Livre tradução minha.

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Walter Benjamin (1993): “... o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu,

mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria

preferível falar do trabalho de Penélope do esquecimento?”16

, uma vez que suas palavras nos

remetem à tensão existente entre reminiscência e esquecimento e referem-se às sensações e

acontecimentos que recebem o estatuto de importantes, e que, portanto, registram-se no filtro

da memória. Ao longo das páginas, ao escavar as memórias da infância, realizando o processo

de remoer o passado, selecionar as lembranças importantes e eleger os fatos marcantes, por ela

eleitos, a artista salienta o carinho paterno, presente em todos os momentos da vida, desde a

mais tenra idade - Frida teve poliomielite aos seis anos e foi o pai que encarregou-se de todos

os cuidados e carinhos nos nove meses de convalescença. Ela recuperou-se, não sem marcas e,

ao retornar a escola, ganhou o apelido que tanto odiou: “Frida perna de pau”. Ao mesmo tempo

em que revela seus dilaceramentos na escrita e na pintura, artista esconde a perna desigual

durante toda a vida debaixo das compridas saias mexicanas.

Na vida adulta, Frida sofre terríveis dores na coluna vertebral, que tanto impingem dor e

a inspiram a pintar. Retratar o sofrimento demonstra ser a única forma possível de

sobrevivência, dada a magnitude das dores, fraturas e cortes. O corpo dolorido, do qual ela não

podia separar-se, gritava sua dor, a todo instante. Impossível desviar o pensamento, impossível

não ouvir aqueles gritos tão agudos e fortes. A escuta de Frida traduz-se na escrita e na pintura,

nas telas cheias de cores vibrantes e cortes profundos. A dor foi sua própria inspiração, a

verdadeira motivação para pintar.

Frida inscreveu a dor de formas diversas e intensas. Mostrou-se uma feroz escritora de

cartas, pintora compulsiva e escritora assídua do diário. Para além do registro do dilaceramento

16

(BENJAMIN, 2012, p.38).

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por meio das palavras, foi na pintura que a artista encontrou voz. Nas telas, a artista desnudou-

se, retratou não só o sofrimento como as sensações sobre as etapas variadas de sua existência.

Parece-nos custoso imaginar com que cores pode-se pintar o sofrimento ou qual a melhor

maneira de retratá-lo, uma vez que a questão central remete ao desejo de expressar-se e

desvelar-se.

Na tela, A Coluna Partida, Frida enseja compartilhar o sofrimento com os interlocutores

possíveis. Pinta-se rasgada, dilacerada. As lágrimas rompem o rosto e os pregos a perfuram por

inteiro, demonstrando as terríveis dores a que foi acometida. Simbólico pela correlação com a

tortura, a artista pinta-se cravejada pelo duro metal, que tanto fixa quanto fere. Não bastariam

alguns, somente uma chuva deles representaria a intensidade da dor. A quantidade dos pregos

nos remete, outrossim, à figura de São Sebastião, representado com o corpo completamente

flechado, o que, por sua vez, nos remete ao sacrifício. Assim como São Sebastião, Frida pinta-

se bastante sofrida, contudo serena.

Os olhos que derramam lágrimas17

, elemento que Frida incorpora em suas obras em

repetidas ocasiões, fazem referência à manifestação do laceramento e são a representação

externa da dor, como a comprovar a veracidade e profundidade do sofrimento.

17

“As lágrimas têm uma conotação tanto literal quanto simbólica, fazendo referência a Madre Dolorosa do

Cristianismo (Nossa Senhora das Dores), no tempo que alude a lenda mexicana da Chorona, outra mãe vestida de

luto”. Texto original em espanhol: Las lágrimas tienen una connotación tanto literal como simbólica, haciendo

referencia a la Madre Dolorosa del Cristianismo, al tiempo que alude a la leyenda mexicana de la Lhorona, outra

madre vestida de luto. (KAHLO, 2010, p. 216) Livre tradução minha.

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(Tela: A Coluna Partida, 1944. KETTENMANN, 2006, p. 69)

A tentativa de compartilhar o dilaceramento inclui pintar elementos que traduzem

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sua imagem: as lágrimas, o sangue, os cortes e o colete são elementos fundamentais, uma vez

que comunicam o grau de sofrimento em que Frida se encontrava. A paisagem árida e

desértica, completada com a própria solidão da artista, nos dão a ver a solidão com que passou

largos períodos de sua vida.

Não há mais elementos de dor a serem pintados, já que o corpo de Frida, na tela, está

sangrando e aberto – não existe vislumbre de cicatrização, antes, a expressão dos ferros que

sustentam a coluna, deixando-a firme. A tela desnuda os sentimentos e mazelas da artista,

desvelando a visão intrínseca do seu corpo e a maneira como sentia-se: torturada. A tela

esboça o interior.

A pintura completa sua vida e a vida, esboçada na tela, evidencia a forma como a artista faz

a percepção de si mesma, através do corpo invadido por intensas lacerações, que ganham

vulto nas telas e representam não só a fonte singular de inspiração, exibem o “algo mais”,

imaginado por Carlos Fuentes na introdução do diário de Frida Kahlo:

Desde logo, sua arte não é uma maneira absoluta de descobrir a

interioridade pessoal e a identificação da personalidade da alma com a

beleza, apesar das aparências externas. É algo mais. É uma

aproximação do próprio ser, do futuro, da negação que todos somos.

Nunca um ponto final, sempre uma aproximação, sempre uma busca da

forma que, ao ser alcançada, adquire a classe estética que faz a

evocação do momento, citanto Yeats: “Toda mudada, totalmente

transformada, nasce uma terrível beleza”.18

(KAHLO, 2010, p. 16)

Livre tradução minha.

A terrível beleza que a artista nos apresenta diz respeito a si mesma. A pintura da dilacerada

18

- Texto original em espanhol: Desde luego, su arte no es una manera absoluta de descubrir la interioridade

personal y la identificación de la personalidad del alma com la belleza a pesar de las apariencias externas. Es algo

más. Es una aproximación al próprio ser, al devenir, al aún no que todos somos. Nunca un punto final, siempre un

acercamiento, siempre una búsqueda de la forma que, al alcanzarse, adquiere el rango estético que evoque hace um

momento, citando a Yeats: “Toda cambiada, totalmente transformada, nace una terrible belleza.” (KAHLO, 2010,

p. 16)

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venustidade nos traz um recorte do convívio de Frida com as dores impostas pelos bondes que a

atravessaram ao longo da existência. Para além das telas, Frida pinta-se, outrossim, com as

palavras, e nelas, a artista não prescinde dos desenhos, assim como o diário não prescinde da

pintura. A repetição do sofrimento, através de duplas formas de inscrevê-lo, são marcantes nas

produções.

A forma minuciosa com que Frida descreve a dor levam o leitor a participar de sua agonia,

já que ela não poupa os detalhes, como podemos observar através da missiva escrita em junho

de 1946, endereçada a Alejandro Gómez Árias, onde Frida descreve as dores atrozes que a

invadiram, após a realização de mais uma das tantas cirurgias:

Faz três weeks que eles cortaram ossos e mais ossos. Os médicos são

tão maravilhosos e o meu body está tão cheio de vitalidade que hoje

eles me fizeram ficar sobre meus pobres feets por minutinhos. Eu

mesma não belivo. Nas firt duas semanas, tive dores terríveis e fiquei

em prantos. A dor é tamanha que eu não a desejaria a ninguém. É muito

intensa e ruim. Mas esta semana ela diminuiu, com a ajuda de

medicamentos, e estou passando relativamente bem. Tenho duas

grandes cicatrizes nas costas, in this forma.

Depois, eles me cortaram um pedaço da pélvis para usar como

implante na minha coluna. (KAHLO, 2006, p.130-131)19

Como forma de certificação da escrita, Frida reproduz os ossos na correspondência. Na

incerteza da compreensão, desenha as costas, os cortes e registra, de forma diversa, a dor.

Esmiúça o sofrimento como certeza da compreensão. Nesse sentido, a carta para Alejandro é

muito significativa, pois, o aproxima da realidade vivida pela artista - não se trata de uma

correspondência cujo conteúdo permeia a banalidade, ela fala de si, do dilaceramento sentido,

uma vez que toda a missiva reflete seu estado emocional e físico.

A escrita da artista reflete grande habilidade com as palavras, para que o outro possa

19

A carta, na íntegra, encontra-se reproduzida no ANEXO II

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enxergar a figura que está distante. Ao expressar-se tão visceralmente a artista rasga-se, como

na tela “A coluna partida”, mostra-se à força para que a vejam, para que possam ter contato

com os ferimentos que a invadem. Frida não aceita a distância, não conforma-se com a solidão

imposta pelos crescentes dilaceramentos, logo, a representação torna-se fundamental em sua

existência, seja através das penas ou das tintas, por precisamente tornarem possível a

aproximação com o interlocutor.

2.1. A CONCHA E A OSTRA

A angústia e a dor – o prazer e a morte são

muito mais que um processo. (Frida Kahlo)20

O corpo é a tumba que nos aprisiona

como a concha que guarda a ostra.

(Platão)21

O dilaceramento sentido por tão prolongado tempo, por vezes, leva Frida à agonia e ao

desespero. Ativa, falante, entusiasta da Revolução, amante do humor e apaixonada, ela sente

que o corpo não corresponde aos seus desejos. Na verdade, o invólucro apresenta-se como um

impeditivo para a liberdade, já que, após os cortes e amputações, a artista torna-se debilitada e

dependente. No final da existência, a artista não possui forças para pintar, sendo-lhe possível,

somente, escrever no diário. Os longos períodos de internação, as amputações e as

impossibilidades são um dilaceramento a mais. A sensação transmitida pelos escritos é que o

corpo a aprisiona, a obriga a submeter-se a longos repousos, a impinge imobilidade. Além do

20

Extraído do Diário de Frida Kahlo. Texto original: “La angústia y el dolor – el pracer y la muerte no son más

que un processo”. (Láminas 77-78 del Diário de Frida Kahlo). (KAHLO, 2010, p. 243; tradução livre minha). 21

Texto original extraído do prefácio do diário de Frida Kahlo: “El cuerpo es la tumba que nos aprisiona igual que

la concha encierra a la ostra” (KAHLO, 2010, p. 13). Livre tradução minha.

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cerceamento, ela convive com a dor, seu corpo a tortura. Apesar do corpo, sobra a mente,

completamente liberta para expressar-se.

A concepção dicotômica corpo-mente há muito é discutida e já se encontra expressa no

pensamento grego clássico, especialmente com Platão, dominando o conjunto do pensamento

antigo. Na visão de mundo platônico, a alma, imortal, por necessidade ou arrependimento, ao

encarnar num corpo – “túmulo da alma”, se deteriora, tornando-se dela encarcerada. Em seu

diálogo „Fédon‟, o corpo aparece como um empecilho à pureza da alma, corpo como

deturpação e decadência moral, onde só a morte do corpo a libertaria. O corpo é definido por

Platão do seguinte modo: “Este peso que trazemos conosco e que denominamos corpo e ao qual

estamos presos como a ostra à sua concha.”

O corpo de Frida encontra-se, em grande parte da existência, preso à dor e ao sofrimento

intenso. A vida e, principalmente, as obras da artista, traduzem o impulso de convívio com o

dilaceramento, o qual pode ser observado através da escrita do diário de Frida Kahlo, que

reflete, segundo Sarah M. Lowe, em ensaio publicado no prefácio do Diário, sua “incansável

luta na busca de soluções para o seu sofrimento”22

(KAHLO, 2010, p.29; tradução livre minha).

Toda a produção do Diário espelha as formas de sobrevivência utilizadas pela artista para

conviver com o dilaceramento. A principal solução encontrada e praticada pela artista foi expor

a dor, através da escrita e da pintura, intensamente. A produção dos autorretratos reflete, acima

de tudo, as etapas da vida, imersas na dor.

Os registros no diário indicam, à semelhança das telas, a gradação do dilaceramento, as

reflexões sobre o tema da dor, seus anseios face às agonias sentidas e nos lançam instigante

questão, ainda segundo Lowe: “Como caberia ler o diário íntimo de uma mulher e, por

22 Extraído do Diário de Frida Kahlo. Texto original: “El Diário refleja su incansable lucha em la búsqueda de

soluciones a su sufrimento”. (Kahlo, 2010, p. 29; tradução livre minha).

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extensão, o que se aprende de uma pintora com a leitura de suas memórias? (KAHLO, 2010,

p.25) Tradução livre minha.23

Aprendemos que o sofrimento, ainda que extremamente lancinante, pode ser transmutado

em palavras e pinturas. Talvez para compreendemos que Frida Kahlo, ao representar a dor com

pinturas e, no final da existência, sobretudo nas fases mais agudas da dor, evidenciar todas as

lacerações, através das palavras, realizou a inimaginável missão de compartilhar a dor, de

descrever o indescritível.

Segundo a citada Virgínia Wolf, a dor destrói a linguagem. Priva o ser da fala. Silencia. No

entanto, para a pintora mexicana, a dor e o corpo dilacerado – justamente por representarem o

universo em que a artista se viu imersa até o momento de seu desenlace – tornam-se

instrumento. A existência só é possível com a exploração do corpo e da dor.

Frida não aparta escrita e pintura nas páginas do diário. Ao contrário, ela os sobrepõe,

expondo a indivisibilidade do discurso e das tintas, através das pinturas realizadas no diário, as

quais corroboram dor e sofrimento sentidos e registram os incessantes dilaceramentos. É

justamente sobre os abortos, a coluna, os médicos, as internações e o sofrimento que a pintora

irá escrever em seu diário e cartas, uma vez que a escrita torna possível a convivência com a

dor, como podemos depreender do texto escrito por Frida em seu diário, entre os anos de 1950-

1951:

Tenho estado enferma durante todo o ano. Sete operações na coluna

vertebral. O Dr. Farril me salvou. Ele tornou a me dar alegria de viver.

Todavia, estou na cadeira de rodas e não sei se poderei voltar a andar.

Tenho um colete de gesso, que, apesar de ser uma coisa pavorosa, me

ajuda a sentir-me melhor da coluna. (IDEM, 2010, p. 252) Livre

23 Texto integrande do ENSAYO, escrito por Sarah M. Love, no prefácio do Diário del Frida Kahlo: “Cómo

cabría leer el diario íntimo de una mujer y, por extensíon, qué se aprende de la pintora con la lectura de sus

memórias? (KAHLO, 2010, p. 25) Livre tradução minha.

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tradução minha.24

Ao inscrever suas misérias, a artista registra a dor e a irresolução sobre a recuperação do

corpo alquebrado. Faz-se mister notarmos que ao escrever o texto supracitado, a artista assinala

a data no alto da página, 1950-51, o que constitui raridade em seu diário, escrito entre os

derradeiros anos de 1944 a 1954. Fixar a data no alto da página representa, justamente, a

explicação do lapso de tempo/texto entre os meses que compreendem o ano de 1950 até 1951 –

período da longa enfermidade.

Durante curto período de tempo, Frida passa por sete operações e, apesar de tantas

intervenção cirúrgicas, encontra-se na cadeira de rodas, presa ao colete de gesso, ao modo da

ostra presa a concha. O laceramento é sentido reiteradas vezes e a confronta cotidianamente

com as impossibilidades e a negação. A incerteza quanto ao fato de voltar a andar constitui

sentimento que a espreita.

A relação da artista com a inscrição do tempo é extremamente peculiar. O diário de Frida é

um texto em tudo singular, uma vez que a escrita reflete os sentimentos mais profundos - seu

diário margeia a autobiografia. No que tange a questão da data, é interessante observar uma

importante distinção entre diário e autobiografia, proposta por Lejeune, a respeito das escritas

íntimas e do diário:

(...) Um diário sem data, a rigor, não passa de uma simples caderneta. A

datação pode ser mais ou menos precisa ou espaçada, mas é capital.

Uma entrada no diário é o que foi escrito num certo momento, na mais

absoluta ignorância quanto ao futuro, e cujo conteúdo não foi com

24 Texto original: “1950-51: “He estado enferma un año. Siete operaciones en la columna vertebral. El Doctor

Farril me salvó. Me volvió a dar alegria de vivir. Todavia estoy en la silla de ruedas, y no sé si pronto volveré a

andar. Tengo el corset de yeso que a pesar de ser una lata pavorosa, me ayuda a sentirme mejor de la espinha.

(KAHLO, 2010, p. 252) Livre tradução minha.24

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certeza modificado. (...) Quando soa meia-noite não posso mais fazer

modificações. Se o fizer, abandono o diário para cair na autobiografia.

(LEJEUNE, 2008, p. 260)

O diário é, destarte, o espaço privilegiado da escrita íntima - do “eu” para si mesmo -, cujo

conteúdo, muitas vezes secreto, também é destinado, num primeiro momento, a quem escreve.

O leitor privilegiado do diário é o próprio autor, pois é para ele, primeiramente, que o texto é

escrito. No entanto, historicamente, muitos diários, os quais não são simples registros dos fatos

seqüenciados no cotidiano, antes, reflexões das emoções e angústias, ao tornarem-se públicos,

transmutam-se em autobiografia. Instiga-nos pensar que a linha tênue que separa a

autobiografia dos diários íntimos seja o caráter público e privado de cada produção,

respectivamente.

Toda obra existe para ser lida, ainda que por quem a escreveu, na qualidade de leitor, uma

vez que somente este pode completar o ciclo da produção que inicia-se com a escrita. Jean-

Paul Sartre, em Situações II, capítulo: Por que se escreve?, tece importante comentário sobre a

função primeira da escrita:

Não é portanto verdade que se escreva para si mesmo: seria o pior

fracasso; ao projetar as emoções no papel, a custo se conseguiria dar-

lhes um prolongamento langoroso. O acto criador é apenas um

momento incompleto e abstracto da produção duma obra; se o autor

existisse sozinho, poderia escrever tanto quanto quisesse; nem a obra

nem o objeto veriam o dia, e seria preciso que pousasse a caneta ou que

desesperasse. (SARTRE, 1948, p.89)

É justamente através da dialética, da arte do diálogo, que o leitor traz completude a obra. No

caso do diário, o leitor, a priori, o alter ego do autor, começa a dar sentido ao texto e a torná-lo

compreensível. A organização do tempo, a seleção da memória e dos afetos constituem

elementos preponderantes na escrita dos mesmos, nesse sentido, escrever e ler a própria obra

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possibilita o diálogo e a organização dos sentimentos e pensamentos, ainda que, no tocante às

escritas íntimas, não existam dois agentes distintos e o autor seja, outrossim, o leitor

privilegiado da obra. Nos diários - onde a obra existe para si - a leitura acurada e a completude

de sentido é dada pelo autor, inversamente ao que ocorre na escrita dos livros, onde, o leitor

fica incumbido da completude da obra, consoante Sartre:

Mas a operação de escrever implica a de ler como seu correlativo

dialético, e estes dois actos conexos precisam de dois agentes distintos.

É o esforço conjugado do autor e do leitor que fará surgir o objeto

concreto e imaginário que é a obra do espírito. Só há arte para os outros

e pelos outros. (IDEM, 1948, p.89)

Cerceada de seus movimentos devido às constantes cirurgias e internações, Frida escreve.

No ano de 1953, ano anterior a sua morte, sobejam relatos sobre sua condição. Constam datas

em muitos desses escritos, o que nos sugere que a artista organizou cronologicamente os cortes

e amputações:

Julho, 1953

Cuernavaca.

Pontos de apoio.

Em minha figura completa só tenho um, e quero dois.

Para ter os dois ele tem que cortar um. Este é um que não tenho e que

tenho que ter. Para poder caminhar o outro será morto! A mim, as asas

me sobram. Que as cortem e a voar!!25

(KAHLO, 2010, p. 276) Livre

tradução minha.

25

Julio, 1953. Cuernavaca. Puntos de apoyo. En mi figura completa solo hay uno, y quiero dos. Para tener yo

los dos me tienen que cortar uno. Es el uno que no tengo el que tengo que tener. Para poder caminar el outro será

ya muerto! A mi, las alas me sobran. Que las corten y a volar!! (KAHLO, 2010, p. 276) Livre tradução minha.

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O registro da dor está presente nos diários e nas cartas. Frida acompanha o dilaceramento de

seu corpo, ocorrido após várias cirurgias e inúmeras tentativas de recuperação. O corte do pé a

marca profundamente e a faz escrever e pintar no diário o retrato do corte. O escape da artista

centra-se no diário, pois, nas fases mais agudas da dor, Frida sente-se impossibilitada de pintar.

Nas pinturas feitas no caderno íntimo, ela liberta-se do corpo alquebrado e imagina a liberdade

através das asas, que representam escape ante ao corpo que teima em desmoronar. Quando

escreve, precisamente, todas essas informações no diário íntimo, para quem Frida escreve?

Ressalta-se que no diário abundam registros sobre a infância, o amor condescendente a

Diego e às cirurgias. Nas cartas, o interlocutor está explícito, ao contrário do diário. Mas, se

Frida possuía todas as informações, se sabia sobre todos os procedimentos que seriam

realizados, por que a ratificação da dor através dos desenhos e escritura? Confirmação do

dilaceramento?

Ela era autora e leitora do próprio diário. A completude da obra residia, provavelmente,

no ato de produzir, desenhar, informar, rabiscar as já traçadas linhas, reescrever, sublinhar e

colorir as páginas, ainda que já completas de escrita. O exercício da escrita, da pintura e da

leitura das páginas, feitos pela artista, indicam a importância do ato criador em sua existência.

Impossível não pintar. Impossível não escrever.

A produção artística de Frida representa a razão de existir e indica possível forma de

convivência com a dor. Externá-la, reiteradas vezes, ainda que para si mesma, acena como a

possibilidade de lucidez e sobrevivência em meio a dor. Pintar e escrever tornam possível a

convivência com o dilaceramento, à medida que transformam a escrita em contra depressor

lúcido. Além da precisão das informações, ao referir-se às amputações e lacerações, a pintora

vale-se das tintas. As palavras não são suficientes para aplacar ou explicar o dilaceramento.

As páginas originais do diário indicam que, concomitante aos relatos sobre as internações,

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há desenhos e pinturas sobre os cortes.

No mesmo ano de 1953, após o lapso sem escritas devido à longa internação, a artista

continua, não sem antes pintar seu corpo, o relato imerso de angústia, nos dias que precederam

a amputação:

Agosto de 1953.

Estou segura que vão amputar minha perna direita. Sei poucos detalhes,

mas, as opiniões são muito sérias. Dr. Luis Mendes e o Dr. Juan Farril.

Estou muito preocupada, muito, mas, desta vez sinto que será uma

libertação. Oxalá eu possa seguir caminhando e dar todo o esforço que

me sobra para Diego. Tudo para Diego.26

(KAHLO, 2010, p. 277);

Livre tradução minha.

Os sofrimentos físicos e a devoção por Diego perscrutam a vida de Frida. Os dois bondes

que atravessaram seu caminho, entrelaçando o destino, são as principais inspirações das penas

e das tintas.

A leitura do diário exige a compreensão das supressões e reticências. O discurso da artista

não é explícito, antes, representa o turbilhão de emoções desdobrado no emaranhado de

palavras e desenhos, como podemos observar nos trechos do caderno íntimo da artista, em que

exuberam as pausas e as correções27

efetuadas em relação às ideias primeiramente traçadas –

tais correções nos impelem a pensar na intenção comunicativa do diário, bem como no caráter

privado dos escritos e se havia pretensão de o texto ser lido por outra pessoa. Resta-nos o

questionamento sobre os motivos que levaram a artista a riscar tanto as palavras, para somente

26

Texto original: Agosto de 1953.

Seguridad de que me van a amputar la pierna derecha. Detalles sé pocos pero las opiniones son muy serias. Dr

Luís Mendes y el Dr Juan Farril.

Estoy preocupada, mucho, pero a la vez siento que será una libertación. Ojalá y pueda ya caminando dar todo el

esfuerzo que me queda para Diego. Todo para Diego. (KAHLO, 2010, p. 277). Livre tradução minha. 27

Ao lermos o Diário de Frida Kahlo observamos que, em inúmeras ocasiões, a artista corrige-se. Logo, as

palavras e frases são riscadas de forma peculiar, de modo que o leitor não consiga depreender o sentido do que

estava escrito. Ela rabisca, risca completamente as palavras, para somente depois, as substituir.

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depois substituí-las, se somente a artista desfrutaria a leitura do caderno íntimo. Compreender,

outrossim, a incompletude do texto, sugerida pelas reticências, significa ir além da escrita,

como podemos observar no trecho abaixo, escrito por ocasião da exposição realizada em sua

homenagem, no México, em 1953:

A vida silenciosa...

Doadora de mundos...

Veados feridos

Roupas de tehuana

Raios, penas, sóis

Ritmos escondidos

(KAHLO, 2010, p. 272) Livre tradução minha.28

Além das reticências, Frida utiliza em muitas produções, apenas um conjunto de palavras

para expressar as ideias. São palavras carregadas de sentido, que prescindem de explicação,

talvez por tratar-se de uma escrita que seria lida pela própria autora, que já compreendia os

sentidos e intenções. A escrita é enxuta, porém, as palavras são plenas de significado, como

podemos depreender dos escritos abaixo, extraídos do diário da artista, em uma página onde a

pintura preenche todo o papel, restando o fim da página para as inscrições:

A pomba se enganou

Se enganava..............

(IDEM, 2010, p. 277) Livre tradução minha.29

Frida pinta seu autorretrato e moldura, não por acaso, o desenho com os versos de Rafael

28

Texto original em espanhol:

La vida callada... / dadóra de mundos... / Venados heridos / Ropas de tehuana / Rayos, penas, soles / Ritmos

escondidos (Kahlo, 2010, p. 272; tradução livre minha) 29

Texto original em espanhol: Se equivocó la Paloma / Se equivocaba............ (KAHLO, 2010, p. 277 –

referente à lâmina 141) Livre tradução minha. A reprodução da referida página encontra no ANEXO III.

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Alberti30

. Os escritos remetem aos equívocos cometidos pela pomba e nos instigam a pensar

nas próprias incertezas da artista em relação à sua saúde e à recuperação da perna e da coluna –

destacadas no desenho. Ao invés dos braços, ela se representa com duas asas, referência

observada em outras produções, uma vez que, para vencer as dores e desprender-se do colete e

das lacerações, ela necessitaria delas. A página seguinte do diário é também ocupada por uma

grande pintura, além dos versos do mesmo Rafael Alberti. Frida acrescenta reticências ao

poema, cujos versos remetam, provavelmente, aos seus próprios enganos:

Em vez do norte foi ao sul

Se equivocava...............

Acreditou que o trigo era a

água

Se enganava.................

(KAHLO, 2010, p. 277) Livre tradução minha.31

Para além do discurso, por vezes intrincado, deparamo-nos com as supressões de várias

páginas do diário da artista. Existem lacunas, lapsos, que nos instigam a pensar na continuidade

do texto, no dito e no interdito. O vazio das páginas nos remete à incompletude, já que as

produções referentes às inúmeras internações e a amputação estão plenas de vazios. Muitas

páginas foram arrancadas do diário, o que indica a leitura prévia do mesmo por outro leitor,

além do próprio alter ego. Os relatos a posteriori da amputação, inexistem, remetendo-nos,

primeiramente, ao caráter íntimo da obra, que a rigor é escrita para ser desfrutada pelo próprio

30

Poema: Se equivocó la Paloma, da autoria de Rafael Alberti.“Se equivocó la paloma. / Se equivocaba. / Por ir

al norte, fue al sur. / Creyó que el trigo era agua. /Se equivocaba.

Creyó que el mar era el cielo; / que la noche, la mañana. /Se equivocaba.

Que las estrellas, rocío; / que la calor; la nevada. / Se equivocaba.

Que tu falda era tu blusa; / que tu corazón, su casa. / Se equivocaba.

(Ella se durmió en la orilla. /Tú, en la cumbre de una rama.)”

Capturado da internet: ocastendo.blogs.sapo.pt/tag/civil 31

Texto original em espanhol: En vez del Norte fué al Sur/ Se equivocaba........../ Creyó que el trigo era el/ agua./

Se equivocaba........../ (KAHLO, 2010, p. 277) Livre tradução minha. A reprodução do texto encontra-se no

ANEXO IV.

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autor.

A maioria das obras de Frida remete à dor, textos e telas são seu retrato fiel, seu espelho. A

amputação da perna, sentida através da laceração da carne, é intensamente percebida pela

artista, tanto pelo longo exílio no hospital, quanto pela dor da falta e constatação do agigantar

do sofrimento. Nos momentos das lacerações mais agudas, o amor de Frida por Diego torna-se

sustento. É por ele e para ele que a artista vive.

A inclinação para a morte permeia os pensamentos de Frida nos últimos meses da

existência. As dores a consomem e a morte afigura-se como solução. E mesmo imersa no

sofrimento, ela pensa e dedica-se profundamente a Diego.

No decorrer da existência, a experiência do dilaceramento também se fez presente na

experiência da pretensa maternidade. Frida vivenciou curtas gestações por três vezes e, em

todos os casos, perdeu os bebês “em rios de sangue”. Tudo mostrou-se doloroso, ainda que as

gestações perdurassem poucos meses, devido aos inúmeros problemas de saúde da artista, a

frágil estrutura física e os vários ossos quebrados, além das dores lancinantes na coluna. Ao

registrar as impressões da gravidez ela diz-se completamente sem apetite, com dores e, acima

de tudo, com bastante receio de o corpo não resistir à experiência do parto.

Tudo na vida da artista é intenso, inclusive o dilaceramento, que não se atém somente aos

ossos e cortes, mas, contamina o corpo alquebrado de Frida. Nenhuma gestação é levada a

termo. Todos os procedimentos pós aborto envolver dor – ainda mais – e sobra na artista um

vazio provocado pela não realização da maternidade – o mais perto que ela chegará desse

sentimento será através do devotamento aos sobrinhos, filhos de Cristina, e, após muitos anos

de casamento, a própria postura maternal que ela irá assumir perante o marido, Diego Rivera.

Os abortos representam lacerações a mais na vida de Frida e serão por ela transmutados em

inspiração para a produção de telas sobre o tema e escritas de cartas. Somente a pintura fornece

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elementos para que a artista conviva com tamanhas dores e preencha a vida, segundo suas

próprias palavras (2006): “Perdi três filhos e uma série de outras coisas que teriam preenchido

minha vida pavorosa. Minha pintura tomou o lugar de tudo isso”32

.

A decisão de engravidar, ainda que o corpo apresente-se triturado, é de Frida. Após o

casamento, ela contraria os médicos e decide engravidar:

Revolucionária, Frida o é até o mais profundo do ser, (...) ela decide

desafiar pela primeira vez a proibição dos médicos e gera uma criança,

que não pode pôr no mundo. (Le CLÉZIO, 2010, p. 90)

Frida paga o preço da sua teimosia e passa pela experiência do aborto de forma traumática,

já que perde a criança. Nesse momento, as cartas aos amigos e médicos sobre os problemas e a

pintura, figuram-se como únicos alentos possíveis para a dor.

Apenas dois anos após a primeira tentativa, Frida engravida pela segunda vez. Por já ter

vivenciado a experiência da perda, está temerosa. Durante esse período, de extrema aflição e

incerteza, escreve lo33nga carta ao Dr. Leo Eloesser, aos 26 de maio de 1932. A carta

assemelha-se a uma consulta feita à distância e representa, outrossim, o desabafo da artista

perante um aspecto tão singular de sua vida, o qual pode representar tanto vida quanto morte.

Ela necessita, muito mais que uma consulta, de uma orientação sobre qual caminho deverá

seguir, já que está exilada, em outro continente, apartada do solo natal, que tanto ama e distante

dos seus:

O mais importante, e a coisa principal sobre a qual quero fazer-lhe uma

consulta, é que estou grávida de dois meses. (...) Considerando minha

32

Texto extraído da autobiografia de Frida Kahlo, datada de 1953. (Apud ZAMORA, 2006, p. 157)

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saúde, achei que seria melhor fazer um aborto. Disse-lhe isso e ele me

deu quinino e um óleo de rícino muito forte como purgante. Um dia

depois de tomar isso, tive um sangramento muito ligeiro, quase nada.

Perdi algum sangue durante cinco ou seis dias, mas muito pouco. (...)

Ele me examinou e disse estar totalmente certo de que não abortei e que

seria muito melhor conservar a criança, em vez de provocar um aborto

através de uma cirurgia. (Apud ZAMORA, 2006, p. 47)

Frida teme pela sua própria saúde. Pensa em si, em Diego e reflete sobre o fato de passar

pela experiência do parto longe dos seus. Devido ao longo afastamento, ela precisa do

acompanhamento de outro médico, porém, o conselho ansiosamente esperado, é o que provém

da opinião do médico de sua confiança.

A gravidez prossegue, entre dores e sofrimentos. A angústia da indecisão sobre prosseguir

ou não com a gestação a atormenta e representam um dilaceramento a mais. Ao fim de três

meses e meio, a segunda gestação da artista é interrompida de forma traumática:

Na sufocação do verão do Michigan, Frida vive o horror. (...) Na noite

de 04 de julho, Frida perda a criança em meio a terríveis sofrimentos e

se esvai em sangue. Diego a acompanha na ambulância que a leva para

o hospital Ford, tenta acalmar suas crises de desespero. Nos dias

seguintes, ela lhe leva tintas e lápis, e os desenhos que ela faz ajudam-

na a superar a tragédia. Ele sabe que é o único meio que ela tem de

sobreviver. (Le CLÉZIO, 2010, p. 121)

O dilaceramento sentido por Frida Kahlo, principalmente nos anos anteriores à sua morte,

através das inúmeras cirurgias e amputações, também foi verificado nos abortos que sofreu,

uma vez que todos eles envolveram sofrimento para a artista. Foram grandes dores até que os

fetos fossem completamente expelidos, em rios de sangue, o que agravava, ainda mais, o

quadro de fragilidade em que se encontrava. Nesses momentos, somente a pintura representava

sobrevivência.

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A pintura e a vontade de viver impulsionam a artista, a despeito dos sofrimentos e do

aparente aspecto de alegria e conformidade, sentidos após o evento traumático, pois, segundo

Le Clézio na obra Diego e Frida: “... na verdade, sob a aparente alegria, esconde uma angústia

profunda, uma crescente melancolia que envenenam sua existência desde a perda do filho, no

hospital de Detroit, e a morte de sua mãe.”33

A segunda gestação de Frida e, a consequente

perda da criança, coincidem com a morte da genitora.

Imersa na perda, somente a pintura poderia indicar sobrevivência em meio a morte -

representada pela interrupção da gravidez, devido ao infantilismo nos ovários e o falecimento

da mãe, durante uma operação na vesícula. Nesse sentido, a pintura de Frida ganha total

empenho da artista, já que as telas a representam e espelham a dor da perda, que ao ser

produzida, reflete sua imagem. Os quadros produzidos por Frida a auxiliam a viver, na medida

em que expressam as mazelas, sem escamoteação. Tendo em vista que a dor é o motor das

produções, compreendemos a necessidade da pintura, mesmo nos momentos das longas

internações. Mais que produzir telas, a pintura representava suportar o dilaceramento. Frida

expressa o significado da pintura em sua existência:

Uma vez que meus temas sempre foram minha sensações, meus estados

de espírito e as reações profundas que a vida tem causado dentro de

mim, muitas vezes materializei tudo isso em retratos de mim mesma,

que eram a coisa mais sincera e real que eu podia fazer para expressar o

que sentia a meu respeito e a respeito do que eu tinha diante de mim.

(Apud ZAMORA, 2006, p. 106)34

Dois anos mais tarde, Frida passará pela experiência do terceiro aborto. Para sempre ficará

33

Le CLÉZIO, Diego e Frida. Rio de Janeiro. Record, 2010. 34

A carta encontra-se reproduzida, na íntegra, no ANEXO V.

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ressentida de não ter realizado o desejo da maternidade e pintará vários retratos em que

aparecem bebês e a representação dos fetos que perdeu.

Um pouco antes da partida, ela participa de importante manifestação contra a intervenção

norte-americana na Guatemala, e, na ocasião, verbaliza o desejo de ser mãe, como nos relata Le

Clézio (2010): “Na véspera da manifestação, Frida encontrou Adelina Zendejas, que devia

partir para a Guatemala, e chegou a lhe pedir que trouxesse uma criança indígena de lá para

adotar”.35

Finalmente, como que pressentindo o fim, esgotada de tantas cirurgias e sofrimentos,

despede-se da vida, segundo nos relata o companheiro Diego Rivera: “Ela me deu o anel que

tinha comprado quando do nosso 25º aniversário, que deveria acontecer dali a 17 dias. Eu lhe

perguntei por que ela me presenteava tão cedo, e ela me respondeu: “Porque eu sinto que vou te

deixar em breve.””36

Os sentimentos de Frida comprovaram-se verdadeiros.

35 (CLÉZIO, 2010, p. 228) 36

(CLÉZIO, IDEM)

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3. O RETRATO DE UM DOS BONDES

Cama com dossel

Com amizade e afeição diretos ao coração,

tenho o prazer de convidá-lo para minha

humilde exposição.

[...]

Esses quadrados pintados,

que pintei com minhas mãos,

aguardam nas paredes ser

amados por meus irmãos.

Frida Kahlo37

No decorrer do ano de 1954, Frida Kahlo pinta o último quadro de sua vida intitulado:

"O marximismo irá curar os doentes", ao modo de um dos ex votos38

que são tão característicos

de suas pinturas. Nessa tela, a artista se retrata apoiada em sua ideologia, sustentada pelas mãos

do marxismo – ela descarta as muletas e mantém-se ereta. A respeito desse quadro, disse: “Pela

primeira vez, deixei de chorar.” (Apud KETTENMANN, 2006, p. 85). Sua pintura parece

expressar um pulsante desejo: o de cura e alívio para as dores. Acima de tudo, esperança no

restabelecimento, através da convicção política. No entanto, o desejo de libertação das muletas

e do pleno restabelecimento, não acontece como esperado. A saúde de Frida não acompanha

37

De 13 a 27 de abril de 1953, a única exposição individual de Frida Kahlo no México realizou-se na Galeria del

Arte Contemporâneo. Frida mesma redigiu o convite para a exposição: “Con amistad y cariño/ nascidos del

corazón/ tengo el gusto de invitarte/ a mi humilde exposición. [...] Estes cuadros de pintura/ pinté con mis próprias

manos/ esperan en lãs paredes/ que gusten a mis Hermanos” (Apud ZAMORA, 2006, p. 156). 38

“Ex-voto” é uma palavra latina que significa “proveniente de uma promessa ou voto”. O conceito de uma

oferenda votiva em agradecimento a alguma divindade por um pedido realizado está no ar há muitos séculos. As

referências mais antigas, os objetos oferecidos a Apolo no santuário de Delfos, datam do sec. V A.C. A tradição

dos ex-votos foi trazida às Américas pelos colonizadores. Dizem que Hernan Cortez, o conquistador do México,

encomendou a um ourives um ex-voto de ouro e esmeraldas em forma de escorpião em agradecimento por ter

sobrevivido à picada deste inseto. A partir do século XVI, os ex-votos deixam de ser exclusivos dos ricos e

aparecem cada vez mais em imagens populares. Capturado do site: http://www.galeriapontes.com.br

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seus anseios. Pelo contrário, o vigor se esvai acentuada e cotidianamente. Ao pintar a última e

expressiva tela, estava no final dos esforços e completamente desgastada pela amputação da

perna, ocorrida no ano anterior. O estado de saúde é tão grave que cogita-se cancelar a única

exposição individual de suas obras – é Diego quem decide acelerar os preparativos para a

grande retrospectiva prevista pelo Instituto de Belas-Artes e oferecer a Frida uma festa – será a

última, como podemos verificar no comentário abaixo, extraído da obra Diego e Frida, da

autoria de Le Clézio:

No dia 13 de abril, Frida está tão doente que Lola pensa por um instante

em cancelar a exposição. Mas Diego tem a espantosa ideia de

transportar a grande cama com dossel de Frida até o centro da Cidade

do México. O leito é montado na galeria, Frida chega numa ambulância

– pousam-na delicadamente -, usando seu mais bonito vestido zapoteca,

maquilada, e com seus brincos de ouro e turquesa. Entre as sete e meia

e as 11 horas da noite, conta Lola Álvares Bravo, um público

emocionado e entusiasta lota a galeria, e exprime sua admiração e

afeição pela mulher sofrida que sorri heroicamente no leito onde pintou

a maioria de seus autorretratos (Le CLÉZIO, 2010, p. 224).

O estado de saúde da artista é tão precário e delicado que o transporte só é possível

através do leito. O público presente alterna espanto e admiração ao constatar que ela chega de

ambulância, em sua própria cama. A exposição coroa os trabalhos produzidos pela artista,

durante toda a existência. Todas as fases da sua vida estão presentes nessa exposição

autobiográfica, que conta a vida de Frida por Frida. Sem lamentação e com a imensa

capacidade de conviver com as adversidades, sem deixar que elas lhe paralisem a vida, ela

adentra a exposição, sem ocultar a condição frágil e os ferimentos. Antes, ela os expõe,

enfrenta o público, como salienta Fuentes, no prefácio do Diário de Frida Kahlo (2010): “Era a

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entrada de uma ditosa asteca, quiçá Coatlicue39

, a mãe envolta em saias de serpentes, exibindo

seu próprio corpo lacerado e suas mãos ensangüentadas, como outras mulheres exibem seus

broches”.40

Sem escamoteação, a artista enfrenta o dilaceramento - atitude compatível com o

sentimento de coragem e enfrentamento perante a vida. A imobilidade do leito não cala Frida,

que se produz para o evento, a despeito da fragilidade física, segundo o mesmo Fuentes (2010):

“Frida Kahlo, dizendo a todos os presentes que o sofrimento não enfraqueceria, nem a

enfermidade faria rançosa, sua infinita variedade feminina.”41

À semelhança de Coatlicue - deusa da fertilidade, padroeira da vida e da morte, guia do

renascimento – a ida de Frida à exposição representa um sopro de vida, na já anunciada

deterioração. Fuentes, a compara a citada deusa, que tem amplas representações na cultura

mexicana. Poderíamos supor na acepção vida e morte, presentes na representação da deusa,

pois, no momento da exposição, a existência pende entre a vida e o fim dela.

A exposição das obras de Frida Kahlo foi um sucesso, porém havia um olhar de

despedida no semblante da artista, segundo o amante/amado Diego Rivera: “Frida ficou na sala,

pacificada e feliz, contente por ver o grande número de pessoas. Ela não disse praticamente

nada, porém, mais tarde, eu pensei que ela certamente percebia que dava adeus a vida.” (Le

39 -Coatlicue na mitologia mexicana é a deusa da fertilidade, padroeira da vida e da morte, guia do renascimento,

(...) venerada como a mãe dos deuses, entre seus atributos foi descrita como uma mulher vestindo uma saia de

serpentes, ter seios caídos, simbolizando a fertilidade e um colar de mãos humanas e os corações que estavam

arrancadas das vítimas de seus sacrifícios, tinha garras afiadas em vez de mãos e pés, como a deusa mãe dos

astecas, o marido era Mixcoatl, segundo fontes, a virgem deu à luz a Huitzilopochtli. Capturado do site:

http://es.wikipedia.org/wiki/Coatlicue

40 Texto original em espanhol: Era la entrada de una ditosa azteca, quizá Coatlicue, la madre envuelta en faldas de

serpientes, exhibiendo su próprio cuerpo lacerado y sus manos ensangrentadas como otras mujeres exhiben sus

broches. (Kahlo, 2010, p. 07) Livre tradução minha.

41 Texto original em espanhol: Frida Kahlo, diciéndonos a todos los presentes que el sufrimiento no marchitaría, ni

la enfermidad haría rancia, su infinita variedad feminina. (KAHLO, 2010, p. 08). Livre tradução minha.

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CLÉZIO, 2010, p. 225)

Ironicamente, só é possível que Frida visite a própria exposição acamada. Justo no local

onde o dom da pintura foi despertado, ocorre, dessarte, a celebração de toda a existência

dedicada à pintura e à autobiografia. A grande cama com dossel é agora extensão de seu corpo,

uma vez que não pode viver longe dela.

A cama que a aprisiona nos remete, à vista disso, ao acidente de ônibus sofrido, quando

contava com 18 anos, segundo nos descreve Fuentes:

E a cidade que Frida tanto amava e tanto temia, lhe atacou sem piedade.

Em setembro de 1925, um bonde se chocou contra o raquítico ônibus

em que Frida viajava, e rompeu a coluna vertebral, o pescoço, as

costelas e a pélvis. Sua perna enferma sofreu na hora onze fraturas. Seu

ombro esquerdo permaneceu para sempre deslocado e um dos seus pés,

irremediavelmente lesionado. Um corrimão lhe penetrou pelas costas e

saiu pela vagina. (...) Despojada das roupas, o corpo desnudo de Frida

recebeu, como um orvalho fantástico, o chuvisco de um pacote de ouro

em pó que levava para o seu trabalho de artesanato. (KAHLO, 2010, p.

12)42

A descrição do acidente nos oferece a dimensão do dilaceramento. As condições adversas

que envolvem o evento causam estranhamento pela singularidade – a artista estava em

determinado ônibus, mas, decidiu descer do coletivo e subir em outro transporte público, para

procurar a sombrinha que havia perdido. Soma-se a isso o banho de ouro em meio ao sangue e

a carne dilacerada. O improvável, que se presentifica por ocasião do acidente, permeia a

existência. O acidente marcará para sempre a vida da artista.

As palavras de Frida acerca do ocorrido, nos fazem ver o acidente pelos seus olhos. Ela

transmite as sensações percebidas, de forma pontual e parece aprender o sentido da expressão

42

Texto original em espanhol: Y la cidadd que Frida tanto amaba y tanto temia, la ataco sin piedad. En septiembre de 1925,

un tranvía se estrelló contra el raquítico camión en el que Frida viajaba, le rompió la columna vertebral, el cuello, las costillas,

la pélvis. Su pierna enferma sufrió ahora once fraturas. Su ombro izquierdo quedó para siempre dislocado y uno de sus pies,

irremediablemente lesionado. Un pasamano le penetro por la espalda y le salió por la vagina.(...) Despojado de la ropo, el

cuerpo desnudo de Frida recibió, como un rocio fantástico, la llovizna de un paquete de oro en polvo que llevaba a su trabajo

un artesanato. (KAHLO, 2010, p. 12) Livre tradução minha.

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mexicana aguantar: “suportar a dor”. Le Clézio, ao discorrer sobre o acidente, na obra Diego e

Frida, nos oferece o depoimento da artista:

Não é verdade que a gente perceba o choque, não é verdade que a gente

chore. Eu não tive lágrimas. O choque nos projetou para adiante, e um

dos corrimões do ônibus atravessou-me como a espada atravessa um

touro. Um transeunte, vendo que eu estava com uma terrível

hemorragia, carregou-me e me pôs numa mesa de bilhar, onde a Cruz

Vermelha cuidou de mim. (Apud Le CLÉZIO, 2010, p. 53)

O choque é tão violento que a artista parece não senti-lo. A princípio temos a sensação

que Frida não mensurou a gravidade de acidente, nem dos ferimentos. Ela manteve-se

consciente em todos os momentos e acompanhou as ações que se seguiram ao desastre.

Segue-se ao acidente longo período de internação. Após o exílio no hospital, Frida

permanece largas semanas acamada, presa ao leito. Engessada, imobilizada. À semelhança da

ostra, presa à concha, a pintora permanece encarcerada ao casulo da sua cama, seu universo

durante todo o restabelecimento. Não há fuga, nem para o olhar, que precisa olhar sempre para

as mesmas direções e ângulos. Impossível se virar. Ela, então, começa a pintar justamente no

período da convalescência, quando precisa permanecer engessada, devido às inúmeras fraturas.

O aborrecimento por ela sentido é tão grande que a mãe de Frida se ocupa com as dores

e a solidão. Não havia o que fazer para amenizar a dor, não existiam lenitivos possíveis. Nesse

momento, a alternativa para Frida é a pintura:

Minha mãe pediu a um carpinteiro que me fizesse um cavalete de

pintor, se é que isso se podia chamar ao material especial que se

conseguiu montar na minha cama, pois eu não me podia sentar por

causa do gesso. E assim comecei a pintar o meu primeiro quadro: o

retrato de um amigo (Apud KETTENMANN, 2006, p. 18).

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Nessa época de plena convalescência: “Também se colocou um dossel com um espelho

que cobria toda a parte de baixo da cama de modo a que Frida se pudesse ver e ser o seu

próprio modelo” (Idem, p. 18). Assim começaram os quadros autobiográficos da pintora, que

retratam toda sua existência, desejos e sofrimentos.

A cama, nessa perspectiva, torna-se seu locus preponderante. O lugar que, para muitos,

é sinônimo de prazer, de deleite e repouso, para Frida torna-se o local do restabelecimento e da

impossibilidade - de caminhar, andar, ir e vir. Malgrado o lugar que a aprisiona, ela vence o

paradigma do cerceamento e comprova que, mesmo envolta em aguda dor, é capaz de produzir,

de se tornar agente e não apenas a esperada paciente.

Além do dilaceramento, outro fator preponderante na vida – e obra – é a solidão. Nos

momentos mais difíceis e dolorosos da existência, ela está só – uma solidão agigantada pelos

diversos períodos de internação hospitalar e pela mudança de residência.43

Em diversas dessas

ocasiões ela sofre só.

À vista disso, nesses períodos, o diário e as cartas são importantes alternativas de

contatos possíveis com o mundo e consigo mesma. No longo período de internação e

convalescência, que se seguiu ao acidente ocorrido no ano de 1927, Frida manteve intensa

correspondência com o então namorado Alejandro Gómez Arias, o qual estava com ela no

momento do acidente (os dois romperam algum tempo depois). O que se depreende das

correspondências é um desejo de compartilhar o sofrimento físico e espiritual com Alejandro –

logo depois do acidente, Alex (como Frida o chamava), foi estudar em outro país. As cartas

eram a única forma de contato possível. Em uma delas, ela conta sobre o angustiante colete de

43 Segundo Carlos Fuentes, no texto de orelha do Diário de Frida Kahlo (2010), tradução livre minha: “Esse

documento pessoal [...] revela sua enorme coragem face às mais de trinta e cinco operações a que teve de se

submeter para tentar corrigir as sequelas de um acidente que sofreu aos dezoito anos”. No original em espanhol:

“Este personal documento [...] devela su enorme coraje ante las más de treinta y cinco operaciones a las que tuvo

que someterse para intentar corregir las secuelas de un accidente que sufrió a los dieciocho años”.

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gesso:

Como eu gostaria de poder explicar-lhe, minuto a minuto, meu

sofrimento! Desde que você se foi, piorei, e nem por um momento

consigo consolar-me ou esquecê-lo. Na “sexta-feira” eles me puseram o

gesso e, desde então, tem sido um verdadeiro martírio, que não se

compara a coisa alguma. Sinto-me sufocada, meus pulmões e minhas

costas inteiras doem terrivelmente; nem sequer consigo tocar em minha

perna. Mal posso andar, muito menos dormir. Imagine, eles me

penduraram pela cabeça por duas horas e meia, e depois fiquei na ponta

dos pés por mais de uma hora, enquanto secavam [o gesso] com ar

quente; mas quando cheguei em casa, ainda estava completamente

úmido.

[...]

Não deixaram Adriana nem ninguém mais entrar, e fiquei sofrendo

horrivelmente, sozinha.

Enfrentarei este martírio por três ou quatro meses e, se não ficar boa

com isso, sinceramente quero morrer, porque não aguento mais (Apud

ZAMORA, 2006, p. 31-32).44

O trecho da longa carta, revela o intento da pintora de declarar o sofrimento para Alex.

Ela não o poupa das mazelas, antes, ressente-se por não poder explicar-lhe detalhadamente

todo o padecimento. As dores são descritas de maneira a serem compartilhadas com o

namorado ausente. Ela detém-se em discorrer sobre o gesso, justamente por representar grande

tortura, exatamente por lhe tolher todos os movimentos, impedir-lhe a respiração, locomoção e

o sono. O tempo de colocação do gesso representa longas horas em que Frida permanece

imóvel, nua, abandonada à solidão, sem ter companhia para amenizar o fardo. São largas

semanas sem andar, sem se virar, sem sair da cama, sem conseguir dormir com conforto. O

repouso é torturante para a adolescente acostumada à liberdade e a prisão - representada pelo

gesso e pela cama - e somente encontra indulto com as cartas e telas.

É através das produções que Frida encontra formas de convivência com as dores

44

A presente missiva encontra-se reproduzida no ANEXO VI

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incessantes e intensas. O que a sustenta, nos meses que precisa permanecer imóvel, com dor,

são as telas e cartas que provém de si. Os ossos, que segmentados, impedem os movimentos e o

gesso que torna penosa a respiração. Nesse sentido, as correspondências representam

possibilidades tanto de aproximação com o amante, quanto de ratificação da dor. A carta tem,

outrossim, a função de registrar a solidão e a exaustão física por ela vivenciada, já que nos

momentos de maiores dilaceramentos ela permaneceu só.

A forma encontrada por Frida para conviver com o isolamento e a dor deu-se através da

escrita das cartas e da pintura, uma vez que ela mesma esclarece: “Eu pinto-me porque estou

muitas vezes sozinha e porque sou o tema que conheço melhor” (Apud KETTENMANN, 2006,

p. 18). Sozinha, olhando para si mesma no reflexo do espelho, Frida começa a representar-se,

usando tintas e palavras. E, justamente nesse momento, de total dilaceramento, de dores

incessantes, ela começa a pintura dos quadros, que a despeito das dores físicas e da solidão,

serão sua companhia. Parece-lhe impossível dissociar a pintura da vida. Mesmo em algumas

cartas, quando o assunto eram as cirurgias, ela desenha o tipo de operação feita, de modo a

descrever para seu interlocutor, com maior riqueza de detalhes, o infortúnio.

No período que se segue ao acidente, ela escreve inúmeras cartas ao namorado e, em

todas elas, esmiúça as dores. Uma vez que ele encontra-se afastado, somente as cartas o

aproximariam. Logo, a artista demora-se na dor. Descreve, pacientemente as sensações, como

podemos verificar em trecho da longa carta escrita a Alejandro Gómez Arias em setembro de

1926:

Tudo era misterioso e havia algo oculto; adivinhar-lhe a natureza era

um jogo para mim. Se você soubesse como é terrível obter o

conhecimento de repente – como um relâmpago iluminando a terra!

Agora, vivo num planeta dolorido, transparente como o gelo. É como se

houvesse aprendido tudo de uma vez, numa questão de segundos.

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Minhas amigas e colegas tornaram-se mulheres lentamente. Eu

envelheci em instantes e agora tudo está embotado e plano. Sei que não

há nada escondido; se houvesse, eu veria. (Apud ZAMORA, 2006, p.

27)

A dor amadurece Frida. Mais que o choque com o bonde e os ossos quebrados, a

experiência da dor e da solidão a transformam. O sofrimento a envelhece. A percepção da vida,

a partir do contato com o dilaceramento, faz com que a artista enxergue tudo, sem ilusões. A

descarga de sentimentos, advindos da experiência do dilaceramento, que a introduzem no

“planeta dolorido”, deixarão transparente os desejos, as ilusões, a vida como ela é, aprendida na

lição da dor.

Não se trata, contudo, do envelhecimento provocado pelo passar dos anos, pelo fato de se

usufruir a vida, mas, o envelhecimento provocado pelo sofrimento. Sai transformada pelas

dores contínuas, intermitentes, agudas, a artista sente o peso do amadurecimento.

Diferentemente do que ocorre com a narradora da obra O amante, que, forçosamente

envelheceu após a experiência do sofrimento e elaborou o discurso na madureza, ela amadurece

muito jovem e ainda no frescor da vida registra as sensações sobre o envelhecer. As palavras de

Duras registram, além da destruição, o envelhecimento físico: “Tenho um rosto dilacerado por

rugas secas e profundas, sulcos na pele. Não é um rosto desfeito, como acontece com pessoas

de traços delicados, o contorno é o mesmo mas a matéria foi destruída. Destruído.” (DURAS,

1985, p.8). A matéria destruída da narradora remete ao sofrimento sentido, às experiências que,

de tão profundas e difíceis, envelhecem. Remetem ao inominável, que é impossível de ser

completamente descrito.

As experiências dolorosas que transformam a existência não podem ser revertidas, cabe ao

ser seguir transmutado, pois, ainda que o sofrimento seja desfeito, a experiência do rompimento

com as expectativas que se frustram, não mais deixarão o ser retornar ao estado original, já que

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o encontro com o sofrimento não pode ser apagado. O envelhecimento de Frida remete ao

sofrer – é justamente por força das dores que ela amadurece. Frida registra o adentrar no mundo

dolorido em outra correspondência, ao mesmo Alejandro Gómez Arias. Contrariamente às

outras missivas, em que Frida escreve extensos textos discorrendo sobre os sentimentos,

cirurgias, cortes e solidão, explicando-se em longas frases, ela escreve uma carta com inúmeras

reticências e uma só sentença:

...............................................

A única coisa boa é que estou começando a me acostumar a sofrer

...............................................

(Apud ZAMORA, 2006, p. 25)

A carta basta-se. A única frase escrita, em meio às reticências, indicando uma história

pregressa e também eventos futuros, representa longo texto. A frase dispensa maiores

explicações, pois é completa no sentido de explicar os sentimentos da artista, após tantas

intervenções e dores persistentes. Para os que estavam acompanhando a dor de Frida, a frase a

resume.

Alejandro foi confrontado com a dor da artista, pois, ainda que tivesse se mudado para

outro país, ainda que não tivesse acompanhado o sofrimento do gesso e das inúmeras cirurgias

– ela o levou a ver sua dor, através das longas cartas descritivas. Mais, a artista o confrontou,

descortinou a realidade. Ela não permitiu que ele a esquecesse ou a ignorasse, já que as longas

cartas enviadas, traçavam o percurso da dor. A agonia da solidão.

O bonde, os cortes, as internações, os períodos de solidão, o gesso e, ainda, novas dores.

Frida começa, por força de todas as circunstâncias, a acostumar-se a sofrer, pois, os períodos de

dor que ela imaginou, inicialmente, serem curtos e a recuperação que ela supôs serem

completas, durarão toda a vida.

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Enfim, Frida entende o percurso da dor. Sabe que ela será uma companhia incômoda,

que, contudo, a acompanhará. Acostuma-se a ela.

3. 1. O MAIOR DOS BONDES

Diego fica na periferia de todas as relações

pessoais limitadas e definidas. É contraditório

como todas as coisas que incendeiam a vida; é

uma carícia imensa e, ao mesmo tempo, uma

violenta descarga de forças poderosas e únicas.

Frida Kahlo, sobre Diego Rivera45

O fundo tenro onde nascem a luz maravilhosa

de sua força biológica, sua sensibilidade tão

fina, sua inteligência resplandecente e sua

coragem invencível para lutar para viver e para

mostrar aos camaradas humanos como

enfrentar as forças contrárias e vencê-las a fim

de alcançar uma alegria superior, contra o que

nada poderá resistir no mundo do futuro.

Diego Rivera, sobre Frida Kahlo46

Não houve paixão à primeira vista. Frida precisou olhar para Diego Rivera outra vez

para sentir-se interessada por aquele grande homem, maduro, pintor de imensos murais. A

primeira vez que Frida Kahlo o viu, ele estava concluindo o mural A Criação, na escola onde a

adolescente estudava. As primeiras palavras endereçadas foram de zombaria, proferidas em

tom irônico para chamar a atenção daquele homem enorme, em uma entonação característica e

marcante da personalidade da artista. Nem o pintor, tampouco a então estudante, passaram

45 Apud Zamora, 2006, p. 144. 46

Apud Clézio, 2010, p. 227.

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incólumes pelo “encontro”.

Alguns anos depois, Frida Kahlo torna-se membro do Partido Comunista Mexicano

(PCM) e encontra-se, novamente, com Rivera. É no segundo olhar que a paixão acontece para

ambos. A partir da segunda vista, os dois passam a encontrar-se mais e mais e, um ano após o

segundo encontro, estão casados. Frida e Diego manterão um relacionamento que perdurará por

toda a vida da artista, não sem grandes atropelos.

Frida Kahlo, segundo Carlos Fuentes, na obra Diego e Frida, admitiu ter sofrido dois

grandes acidentes em sua vida, o choque do bonde com o ônibus – que a dilacerou por

completo – e Diego:

Frida e Diego: ela admitia que sofreu dois acidentes em sua vida, o do

trem e o de Diego Rivera. Do seu amor pelo homem, não resta dúvida.

(KAHLO, 2010, p. 20) Livre tradução minha”.47

As referências a Diego Rivera são abundantes na obra de Frida. Muitas das cartas falam

dele, seu nome é tema recorrente no diário da artista, onde existem inúmeros escritos a ele

endereçados. O diário, composto de temas reduzidos, é pleno de referências a Diego, consoante

Sarah M. Lowe, ao refletir sobre os temas privilegiados pela artista, na produção da escrita

íntima:

Um deles é, sem dúvida, sua devoção e sua paixão por Diego Rivera,

como cabe comprovar nas largas e ardentes cartas de amor ou nas

numerosas páginas que lhe dedica. Nelas, a pintora expressa incontáveis

emoções, que vão desde o seu desejo sexual, passando por um afeto

maternal, até a concepção mística de sua união.(KAHLO, 2010, p. 28)48

47 Frida y Diego: ella admitía que sufrió dos accidentes en sua vida, el del tranvía y el de Diego Rivera. De su

amor por el hombre no cabe duda.(KAHLO, 2010, p. 20). 48

Texto original extraído do prefácio do DIÁRIO DE FRIDA KAHLO: “Uno de ellos es, sin Duda, su devoción y

su pasión por Diego Rivera, como cabe comprobar en las largas y ardientes cartas de amor o las numerosas

páginas que le dedica. En ellas, la pintora expressa incontables emociones, que van desde su deseo sexual, pasando

por un afecto maternal, hasta la concepción mística de su unión. (KAHLO, 2010, p. 28) Livre tradução minha.

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Diego ocupou grande espaço, não só na vida, mas, outrossim, na obra da artista. Comparar o

relacionamento e o amor por Diego Rivera ao bonde que a atropelou, nos dá a dimensão exata

da intensidade dos sofrimentos dele advindos. As seqüelas do bonde permaneceram por toda a

vida, assim como a história apaixonada com Diego, que entre amores e desamores, permaneceu

até o desaparecimento da artista.

Os dilaceramentos presentificaram a vida de Frida Kahlo, embora, em determinadas

etapas, tenham se apresentado mais constantes e profundos. A maternidade não realizada foi

fato que marcou, profundamente, a existência, rubricada não só pelo dilaceramento físico, mas,

outrossim, por três abortos sofridos. O primeiro deles, ocorrido no México, foi seguido de

outros dois. Por ocasião da segunda gestação, ela apresentou-se bastante preocupada com sua

situação de saúde. Em extensa carta, endereçada ao Dr. Leo Eloesser, em 26 de maio de 1932, a

artista escreve sobre sua condição física, medos e anseios. A carta assemelha-se a uma consulta

feita à distância, dada a riqueza de detalhes que Frida oferece ao médico de sua confiança:

O mais importante, e a coisa principal sobre a qual quero fazer-lhe uma

consulta, é que estou grávida de dois meses. [...] O senhor crê que seria

mais perigoso fazer um aborto do que ter o bebê? Dois anos atrás, fiz

um aborto cirúrgico no México, mais ou menos nas mesmas

circunstâncias de agora, após três meses de gravidez. [...] Não tenho

comido bem. Não sinto fome e, com muito esforço, bebo dois copos de

leite integral por dia e [como] um pouco de carne e legumes. Agora,

porém, estou sempre com náuseas por causa desta gravidez e, sendo

assim, estou ferrada! Tudo me deixa cansada, porque minha coluna dói.

Minha pata também está com problemas, porque não posso fazer

exercícios e, em consequência, minha digestão está péssima! No

entanto, sempre tenho vontade de fazer muitas coisas e nunca me sinto

decepcionada com a vida, como nos romances russos. [...] Se o senhor

achar que preciso fazer a cirurgia de imediato, eu apreciaria que me

mandasse um telegrama discreto, para que não venha a ter problemas

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(Apud ZAMORA, 2006, p. 46-50; grifos da autora).49

São páginas e páginas em que ela descreve, para além do físico, as inquietações. Frida

se expõe, coloca-se em todas as linhas da carta desnudando seus medos, sua condição

fragilizada. Escreve e espera a resposta do “seu” médico, dada a confusão em que se acha

submetida em função da segunda gestação. A questão pulsante na carta é como ela deve

proceder em relação à gravidez.

Ainda mergulhada em dúvidas e incertezas, na noite de 4 de julho, Frida perde a

criança. Diego a acompanha em uma ambulância que a leva para o hospital Ford e tenta

acalmar suas crises de desespero. Nos dias seguintes, ele lhe traz tintas e lápis, e os desenhos

que ela faz são fundamentais para que possa superar a tragédia. Frida sabe que é o único meio

que tem de sobreviver. Durante as semanas que se seguem ao aborto, pinta e desenha sem

parar. A pintura torna-se o meio de escapar à angústia; assim como cada desenho, cada quadro,

cada carta que ela endereça àqueles que a cercam.

Em carta endereçada a Carlos Chávez, em 1939, ela fala sobre a pintura, que

representava para si algo como “retratos dela mesma”:

Na pintura encontrei um meio de expressão pessoal, sem que nenhum

preconceito me forçasse a fazê-la. [...] Uma vez que meus temas

sempre foram minhas sensações, meus estados de espírito e as reações

profundas que a vida tem causado dentro de mim, muitas vezes

materializei tudo isso em retratos de mim mesma, que eram a coisa

mais sincera e real que eu podia fazer para expressar o que sentia a

meu respeito e a respeito do que eu tinha diante de mim (Apud

ZAMORA, 2006, p. 105).

Embora o segundo aborto tenha sido bastante traumático, é durante o ano de 1934, que

49

A misiva encontra-se reproduzida no ANEXO VII

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tem a fase de mais infortúnios. Nenhum sofrimento já vivenciado – embora seja um

dilaceramento inimaginável para a maioria das pessoas, tamanho o grau de comprometimento

físico das seqüelas advindas do acidente – será comparado “a maior dor da vida de Frida”,

segundo suas próprias palavras, uma vez que:

Devido a um “infantilismo dos ovários”, a terceira gravidez de Frida

Kahlo é novamente interrompida aos três meses. É operada pela

primeira vez no pé direito e vários dedos têm que lhe ser cortados.

Diego Rivera tem um romance com Cristina, a irmã mais nova dela.

(KETTENMANN, 2006, p. 93).

A escuridão na vida de Frida inicia-se, nesse fatídico ano, pela terceira gravidez

interrompida, envolta em angústia. O terceiro aborto aponta para a impossibilidade da

maternidade, para a não realização do desejo de conceber e parir, para a certeza de que seu

corpo alquebrado não suportaria o peso de uma criança, sedenta de espaço para crescer, pois os

ossos quebrados não lhe permitiriam a realização desse sonho. Esse incidente e a curetagem

efetuada pelo doutor Zollinger enfraqueceram ainda mais sua resistência. Somado à decepção

da terceira interrupção de uma gravidez, ela precisa submeter-se a uma cirurgia, em que os

dedos precisam ser amputados...

O sentimento de não ser capaz, de não produzir, de não frutificar exerce uma pulsante

culpa e desconstrói os sonhos atuais e juvenis. Sabe-se que, em algumas culturas, mulheres que

não têm filhos são vítimas de um estigma de negação, de falta. Frida carregou a perda de plena

capacidade física. O efeito mais devastador, que a relativa incapacidade lhe proporcionou, foi o

impedimento de ser mãe, de ser genitora, de ter filhos do (des)amor Diego.

No entanto, não são as perdas físicas – a amputação ou os abortos – que representam os

acontecimentos mais tenebrosos, o mais desesperador é o fato de Frida perder o chão naquele

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retorno ao México – depois da longa estada nos Estados Unidos - que ela tanto esperou, tanto

almejou. No retorno, ela se depara com os velhos demônios: a solidão, a dor, o aborto, a

amputação e a impressão de uma atmosfera lúgubre sobre a casa dos Kahlo – que a morte da

mãe tornou mais perceptível.

O ano de tristezas não terminaria sem um verdadeiro golpe para Frida: a traição de

Cristina, sua irmã mais nova, com seu marido: Diego Rivera. O pesadelo das trevas acontece

pela perda de tudo de uma só vez, em um só golpe: a chance da maternidade, a morte da mãe, a

amnésia do pai, o rompimento com a irmã e com o marido, a amputação. Cristina, desde o

nascimento, representou perda em sua vida. Nascida poucos meses após o parto de Frida, sua

mãe não pode mais amamentá-la por ocasião da gestação inesperada. Após o nascimento da

irmã caçula, Cristina, a mãe passa por uma grande depressão e não pode mais cuidar dos dois

bebês. Esse ressentimento acompanhará a artista e será relembrado em telas e escritos.

Frida e Cristina sempre tiveram convivência estreita, motivada, talvez, pela pouca

diferença de idade. Os sentimentos, em relação a irmã, sempre foram intensos e incluíram

disputa por leite, colo, espaço, carinho, amigos e irmãs. No entanto, apesar das comuns disputas

de irmãos, a artista sempre demonstrou ter grande consideração e afeto com ela. O retrato de

Cristina foi um dos primeiros trabalhos pintados por Frida em 1928, e foi justamente, o

primeiro quadro mostrado a Diego Rivera. Foi precisamente esta mulher, eleita pela artista para

ser retratada em sua tela, a irmã, que depois da separação do marido é acolhida na casa da

pintora, acompanhada dos dois filhos, que são por ela tratados como se fossem seus,

principalmente depois da constatação da impossibilidade de ser mãe, que causa dor e

sofrimentos profundos na vida da artista. É justamente sob o teto da irmã, que a sustenta

emocional e financeiramente, precisamente com a pintora que não economiza cuidados com os

membros da família, que ocorre a dupla traição de Diego e Cristina. A irmã foi figura de

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destaque em sua vida, como salienta Le Clézio, ao discorrer sobre a representação de Cristina:

Cristina, (...) é para Frida um duplo dela mesma: aquela que mais amou

e mais odiou na infância, com quem ela mais partilhou; aquela por

quem esperou em vão no hospital da Cruz Vermelha, depois do

acidente, aquela para quem não deixa de escrever durante o exílio nos

Estados Unidos. (Le CLÉZIO, 2010, 144)

Tal qual o acidente com o primeiro bonde, que deixa Frida completamente dilacerada, o

bonde chamado Diego Rivera a destrói. O dilaceramento e o abandono fazem-se repetir em sua

vida. A esperada visita de Cristina, no período de internação que seguiu-se ao acidente, não

ocorre, assim como, anos depois, partilhando o mesmo teto que a irmã, não ocorre a fidelidade.

Frida, antecipando o abandono, muda-se. Segundo o mesmo Le Clézio:

Sua natureza não suporta a mentira. Ela decide quebrar a máscara e se

precipita na própria solidão, abandonando Diego. Como está fora de

questão rever Cristina, ela se instala num apartamento da avenida

Insurgentes e tenta sobreviver – ela espera um gesto de Diego, uma

palavra, para voltar para ele, e o orgulho a impede de dar o primeiro

passo para sair da desgraça. (IDEM, 2010, p. 145)

Frida sofre e escreve. A escrita representa a única alternativa de sobrevivência.

Registrar seu sofrimento, ratificar a dor, contar repetidas vezes sobre a tragédia ocorrida, é a

alternativa possível de expurgar o infortúnio.

Apesar das dores advindas principalmente em decorrência do acidente sofrido na

juventude, apesar dos tantos ossos fraturados e carnes dilaceradas, a maior desgraça, segundo

as palavras de Frida, não foi o bonde que colidiu com o ônibus em que estava – com o então

namorado, Alejandro Gómez Arias – mas, outro e definitivo bonde – chamado Diego Rivera,

bonde esse, que esteve presente em diversas etapas de sua vida.

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Em longa carta endereçada aos amigos Ella e Bertram Wolfe, datada de 18 de outubro

de 1934, ela dá forma a sua grande dor:

Nunca sofri tanto e não pensei que pudesse suportar tanta dor. Vocês

nem imaginam o estado em que me encontro, e sei que vou levar anos

para sair desta confusão que tenho na cabeça. [...] Primeiro é uma

desgraça dupla, se posso explicá-la desta maneira. Vocês sabem melhor

do que ninguém o que Diego significa para mim em todos os sentidos, e

por outro lado, ela era a irmã que eu mais amava e a quem tentei ajudar

o máximo que pude; [...] Amo-os muito e confio o bastante em vocês

para não [lhes] esconder a maior dor de minha vida (Apud ZAMORA,

2006, p. 64-65).50

Parece-nos impossível imaginar que, após as dores sofridas, ainda exista lugar para a

“maior dor” em sua vida. A carta, em tom de desabafo, esclarece os detalhes da dupla traição e

desvela os sentimentos em relação à traição.

Não bastasse a dor de traída e preterida, a artista tem como protagonistas da mescla

desses amargos sentimentos, sua irmã Cristina e seu amor, Diego. Alma e corpo parecem

fadados ao padecer, ao esfacelamento, ao desmoronamento. Corpo e mente se diluem e

experimentam cortes e perdas, sem consolação nem anestesia. Nada conforta. Só a dor resiste a

tantas perdas, trazendo agudeza, ligeireza e nenhuma opção de melhora ou revide.

As cartas representam o contato com o exterior, já que ela encontra-se isolada de tudo e

de todos, apartada da família e da sociedade. Escrever, nesse sentido, funciona como um

contradepressor, representa uma forma lúcida de lutar contra a situação apresentada e não

entregar-se a tristeza profunda que acena, enfaticamente, para ela. Escrever significa

sobreviver.

Ela tem a necessidade da escrita, muito mais que da comunicação oral. A função

50

A correspondência encontra-se reproduzida no ANEXO VIII

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primeira das cartas é permitir que os seus sentimentos sejam exteriorizados, racionalizados,

escritos para ela mesma, primeiramente. Embora tenha enviado uma vasta correspondência e

embora no final de sua existência essa escrita tenha sido gradualmente substituída pelos longos

textos do diário, Frida não parece se importar em dar resposta às cartas que recebe. Em diversas

correspondências, a pintora desculpa-se pela falta de resposta. Fato inverso ocorre quando a

escrita parte dela, pois, nesse caso, existe o pedido expresso de que o outro não demore a dar

resposta. No início dessa mesma carta, ela diz: “Faz tanto tempo que escrevi, que não sei por

onde começar esta carta. Mas não quero dar desculpas longas e maçantes [...] sobre o motivo de

não haver escrito em tantos meses” (Apud ZAMORA, 2006, p. 64-65) .

Desabafo parece ser a melhor palavra para descrever a maneira como Frida expõe suas

dores. Os sentimentos parecem milimetricamente traçados nas correspondências que ela

escreve sem pressa, sem nenhuma necessidade de resumir a dor. As emoções, relativas tanto à

sua situação quanto à de Diego, são por ela descritas e destacadas – é muito comum nas cartas

palavras ou expressões sublinhadas, como se ela tivesse a necessidade de destacar

determinados acontecimentos para si e para o leitor. No trecho abaixo, continua a descrever

suas mazelas, permitindo-se adentrar e ver como está o turbilhão de sentimentos em que se

encontra:

As pessoas procuram por ele, e não por mim. Sei que, como sempre, ele

está cheio de inquietações e preocupações sobre seu trabalho, mas leva

uma vida plena, sem o vazio da minha. Não tenho nada, porque não o

tenho. Nunca achei que ele fosse tudo para mim e que, separada dele, eu

fosse um monte de lixo. Eu julgava estar ajudando-o a viver, tanto

quanto me era possível, e que eu era capaz de resolver sozinha qualquer

situação da minha vida, sem nenhum tipo de complicação. Mas agora

percebo que não tenho nada além de qualquer outra moça,

decepcionada por ser abandonada por seu homem. Não valho nada; não

sei fazer nada; não consigo estar sozinha. Minha situação me parece tão

ridícula e idiota, que vocês não imaginam o quanto desagrado e odeio a

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mim mesma (IDEM, 2006, p. 66-67).51

Frida consegue “pintar”, com a pena, um quadro autobiográfico. Após o mergulho nas

trevas das dores físicas e espirituais, enxerga melhor, como se a escuridão, ao invés de

obscurecer, tivesse proporcionado uma visão clara, aguda e experimentada de toda a vida

pregressa e atual. A traição dói, assim como a dependência financeira do marido – que se

preocupa somente consigo e com o seu trabalho. Dói também saber que não há nada de especial

nessa situação e que centenas de moças passam pelo mesmo conflito. O cotidiano espelha-se na

vida de Frida, como ela mesma diz em outra carta endereçada a mesma Ella Wolfe, segundo

Zamora (2006): “Além das doenças [...], das cartas perdidas, das discussões estilo Rivera, das

preocupações de natureza afetiva etc., minha vida é como o poema de López Velarde que diz...

igual a seu espelho cotidiano.”As traições fazem com que Frida se enxergue – ainda que não

goste da situação em que se encontre ou do papel de mulher dependente do marido. O principal

fator é a clareza com que descortina a situação, em meio à escuridão dos acontecimentos.

O inominável aparece em seu discurso. Por mais que escreva – a carta tem várias

páginas – não é possível transmitir todo o sofrimento sentido ao longo da missiva. A dor a

atordoa e, em meio ao turbilhão dos acontecimentos, ela opta pela separação, embora prevendo

que haverá lugar para um dilaceramento ainda maior e termina sua correspondência à maneira

das outras, com o desejo expresso de receber uma resposta e amainar a solidão que se agiganta:

Quando as coisas chegam a esse ponto, o melhor é cortá-las pela raiz.

Creio firmemente que esta será a [melhor] solução para ele, embora

signifique mais sofrimento para mim, mais ainda do que já tive e tenho,

e que é indescritível. [...] Se tiverem um tempinho livre, escreverão para

mim, não é? Suas cartas serão um consolo imenso, e eu me sentirei

menos sozinha do que agora (IDEM, 2006, p. 68-69).

51

A reprodução da correspondência encontra-se no ANEXO IX

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Os cortes no papel presentificam aqueles de sua vida. Cortes oriundos do acidente do

bonde. Os cortes das várias cirurgias que se fizeram presentes. A morte do pai, o corte na

relação com a mãe, que não a amava e apoiava como o pai. O corte com a relação com a irmã,

viabilizada com a traição com o Diego. O corte de sofrer três abortos e de ser impedida de ser

mãe. O corte com o mundo físico, em decorrência das inúmeras cirurgias e de se encontrar

restrita ao leito. O corte demorado e angustiado com Diego. Frida demora a por um fim nesta

relação e submete-se a variadas perfurações no amor devotado ao companheiro.

Tal qual o corte, a escrita perpassa as etapas de sua vida. Inclusive nas telas, onde o

sofrimento exposto parece não ser suficiente, imprime seus ex votos, de modo a corroborar a

mazela sentida.

Frida retratou os abortos não só através da pintura, antes, registrou essa frustração de

diferentes formas, ao longo de sua existência. Muito antes de passar pela experiência dos

abortos, em 1926, quando achou que nunca poderia ter filhos, elaborou o seguinte cartão:

LEONARDO

NASCEU NA CRUZ VERMELHA

NO ANO DA GRAÇA DE 1925,

NO MÊS DE SETEMBRO,

E FOI BATIZADO NA

CIDADE DE COYOACÁN

EM AGOSTO DO ANO SEGUINTE.

SUA MÃE FOI

FRIEDA KAHLO,

SEUS PADRINHOS,

ISABEL CAMPOS

E ALEJANDRO GÓMEZ ARIAS

(Apud ZAMORA, 2006, p. 26).

O cartão demonstra o desejo expresso da pintora de ser mãe. Frida idealiza o nome e o

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possível batizado da criança e, ironicamente, não fantasia um pai para a criança – o então

namorado, Alejandro Gómez Arias, com quem se relacionava na época do acidente e da

confecção do cartão, aos poucos, afastava-se mais e mais dela e aparece como “padrinho”.

Leonardo será somente seu filho. Talvez, ao imaginá-lo como um possível padrinho, ela

antevisse que os dois não ficariam enamorados durante muito tempo.

Frida sofre por amar demais. Por amar, em tão grande medida, mesmo sendo traída e

não correspondida. Deseja a fruição de sua dor. Extravasá-la, para que se sinta menos

atormentada, para que não questione tanto sobre suas escolhas, ou não se culpe por amar e não

ter a presença desejada, a lhe amparar, a lhe acalentar...

A escrita é o catalisador do único sentimento que se faz despertar: o dilaceramento, em

virtude das perdas físicas e emocionais. Da dor de não poder ir e vir, movimentar-se, andar. Da

dor proveniente dos cortes, das lacerações e extirpações, com que foi obrigada a suportar. Da

dor de sentir-se diminuída, desprotegida e sozinha, por estar acamada, impedida de andar, de

pintar, de usufruir da vida e da dor que estas marcas físicas exercem na alma, no íntimo de

quem as sofre. Nesse sentido, as cartas e o diário simbolizam o desejo de traduzir-se. Essa

tradução a pintora encontrará, amiúde, na escrita do diário, em que escreverá longas cartas de

amor e devoção a Diego Rivera.

Dentre os registros marcantes relativos a Diego, destacam-se páginas e páginas de escritos

endereçados ao amado. A necessidade de endereçamento é tão intensa em Frida, que ela

continua a escrever cartas, mesmo quando está de posse do diário. Uma vez que as cartas,

inseridas no livro íntimo, não seriam enviados ao companheiro, fica-nos a impressão que a

artista escreve para ela mesma sobre o amado. O início da missiva dá o tom da intensidade do

amor:

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Diego:

Nada comparável as tuas mãos/ Nem nada igual ao ouro – verde dos/

Teus olhos. Meu corpo se satisfaz/ de ti por dias e dias. És/ o espelho da

noite. A luz/ violenta do relâmpago. A/ umidade da terra. O/ oco das

tuas axilas são meu/ refúgio. Meu gomo toca o seu sangue. Toda minha

alegria/ é sentir brotar a vida da/ tua fonte – flor que a minha/ guarda

para regar todos/ os caminhos dos meus nervos/ que são teus.

(KAHLO, 2010, p. 213)52

A correspondência, escrita nos moldes de um poema de amor, nos faz mergulhar no vasto

sentimento de Frida. As palavras demonstram a singularidade do seu amor pelo pintor, através

das intensas comparações que utiliza. Ao dizer que Diego é “a luz violenta do relâmpago”

começa a esboçar a ideia do significado desse sentimento. Nada na vida da artista foi

convencional, seguindo uma justa medida, a desmedida é uma marca sua, logo, o amor também

não o seria. Diego, tal qual o luz do relâmpago, também traz tormenta à sua vida e a incerteza

das tempestades, anunciadas pelo clarão que as precedem.

Ao comparar Diego com “a umidade da terra”, temos a total compreensão do renascimento

e da manutenção da vida. A umidade é fundamental para que as plantas sobrevivam, renasçam,

existam. Sem a água que umidifica o solo, a vegetação pereceria. O pintor dá umidade à vida de

Frida. Em meio ao ressecamento da vida, em meio aos choques e internações, Diego surge para

dar novo vigor à sua existência e, também, novas preocupações.

Todo o longo texto, pleno de metáforas e comparações, é uma total entrega de Frida ao

amante. As palavras, ainda que insuficientes diante do afeto desmedido, procuram traduzir o

sentimento que a invade, como podemos observar nas linhas traçadas abaixo,

52 Texto original em espanhol: Diego:

Nada comparable a tus manos/ Ni nada igual al oro – verde de/ Tus ojos. Mi cuerpo se llena/ De ti por dias y dias.

Eres/ el espejo de la noche. La luz/ violenta del relâmpago. La/ humedad de la tierra. El/ hueco de tus axilas es mi/

refugio. Mis yemas tocan/ tu sangre. Toda mi alegria/ es sentir brotar la vida de/ tu fuente – flor que la mia/

guarda para llenar todos/ los caminos de mis nervios/ que son tuyos. (KAHLO, 2010, p. 213)52

. Livre tradução

minha.

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Meu Diego

Espelho da noite. Teus olhos espadas verdes dentro/

da minha carne. Ondas entre nossas mãos.

Tudo teu no espaço pleno de/ som – na sombra e na/ luz. Você se

chamará AUXOCROMO53

o que capta a cor. Eu/ CROMOFORO54

– a

que dá a cor./ Você é todas as combinações/ dos números. A vida. /

Meu desejo é entender a linha/ a forma a sombra o movimento/ Você

pleno e eu recebo./ Sua palavra recorre todo o/espaço e chegas às

minhas células/ que são meus astros e vai até as/ tuas que são a minha

luz.

Fantasmas55

.

(KAHLO, 2010, p. 214)56

Frida inicia a carta chamando Diego de seu - ainda que sob uma vida de intensas

traições. Após casamentos e divórcios, a artista parece aprender a conviver com o marido,

extraindo da relação amor e prazer. Novamente a repetição mostra-se na escrita e ela o chama

de “espelho da noite”. Interessante notar a escolha dos adjetivos para representá-lo – todos são

intensos e remetem, por vezes, ao desconhecido – como a própria noite – e ao que é fatal, como

a espada e as ondas. A artista demonstra a profundidade da relação através das palavras que

possuem sentido especial – “verde dos teus olhos”, “espelho da noite”, “luz violenta do

relâmpago”, “umidade da terra” – uma vez que não foram agrupadas aleatoriamente.

53 Auxocromo - química: grupo de átomos de retém a cor. Capturado do site: pt.wikipedia.org/wiki/ 54

Um cromóforo ou grupo cromóforo é a parte ou conjunto de átomos de uma molécula responsável por sua cor.

Também se pode definir como uma substância que tem muitos elétrons capazes de absorver energia ou luz visível,

e excitar-se para assim emitir diversas cores, dependendo dos comprimentos de onda da energia emitida pelo

câmbio de nível energético dos elétrons, de estado excitado a estado basal. Capturado do site:

pt.wikipedia.org/wiki/ 55

No diário íntimo de Frida Kahlo existem pinturas em toda a parte inferior da página. Ela escreve a palavra

“fantasmas” na parte lateral da página, de forma vertical, muito provavelmente para explicar que os desenhos eram

a representação de fantasmas. 56

Texto original em espanhol: Mi Diego/ Espejo de la noche. Tu ojos espadas verdes dentro/ de mi carne. Ondas

entre nuestras manos./Todo tu en el espacio lleno de/ sonidos – en la sombra y en la/ luz. Tu te llamaras

AUXOCROMO el que capta el color. Yo/ CROMOFORO – la que dá el color./ Tu eres todas las combinaciones/

de los números. La vida./ Mi deseo es entender la línea/ la forma la sombra el movimiento/ Tu llenas y yo recibo./

Tu palabra recorre todo el/ espacio y llega a mis células/ que son mis astros y vá a las/ tuyas que son mi luz.

Fantasmas.

(KAHLO, 2010, p. 214)56

. O poema encontra-se reproduzido no ANEXO X.

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Pintar a relação com Diego, descrevê-lo com palavras, talvez tenha sido mais penoso que

representá-lo com as tintas, dado o caráter amplo e diverso da linguagem, dada a variedade de

sintagmas e seus sentidos, inclusive metafóricos. No entanto, a artista mostra-se feroz ao pintar

o retrato do amado com os recursos da palavra, utilizando expressões que aludem às cores, à

pintura, às tintas - que unem Frida e Diego. Doravante, ele seria o auxocromo – “o grupo de

átomo que retém a cor” - e ela seria o cromóforo – “uma substância que tem muitos elétrons

capazes de absorver energia ou luz visível, e excitar-se para assim emitir diversas cores”. Diego

guarda e ela distribui as cores, de acordo com as energias e luzes recebidas. A capacidade do

cromóforo é comparável a do camaleão, que se adapta ao meio e imiscui-se na paisagem, por

mais adversa que possa parecer. A característica atribuída a Diego seria de reter e a de Frida, de

doar. Tal qual o cromóforo, que recebe as impressões externas,a artista recebe as palavras, as

cores, as influências de Diego. Sobram os fantasmas, pintados no inferior da página, os quais

remetem, provavelmente, aos medos e fatos pretéritos que assombram a vida do casal.

Em outra missiva, da mesma sequência de cartas apaixonadas, a artista destaca a presença de

Diego, mesmo em sua ausência. Frida expressa as sensações físicas que acompanham o vazio

deixado por ele. A entrega do corpo da artista ao de Diego é integral, tal a sensação de sentir-se

parte do amado e companheiro. A intensidade do amor é perceptível nas descrições de Frida,

que transborda, nas páginas do diário, confissões de paixão ao pintor. Talvez pelo caráter

secreto da escrita íntima, pela garantia da privacidade advinda do diário e pela necessidade de

inscrever – para si mesma – os sentimentos que a invadem, a artista é, sobretudo, verdadeira.

Frida revela, através da escrita, a ligação com Diego:

= Estás presente, intangível / e é todo o universo que/ formo no espaço

do meu/ quarto. Tua ausência brota/ estremecendo o ruído do/ relógio;

no pulso da luz;/ respiras pelo espelho. Desde/ ti até as minhas mãos,

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recorro/ todo o teu corpo, e estou/ contigo um minuto e estou/ contigo

um momento. E o meu/ sangue é o milagre que vai nas veias do ar do

meu coração ao teu.

(KAHLO, 2010, p. 215)57

A última página, da longa sequência de cartas escritas no diário a Diego Rivera, fala da

sensação da presença do pintor, mesmo na sua ausência:

Por momentos sua presença/ flutua como envolvendo/ todo o meu ser

em uma ansiosa espera/da manhã. E noto que estou/ contigo. Nesse

momento/ pleno mesmo de sensações,/ tenho minhas mãos imersas em

laranjas, e meu corpo/se sente rodeados pelos teus braços58

(KAHLO,

2010, p. 216)59

Frida externa os sentimentos de plenitude provocados pela presença de Diego. Fica patente,

na escrita, a completude que o pintor acrescenta à vida da artista. No trecho acima, ela desenha,

à semelhança que fez na primeira carta reproduzida, fantasmas. Eles se agigantam do fim da

página e os olhos ficam perceptíveis. Tal pintura, ao final das duas cartas de amor, nos faz

pensar na significação dos fantasmas ao fim das missivas. Os fantasmas representariam a

ausência, os medos que a acompanham, o intangível. E os grandes olhos, poderiam oferecer a

visão além do visível - ainda que a visão não seja a desejada e existam lágrimas.

As declarações amorosas, contidas no livro das confissões, revelam muito sobre Frida. A

57 Texto original em espanhol: = Estas presente, intangible/ y eres todo el universo que/ formo en el espacio de

mi/ cuarto. Tu ausencia brota/ temblando en el ruído del/ reloj; en el pulso de la luz;/ respiras por el espejo. Desde/

ti hasta mis manos, recorro todo/ tu cuerpo, y estoy contigo/ un minuto y estoy contigo un momento./ Y mi sangre

es el milagro que/ va en las venas del aire/ de mi corazon al tuyo.

(KAHLO, 2010, p. 215) 58

Assim como na carta anterior, a presente missiva termina com pinturas ao final da página. Nela, existem

vegetações e seres que a artista, segundo Carlos Fuentes (2010), “identifica como “fantasmas””. Na pintura

existem olhos (pequenos, grandes e com lágrimas) e um marcante lábio. 59

Texto original em espanhol: “Por momentos flota tu presencia/ como envolviendo todo mi/ ser en una espera

ansiosa/ de mañana. Y noto que estoy/ contigo. En este momento/ lleno aun de sensationes,/ tengo mis manos

hundidas/ en naranjas, y mi cuerpo/ se siente rodeado por tus/ brazos

(KAHLO, 2010, p. 216) Livre tradução minha. A referida página do diário encontra-se reproduzida no ANEXO

XI

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escrita repetitiva, com temas recorrentes, nos comunicam o universo em que se via imersa. As

cartas para e sobre Diego nos demonstram, além do amor, a forma de comunicação da artista

com o mundo. O diário da pintora, muito mais que episódios de dor, sofrimento, solidão e

dilaceramento, nos demonstra a vida que insistia em pulsar, apesar de tantos cortes. Carlos

Fuentes, ao discorrer sobre o Diário, nos demonstra que a vida da artista, foi muita mais que

episódios de dor:

Que Kahlo foi mais, muito mais que tudo isso, nos demonstra agora seu

Diário. Nos mostra sua alegria, seu sentido de humor, sua imaginação

mais fantástica. O Diário é sua linha de travessia com o mundo. Quando

Frida se viu, se pintou; e se pintou porque se sentia só e porque era o

sujeito que melhor conhecia. Mas, quando Frida viu o mundo, escreveu,

paradoxalmente, um Diário pintado graças ao qual nos inteiramos de

que, apesar da interioridade da sua arte, esta sempre foi uma arte

maravilhosamente cercada do mundo material.60

(KAHLO, 2010, p. 10)

O diário nos demonstra, acima de tudo, um elogio à capacidade de representação da

linguagem diante da dor física extrema. Temos a impressão que Frida dispõe de todos os

sentimentos ao escrever. Na escrita do Diário, convivem a carta de amor e os fantasmas, as

inscrições sobre as cirurgias, as pinturas das máscaras e partes do corpo. No diário, Frida

mostra-se. Faz a travessia dos sentimentos para o papel. Transpõe as emoções.

Para além das cartas para Diego, das extensas inscrições no diário e das telas, Frida

retratou o pintor através de palavras, publicamente. À semelhança da longa

60

- Texto original em espanhol, extraído do prefácio do Diário de Frida Kahlo: Que Kahlo fué más, mucho más

que todo esto, lo demuestra ahora su Diario. Nos muestra su alegria, su sentido del humor, su imaginación más

fantástica. El Diario es su línea de cabotaje con el mundo. Cuando Frida se vio, se pintó; y se pintó porque se

sentia sola y porque era el sujeito que mejor conocía. Pero cuando Frida vio el mundo, escribió, paradójicamente,

un Diario pintado gracias al cual nos enteramos de que, a pesar de la interioridad de su arte, éste siempre fue un

arte maravillosamente cercano al mundo material.60

(KAHLO, 2010, p. 10) Livre tradução minha.

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descrição/declaração de amor ao artista, ela o pinta, novamente, com palavras por ocasião da

exposição feita em homenagem a Diego Rivera, organizada pelo Instituto Nacional de Belas

Artes, Cidade do México, durante o ano de 1949. O texto de quatorze páginas inicia-se com a

fala da artista sobre o uso das palavras, como substitutas das tintas, para esboçar o retrato do

companheiro:

RETRATO DE DIEGO

Aviso-os que pintarei este retrato de Diego com cores com que

não estou familiarizada: palavras. Por isso é que ele será precário.

Ademais amo tanto Diego que não posso ser uma “expectadora” de sua

vida, mas parte dela. Por isso, talvez exagere o que há de positivo em

sua personalidade singular, tentando minimizar o que possa magoá-lo,

ainda que remotamente. Esta não será uma exposição biográfica.

Considero mais sincero escrever apenas sobre o Diego que creio ter

passado a conhecer, nestes últimos vinte anos em que vivi junto dele.

(Apud ZAMORA, 2006, p. 154)61

O retrato traçado por Frida é minucioso. Todos os detalhes presentificam-se. A visão de

Diego, ofertada pelas palavras, é muito mais complexa que as telas a ele dedicadas, uma vez

que no quadro, apenas uma nuança destaca-se, ao passo que nas cartas a descrição do pintor

abarca amplos significados e facetas, desde a forma ao conteúdo, passando pelas reações e

características, Frida registra os detalhes da personalidade do amado:

SEU CONTEÚDO: Diego fica na periferia de todas as relações pessoais

limitadas e definidas. É contraditório como todas as coisas que

incendeiam sua vida; é uma carícia imensa e, ao mesmo tempo, uma

violenta descarga de forças poderosas e únicas. Pode-se vivenciá-lo

pelo lado de dentro como a semente possuída pela Terra e, pelo lado de

fora, como uma paisagem. (Apud ZAMORA, 2006, p. 144)

As cartas reiteram o retrato de Diego descrito pela artista no diário, quando o compara ao

61

- O trecho da carta encontra-se reproduzido no ANEXO XII

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"espelho da noite" ou a "luz violenta do relâmpago", a intensidade constitui-se como uma

característica, assim como a contradição. As penas, mais que as tintas, permitem o contorno

do interior, o qual não pode ser perscrutado na pintura, e nos desnudam além da forma, a

substância. No retrato escrito, podemos perceber a singularidade de sua personalidade, como

no trecho abaixo, em que a artista, com poucas e precisas palavras, desvela o comportamento

do companheiro:

Coberto de espinhos, protege a ternura que traz dentro de si.

Vive com sua seiva forte num ambiente feroz. Brilha sozinho,

como um sol que vingasse a cor cinzenta das rochas. (IDEM,

2006, p. 155)

Os espinhos, relatados por Frida, tem amplo sentido: proteção contra todas as influências

exteriores e ataque, já que os espinhos ferem os que dele se aproximam, independente da

intenção. Finalmente, o retrato de Diego, pintado por Frida, nos revela que a artista aprendeu a

conviver com o pintor, tal qual os porcos espinhos, que ferem se ficarem muito próximos uns

dos outros e morrem de frio, se ficarem muito distantes – foi necessário aprender qual a

distância segura para se conviver o pintor, extraindo calor, sem se ferir. Assim como o bonde,

que ao chocar-se contra o ônibus causou ferimentos graves à artista e, outrossim, despertou –

pela própria necessidade do repouso e da imobilidade – o dom da pintura, Diego Rivera, ainda

que com os violentos rompantes e rompimentos amorosos, semeou, nas palavras da própria

artista, mais que amor, a vida inteira, que ela encontrou ao vê-la nas mãos de Diego.

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4. SOBRE A (DES)NECESSIDADE DA ESCRITA

Alex de mi vida, você sabe melhor do que

ninguém como tenho estado triste neste maldito

hospital. Deve imaginar, ou talvez o pessoal já

lhe tenha dito. Todos me falam para não perder

a paciência, mas eles não sabem o que significa

para mim ficar de cama por três meses. (Frida

Kahlo)62

A (des)necessidade da escrita permeia a produção das cartas de Frida Kahlo e nos suscita

importante questão: sua pintura, assumidamente autobiográfica, é suficiente para exprimir todo

o sofrimento? Por que Frida vale-se sobremaneira da escrita para viver e mesmo para pintar?

Enfim, qual o papel da escrita em suas telas, uma vez que a pintura espelha todo o sofrimento

físico – e outrossim as feridas emocionais - por ela vivenciados?

As cartas, intensamente escritas, durantes largos anos, foram parte fundamental de sua

existência. Escrever era uma grande necessidade, principalmente nos períodos de dor, sejam

elas físicas ou interiores. Nos períodos de internação e recuperação das cirurgias, foram o papel

e a pena que lhe fizeram companhia.

Escrever. Desabafar. Receber (com rapidez!) a resposta das correspondências enviadas.

Esse era o circuito repetitivo de sua produção, como podemos depreender das missivas

compiladas por Martha Zamora, na obra Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo.

A função da escrita das cartas para a artista nos remete, sobremaneira, ao texto de Sartre:

Porque se escreve?, nele, o autor problematiza questões referentes ao ato criador e às

motivações para a escrita. Nesse contexto, Sartre (1948) nos salienta que “um dos principais

motivos da criação artística é, sem dúvida, a necessidade de nos sentirmos essenciais em

62

(Apud ZAMORA, 2006, p. 22)

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relação ao mundo”. Tal primordialidade, motivadora das criações artísticas, pode ser estendida

para a vasta produção de cartas, realizada por Frida Kahlo. A necessidade de fala, escuta e

valorização permeia as produções da artista e nos provoca reflexões sobre o endereçamento: as

cartas de Frida eram para ela mesma ou para o contato com outros interlocutores? Qual voz ela

queria ouvir: a resposta dos outros, ou sua própria voz refletida? Fica patente nas cartas o

interesse em receber, urgentemente, a resposta das correspondências e, por conseguinte, o

desinteresse em endereçar argumentações aos seus interlocutores. Nesse sentido, nos

apropriamos do texto de Sartre, Por que se escreve?, sobre a criação artística, para estendê-lo

às cartas de Frida, uma vez que seus argumentos nos remetem à necessidade de completude do

ato criador, advindo da leitura. Consoante o autor, sem o leitor não existiria, verdadeiramente o

texto, pois é a leitura que distingue os traços negros sobre o papel e proporciona sentido à

escrita. O texto, previsível para o autor, constitui-se em exercício de despertares e suposições

por parte dos que desfrutam a leitura, uma vez que o ato de ler inclui as confirmações,

anulações ou previsões dos assuntos desvendados, além de infinidade de hipóteses formuladas

pelo leitor, até que os escritos sejam por completo conhecidos - a leitura vivifica a escrita. As

correspondências da artista, construídas com a premência da resposta, avigoram a assertiva de

Sartre (1948), segundo o qual, a criação artística só completa-se com a leitura:

Uma vez que a criação só pode completar-se com a leitura, uma

vez que o artista deve confiar a outra pessoa o cuidado de terminar o

que ele começou, uma vez que é apenas através da consciência do leitor

que ele pode considerar-se como essencial na sua obra, toda a obra

literária é um apelo. Escrever é fazer apelo ao leitor, para que este

inclua na existência objectiva a revelação que empreendi por meio da

linguagem. (SARTRE, 1948. p. 92)

O apelo de Frida é explícito, ela implora por respostas, reitera os pedidos de escuta.

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Necessita ter a certeza que sua voz foi ouvida, que sua queixa foi acolhida, que a leitura foi

realizada. E essa certeza a artista só conseguirá através do recebimento das cartas enviadas.

O clamor pela resposta é diametralmente oposto ao desejo de escrita, em relação às missivas

recebidas, como nos comprovam as inúmeras cartas escritas pela artista, em que as remissões

precedem o texto, como nos atesta a carta escrita ao Dr. Leo Eloesser, datada de 18 de julho de

1941, em que Frida inicia sua correspondência desculpando-se pelo fato de não responder às

cartas recebidas:

Imagino o que você deve estar pensando de mim – que sou uma cretina.

Nem sequer agradeci por suas cartas ou pela criança, que me deixou tão

feliz – nem uma palavra em meses e meses. Você está mais do que

certo em fazer com que me lembre de minha... família. Mas sabe que o

fato de eu não lhe escrever não significa que o tenha menos em meus

pensamentos. Você sabe que tenho o enorme defeito de ser o cúmulo da

preguiça quando se trata desse negócio de escrever. Mas, creia-me,

tenho pensado muito em você, e sempre com a mesma afeição. [...]

(Apud ZAMORA, 2006, p.111) Grifos da autora.

Frida trocou inúmeras correspondências com o Dr. Leo Eloesser ao longo de sua existência.

Em todas as cartas, reitera o intenso comprometimento do médico e o seu apreço por ele.

Chega, inclusive, a pedir consultas ao médico através das missivas, tal a sua confiança no

profissional. No entanto, ela não responde as cartas recebidas. Não há respostas. Situação

semelhante observamos em relação a Ella Wolf, com quem manteve uma profícua e intensa

correspondência. As respostas são imploradas pela artista, quando é ela a autora dos escritos, o

que não ocorre em relação às cartas recebidas, quando a escrita torna-se desnecessária. Frida

não responde. Não atende aos apelos:

Linda Ella,

Mal posso enfrentar a redação desta carta para você. Prefiro não dizer

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nada nem lhe dar nenhum tipo de desculpa, já que você não acreditaria

mesmo e nenhuma de nós duas tiraria nada disso. O fato é que não lhe

escrevi, portei-me como uma perfeita fraca, uma idiota avarenta e

infame, etc. etc., e todas as coisas ruins que você possa pensar de mim

são muito pouco pelo que mereço. Mas, se puder esquecer tudo por um

momento, poderei dizer-lhe nesta carta o que não lhe disse em nenhuma

das outras (naturalmente, já que nunca lhe escrevi nenhuma).(Apud

ZAMORA, 2006, p. 54)63

Frida reconhece sua falta. Inicia a escrita desculpando-se, mas, no final da mesma

correspondência, despede-se de forma habitual, pedindo que a resposta seja rápida, já que ela

tem necessidade de se fazer ouvir e escutar-se através das respostas: “Você precisa escrever

logo, para que eu não me torne uma menina triste e desagradável. Adeus, linda”.(IDEM, 61)

A completude das cartas, escritas por Frida, parece vir exatamente das respostas, que

ensejam completar o ciclo de fala e escuta. O apelo é constatado na escrita das cartas, desde o

registro das primeiras correspondências, as quais encontram-se no livro supracitado. A primeira

carta registrada no livro data de 1924 e foi endereçada ao amigo – que mais tarde se tornaria

namorado – Alejandro Gomez Arias. No corpus da correspondência, a artista pede a resposta:

Mas, primeiro, responda a esta carta assim que puder, maninho, porque

você sabe que, se não responder, vou achar que ficou enfeitiçado pela

moça que lhe perguntou se a vadia do trem em questão tinha sido

assassinada! E isso é terrível! Que surpresa, depois de não nos falarmos

por tanto tempo! (Apud ZAMORA, 2006, p. 13)

Em outra correspondência, datada de 31 de abril de 1927, ao mesmo Alejandro Gomez

Arias, Frida inicia sua escrita descrevendo o prazer de receber cartas, uma vez que elas, no

contexto do sofrimento físico incessante e a solidão do hospital, tornam-se refrigério em meio a

dor que insiste em acompanhá-la:

63

O fragmento da carta encontra-se no ANEXO XIII

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Meu Alex,

Acabo de receber sua carta do dia 13, que foi o único momento feliz em

todo esse tempo. Embora pensar em você sempre me ajude a ficar

menos triste, suas cartas ajudam mais.

Como eu gostaria de poder explicar-lhe, minuto a minuto, meu

sofrimento! Desde que você se foi, piorei, e nem por um momento

consigo consolar-me ou esquecê-lo. (Apud ZAMORA, 2006, P. 31)

Frida é minuciosa em sua descrição. Pinta seus retratos não só com tinta, mas, outrossim,

com a pena – esboça seu autoretrato, inscreve sua dor, escreve sobre suas emoções, exprime os

desejos. Já que Alex não vai visitá-la, ela pinta o retrato de seu sofrimento para que ele possa

vê-la. Ela não poupa adjetivos para traçar o retrato da dor sentida após o grave acidente, na

longa correspondência. Ao final da mesma carta, Frida revela:

Não duvide, nem por um momento, de que serei exatamente a mesma

pessoa quando você voltar.

E trate de não me esquecer, e escreva muito. Anseio quase com angústia

por suas cartas; elas fazem com que eu me sinta infinitamente bem.

Nunca pare de me escrever, ao menos uma vez por semana; você

prometeu.

Diga-me se posso escrever-lhe para a Embaixada Mexicana em Berlim,

ou para o mesmo lugar de sempre.

Preciso muito de você, Alex. (IDEM, p. 32)

A forma como Frida trava correspondências com o amado Alex é peculiar, já que a artista

escreve e também responde às correspondências recebidas, pois ele necessita de cartas para

enviar respostas, o que constitui singularidade em sua vasta produção, cuja regra é a escrita e

não a resposta, a fala e não a escuta. A necessidade primeira da artista é o desabafo e não o

acolhimento das queixas do destinatário. Esse comportamento fica patente na produção da

artista quando, espontaneamente, os amigos e amados escrevem – o silêncio se faz presente e a

lacuna instala-se até que a artista necessite enviar nova missiva. Nesse sentido, as cartas

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endereçadas a Alex, tornam-se peculiares. Para ele, Frida escreve, uma vez que não se trata

somente de falar e saber-se ouvida, ela deseja o diálogo e sabe que se não responder as cartas

recebidas, o debate não se instalará.

Em carta escrita a Alejandro Gomes Arias, datada de 1º de janeiro de 1925, Frida inicia sua

escrita com um desenho – algo típico – e, acima do oceano e do barco, escreve a palavra

“Responda” reiteradas vezes. A saudação da carta já é um apelo:

Meu Alex,

Hoje às onze horas apanhei sua carta, mas não respondi de imediato

porque, como você há de compreender, não se pode escrever nem fazer

nada quando se está cercada por uma manada. Mas, agora que são dez

da noite e estou inteiramente só, é a hora mais apropriada para lhe dizer

o que estou pensando (mesmo que eu não tenha uma linha da mente na

palma da mão esquerda), segundo Mallén. (Apud ZAMORA, 2006, p.

16)

Escapa do relato de Frida Kahlo a satisfação em receber a correspondência de Alex. A

artista concentra-se na leitura de carta e na escrita da resposta, que precisa ser privada,

usufruída em todos os momentos. É forçoso estar só para alçar, exatamente, a carta ao lugar

que lhe é almejado, o de companhia. Nesse instante, ela não deseja dividir o momento com

mais ninguém, já que a carta a pertence e o fato de “estar inteiramente só” para reler várias

vezes a mesma correspondência, indica a exclusividade do momento. O recebimento das cartas

constitui um evento muito especial em sua vida, porque aproxima Alex, que está distante

geograficamente. A carta o coloca ao lado de Frida.

Sartre, no livro Situações II, no capítulo intitulado: Porque se escreve?, nos fala sobre as

peculiaridades da escrita e da leitura. Segundo o autor, o leitor precisa entregar-se ao exercício

da leitura, de forma integral, para que o ciclo da escrita se complete, uma vez que o autor escreve para dirigir-se à liberdade dos leitores e a requer para que a obra exista e faça

sentido.Nesse sentido, nos apropriamos das palavras do referido autor, para estendermos o

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sentido da entrega da leitura, de forma integral, a pintora, pois percebemos que a leitura é

fundamental nas cartas escritas por Frida, uma vez que a voz da própria escritora, ecoada na

resposta do destinatário, completa o ciclo da escrita, iniciado por Frida Kahlo.

Escrever, ler e ouvir são aspectos fundamentais no que concerne à escrita das cartas. Nesse

sentido, o deleite e a entrega da artista, na leitura das cartas de Alejandro Gomes Arias, nos

remetem e aproximam da descrição do deleite da leitura, abordado por Sartre no já citado texto:

Assim, a leitura é um exercício de generosidade; e o que o autor

exige do leitor não é a aplicação duma liberdade abstracta, mas a

entrega total da sua pessoa, com as paixões, prevenções, simpatia,

temperamento sexual e escala de valores. Simplesmente, a pessoa dar-

se-á com generosidade, a liberdade atravessa-a de lado a lado e vem

transformar as massas mais obscuras da sua sensibilidade. (SARTRE,

1948, p. 96)

A entrega de Frida na leitura da carta é patente. Ela está inteira lendo a esperada carta,

completamente concentrada nas palavras escritas/ditas por Alex. E mais, Frida responderá à

epístola, o que constitui uma raridade, como podemos depreender da leitura das cartas da

artista. Embora nutra sentimentos de amor e carinho pelas pessoas com as quais se corresponde,

responder as cartas não está precisamente no rol de suas ações, como nos demonstra o discurso

endereçado a amiga Isabel Campos, em 03 de maio de 1931:

Querida amiga,

Recebi sua carta buten séculos atrás, mas não pude responder porque

não estava em San Francisco, porém mais ao sul, e tinha uma porção de

coisas para fazer. Não imagina como fiquei feliz em recebê-la. Você foi

a única amiga que lembrou de mim. Tenho estado muito feliz, mas sinto

enorme saudade de minha mãe. (Apud ZAMORA, 2006, p. 42)

O discurso, quase controverso de Frida, demonstra entusiasmo no recebimento da carta e

desinteresse em respondê-la. Ela não responde. Simplesmente, após algum tempo, escreve nova

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carta, quando sente intensa necessidade de comunicação. A alegria em receber a carta não

constitui motor suficiente para que outra seja escrita. Parece-me que a motivação intrínseca da

artista para a escrita das cartas, centra-se na necessidade de falar, de expor seus sentimentos, de

desnudar-se para um outro.

Após algum tempo, Frida envia nova carta a mesma Isabel Campos, durante o período que

esteve em Nova York, datada de 16 de novembro de 1933. Interessante notar que ela não

responde às cartas de Isabel, no entanto, após o longo silêncio, a artista escreve. Existe um tom

de desabafo em seu relato, acompanhado do habitual apelo pela resposta:

Linda Chabela,

Faz um ano que não tenho nenhuma notícia de vocês. Provavelmente,

você pode imaginar o que foi esse ano para mim. Mas não quero falar

desse assunto, porque não ganho nada com isso e nada no mundo pode

me consolar.(...) Estou lhe escrevendo para que você possa responder e

me dizer uma porção de coisas, já que, embora pareçamos ter esquecido

uma da outra, no fundo estou sempre pensando em vocês;

(...)Não se esqueça de me escrever. (...) Sua amiga que nunca a esquece,

Frieda. (IDEM, 2006, p.51-53)64

Frida, ao longo da correspondência, fala sobre os problemas familiares e os sentimentos que

a afligem, necessita estabelecer diálogo. Portanto, ela deseja uma resposta de Isabel, que

precisa ser breve, para que a artista possa fazer da amiga uma verdadeira interlocutora. A

disposição para escrever as cartas, no caso da artista, é sempre subjetiva. O que move a pena é

o desejo de falar e sentir-se ouvida. O fato de receber correspondências não motiva a resposta,

porém, a aflição e a dor sim. Além da paixão, essas são as razões que a impulsionam a escrever

longas e detalhadas cartas.

Fato análogo ocorre no momento em que Frida endereça carta aos amigos – de longa data –

64

A correspondência encontra-se reproduzida no ANEXO XIV

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Ella e Bertram Wolfe, em 18 de outubro de 1934. A missiva inicia-se com as habituais

desculpas:

Ella e Boit,

Faz tanto tempo que escrevi, que não sei por onde começar essa carta.

Mas não quero dar desculpas longas e maçantes e lhes contar histórias

compridas sobre o motivo de não haver escrito em tantos meses. Vocês

sabem tudo porque tenho passado, de modo que creio que vão

compreender minha situação, mesmo que eu não a relate com todos os

detalhes. (...)

Se tiverem um tempinho livre, escreverão para mim, não é? Suas cartas

serão um consolo imenso, e eu me sentirei menos sozinha do que agora.

Mando-lhes mil beijos. Por favor, não me tomem por uma mulher

detestável, sentimental e estúpida, pois vocês sabem o quanto amo

Diego e o que perdê-lo significa para mim.

Frieda. (Apud ZAMORA, 2006, p. 64-69)65

Frida, na longa carta, relata os problemas e desabafa com os amigos e, embora não escreva,

pede a resposta. Os problemas amorosos e sentimentais, relativos a Diego Rivera, ocupam as

linhas. O coração e a mente da artista estão ocupados e é necessária a escrita das cartas para

extravasar tanto desassossego, aliviar o coração que pulsa aflito. Resta a impressão de alívio,

provocada pelo envio das cartas.

O comportamento repetitivo de Frida causa estranhamento. Suscita dúvidas. Leva-nos a

pensar nas razões que a fazem ignorar, solenemente, as cartas recebidas. Por repetidas vezes, a

artista frisa seu comportamento, junto ao apreço devotado as pessoas com quem se

corresponde, todavia, o silêncio, perturbador para quem envia cartas, as responde, e nunca

recebe respostas pelas cartas enviadas, parece incomodar seus interlocutores. Por que tanta

desatenção? Por que Frida só escreve quando as questões e aflições emanam do seu íntimo?

Essas questões talvez tenham sido objeto de reflexão por parte dos amigos, como Ella, que

65

A carta encontra-se reproduzida no ANEXO XV

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ficou visivelmente ressentida com a atitude costumaz da artista:

Quarta-feira 13, 1938:

Linda Ella,

Faz séculos que venho querendo lhe escrever, mas, como sempre, não

sei por que fico tão confusa, por que não respondo às cartas e não me

porto como as pessoas decentes. Em sua última carta, notei que você já

não gosta de mim como antes e, apesar de a culpa ser minha, não sabe

como isso me deixa triste, porque, mesmo que eu não lhe escreva nada,

continuo a amá-la como sempre. O mesmo se aplica ao Boit, e diga-lhe

que ele sabe disso muito bem. (IDEM, 2006. p.82)

Frida desculpa-se por seu comportamento, pois reconhece que não escreve para responder as

missivas recebidas, embora, sempre espere respostas. O pedido de desculpas soa como

expiação em relação ao ato cometido e nos fornece pistas sobre a reincidência da ação, pois,

embora perceba a mágoa advinda de seu não pronunciamento, a conduta da artista permanece

inalterada. Sobra o descontentamento de Elle, explícito na carta da artista, como podemos

depreender do trecho abaixo:

Bem, linda, espero que, por causa dessa carta excepcional, você me

queira pelo menos um pouquinho, e depois, pouco a pouco, possa vir a

me amar tanto quanto antes. Porque eu sou a mesma pessoa, apesar de

ser má e idiota com você. Sou avoada quando se trata de responder

cartas. Quero muito bem a você, como antes. Também amo o Boit,

portanto, não seja malvada comigo e retribua meu amor, escrevendo

uma poderosa missiva para encher de alegria meu já entristecido

coração, que bate por você aqui com uma força maior do que você é

capaz de imaginar. (IDEM, 2006, p. 86-87) Grifos da autora.

O ato de enviar as cartas, com o propósito de endereçar-se e preocupar-se com o outro, de

tão raro, foi classificado por ela própria, como excepcional, embora a missiva estivesse

impregnada do habitual apelo de resposta.

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Em outra carta, escrita no mesmo ano a amiga Lucienne, ressalta a alegria que sentiu em

receber a carta,

Carta a Lucienne Bloch, 14 de fevereiro de 1938:

Querida Lucy,

Quando sua carta chegou, eu estava péssima, vinha sentindo dores em

meu maldito pé fazia uma semana, e é provável que precise de outra

operação. Fiz uma há quatro meses, além da que me fizeram quando

Boit esteve aqui, daí você pode imaginar como se sinto, mas sua carta

chegou, e acredite ou não, deu-me coragem. (Apud ZAMORA, 2006, p.

88)

Agora vou lhe contar algumas coisas a meu respeito. Não mudei muito

desde que você me viu pela última vez. Só que estou de novo usando

minha indumentária mexicana maluca, meu cabelo tornou a crescer e

estou magrela como sempre. Meu temperamento também não mudou,

continuo preguiçosa como de hábito, sem entusiasmo por coisa

nenhuma, muito idiota e uma desgraça de sentimental, às vezes acho

que é porque estou doente, mas é claro que isso é apenas um ótimo

pretexto.

(IDEM, 2006, p.89)

No fim da carta, Frida lembra do casal Elle e Boit, para quem nunca escreve, embora sinta

apreço. Reitera o silêncio:

Mande meu carinho para Elle e Boit, diga-lhes que apesar de meu

silêncio eu os amo do mesmo velho modo.

(...)

Escreva-me com mais freqüência. Prometo responder.

(IDEM, 2006, p. 92-93)

Tal silêncio só é interrompido, na obra escritural de Frida, quando o assunto é o amor.

Quando a paixão permeia a relação, há mudança de paradigma entre os interlocutores, pois

Frida não só escreve, como espera, com grande ansiedade, a resposta das correspondências,

acompanhada de total emoção na abertura e leitura das cartas, como nos idos 1924-1927, em

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que a artista esperava, com grande ansiedade, as cartas de Alejandro G. Arias e escrevia,

prontamente, as respostas. Nada de habitual, rotineiro ou determinado - quando a paixão está

em jogo, todo o cenário configura-se diferente, e as mesmas atitudes, que de tão habituais

tornaram-se conhecidas da artista, dos interlocutores e amigos, não encontram lugar na troca de

correspondência onde o romance é o sujeito da questão, como podemos observar na missiva

escrita por Frida Kahlo, em 27 de fevereiro de 1939, endereçada a Nickolas Muray:

Meu amado Nick,

Esta manhã recebi sua carta, após muitos dias de espera. Senti tamanha

alegria que comecei a chorar antes mesmo de lê-la. Meu menino, eu

realmente não deveria reclamar de nada do que me acontece na vida,

desde que você me ame. [Este amor] é tão real e belo que me faz

esquecer todas as minhas dores e problemas; faz-me esquecer até a

distância. Através de suas palavras, sinto-me tão perto de você que

chego a sentir o seu riso, tão limpo e franco, que só você tem. Estou

contando os dias para o seu regresso. Mais um mês! Então, estaremos

junto de novo...(IDEM, 2006, p. 94)

Entusiasmo. Esta parece ser a emoção que rubrica a chegada da carta de Nick e a

impulsiona a escrever a calorosa e longa carta. A necessidade da fala fica patente na escrita

compulsiva da correspondência, em que a extensão do texto é comparável à magnitude do

sentimento, que não pode ser minimizado em poucas linhas.

Durante alguns poucos meses, a artista mantém intensa correspondência com Nickolas

Muray, ocasião em que a rapidez da resposta e o envio de novas missivas constituem-se em

regra. A necessidade de expressar-se move a pena com rapidez impressionante, dada a

necessidade da fala. A releitura das cartas indica a repetição do assunto e o interesse insaciável

pelas linhas traçadas pelo amado:

Caro Nick,

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(...)

Quando recebi sua carta, dias atrás, fiquei sem saber o que fazer. Devo

admitir que não pude conter as lágrimas. Senti como se algo ficasse

preso na garganta – como se eu houvesse engolido o mundo inteiro.

Ainda não sei se me senti triste, enciumada ou zangada, mas a primeira

coisa que experimentei foi um sentimento de grande desamparo. Li sua

carta muitas vezes – vezes demais, acho – e estou me dando conta de

coisas que não percebi a princípio. Agora compreendo tudo; tudo está

claro. A única coisa que quero lhe dizer, de maneira mais sincera, é que

você merece o melhor, absolutamente o melhor na vida, porque é uma

das poucas pessoas neste mundo que é honesta consigo mesma. (IDEM,

2006, p. 102-103)66

A franqueza e clareza da artista impressionam. Temos a impressão que a carta da artista fala

alto, trata-se de discurso escrito, onde, inclusive, o inefável é citado. Ela discorre sobre os

sentimentos e também cita os afetos indescritíveis, que de tão complexos, não cabem nas linhas

da carta; De tão importantes, não podem ser condensados em palavras. Onde há tanto a se

externar e pouco a argumentar face às situações estabelecidas, sobra o silêncio:

Gostaria de dizer-lhe uma porção de coisas, mas, não quero deixá-lo

sem jeito. Espero que você entenda todos os meus votos sem palavras...

Quanto às cartas que lhe enviei, se elas o estiverem atrapalhando, por

favor, entregue-as a MAM para que ela as envie para mim. De qualquer

modo, não quero ser um fardo para você.(...) Pedir-lhe minhas cartas é

ridículo de minha parte, mas faço isso por você e não por mim.

Suponho que esses papéis não lhe interessem mais.

Enquanto eu escrevia essa carta, Rose telefonou e me disse que vocês já

se haviam casado. Não tenho nada a dizer sobre o que senti. Espero que

sejam muito, muito felizes.

Se tiver tempo, de quando em vez, por favor, escreva-me algumas

palavras, só para me dizer como está. Você fará isso...?

Obrigada de novo pela magnífica foto. Obrigada por sua última carta e

por todos os tesouros que você me deu.

Um abraço,

Frida.(IDEM, 2006, p. 103-104)

66

Vide ANEXO XVI

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90

O texto supracitado é revelador, tanto pelo conteúdo, quanto pela repetição instalada na

produção das cartas da artista Frida Kahlo. Em breve período, ela escreve inúmeras cartas a

Nick, todas de singular importância, de modo que ela as requisita. Não há silencio ou vazio

entre a escrita das cartas e a “não resposta” das mesmas, o que podemos perscrutar é um

diálogo profícuo, em que o mútuo interesse alimenta o desejo de escrita e leitura das cartas

apaixonadas.

Frida classifica a carta como derradeira, pois, ainda que outras advenham, essa será a última

carta do ciclo apaixonado com Nick. Talvez outras possam ser escritas, contudo, remeterão a

outro tempo, interesses diversos e assuntos variados.

A lucidez da artista no desprendimento amoroso e na percepção da descontinuidade

impressionam. Frida entrega-se de corpo e alma às paixões, mas, percebe, com bastante astúcia,

quando o interesse é unilateral. Para uma alma visceral, não bastam os meio romances, os

abraços mal dados e as relações baseadas na aparência, a artista deseja correspondência na

escrita e, outrossim, nos afetos.

Assim como a carta escrita a Nickolas Muray, em 1939, em que o interdito está presente nas

linhas traçadas por Frida, a insuficiência das palavras – diante dos sentimentos anteriormente

expostos - encontra-se presente na carta escrita ao namorado da época do acidente, Alex, em

missiva escrita durante o ano de 1927:

15 de outubro de 1927

Meu Alex:

Penúltima carta! Você já sabe tudo o que eu poderia lhe dizer.

Fomos muito felizes todos os invernos, mas nunca como neste. A vida

está à nossa frente, é impossível explicar-lhe o que isto significa.

É provável que eu ainda esteja doente, mas, não sei. Em Coyoacán, as

noites me deslumbram como faziam em 1923, e o mar, um símbolo em

meu retrato, sintetiza minha vida.

Você não me esqueceu?

Seria quase injusto, não acha?

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Sua Frieda67

.(IDEM, 2006, p. 39)

A artista classificou a correspondência como “penúltima carta”, talvez para deixar que o

destino reservasse ocasião para a escrita de uma outra – futura -- correspondência. A

interrupção da escrita, leitura e reenvio das cartas, coincide com o rompimento amoroso. Frida,

corajosamente, legitima o término do relacionamento, uma vez que o mesmo não se

sustentava mais - existia por um fio. E é justamente esse fio, tênue e frágil, que ela rompe, com

pena e tinta, deixando livre o amado.

O longo hiato entre Alex e Frida durou largos anos e somente foi interrompido muitos anos

depois, com a resposta da artista a uma missiva enviada pelo mesmo Alex, fato que constitui

exceção em sua obra escritural.

Aos 30 de junho de 1946, data da última carta endereçada a Alejandro Gómez Arias,

após um hiato de mais de 10 anos sem trocarem correspondências, Frida conta sobre uma das

grandes operações realizadas ao longo de sua existência. Na missiva existe um desenho de seu

corpo e dos dois grandes cortes sofridos, como uma forma dupla de externar o sofrimento e de

confirmá-lo. O desenho, presente no meio do manuscrito, sugere que a operação foi grave, que

não se trata de um exagero de mulher, mas, antes, de verdadeiro dilaceramento. Ela diz:

Não estou autorizada a escrever muito, mas esta é só para lhe dizer que

já passei pela the big operação. Faz três weeks que eles cortaram ossos e

mais ossos. [...] Nas first duas semanas, tive dores terríveis e fiquei em

prantos. A dor é tamanha que eu não a desejaria a ninguém. É muito

intensa e ruim. [...] Havia cinco vértebras lesionadas, mas agora elas

ficarão bem. O chato, no entanto, é que o osso leva muito tempo para

crescer e se acomodar, de modo que ainda ficarei seis semanas de cama

até receber alta do hospital, e até poder fugir desta horrível city e voltar

67

Frida Kahlo, nascida Magdalena Carmen Frieda Kahlo Calderón, aos 6 de julho de 1907, terceira filha de

Matilde Calderón González, mexicana, e de Wilhelm Kahlo, alemão, em Coyoacán, adotou o nome de Frida na

adolescência e assinou suas telas e textos com a nova grafia, por ela escolhida.

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para minha amada Coyoacán. Como você está? Please escreva-me e me

mande one livro. Please don’t forget me. Como vai a sua mãe? Alex,

não me deixe sozinha neste hospital nojento; escreva-me. Cristi está

realmente chateada e ambas estamos morrendo de calor (Apud Zamora,

2006, p. 130-131).68

Frida está em Nova York e as marcas da cidade transparecem na escrita, bem como sua

solidão. Cristi não parece ser boa companhia e o longo período de internação a aborrecem. Ela

implora por cartas, notícias, interação, ou uma relação – mesmo que seja meramente epistolar.

Necessita de estímulos para sobreviver, uma vez que está presa ao leito, afastada de sua terra

natal e de Diego. Cartas – talvez sua única alternativa de contato com o mundo exterior, forma

eficaz de comunicação com o outro e consigo.

Nova York, 30 de junho de 1946

Alex querido,

Não estou autorizada a escrever muito, mas esta é só para dizer que já

passei pela the big operação. (...)

Como você está? Please escreva-me e me mande one livro. Please don’t

forget me. Como vai sua mãe? Alex, não me deixe sozinha neste

hospital nojento; escreva-me. (...) Que há de novo no México, que tem

acontecido com minha gente daí?

Conte-me coisas de todo o mundo e, especialmente, de você.

Sua F

Mando-lhe muito afeto e muitos beijos.

Recebi sua carta. Deixou-me muito feliz! Não se esqueça de

mim.(IDEM, 2006, p. 130-131)69

Entre os idos 1927 e os vindos 1946 muitos eventos aconteceram na vida de Frida Kahlo,

que a transmutaram interior e exteriormente. No entanto, o modo de relacionar-se através das

cartas, constitui-se evento presente em todas as etapas da vida da artista. A escrita do diário, o

envio de cartas - unido ao tão esperado recebimento das respostas - e a pintura das telas foram

68

A correspondência encontra-se reproduzida no ANEXO II 69

IDEM

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parte indissolúveis de sua vida, plena de tintas e palavras.

Enfim, ainda que a resposta às cartas recebidas seja exceção, Frida encerra a correspondência

de modo habitual, como os reiterados apelos de escrita para que venham sempre novas cartas,

que proporcionem às correspondências enviadas, sentido e completude. O desejo primeiro é o

de resposta às cartas escritas, para que a voz emitida encontre eco nas respostas dos

interlocutores: escrita e escuta.

4.1. A (DES)UNIÃO FAMILIAR

Pintei o meu pai, Wilhelm Kahlo, de origem

húngaro-germana, fotógrafo artístico de

profissão, de caráter generoso, inteligente e

delicado, corajoso porque sofreu de epilepsia

durante sessenta anos e nunca deixou de

trabalhar, nem de lutar contra Hitler, com

devoção. A sua filha Frida Kahlo. (Frida

Kahlo)70

As longas cartas, escritas por Frida Kahlo no decorrer de sua existência, em inúmeras

ocasiões foram produções sobre e para sua família, precipuamente nos períodos em que esteve

morando em outro país ou nos exílios forçosos, devido às longas internações71

.

70

- No ano de 1951, Frida Kahlo pinta o autorretrato de seu pai, Wilhelm Kahlo, intitulado: “Retrato de meu pai”.

Na parte inferior do quadro, a artista escreve a citada dedicatória, em uma espécie de bandeirola. Em muitas de

suas telas a escrita se faz presente, como forma de ratificação e explicação da pintura. Frida externou grande

admiração pelo pai através de inscrições no diário, citações em cartas e a própria pintura da tela. 71

Segundo Carlos Fuentes, na orelha do livro: Diário de Frida Kahlo: “Frida foi submetida a mais de 35 operações

para corrigir as seqüelas de um acidente que sofreu aos dezoito anos de idade”. Texto original: “...más de treinta y

cinco operaciones a las que tuvo que someterse para intentar corregir las seculeas de un accidente que sufrió a los

dieciocho años.” Carlos Fuentes. (KAHLO, 2010)

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Na escrita de Frida entrevemos a necessidade de externar sentimentos sobre sua família,

dialogar com os interlocutores escolhidos sobre as aflições que a atormentavam.

Sentimentos contraditórios unem Frida aos familiares e despertam na artista,

majoritariamente, sentimentos de incompreensão, como podemos depreender da carta escrita a

Alejandro Gomez Arias, em 25 de abril de 1927:

Ontem estive muito doente e muito triste; você não imagina o nível de

desespero a que se pode chegar estando doente assim. Sinto um mal

estar pavoroso, que não consigo descrever, e, além disso, às vezes sinto

uma dor que nada é capaz de eliminar. (...)

[O problema é que] ninguém aqui em casa acredita que esteja realmente

mal, porque nem ao menos consigo dizê-lo, já que mamãe, que é a

única que se preocupa um pouquinho [comigo], fica doente. E eles

dizem que a culpa é minha, que sou muito imprudente. Assim, ninguém

sofre, se desespera e tudo mais, a não ser eu. Não posso escrever muito,

porque mal consigo me curvar; não posso andar, porque minha perna

dói terrivelmente. (...)

Nada me diverte; não tenho uma única distração – apenas tristezas – e

todas as pessoas que me visitam me chateiam muito. [...] Não tenho

como lhe descrever o meu desespero.

(Apud ZAMORA, Frida. 2006, p. 30)72

Frida sente-se só em meio a dor e externa o sentimento de falta de compreensão por parte

de seus familiares. Embora com inúmeros ossos quebrados e acamada, ressente-se do fato das

irmãs não valorizarem sua dor, já que antes, existe o ensejo de apagamento do sofrimento.

A solidão de Frida fica escancarada no momento do acidente. É praticamente sozinha que a

artista se recompõe e consegue juntar, ainda que não definitivamente, os tantos ossos

quebrados. É essa solidão, anunciada com o choque violento entre o bonde e o ônibus, que a irá

acompanhar, indefinidamente.

A desimportância com as graves conseqüências do acidente, fizeram-se notar no exato

72

Vide ANEXO XVII

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momento em que Frida é socorrida. Ninguém imaginou que ela estivesse completamente

estilhaçada interiormente e sua família, que supõem-se, deveria dar todo carinho, apoio e

sustentação, no longo período da regeneração, ressente-se do ocorrido e somente Matilde, a

ovelha desgarrada do rebanho73

, tem coragem de permanecer ao lado da artista, auxiliando-lhe

na recuperação:

Foi assim que perdi minha virgindade. Meus rins estavam danificados,

eu não podia mais urinar, porém o que mais me fazia sofrer era a coluna

vertebral. Ninguém parecia se preocupar. Além disso, não se faziam

radiografias. Sentei-me como pude e pedi ao pessoal da Cruz Vermelha

para chamar minha família. Matilde soube da notícia pelos jornais e foi

a primeira a ir me ver; ela não me abandonou durante três meses, dia e

noite ao meu lado. Minha mãe não se manifestou durante um mês, por

causa do choque, e não foi me ver. Quando minha irmã Adriana soube

da notícia desmaiou. E meu pai ficou tão triste que caiu doente, e eu só

pude vê-lo vinte dias depois.

(Le CLEZIO, 2010, p. 53)

Embora alquebrada, quem desaba são os familiares de Frida Kahlo. Ninguém, à exceção de

Matilde, mostra-se forte para ficar ao seu lado e o grande sofrimento, ao invés de aproximar,

afasta suas irmãs e pais. O porquê de eles não permanecerem ao seu lado foi, certamente,

questão refletida pela artista. Foram muitos dias à espera do encontro com os familiares. Dias

de dor intensa.

A dor e a solidão já se tinham feito presentes na vida de Frida, quando a menina, aos 6 anos

de idade, foi acometida por uma poliomielite, que a deixou de cama por muitas semanas.

O sofrimento em sua vida é cíclico e gradual. Desde pequena, ela experimenta a dor e a

solidão, reiteradas vezes, por motivos diversos. O que nos causa espanto é a capacidade de

73

- Matilda deixou a casa familiar na juventude, para nunca mais voltar. “Com 7 anos, Frida é cúmplice de sua

fuga e sente tamanha culpa por isso que passará grande parte da juventude tentando reencontrá-la. Matilda só

receberá o perdão da família muito tempo depois, quando Frida estiver com 20 anos – e ela mesma, com 27”. (Le

CLÉZIO, 2010, p. 49)

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suportar as adversidades, ainda que completamente só. Nesse sentido, compreendemos mais a

importâncias das telas e dos papéis. Em muitos momentos, são eles a companhia possível. O

próprio diário torna-se interlocutor, assim como são interlocutores os correspondentes. Logo,

interpretamos melhor a ansiedade pelas respostas das cartas enviadas, a compulsão pela escrita

e pintura.

A figura importante nos cuidados relacionados à poliomielite é o pai, que:

(...) tomou conta dela durante os nove meses de convalescença. A sua

perna direita ficou muito magra e o pé direito atrofiado. Apesar de o pai

se certificar de que ela fazia regularmente exercícios de fisioterapia para

fortalecer os músculos debilitados, a perna e o pé ficaram deformados

para sempre. (KETTENMANN, 2006, p. 09-10)

A diferença, provocada pela poliomielite, será sentida por toda a vida. Na adolescência

Frida esconderá as pernas dentro das calças e, mais tarde, disfarçará a dessemelhança com as

longas e coloridas saias mexicanas. Frida registrará os cuidados paternos nas páginas do diário,

em uma seção autobiográfica de seis páginas, em que traçará o esquema de sua vida:

“Minha infância foi maravilhosa porque ainda que meu pai fosse um

enfermo, (...) foi um imenso exemplo para mim de ternura e trabalho

(...) e sobretudo de compreensão para todos os meus problemas”.74

(KAHLO, 2010, p. 282)

O pai da artista, citado e retratado de formas diversas, ocupa lugar de afeto e carinho, de

grande incentivador em sua vida. Wilhelm Kahlo: fotógrafo, trabalhador, leitor, preencheu o

74

Texto extraído do Diário de Frida Kahlo, onde se lê no original: “Mi niñez fué maravillosa porque aunque mi

padre era un enfermo (...) fué un inmenso ejemplo para mi de ternura de trabajo e sobre todo de compreension para

todos mis problemas.” Livre tradução minha.

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lugar do afeto, ao contrário da mãe, quase nunca citada nas cartas e diário, algumas vezes

pintada, que ocupou o lugar da ausência e do desamparo.

4.2. MÃE MARTE OU A MÁSCARA DE FERRO

Pensaram que eu era uma surrealista,

mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintava a

minha própria realidade.75

(Frida Kahlo)

No que é relativo às telas, observa-se a premissa que norteia as produções escriturais de

Frida Kahlo: toda a pintura da artista é assumidamente autobiográfica – ela escreve sobre si

mesma e pinta-se. Assim como a escrita torna-se uma necessidade na vida da artista, a pintura

transmuta-se em parte indissolúvel de sua vida.

Ao perscrutarmos a obra pictural da artista, percebemos que além da autobiografia, a

memória exerce importante fator na construção das telas, uma vez que ela, primeiramente,

amadurece os acontecimentos, para somente depois, pintá-los, demoradamente, como se a

pintura demonstrasse ser o lenitivo e a razão de ser, segundo suas próprias palavras:

Meus quadros são bem pintados, não com rapidez, mas pacientemente.

Minha pintura traz em si a mensagem da dor. Creio que ao menos

algumas pessoas se interessem por ela. [...] Pintar completou minha

vida. Perdi três filhos e uma série de outras coisas, que teriam

preenchido minha vida pavorosa. Minha pintura tomou o lugar de tudo

isso (Apud ZAMORA, 2006, p. 157).

75

(Apud KETTENMANN, 2006, p. 48)

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As telas de Frida representam sua vida. Toda a produção da artista a reflete. Penas e pincéis

a retratam, de modo singular, segundo suas próprias lentes76

. Está no corpo e dentro de si a

fonte criadora e a inspiração, segundo Carlos Fuentes (2010): “Sua realidade é o seu próprio

rosto, o templo de seu corpo roto, a alma que se vai sobrando”.77

E é sobre isso que Frida se

debruça e pinta.

Ao analisarmos as obras da artista sobre os pais, veremos uma grande distorção na

representação do pai e da mãe. Em relação ao primeiro, sobram palavras de afeto e carinho,

sobejam elogios, inclusive através do ex voto inscrito no autorretrato do pai, datado de 1951.

Em relação à progenitora, a leitura da tela, de tão subjetiva, evoca importante elemento

presente nas pinturas de Frida Kahlo: a memória. No caso da pintura, a memória acionada para

a construção do quadro foi oriunda da história pessoal da artista, à semelhança da anamnese [do

grego ana, trazer de novo e mnesis, memória], em que os profissionais da saúde, a partir da

entrevista, coletam informações importantes sobre o paciente, ela relembra, a partir dos dados

coletados - espontaneamente, provavelmente durante longo período da infância - sua história

pessoal e pinta o quadro da lembrança, a partir do que imaginou ser a representação da sua

amamentação. O ato de recordar o que não pode ser lembrado, nos possibilita a reflexão sobre

as palavras de Susan Sontag, na obra Sob o signo de Saturno, acerca de Walter Benjamin, na

qual existe a análise de que, para o autor, a história é o que renasce do desmoronamento para

mostrar um passado não tal qual foi, mas que poderia ter sido. O passado como um sonho de

possibilidades. Consoante Sontag (1986), “a memória, encenação do passado, transforma o

76

Segundo Carlos Fuentes: “No es una pintora de sueños, insiste ella misma, sino la pintora de su própria

realidad, pintándose a si misma, porque se encuentra sola y porque es el tema que mejor conece.” (KAHLO, 2010,

p.14). Livre tradução minha: “Não é uma pintora de sonhos, insiste ela mesma, senão a pintora de sua própria

realidade, pintando-se a si mesma, porque se encontra só e porque é o tema que melhor conhece”. 77

Texto original em espanhol: “Su realidad es su próprio rostro, el templo de su cuerpo roto, el alma que le va

quedando”. (KAHLO, 2010, p. 14)

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fluxo dos eventos em quadros. Benjamin não pretende recuperar seu passado, mas compreendê-

lo: condensá-lo em suas formas espaciais, suas estruturas premonitórias.” É justamente sobre a

compreensão do passado, transmutado em quadros, que Frida se debruça.

Partiremos da obra Minha Ama e Eu, de 1937, para refletirmos sobre como a artista se

retrata e, ao fazê-lo, como evoca as lembranças da mais tenra idade, em que o acesso

consciente à memória é impossível. Essa obra, representativa de sua infância, nos indica o olhar

de Frida sobre a construção do próprio processo de amamentação. Na presente tela, como em

muitas de suas obras, percebemos a realidade deslocada do locus esperado e realista.

Interessante atentarmos para o fato de que o inesperado sobrevém, como no caso da tela abaixo,

Mi nana y yo (1937), na qual retrata o período da amamentação:

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Mi nana y yo, 1937

Óleo sobre metal, 30.5x34.7cm

Coleção de Dolores Olmedo, Cidade do México, México

Se o estranhamento principia com paisagem, não causa menor transtorno o corpo

desnudo da ama-de-leite e o rosto maduro de Frida no corpo de bebê, através do qual a pintora

indica a releitura do passado a partir do presente – é na idade adulta que a tela é pintada. Ela e a

ama-de-leite encontram-se sozinhas numa paisagem vegetal de cores pouco vibrantes, a qual se

desdobra nas ramificações e flores do seio da ama, como fora esta não mais que uma planta da

terra, um ser terroso e natural, a oferecer-lhe a seiva, o leite. Encimando a tela, um céu nublado

acentua o aspecto “natureza” da ama, na medida em que se estabelece uma analogia entre os

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pingos de chuva e os de leite no seio direita da ama. Nada distingue a ama da paisagem, ao

contrário, podemos senti-la quase como parte da vegetação, tal a sua falta de expressão e

movimentos. O estranhamento, presente na tela, nos remete às palavras de Carlos Fuentes

sobre a maneira peculiar com que constrói as telas:

Como Rembrant, como Van Gogh, Kahlo nos conta sua biografia com

seus autorretratos. As etapas da paixão, os preâmbulos da inocência, os

atos do sofrimento e, finalmente, a catarsis do conhecimento, são tão

evidentes na artista mexicana como os autorretratos holandeses. Porém

a aura do estranhamento, do deslocamento, da distorção da cena e dos

objetos, assim como a irracionalidade espontânea de tudo isso, também

a fizeram assimilar, em ocasiões, o surrealismo.(KAHLO, 2010, p.14)78

A máscara de ferro da ama – a qual remete ao que é duro, inflexível e não cede, e também

à qualidade do que é cruel ou desumano – representa a completa falta de interação entre Frida e

sua ama. Não existe sequer o vislumbre de uma troca de olhares, de um gesto de afeto ou

delicadeza, apenas a entrega do seio a ser sugado. De acordo com Kettenmann, a ama-de-leite

fez-se necessária na vida da pintora mexicana, uma vez que a mãe não pôde amamentá-la:

A mãe de Frida Kahlo não pôde amamentá-la, pois a sua irmã Cristina

nasceu apenas onze meses depois dela. Foi, assim, amamentada por

uma ama. O relacionamento que aqui vemos parece ser distante e frio,

reduzido ao processo prático de amamentação.[...] A artista considerou-

o um de seus trabalhos mais poderosos. (KETTENMANN, 2006, p. 47.)

O fato de recusar-se ao aleitamento, ainda que involuntariamente, comporta significações

78 Texto original em espanhol: Como Rembrant, como Van Gogh, Kahlo nos cuenta su biografia con sus

autorretratos. Las etapas de la pasión, los preámbulos de la inocência, los actos del sufrimiento y, finalmente, la

catarsis del conocimiento, son tan evidentes en la artista mexicana como el los autorretratistas holandeses. Pero el

aura del extrañamiento, del desplazimento, de la dislocación de la escena y de los objetos, así como la

irracionalidad espontánea de todo ello, tambíen la han asimilado, en ocasiones, al surrealismo.(KAHLO, 2010, p.

14) Livre tradução minha.

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múltiplas, dentre as quais a negação da própria feminilidade. Manguel, ao discorrer sobre a

simbologia do seio materno e dos profundos significados da amamentação, nos remete às

amazonas, que, voluntariamente, abdicaram do seio: “O seio recusado denota a renúncia da

maternidade: as amazonas amputam o seio direito a fim de poderem puxar seu arco, disparar as

flechas com mais eficácia e tornarem-se melhores guerreiras, trocando o papel de Vênus pelo

de Marte” (MANGUEL, 2001, p.66). A simbologia do seio está de tal forma associada ao

aleitamento que a sua renúncia seria a metáfora da renúncia tanto da feminilidade quanto da

maternidade: não aleitar significaria não ser mãe em sua plenitude. A troca do papel de Vênus

pelo de Marte expressariam a troca do feminino pelo masculino, papel caracterizado pela não-

amamentação e pela guerra.

Ao retratar a ama-de-leite férrea e fria na ausência de olhos e afeto, Frida parece rubricar

a ausência do leite materno como sintoma da distância da própria mãe. Impossível não

depreender daí o ressentimento da pintora em relação à figura materna que comportava antes

traços de Marte do que de Vênus, como revela Kettenmann:

Apesar de o bebê estar a ser amamentado, a ternura e o carinho não

constam da ementa. “Já que a ama de Kahlo foi contratada apenas para

amamentar, ela não deve ter tido qualquer relação pessoal com o bebê.

Assim, é provável que o processo de amamentação decorresse

exactamente como Kahlo o pintou: sem qualquer emoção.” Esta falta de

laços emocionais ajuda, sem dúvida a explicar os sentimentos ambíguos

de Frida pela mãe, a qual descreveu como muito bondosa, activa e

inteligente, mas também como calculista, cruel e fanaticamente

religiosa. (KETTENMANN, 2006, p. 9)

Nesse caso a figura materna se dá em ausência ou distância. Trata-se de uma personagem

incômoda, perturbadora, adversa. O sentimento de revolta contra a figura materna, seja devido

à distância ou ao abandono, está presente tanto nas telas de Frida quanto nos escritos,

demonstrando uma relação conturbada entre mãe e filha. A crueza do parto e a amamentação

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(mecânica porque contratual) indicam o quanto a distância e/ou a ausência da mãe marcaram a

psyché e a obra de Frida. Tal qual os hábitos e heranças culturais, existe uma carga afetiva

transmitida e assimilada de mãe para filho. No caso da artista, o ressentimento parece nortear a

representação materna.

Ao discorrer sobre Frida Kahlo, Carlos Fuentes nos apresenta interessante questão acerca da

artista e o modo de inscrever a cor local nas telas. Segundo Fuentes (2010): “Kahlo se inscreve

nesta última corrente do surrealismo, a da capacidade de convocar todo um universo a partir

dos fragmentos de seu próprio ser e das persistências de sua própria cultura”.79

Juntando

pedaços de seu interior, das lembranças esparsas e das memórias do que poderia ter sido a

infância, a artista cria o cenário da amamentação. Inscreve, na tela, a cultura das índias, das

amas de leite. Registra o México descalço na obra.

A tela é rica em metáforas e ambigüidades, próprias das produções de Frida. Seu quadro,

como nos diz Sartre (1948), no capítulo Porque se escreve?, o qual, por extensão, poderíamos

transmutar a indagação em Porque que pinta?, nos faz refletir sobre as entrelinhas da tela, uma

vez que : “... a obra nunca se limita ao objeto pintado, esculpido ou narrado; assim como só se

distinguem as coisas sobre o fundo do mundo, também os objetos representados pela arte

aparecem sobre o fundo do universo.”80

O fundo do universo da tela de Frida é o seu passado,

sua história particular e, ao mesmo tempo, familiar. Seria a índia a representação não só da

ama-de-leite mas, também das origens mestiças da artista - a ascendência materna? A ama nos

evoca, outrossim, soma significativa da população de seu país, o outro México, consoante

Carlos Fuentes:

79

Original em espanhol: Kahlo se inscribe en esta última corriente del surrealismo, la de la capacidad de

convocar todo un universo a partir de los fragmentos de su próprio ser y de las persistencias de su propria cultura.

(KAHLO, 2010, p. 15) Livre tradução minha. 80

- (SARTRE, 1948, p. 101)

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Somos duas nações. Sempre dois Méxicos, o México de papel

dourado e o México da terra descalça. Quando o povo se levantou em

1910, os deserdados cavalgaram de norte a sul e de sul a norte,

comunicando um país asilado, oferecendo a todos os presentes

invisíveis da linguagem, a cor, a música e a arte popular.(KAHLO,

2010, p.09) Livre tradução minha.81

O leite materno, escorrendo do seio da ama-de-leite, constitui elemento simbólico pela

carga de sentidos que abrange, como nos diz Alberto Manguel em Lendo imagens: “... a

imagem de uma deusa que amamenta é antiga e universal: Ishtar na Mesopotâmia, Dewaki

amamentando Krishna na Índia, Ísis no Egito e muitas outras” (MANGUEL, 2001, p.63). Tais

figuras arquetípicas se oferecem como símbolo desde a antiguidade, rubricando a relevância do

ato e do período da amamentação e desdobrando-se em acepções que permeiam a cultura e o

imaginário. Observemos, por exemplo, a estatueta egípcia de Ísis amamentando Hórus:

81

- Texto original em espanhol: Somos dos naciones. Siempre dos Méxicos, el México de papel dorado, y el México de tierra

descalza. Cuando el pueblo se levanto en 1910, los desheredados cabalgaran de norte a sur y de sur a norte, comunicando a un

país aislado, ofereciéndonos a todos los regalos invisibles del lenguaje, el color, la música, el arte popular.(KAHLO, 2010,

p.09)

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Império Médio, 2040-1652 a.C.

De acordo com a mitologia egípcia, Ísis descobriu e reuniu os pedaços do corpo de seu

marido e irmão Osíris, despedaçado pelo Seth. Também protegeu o filho Hórus da fúria do tio,

até que o deus do céu crescesse e pudesse vingar o pai.[...] Ísis e Hórus representam o

relacionamento perfeito entre mãe e filho. Pelos cuidados dispensados ao filho, Ísis era

considerada a deusa do amor e da proteção. Neste sentido, as representações estatuárias e

pictóricas da amamentação simbolizam, para além do ato em si, o amor e a proteção dedicados

ao filho. Muito mais que alimento, o leite representa a fonte e o penhor da vida.

Também a mitologia grega apresenta outra importante narrativa acerca da amamentação.

Trata-se de Hera e Hércules – embora, neste caso, a amamentação, além de significar alimento

e vigor, represente o caráter maior da maternidade, pois, mesmo que contra a sua vontade,

amamentou o filho da mortal Alcmena. Ainda que ciumenta e agressiva, ao aleitar Hércules,

Hera o adota, pois quem oferece o leite torna-se mãe daquele que o recebe, como ressalta

Manguel:

O seio estabelece um vínculo de maternidade: oferecer o seio é um dos gestos por

meio dos quais um filho é adotado. Por exemplo, na mitologia grega, romana e

etrusca, Juno (Hera ou Uni) adota Hércules (Heracles), dando-lhe o leite do seu

peito; a Via Láctea formou-se quando ela puxou o mamilo dos lábios sôfregos do

herói e esguichou leite no céu. (MANGUEL,2001, p. 65.)

O próprio mito da criação do universo está associado ao leite, pois este representa mais

que o alimento, mas a própria origem da vida, a fonte mantenedora do homem e do mundo. Ao

dar o leite ao outro, que não era o seu filho, o laço da maternidade fez-se presente, e com ele,

produziu-se a criação da Via Láctea. Outra imagem relativa à amamentação, repleta de

significados e numerosa em representações, é a imagem de Maria amamentando o Menino

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Jesus, tal como esta que reproduzimos abaixo, atribuída ao pintor flamenco Robert Campin

(1378-1444).

A Virgem e o Menino Jesus diante da janela, [s.d.]

Óleo sobre tecido, 63.5x49cm

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National Gallery, Londes, Reino Unido

A pintura encerra a metáfora da criação do próprio Deus que encarnou e se fez homem.

Aqui, uma vez mais, a amamentação ultrapassa o mero sentido nutricional para simbolizar o

alimento espiritual das palavras, necessário ao desenvolvimento do indivíduo, como comprova

a Bíblia ao lado de Maria. No contexto da pintura, leite e verbum são análogos, alimentos do

corpo e da alma, respectivamente, como diz a Bíblia. A priori, a preocupação da mãe se

restringe à nutrição, uma vez que o bebê não tem maturação para outra fonte de alimentação

que não seja o leite. O alimento o preparará para a vida, assim como fortalecerá os vínculos

entre mãe e filho.

A negação do leite materno transmuta-se, na tela de Frida, à negação do amor e do

aconchego, que se fará presente ao longo da existência. Ao rememorar a poliomielite e as duras

brincadeiras de infância82

a que foi exposta, ela se lembrará, sempre, da ternura paterna.

O distanciamento da mãe a perseguirá, mesmo durante o período de convalescência do

grave acidente, quando a mãe não vai ao Hospital da Cruz Vermelha para visitá-la. Diante do

sofrimento, Matilde desmorona, à semelhança do ocorrido no período de amamentação de Frida

e nascimento de Cristina:

É Matilde Calderón, mãe de Frida, quem se encarrega da subsistência

da família, vendendo seus móveis e objetos, alugando quartos para

solteiros de passagem, economizando bagatelas. Essa mãe, (...) parece

ter ocupado pouco espaço na vida afetiva de Frida: piedosa demais, até

a carolice, ao mesmo tempo dura e apagada, ela exerce o papel feio ao

lado de Guilhermo, tão artista, tão frágil, tão irrealista. [...] Como

Diego, ela conheceu o abandono materno na primeira infância: Matilde

Calderón, esgotada pelas sucessivas gestações, quando Cristina nasce

(um ano após Frida), mergulha na depressão e não pode mais cuidar dos

dois bebês (Le CLÉZIO, 2010, p. 46-47)

82

- Devido às seqüelas da poliomielite, Frida foi apelidada de “Frida perna de pau”, como salienta Kettenmann:

“Tendo-lhe sido posta a alcunha de Frida da perna de pau na infância – algo que a magoou profundamente – ela

veio mais tarde a ser o centro das atenções com suas vestes exóticas. (KETTENMANN, 2006, p. 10)

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O mesmo choque que fez com que a mãe de Frida passasse por uma longa depressão e

não pudesse mais cuidar das duas filhas – Frida e Cristina – seguiu-se ao grave acidente. O

abandono foi a única forma encontrada por sua mãe para tornar possível a convivência com a

dor.

A falta de afeto, presente na representação da amamentação, é ainda mais fortemente

sentida na releitura do parto, que de tão fria, parece tratar-se de morte e não de nascimento,

como observamos na obra de Frida Kahlo, a qual debruça-se sobre a questão de sua gênese e à

figura materna. Observemos, a tela Mi nacimiento (1932):

Mi nacimiento, 1932

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Óleo sobre metal, 30.5x35cm

Coleção privada

Nesta releitura de seu próprio nascimento, a crueza da representação frontal do parto no

cenário do quarto pobre em mobília e ornamentos. Além das paredes azuis acinzentadas e do

assoalho marrom, apenas a cama e um quadro são vistos, talvez a partir do parapeito da janela.

Trata-se não apenas da figuração de um importante acontecimento da vida de Frida, mas

também, segundo KETTENMANNN (2006, p.38), de “uma referência à morte da sua própria

mãe quando ela estava a trabalhar neste quadro”, na medida em que esta é representada com a

cabeça coberta por um lençol. Embora o título, temos a imagem da morte, como se o corpo,

involuntariamente, expelisse um outro ser. A cabeça coberta, como em sinal de luto, destaca a

outra cabeça a despontar para a nova vida, a cabeça de um bebê amadurecido, num claro sinal

da artista para a releitura dos eventos pretéritos.

O estopim que faz acender a memória de Frida nos é incerto. Tal fato, por semelhança

com o desabrochar das reminiscências, nos remete ao texto de Flávia Trocoli (2010), “Entre

quedas e buracos: a contingência, o não-todo e o não-idêntico na escrita de Ruth Kluger”, em

que existe a reflexão da rememoração do passado da escritora Ruth Kluger, a partir da

iminência da morte. Tal qual a escritora, a artista, a partir dos eventos do presente, teve acesso

às lembranças da infância, ainda que construídas, uma vez que não seria possível a lembrança

do parto, mas, tão somente, a construção do que teria sido o seu nascimento:

Tal gesto e tais movimentos colocam em primeiro plano a importância

do presente na rememoração do passado. Não se trata do lembrar como

um fetiche ou como fonte de autoconhecimento. Muito longe disso.

Lembrar o passado, a partir da especificidade do presente, é sobretudo,

poder neste intervir. (TROCOLI, 2010, p. 457)

O quadro acima faz parte de uma série de quadros em que a pintora, encorajada por Diego

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Rivera (1886-1957), pintou sobre si mesma, retratando não o fato em si, mas a impressão que o

mesmo lhe causava já na idade adulta. O importante para Frida não era a cópia fiel dos

acontecimentos, mas o sentido dos acontecimentos sob o filtro do tempo, como afirma

Kettenmann:

...o realismo da vida real é evitado, de uma forma geral, na composição.

Os objetos são extraídos do seu habitar normal e integrados numa nova

combinação. Para a artista, é mais importante reproduzir o seu estado

emocional numa destilação da realidade que ela experimentara, do que

registrar uma situação real com precisão fotográfica. (KETTENMANN,

2006, p. 35.)

Frida desloca, constrói, intervém em suas memórias. Cria o cenário pretérito partindo dos

sentimentos presentes. Seria possível representar a mãe, que manteve-se tão afastada durante a

vida, de outra forma? Existe possibilidade de se registrar a distância e o abandono? A artista

inscreve, registra através da pintura, os sentimentos em relação a mãe, de forma completamente

diversa da imagem do pai. Ao representar o pai, o autorretrato não se faz suficiente. A escrita

faz-se necessária para Frida. É forçoso ratificar a pintura, registrar o carinho, escrever na tela e

no diário, quando faz os registros da infância, já na idade adulta. No caso da mãe, a pintura da

tela assume o status de representação possível.

Representar-se, para Frida, mais que arte, era sobrevivência. Não havia outra forma possível

de conviver com uma dor aguda, que a acompanhou até a morte. Não há como desvencilhar-se

de um dilaceramento constante. Inexistem formas de se combater a dor. Frida demonstrou

através de suas obras, como, apesar das dores, as produções fizeram-se possíveis. Transformar

as experiências em arte, todas elas. Esse foi o ofício de Frida. Retratar a não amamentação. O

abandono. Tudo a partir de suas próprias experiências. A artista além das tintas, penas e

pinceis, usou, sobremaneira, a dor como elemento importante das produções, muito

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provavelmente pelo fato de não conseguir desvencilhar-se dele. Consoante com aquilo que

Fuentes afirma com justeza:

Frida Kahlo, como nenhum outro artista de nosso século torturado,

traduziu a dor em arte. Sofreu trinta e duas operações entre o dia de seu

acidente e o dia da sua morte. Sua biografia consiste em vinte e nove

anos de dor constante. A partir de 1944 se vê obrigada a usar oito

coletes distintos. Em 1953 sofreu a amputação de uma perna

gangrenada. (KAHLO, 2010, p. 13)83

Finalmente, o corpo martirizado e mutilado de Frida Kahlo, tantas vezes retratado e

exposto em suas agruras físicas e psíquicas, liberta-se, como nos salienta Carlos Fuentes: “O

corpo é a tumba que nos aprisionada como a concha que aprisiona a ostra”. (KAHLO, 2010, p.

13)84

. Aprisionado ao corpo e às dores, presa ao leito e aos coletes, condenada a grandes doses

de sofrimento, a artista somente encontra libertação das dores físicas com a morte.

83

Frida Kahlo, como ningún outro artista de nuestro siglo torturado, tradujo el dolor al arte. Sufrió treinta y dos

operaciones entre el dia de su accidente y el de su muerte. Su biografia consiste en veintenueve años de dolor

constante. A partir de 1944, se ve obligada a usar ocho distintos corsés. En 1953, sufrió la amputación de una

pierna gangrenada. Las secreciones de su espalda herida la hacen olerse a si misma como si fuese “un perro

muerto”. La cuelgan de la cabeza, desnuda, para fortalecer su columna. Pierde a sus fetos en lagos de sangue. (...)

Es el San Sebastián mexicano, atravesado de flechas. (KAHLO, 2010, p. 13)83

84 Versão original: “El cuerpo es la tumba que nos aprisiona igual que la conche encierra a la ostra”. (KAHLO,

2010, p. 13) Livre tradução minha.

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5. CONCLUSÃO:

Telas, pincéis, tintas, papel e pena: essas foram as armas utilizadas por Frida Kahlo para

conviver com a dor, que a acompanhou durante grande parte da sua vida e faz-se companhia

mais freqüente após o acidente sofrido aos 17 de setembro de 1925, o qual a deixou

completamente dilacerada. Justamente no período da convalescença, quando a imobilidade

fez-se regra e a solidão afigurou-se necessária – uma vez que os longos períodos de intervenção

e procedimentos exigiam que a artista estivesse só - que a artista começa a pintar. A pintura

surge no momento de grande aflição, por ocasião do repouso forçado, como forma de ocupação

no período de impossibilidades, segundo as palavras da artista:

O meu pai teve, durante muitos anos, uma caixa com tintas de óleo e

pincéis dentro de uma jarra muito antiga e uma paleta a um conto do

seu estúdio fotográfico. Ele gostava de pintar e de desenhar paisagens

em Coyoacán junto ao rio e por vezes copiava cromolitografias. Desde

pequenina, como diz o ditado, eu não tirava os olhos daquela caixa de

tintas. Não sabia explicar o porquê. Como ia estar presa a cama durante

muito tempo, aproveitei a oportunidade para pedir a caixa a meu pai.

(...) Minha mãe pediu a um carpinteiro que me fizesse um cavalete de

pintor, (...) pois eu não podia me sentar por causa do gesso. E assim

comecei a pintar o meu primeiro quadro: o retrato de um amigo. (Apud

KETTENMANN, 2006. p.18)

Ao observar-se repetidas vezes em um cenário imóvel e, paradoxalmente, repleto de solidão,

a artista começa a pintar-se, construindo telas assumidamente autobiográficas, pois a

representação para Frida significa sobrevivência, já que é a única forma de convívio e

enfrentamento dos lasceramentos e da solidão. Assim como as telas, também as palavras

representam alternativas de contato com o mundo e mostram-se essenciais em sua vida, tanto

como forma de esquadrinhamento da dor, como possibilidade de convívio consigo – a artista

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foi escritora proficiente de cartas, endereçadas, reiteradas vezes para um número reduzido de

interlocutores, aos quais ela escrevia longas cartas, com bastante interesse na resposta.

Contrariamente, em raríssimas ocasiões, a artista respondia às cartas recebidas, demonstrando

intensa necessidade de falar e ouvir a resposta dos seus questionamentos.

A imprescindibilidade da escrita fica patente na escrita do Diário íntimo, construído na

última década de vida, com grande quantidade de cores, pinturas, poemas, escritos e cartas -

endereçadas para o homem que foi companheiro em grande parte da existência e representou

sofrimento e amor. O diário, nas palavras de Kettenmann (2006): “é uma das chaves mais

importantes para entender os seus sentimentos e pensamentos (...) Focou temas como a

sexualidade e a fertilidade, a magia e o exoterismo, e o seu sofrimento físico e psíquico”. No

diário Frida mostra-se sem retoques, pois expressa autenticamente os sentimentos através das

palavras e pintura - principalmente as tintas, parte indissolúvel do diário - consoante Sarah

Lowe, em ensaio contido no prefácio do Diário de Frida Kahlo (2010): “Quase todas as

ilustrações do Diário foram efetuadas de forma espontânea. Elas são janelas que permitem

penetrar no inconsciente da artista, imagens que ela plasmava diretamente e, depois,

elaborava.”85

As pinturas, que enchem o diário de cor e transmitem, precipuamente, as

sensações de dor, demonstram o impulso incontrolável da artista para a expressão dos próprios

sentimentos.

Os escritos da dor, privilegiados em nossa pesquisa, traduzem a intensidade desse

sentimento através das produções da artista, refletidas nas telas, cartas e diário. O traço

autobiográfico de Frida estende-se a todas as suas produções, uma vez que as obras são sobre

85

Texto original: Casi todas las ilustracines del Diario fueron efectuadas de forma espontânea. Por ello son

ventanas que permiten penetrar en el inconsciente de la artista, imágenes que ella plasmaba directamente y, a

continuación, elaboraba. (KAHLO, 2010, p. 27). Livre tradução minha.

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si, como podemos comprovar através da análise das Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo, em

que as longas linhas traduzem o dilaceramento que a invadia, sem demonstrar acolhimento ou

resposta às dores do outro. Cartas, telas e diário são seu reflexo.

Em todas as fases da vida, mas, principalmente nos momentos de sofrimentos robustos, que

envolveram a morte dos genitores, os abortos, os bondes que a atropelaram e os desamores,

Frida pintou. Seu remédio estava nas tintas, como salienta Carlos Fuentes no prefácio do

Diário de Frida Kahlo (2010), ao discorrer sobre a importância da pintura na vida da artista:

“Enquanto a morte foi se aproximando na ponta dos pés, ela se vestiu cerimonialmente para

permanecer na cama e pintar. Não estou doente, escrevia, estou quebrada. Mas, estou feliz de

estar viva enquanto posso pintar.” 86

O desejo de pintar foi pulsante em Frida até os últimos

dias, já que ela jamais desistiu da pintura e apenas permaneceu alguns períodos afastada das

tintas nos períodos de maiores esgotamentos e amputações, devido ao extremo cansaço físico

decorrente das dores lancinantes que a deixavam sem comer e sem dormir. As palavras da

artista desvelam a importância da pintura em sua existência, uma vez que a vida só faria

sentido enquanto ela pudesse pintar. Sem a pintura a vida estava esvaziada de sentido.

Principalmente nos períodos ou impossibilidades de pintar, devido às grandes dores na coluna

e obrigações de repouso absoluto ela escreveu. A escrita representou, outrossim, importante

forma de sobrevivência.

O traço marcante da obra de Frida, no que tange às telas e a escrita, são as produções sobre

a dor. Impressiona a lucidez com que a artista descreve as mazelas e dores físicas. Intriga-nos o

fato da pintora conseguir retratar-se em todos os momentos da vida - do nascimento até as telas

86

Texto original em espanhol: Mientras la muerte se le fue acercando de puntillas, Ella se vistió

ceremonialmente para permanecer en la cama y pintar. No estoy enferma, escribiría, estoy quebrada. Pero estoy

feliz de estar viva mientras pueda pintar. (KAHLO, 2010, p. 23). Livre tradução minha.

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onde pinta-se dilacerada pelos cortes – com tanta lucidez.

Enfim, a obra escritural de Frida Kahlo, assim como as telas, nos ofereceram seu retrato de

vida e dor. As palavras, assim como as tintas, serviram de instrumento para que a artista

pudesse se debruçar sobre as dores lancinantes e traçar formas de convívio com as pessoas,

pelas quais manteve-se afastada devido às longas internações e exílios. As palavras, em vários

ocasiões inscritas nas telas, na forma de ex votos, traduziram, a importância das palavras em

sua vida, inclusive como ratificação da dor, e precipuamente desnudaram o lugar da pintura

em sua existência, que a representou e a completou, pois as perdas e os sofrimentos a

deixaram repletas de vazios e solidões. Embora tenha vivenciado a dor, que presentificou-se

na vida, toda a pintura e as palavras de Frida atestam o desejo intenso de viver.

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ANEXOS

ANEXO I, referente ao Diário de Frida Kahlo:

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ANEXO II, referente às páginas 130-131 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:

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ANEXO III, referente ao Diário de Frida Kahlo:

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ANEXO IV, referente ao Diário de Frida Kahlo:

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ANEXO V, referente às páginas 105-106 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:

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ANEXO VI, referente às páginas 31-32 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:

:

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ANEXO VII, referente às páginas 46-50 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:

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ANEXO VIII, referente às páginas 64-65 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:

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ANEXO IX, referente às páginas 66-67 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:

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ANEXO X, referente ao Diário de Frida Kahlo:

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ANEXO XI, referente ao Diário de Frida Kahlo:

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ANEXO XII, referente a carta contida na obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:

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ANEXO XIII, referente a carta contida na obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:

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ANEXO XIV, referente às páginas 51-53 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:

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ANEXO XV, referente às páginas 64-69 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo:

(As páginas 64-65 encontram-se no ANEXO VIII e as páginas 66-67 encontram-se no

ANEXO IX)

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ANEXO XVI, referente às páginas 102-103 da obra Cartas apaixonadas de Frida

Kahlo:

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ANEXO XVII, referente a página 30 da obra Cartas apaixonadas de Frida Kahlo: