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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016 1 A FORMATAÇÃO TELEVISIVA DE EXPERIÊNCIAS TRAUMÁTICAS: uma análise do programa Encontro com Fátima Bernardes 1 THE TELEVISION FORMAT OF TRAUMATIC EXPERIENCES: an analysis of the TV talk show Encontro com Fátima Bernardes Igor Sacramento 2 Resumo: Este trabalho analisa a formatação televisiva de experiências traumáticas no programa Encontro com Fátima Bernardes entre 2012 e 2015, demonstrando: 1) o que está em jogo na ampliação da definição de trauma e na classificação de determinadas experiências ordinárias de sofrimento como traumáticas; 2) de que maneira o formato do programa atribui teor testemunhal a relatos pessoais de sofrimento; e 3) como se dão as articulações do formato do talk show com o discurso terapêutico contemporâneo. A fala sobre si nesse programa reinscreve o deslocamento do problema individual ao coletivo pelo clamor de representação por meio de voz, corpo e presença que se tornam midiaticamente públicos por exemplificarem os desígnios atuais de autoestima, empoderamento e superação num clima de leveza, informalidade e descontração. Nesse sentido, o trauma é menos o que interdita uma cadeia representacional de acontecimentos passados do que aquilo que se supera. Palavras-Chave: Televisão. Talk Show. Trauma. Abstract: This paper analyzes the television format of celebrity testimonials and anonymous about traumatic experiences in the program Encontro com Fátima Bernardes between 2012 and 2015 demonstrating: 1) what is at stake in the classification of certain experiences of suffering as traumatic; 2) how the program format gives testimonial content to personal suffering reports; and 3) the articulations between the television language and the contemporary therapeutic discourse. The autobiographical narratives in this talk-show restores the displacement of the individual to a collective problem by the clamor of representation by the midiatization of a voice, body and presence that exemplify the current principles of self-esteem, empowerment and resilience in a relaxed and informal ambience. In this sense, the trauma is less an interdiction of the representational chain of past events than what is surpassed. Keywords: Television. Talk Show. Trauma. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Televisão do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica da Fundação Oswaldo Cruz (Laces/Icict/Fiocruz) e doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). E-mail: [email protected].

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A FORMATAÇÃO TELEVISIVA DE EXPERIÊNCIAS

TRAUMÁTICAS: uma análise do programa Encontro com Fátima Bernardes1

THE TELEVISION FORMAT OF TRAUMATIC EXPERIENCES: an analysis of the TV talk show Encontro

com Fátima Bernardes Igor Sacramento2

Resumo: Este trabalho analisa a formatação televisiva de experiências traumáticas no programa Encontro com Fátima Bernardes entre 2012 e 2015, demonstrando: 1) o que está em jogo na ampliação da definição de trauma e na classificação de determinadas experiências ordinárias de sofrimento como traumáticas; 2) de que maneira o formato do programa atribui teor testemunhal a relatos pessoais de sofrimento; e 3) como se dão as articulações do formato do talk show com o discurso terapêutico contemporâneo. A fala sobre si nesse programa reinscreve o deslocamento do problema individual ao coletivo pelo clamor de representação por meio de voz, corpo e presença que se tornam midiaticamente públicos por exemplificarem os desígnios atuais de autoestima, empoderamento e superação num clima de leveza, informalidade e descontração. Nesse sentido, o trauma é menos o que interdita uma cadeia representacional de acontecimentos passados do que aquilo que se supera. Palavras-Chave: Televisão. Talk Show. Trauma. Abstract: This paper analyzes the television format of celebrity testimonials and anonymous about traumatic experiences in the program Encontro com Fátima Bernardes between 2012 and 2015 demonstrating: 1) what is at stake in the classification of certain experiences of suffering as traumatic; 2) how the program format gives testimonial content to personal suffering reports; and 3) the articulations between the television language and the contemporary therapeutic discourse. The autobiographical narratives in this talk-show restores the displacement of the individual to a collective problem by the clamor of representation by the midiatization of a voice, body and presence that exemplify the current principles of self-esteem, empowerment and resilience in a relaxed and informal ambience. In this sense, the trauma is less an interdiction of the representational chain of past events than what is surpassed. Keywords: Television. Talk Show. Trauma.

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Televisão do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica da Fundação Oswaldo Cruz (Laces/Icict/Fiocruz) e doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). E-mail: [email protected].

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1. Introdução A expressão talk show designa programas que têm a conversação como base

estruturante da enunciação. Proveniente do rádio, na televisão estadunidense, o gênero se

estabeleceu nos anos 1950 por meio de três subgêneros: os da noite (cujo modelo fora The

Tonight Show, de Steve Alle e Jack Paar, 1954-1961), os da tarde (como The Phil Donahne

Show, 1967-1995) e os da manhã (como Today Show, de Dave Garroway, 1952-1959). De

acordo com Timberg (2004), os primeiros são baseados no entretenimento noturno, com

números musicais, entrevistas com celebridades, participação de comediantes, presença de

assuntos políticos e polêmicos com maior tom irônico e humor ácido. Os vespertinos são

caraterizados pela maior participação da plateia, que comenta os casos de infidelidade,

depressão, assédio moral, endividamento, problemas familiares, traumas, sexualidade,

violência doméstica, carreira, preconceito e outros temas que são levados ao palco pontuados

por fortes doses de aconselhamentos e lições de comportamento e moral por parte de

especialistas e do próprio apresentador. Já os matutinos são aqueles que têm formato próximo

ao de revista, trazendo notícias e informações de diversos temas do cotidiano de modo leve e

informal. Geralmente, há matérias que são comentadas por celebridades ou anônimos, ou que

introduzem as conversas que se desenvolverão no programa por determinado tempo. No

Brasil, embora o gênero exista desde os primórdios da televisão (cf. SILVA, 2009 e 2013), o

termo talk show apenas se popularizou de modo a definir programas baseados na conversação

nos anos 1980.

Encontro com Fátima Bernardes estreou no dia 25 de junho de 2012. É exibido de

segunda a sexta, às 10h50min, após o programa Bem-Estar. Além de Fátima Bernardes, conta

em seu elenco fixo com Marcos Veras (ator) e Lair Rennó (jornalista). Com certa

regularidade, também participam do programa, num clima informal de conversa com os

convidados, o neurocirurgião Fernando Gomes Pinto, o poeta Fabrício Carpinejar, a

dermatologista Daniela Alvarenga, a filósofa Viviane Mosé, a psicanalista Lígia Guerra, a

educadora Andrea Ramal e o psicanalista Moisés Groisman. Eles atuam não apenas como

especialistas, mas, sobretudo, como interlocutores daqueles que narram histórias de vida.

O programa extrapola a definição canônica de Timberg (2004) para os subgêneros de

talk shows na televisão estadunidense. Apesar de o livro ser baseado numa longa

investigação histórica sobre o gênero, trazer evidências e ser frequentemente utilizado para

historicizar outras culturas televisivas pelo mundo, o pressuposto tomado pelo autor é o de

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que as definições de gêneros televisivos se dão por modelizações internas ao texto. Ou seja,

ele busca na regularidade definir um núcleo estável – praticamente fixo – de características

para o gênero. A perspectiva com que se trabalha neste texto é outra: o gênero é uma

categoria cultural (MITTELL, 2004). Dessa forma, o gênero pode ser analisado na prática,

em uso e pleno movimento e não como um conjunto de regras previamente definidas para a

produção de determinados programas.

A discussão sobre gêneros, subgêneros e formatos televisivos é bastante complexa e

diversificada, não cabendo na proposta deste trabalho. No Brasil, há importantes sínteses de

perspectivas teóricas distintas, das que se filiam à Linguística (SEIXAS e PINHEIRO, 2014),

à Semiótica (DUARTE e CASTRO, 2007) e aos Estudos Culturais (cf., por exemplo,

GOMES, 2011b; LOPES e GOMÉZ, 2009; RIBEIRO, SACRAMENTO e ROXO, 2014).

Como já foi afirmado, este trabalho está baseado na análise cultural desenvolvida por Mittell

(2004). Desse modo, os gêneros não são um todo formal, ou um conjunto de regras e

procedimentos para o processo de produção de programas, mas entendidos como instituições

histórico-culturais. Essa abordagem traz para o centro da investigação a relação entre

televisão e sociedade, tomando os gêneros televisivos como formas exploradas (definidas,

redefinidas, interpretadas, consumidas, disputadas) no interior de determinadas formações

socioculturais e suas diferentes mediações (institucionais, culturais, políticas, econômicas,

profissionais, criativas, artísticas). Sendo assim, considera-se a dinâmica dos gêneros

televisivos numa abordagem historicizante que permite pensar as articulações entre televisão,

cultura, política e sociedade (GOMES, 2011a).

Os gêneros, embora sejam códigos estabilizados num determinado produto cultural

que permite a identificação de conteúdo temático, estilo e construção composicional comuns

a um dado conjunto de enunciados, se processam numa estabilidade em fluxo (MITTELL,

2004, p. 12). Ou seja, admite-se que os produtos culturais são contingentes e transitórios,

transformando-se a si mesmo e ao gênero ao longo do tempo no conjunto de diversas

variações sócio-estéticas. Os subgêneros são uma combinação específica derivada dos

gêneros principais estabelecidos. Já os formatos envolvem específicos processamentos que

permitem modelizações do que “estrategicamente se procura tornar mais característico na

incorporação de determinado gênero à forma televisiva” (RIBEIRO, SACRAMENTO e

ROXO, 2014, p. 24). No formato são fixadas determinadas características para tornar os

produtos televisivos mais facilmente reconhecíveis.

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No caso de Encontro com Fátima Bernardes, um talk show matinal que conta com

notícias, números musicais, presença de celebridades, testemunho de anônimos e um elenco

fixo de comediantes, jornalistas e especialistas, as definições genéricas de Timberg (2004)

não cabem. Além disso, o programa marcou a transição da apresentadora Fátima Bernardes

da área de jornalismo para a de entretenimento da Rede Globo. Em muitos momentos do

programa, a apresentadora, seja na cobertura de algum evento, seja em comentários durante

uma conversa, assume o ethos de jornalista: no primeiro caso, num papel próximo ao de

âncora cuja seriedade e formalidade varia de acordo com o teor do acontecimento narrado; e

no segundo, em determinados momentos, assume uma narrativa autorreferencial, relatando

episódios envolvendo a sua trajetória como jornalista (GADRET, 2014). No caso deste

trabalho, pela amostra de análise definida, outra forma de modalização discursiva foi

observada: o relato da apresentadora sobre acontecimentos pessoais.

Este trabalho tem como objetivo principal analisar a formatação televisiva de

experiências traumáticas no talk show Encontro com Fátima Bernardes. Para tanto, serão

considerados, pela observação das inserções do programa, os seguintes aspectos: 1) o que

está em jogo na ampliação da definição de trauma e na classificação de determinadas

experiências ordinárias de frustração ou sofrimento como traumáticas; 2) de que maneira o

formato do programa atribui teor testemunhal a relatos pessoais de sofrimento; e 3) como se

dão as articulações do talk show com o discurso terapêutico contemporâneo.

A escolha de Encontro com Fátima Bernardes se deveu ao fato de o programa

procurar ter um clima informal, remetendo à encenação do ambiente doméstico (uma sala de

estar, onde a apresentadora recebe os seus convidados num enorme sofá no centro do

estúdio). O programa, assim como muitos talk shows no Brasil (cf. SILVA, 2013), promove

uma mistura de temas de interesse público com a vida privada, ao enfocar em acontecimentos

cotidianos discutidos por meio de relatos pessoais de anônimos e celebridades. O programa

conta, assim, com uma forte estratégia de pessoalização discursiva. As histórias contadas são

pessoais, tendo o intuito de constituir uma relação de intimidade e de identificação com o

público mediada pela apresentadora. São frequentes no programa temas sobre

comportamento, saúde, preconceito, moda, beleza, fama, qualidade de vida, histórias de

superação e relacionamento.

A partir do acesso ao acervo de vídeos do programa pelo site

(http://gshow.globo.com/programas/encontro-com-fatima-bernardes/) com uma busca pela

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palavra trauma realizada em 10 de fevereiro de 2016, foram encontradas 13 inserções. Para

este trabalho, somente foram considerados as inserções entre 2012 e 2016. Além disso, foram

apenas tomadas para a análise aquelas que tratam do trauma como transtorno psicológico,

excluindo as que abordam traumatismos provocados por toda ordem de eventos que causam

danos graves ao corpo, especialmente ao crânio.3

2. As mudanças de sentido na experiência traumática No dia 15 de agosto de 2012, um tema em discussão no programa é o caso de

infidelidade envolvendo amigos: depois de uma separação, a mulher se aproxima do amigo

do ex-marido e os dois começam a namorar. À época, o programa utilizava como recurso

frequente a dramatização com atores não notabilizados pela televisão de casos relatados por

telespectadores. O uso de atores desconhecidos ou de não atores é estratégia recorrente de

produção de autenticidade no âmbito da linguagem audiovisual (NICHOLS, 2007); no

contexto contemporâneo, a experiência, sobretudo em sua dimensão testemunhal, assumiu tal

valor de autenticidade que garante maior “efeito de vida real”, pela fala de si, em primeira

pessoa, num relato próprio sobre o que viveu (ARFUCH, 2010, p.67). O programa, ao final

daquele ano, consolidou o depoimento pessoal como forma predominante de publicização de

experiências íntimas. No entanto, àquela época, celebridades e especialistas comentavam o

caso, com algum detalhe anedótico da própria vida, como acontece com o primeiro grupo, ou

com os expertos que frequentemente aparecem na televisão e vulgarizam conhecimentos

científicos específicos, sobretudo médicos ou psicológicos. Nesse formato, a psicanalista

Eliane Cotrim foi interpelada pela apresentadora do programa para responder se o ex-marido

no caso representado sente mais ciúmes do amigo ou da ex-mulher. Elas dialogaram da

seguinte forma:

ELIANE: Eu acho que ele está sofrendo uma situação que a gente pode chamar de traumática, porque uma separação sempre puxa um fio da vida da gente de todas as perdas que a gente teve. Então, ele está super frágil, mas eu acho que isso vai precisar de um tempo até que, com alguma maturidade dos três, a amizade possa se recompor. FÁTIMA: Mas você acha que ele tem ciúmes? Ele fala muito disso: que o amigo era a pessoa com quem ele conversava. Ele perdeu a mulher, com

3 A pesquisa empírica contou com o apoio da bolsista de iniciação científica Jaqueline Ruiz (PIBIC/CNPq/Fiocruz) e está vinculada ao projeto “Diante da dor dos célebres: o ethos terapêutico em testemunhos televisivos de sofrimentos íntimos”, que foi contemplado pelo edital Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas (MCTI/CNPQ/ MEC/CAPES n.22/2014).

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quem não conversa mais, e perdeu esse grande amigo, esse grande confidente, na verdade... ELIANE: Ele está com ciúmes... Ele está se sentindo duplamente traído, mas vamos lembrar que ser juiz deve ser muito difícil, uma missão impossível. Nós temos aqui três verdades. As três pessoas ali têm as suas histórias, seus vínculos afetivos. FÁTIMA: Casos assim são comuns no consultório. ELIANE: São comuns. Hoje em dia são comuns. Os casais e as famílias têm uma diversidade incrível, e a gente tem que lidar com isso, com os acasos.

Esse diálogo conta com três importantes movimentos de sentido. O primeiro deles é o

próprio descolamento do trauma para a experiência ordinária. A situação traumática, segundo

a psicanalista, traz à memória “todas as perdas que a gente teve”. Essa definição configura o

processo de popularização da escuta terapêutica, dos métodos e conhecimentos psicanalíticos

na cultura da mídia, sobretudo na televisão. De acordo com Rothe (2011), os talk shows

contribuem para transformar o trauma numa questão de estabelecer dicotomia entre vítima e

agressor. Há uma tendência de se limitar as perguntas às experiências das vítimas, mas com o

objetivo de demonstrar o desempenho do sofredor em evoluir do sofrimento para a

superação. Dessa forma, identifica-se a vítima como inocente, vulnerável ao mal que sobre

sua vida se abateu. O mal, nesse caso, está localizado na “dupla traição” que o ex-marido

sente em relação à ex-mulher e ao amigo. Este é um segundo processo de produção de

sentido frequente nessa inserção do programa: a localização de culpados para os sofrimentos,

estabelecendo, de modo assemelhado às narrativas melodramáticas, vilões e vítimas. Fica

clara a iniciativa de Fátima Bernardes em polarizar a situação entre o bem e o mal,

simpatizando-se definitivamente com o ex-marido (encarado como vítima) em detrimentos

dos outros dois (vistos como traidores). O herói, nesse caso, tornou-se o próprio sofredor, que

diante do mal, deve entender que só tem a si mesmo e que precisa se auto-gerenciar da

melhor forma possível para se recuperar, enfrentar e superar as adversidades (cf.

SACRAMENTO e FRUMENTO, 2015).

Nesse contexto, a linguagem do trauma incorpora-se ao discurso terapêutico

contemporâneo. Este é um terceiro movimento de sentido presente na conversa da

apresentadora Fátima Bernardes com a psicanalista Eliane Cotrim: fica evidente quando a

especialista evoca a “maturidade” como elemento fundamental para recompor os “vínculos

afetivos” dos três. Como bastante característico do discurso terapêutico contemporâneo, o

trauma passa a ser considerado como da ordem da autogestão emocional sob um senso

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profundo de aconselhamento. Assim, o sofrimento é desconectado do contexto social e

entendido como uma questão de gestão de si e autoaprimoramento (FUREDI, 2004, p.128).

As práticas de autoestima e de autogestão moldam novas gramáticas de ação e configuram as

tecnologias de poder, na medida em que transferem para o âmbito da gestão individual a

responsabilidade pela felicidade ou sofrimento, pelo sucesso ou frustração, pela saúde ou

doença: pela vida ou morte, no limite. Desse modo, a relação entre autogoverno e autoestima

tornou-se tão intensa, num contexto de psicologização da sociedade, que se cobra da vítima

uma gestão emocional tal que permita resistência e recuperação diante de situações adversas.

Assim, a autoestima tornou-se algo como uma “vacina social” que habilita as pessoas a

viverem uma vida responsável, segura e afortunada (CRUIKSHANK, 1996, p.232).

Por conta do incêndio da Boate Kiss em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, na

madrugada de 27 de janeiro de 2013, o programa Encontro com Fátima Bernardes do dia

posterior foi dedicado ao trágico acontecimento que levou à morte de mais de 242 e deixou

mais de 100 feridos. A apresentadora entrevistou a pedagoga Andréa Ramal para saber como

deveria ser a volta às aulas diante do ocorrido. Segundo a especialista, não se poderia

começar “dando de cara a matéria”. Segundo ela, não só os pais e alunos, mas também os

professores estão sofrendo com mortes de alunos, familiares e até mesmo filhos. Então, para

ela, a sala de aula deveria se transformar num espaço no qual as pessoas pudessem falar sobre

o trauma vivido até o terem superado. Na fala desta especialista, há um mesmo padrão de

gramática para ação que o da anterior: as vítimas devem se apoderar dos acontecimentos

desafortunados de modo positivo para superem. Dessa forma, na cultura da mídia, o trauma é

frequentemente privado do fundo político-social e definido como resultante social de

impasses individuais em vez de problemáticas sistemáticas (ROTHE, 2011, p.23-24).

No dia 6 de maio de 2014, o neurocirurgião Fernando Gomes Pinto, presença

frequente no programa, ao comentar o caso da Boate Kiss e a reação dos sobreviventes e

moradores de Santa Maria às perdas, foi enfático ao dizer que uma experiência traumática

como essa requer “um tratamento psicológico, com profissional especializado, e até mesmo

um ansiolítico”. Desse modo, implicitamente se reconhece a necessidade de

reestabelecimento da experiência de vida considerada normal em detrimento do próprio

sofrimento. Afinal, a presença marcante do discurso terapêutico e seu receituário de

autoestima e superação na cultura contemporânea torna necessária a “evitação da dor”

(BIRMAN, 2000, p.248). Nesse aspecto, em muitos momentos, Encontro com Fátima

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Bernardes reafirma a necessidade de sujeitos capazes de procedimentos de

autogerenciamento que permitam o estabelecimento de uma vida feliz e segura.

Já no dia 9 de outubro de 2014, motivada pelo arrastão ocorrido no Morumbi, bairro

considerado nobre da cidade de São Paulo, o programa Encontro com Fátima Bernardes

abordou o tema da violência urbana em termos psicológicos. A apresentadora conversou com

o psicanalista Moisés Groisman: FÁTIMA: A gente vai falar com o Dr. Moisés Groisman para saber se tudo isso é um ponto a mais de estresse no dia a dia ou se a gente vai se acostumando com toda essa violência. MOISÉS: Eu acho que pode ficar anestesiado, como você está falando, mas existe até uma síndrome que foi catalogada pelos americanos, que é a síndrome do estresse pós-traumático, não só em relação a assaltos, mas a diferentes traumas que o indivíduo sofre. Mas, é claro, depois disso, com muitos assaltos repetidos, pode até se criar uma patologia emocional que requererá uma série de tratamentos.

O psicanalista se referia ao Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders

(DSM), desenvolvido pela American Psychiatric Association desde 1952 e que vem sendo

referendado e utilizado por diversas associações psiquiátricas ao redor do mundo. Quando

pela primeira vez apareceu no manual, no DSM-III, de 1980, o estresse pós-traumático era

considerado um transtorno provocado por algum tipo de evento ou situação-limite, referindo-

se especialmente aos sobreviventes do Holocausto, soldados transtornados pela participação

numa guerra, vítimas de atentados terroristas, cidadãos torturados por estados ditatoriais,

mulheres violentadas e até mesmo aqueles que sobreviveram ou perderam entes queridos

numa catástrofe natural. Vinte anos depois, o DSM-IV ampliou dramaticamente o

entendimento do transtorno do estresse pós-traumático para toda a sorte de eventos que

provocam nos sujeitos medo intenso, desamparo e horror, o que permitiu classificar como

traumatizante uma gama infinitamente maior de eventos (“não só em relação a assaltos, mas a

diferentes traumas que o indivíduo sofre”) e como traumatizados um conjunto tão igualmente

maior de indivíduos que, antes, estavam incluídos no rol dos normais. Assim, um maior

número de indivíduos está potencialmente necessitado de tratamento e de medicamentos (cf.

VAZ, 2015). Afinal, como disse o psicanalista, a experiência traumática “pode criar uma

patologia emocional”.

O que se identifica aqui é que a noção de trauma passou a ser associada a um conjunto

diversificado de eventos. Na sociedade contemporânea, há uma transformação cultural que é

marcada pela “generalização da experiência traumática” (FASSIN e RECHTMAN, 2009,

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p.6). Esta transformação é o próprio processo de psicologização da experiência social. A

linguagem psicológica (trauma, neurose, ansiedade, transtorno, síndrome, pânico) está cada

vez mais presente no cotidiano das pessoas e no modo como elas identificam a si mesmas.

Nesse contexto, o trauma não é mais um termo especializado da medicina (para designar

lesões no corpo resultantes de determinados acontecimentos) ou da psicanálise (para se

referir a perturbações psíquicas provocadas por momentos de excessiva angústia e tormenta

na lembrança de determinados eventos), mas adquiriu um significado mais geral, como uma

“nova linguagem sobre os eventos” (FASSIN e RECHTMAN, 2009, p.9), transformando

uma gama demasiadamente ampla de eventos ordinários de sofrimento e diversas em

vagamente classificada como traumáticos.

Um exemplo da popularização do trauma na linguagem cotidiana é a edição do

Encontro com Fátima Bernardes do dia 6 março de 2014. Um dos temas do programa foi

sobre traumas de infância. Na reportagem do programa sobre o assunto, os entrevistados na

praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, responderam: “minha mãe dizia que não podia

colocar sapato num lugar mais alto do que nós mesmos, porque alguém da família ia morrer”,

“não podia comer manga com leite”, “eu comia formigas, porque minha mãe dizia que era

bom para as vistas” e “eu não podia comer banana antes de dormir”. As repostas giravam em

torno da superstição e da anedota, confirmando o tom do programa como predominantemente

marcado pelo humor e pela informalidade. Nesse caso, para a produção de uma ambiência

relaxada, a música de fundo durante a matéria ressaltava o caráter jocoso e leve da discussão

sobre o trauma naquela edição do programa. Não se tratava de algo sério. A psicóloga

Tatiana Paranaguá, nesse sentido, fez uma ressalva: “É um termo usado popularmente e às

vezes as pessoas não sabem o peso que tem. Trauma é uma marca muito forte, que precisa de

tratamento, mas, enfim, está se usando como uma brincadeira nesse momento”. No entanto,

em seguida, essa advertência não impediu que o trauma fosse usado como expressão para

designar crendices ou acontecimentos da infância de modo anedótico. Dessa maneira, no dia

13 de agosto de 2014, a apresentadora conta que, quando viajou para os Estados Unidos para

estudar dança, sua mãe lhe deu um guarda-chuva. Certa vez, mais de trinta anos depois, a

mãe pediu emprestado um guarda-chuva à irmã: “Esse ela não esqueceu”. Diferentemente da

irmã, Fátima Bernardes se sentia cobrada pela mãe por ter perdido o presente.

Desse modo, o termo trauma passou do sentido utilizado no campo da saúde mental

(como os vestígios deixados na psique por uma experiência posteriormente reconhecida como

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excessivamente perturbadora) para uma concepção muito mais alargada. Ao longo do século

XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, o trauma público ocorria quando ações –

guerras, grandes catástrofes ou outros eventos cataclísmicos em grande escala – perturbavam

a manutenção da vida coletiva de tal forma que abalava os princípios de moralidade e

normalidade. O uso popular do trauma como uma ferida aberta na memória coletiva, para

designar graves experiências de morte e sofrimento, desde depois do Holocausto e reforçado

pelo 11 de setembro, fez com que o sentido literal utilizado por profissionais psi (um choque

psicológico ou uma “marca muito forte” na psique) passasse a uma extensão metafórica (um

acontecimento traumático) que testemunhamos, especialmente, pelos meios de comunicação

(ZELIZER, 2002). Além disso, no contexto contemporâneo, a noção de trauma é não mais

que um lugar-comum, uma verdade compartilhada, associado cada vez mais a

acontecimentos ordinários da vida. É comum a ideia de que tanto eventos trágicos quanto

aqueles minimamente frustrantes, experimentados individual ou coletivamente, deixam

marcas na mente, pois são vistos como lesões que precisam de tratamento, por analogia

àquelas deixadas no corpo (ZELIZER, 2002, p.698).

Assim como vimos na inserção envolvendo o incêndio da Boate Kiss, a discussão

sobre violência urbana noutro momento foi tratada em termos psicológicos. Certamente,

cabia a ambos acontecimentos discussões mais amplas sobre políticas públicas, segurança,

formas de regulamentação, assistência social e saúde. Todavia, na televisão, especialmente

em talk shows, tem sido bastante comum tratar de temas sociais de modo psicológico

(FREIRE FILHO, CASTELLANO e FRAGA, 2008; DOVEY, 2000; ILLOUZ, 2003;

NUDELMAN, 1997; PECK, 2008; ROTHE, 2011; SHATTUC, 1997; WHITE, 1992). No

entanto, particularmente nesse caso, tal abordagem se deve menos ao formato leve, informal

e pessoal de programas como Encontro com Fátima Bernardes do que ao processo

contemporâneo de psicologização da sociedade. Talk shows, autobiografias, sites e outros

produtos midiáticos que fazem um “strip-tease emocional” (FUREDI, 2007) da vida pessoal

de célebres e anônimos demonstram a consolidação da recorrente transformação dos

problemas sociais em questões individuais, tornando a vida social em suas dimensões

estruturais subsumidas pelo discurso subjetivante presente na glamourização da psicologia

pela cultura da mídia (PFISTER, 1997) e na sua transformação como ciência social de maior

relevo na sociedade contemporânea, pelo modo como promove uma linguagem cada vez mais

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comum para a compreensão do mundo, da vida coletiva e individual em termos psicológicos

(ROSE, 2008).

Naquela conversa, como se pode perceber, a violência urbana é transformada numa

questão de estresse. Mais do que isso, além de perder a dimensão social da violência nas

cidades convertendo-se numa questão de tratamento individual, torna-se pela maneira como

uma pessoa é capaz de reagir emocionalmente a sucessão de assaltos uma “patologia

emocional” que demandará terapia e até mesmo tratamento psiquiátrico. Mais uma vez,

assim, insta-se o indivíduo a assumir a gestão de si de modo tão eficaz que ele não adoeça

diante de situações adversas como as de violência urbana, como no caso tratado, mas também

de assédio moral, preconceito, bullying, racismo, violência doméstica etc. Nesse contexto, há

implicitamente a identificação dos que foram assaltados como vítimas e potencialmente bons

e, por oposição, os assaltantes como necessariamente maus. A questão social, nesse caso,

além de subsumida pela linguagem psicológica utilizada no programa, transforma-se num

maquiavelismo da luta entre o bem e o mal, próprio das narrativas melodramáticas (cf., sobre

a apropriação do melodrama como matriz cultural na configuração de discursos midiáticos

sobre a violência urbana, BORGES, 2009).

Dessa forma, amplia-se não só a noção de trauma, mas também o lugar de vítima, que

passa a ser tão superdimensionado como supervalorizado. Trata-se de uma supervalorização

associada à capacidade de superação: do sujeito do sofrimento ao sujeito da superação. Na

inserção analisada, o padrão de comportamento idealizado pelo psicanalista para as vítimas é

justamente a capacidade individual de superação (“com muitos assaltos repetidos, pode até se

criar uma patologia emocional que requererá uma série de tratamentos”). O uso do verbo

criar, além de remontar a algo que é inventado, falacioso, refere-se a um processo subjetivo,

artístico ou não, de trazer algo novo à cena pública (uma obra, invento, texto etc.). Nesse

caso, particularmente, o psicanalista se refere à capacidade de modulação da própria

subjetividade: aqueles que terem criado uma patologia por conta das situações que viveram

poderiam se reinventar com auxílio terapêutico como normais. O uso do verbo criar e não

desenvolver, por exemplo, é menos uma mera escolha lexical do que uma mostra da

transmutação das questões sociais em problemas psicológicos, para os quais é necessária uma

autogestão emocional, sobretudo do estresse.

Esse diagnóstico representa a crescente presença da retórica do sofrimento psíquico

na vida cotidiana e na cultura da mídia, o que demonstra as profundas transformações dos

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conceitos de subjetividade e autonomia na contemporaneidade. Há um deslocamento

progressivo de responsabilidades sobre o próprio indivíduo para manter a saúde, a qualidade

de vida, o bem-estar e o sucesso pessoal e profissional. Isso vem fazendo com que novas

patologias e outras, como o transtorno de estresse pós-traumático, tenham seu escopo

ampliado, reduzindo cada vez mais a experiência de normalidade (EHRENBERG, 2010).

Nesse contexto, o doente passa a ser visto como aquele sujeito esvaziado de seu poder de agir

e transformar a si mesmo diante das adversidades. Nesse sentido, enquanto o evento

traumático deixa de ser considerado aquele que não tem a possibilidade de ser prontamente

assimilado, associado e inserido numa cadeia representacional (BOTELLA & BOTELLA,

2002), o indivíduo traumatizado deve ser aquele capaz da autorecuperação para, depois,

testemunhar a sua superação.

No dia 11 de julho de 2012, Fátima Bernardes assume um papel diferente na conversa

com seus entrevistados: o de juíza da moral. Ela dedicou um bloco do programa ao

Movimento Mães da Sé. Fundada em 31 de março de 1996, a Associação Brasileira de Busca

e Defesa a Crianças Desaparecidas (ABCD) ficou conhecida daquela forma numa alusão às

Mães da Praça de Maio, na Argentina. A apresentadora entrevistou algumas mães do

movimento e com a psiquiatra Cristiana Barbiere por meio de um link com São Paulo. A

médica trabalha voluntariamente atendendo as mães do movimento. Fátima Bernardes

indagou se as mães sentem “algum sentimento de culpa”, o que foi confirmado pela

especialista. O que Fátima Bernardes julga é a capacidade de a mãe ter protegido o filho o

suficiente, de modo a não permitir o desaparecimento. Dentro da trama terapêutica da cultura

contemporânea, a pergunta da apresentadora implicitamente atribui às próprias mães a

responsabilidade pelo desaparecimento dos filhos, uma vez que elas não teriam sido capazes

de calcular os riscos das ações e evitar os sofrimentos.

3. Os testemunhos do trauma No programa do dia 5 de novembro de 2012, um dos temas abordados foi sobre o

trauma de vítimas de assalto. A apresentadora Fátima Bernardes relatou uma experiência

pessoal. Ela, então, assumiu o lugar de entrevistada e entrou numa conversa com Lair Rennó:

LAIR: Mas qual foi a sua reação? FÁTIMA: Eu? Eu fiquei paralisada. A gente tentou no máximo falar um pouco com ele dizendo que ia dar tudo certo para ele e que ele ficasse tranquilo porque poderia ir embora. Ele trancou a gente no banheiro depois e foi. Mas, assim, é uma situação que obviamente você carrega para o resto

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da vida. No meu caso, eu preferi não mudar, porque eu iria levar meu trauma para qualquer lugar. Se eu fosse para um apartamento, para outra casa, não importa. Então, eu tive um apartamento que pegou fogo uma vez e eu me mudei. Mas eu sentia cheiro de fogo. O mais importante é tentar cuidar desse trauma, apagar o máximo que for possível dele para que você consiga recomeçar, mas aí não obrigatoriamente em outro lugar.

A conclusão a que a apresentadora chega é bastante reveladora de como o discurso

terapêutico contemporâneo reconfigura a experiência do trauma. Em talk shows, como esse, é

comum a acomodação de temas do trauma em cenários narrativos baseados em um

movimento que passa do tormento a um reconfortante final feliz, apresentando a “vítima-

sobrevivente” como a protagonista de uma épica e, por isso, é alguém a quem se concede um

estatuto moral superior (ROTHE, 2011, p.89). Trata-se de um tropo problemático, podendo

transformar um conjunto diverso de situações (da violência sexual ao racismo, passando pelo

incêndio, o assalto e a superstição) como experiências traumáticas importantes na medida em

que podem contribuir para o crescimento pessoal. Além da designação extremamente

genérica e ampla do trauma, bastante característica do processo de psicologização da

sociedade, em seu relato, Fátima Bernardes foi categórica ao insistir que a superação do

trauma se trata de uma capacidade individual: “O mais importante é tentar cuidar desse

trauma, apagar o máximo que for possível dele para que você consiga recomeçar, mas aí não

obrigatoriamente em outro lugar”. Ou seja, independentemente do que tenha acontecido, o

indivíduo é avaliado pelo modo como consegue gerenciar suas próprias emoções no sentido

de se mobilizar para sair do estado de sofrimento para o de superação.

No programa Encontro com Fátima Bernardes, a construção dessa trama moral de

avaliação da capacitação interior ganha, recorrentemente, um novo ingrediente: a

pessoalidade. A própria apresentadora se coloca pessoalmente sobre a sua vida, seus

problemas e sobretudo sobre a forma como resolveu. A autoridade na prescrição do

autocontrole e da autoestima como forma vital para a saúde psíquica é reforçada pelo ethos

prévio da jornalista, isto é, pela sua representação pública presumida, reconhecida e

consagrada. Como apresentadora do Jornal Nacional de 1998 a 2011 juntamente com o

marido William Bonner, o casal foi midiaticamente construído como perfeito e tendo uma

família feliz, com seus trigêmeos (HAGEN, 2004). Como jornalistas, se tornaram

celebridades. A construção da imagem prévia da apresentadora como uma pessoa feliz, mãe

dedicada, esposa fiel e profissional competente confere ainda mais legitimidade ao seu relato,

acrescido do fato de ser um relato autobiográfico, que na sociedade contemporânea é

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creditado pela autoridade experiencial: ter vivido o que relata e por isso sabe mais porque

viveu o que conta (ARFUCH, 2010).

No dia 7 de maio de 2013, a atriz Giovanna Lancellotti revela que tem trauma do

silêncio: “Eu me sinto muito sozinha. Acho que é porque, quando eu me mudei, saí de casa e

fui morar sozinha, eu ficava muito tempo sozinha e aí peguei meio que um trauma disso”.

Apesar de repetir constantemente o medo da solidão, a atriz não parece demonstrar qualquer

sinal de trauma ou de um transtorno. Ela lida com a sua condição de modo extremamente

lúdico, dizendo que usa várias formas de driblar para se sentir melhor: deixa a TV ligada,

escuta bastante música, conversa com os amigos. Já atriz Fernanda Rodrigues não gosta de

ficar em silêncio, sente-se hiperativa e por isso tomou uma decisão: praticar yoga. Nesse

depoimento, é interessante como ela se diagnostica como hiperativa e prescreve a si mesma

um tratamento: o yoga. Esse aspecto revela mais uma faceta do discurso terapêutico

contemporâneo: transformar atividades físicas, alimentação, a religião e diversos elementos

da cultura em procedimentos que permitem o autoaprimoramento e autoconhecimento, como

neste caso. Nessa mesma linha, Ingrid Guimarães, no programa de 14 de janeiro do mesmo

ano, conta que tem “um certo trauminha de infância”. Ela se sentia diferente das outras

meninas porque “era muito ruim dançando balé”. Ela queria ser igual as outras e acreditava

que estava frustrando a mãe, por não conseguir dançar balé. A atriz Nívea Maria, também no

programa, encorajou a colega de profissão: “Mas no palco você tem um molejo, uma

malemolência, que parece que você dança bem”. Ingrid, por sua vez, diz que acabou

buscando outro tipo de dança. Ela disse que sofria ao querer se adaptar: “Resolvi inverter a

coisa: buscar uma dança que se adaptava ao meu jeito”.

Encontro com Fátima Bernardes do dia 18 de novembro de 2013 tratou do bullying

em escolas. Foi realizado uma matéria com Danielle Aquino, que sofreu bastante por conta

dos comentários sobre o seu excesso de peso. A repórter Aline Prado passou um dia com a

entrevistada para conhecer a sua rotina. Foi a sua casa e depois ao encontro com o namorado

no shopping. Em casa, Danielle conta que quando era mais “cheinha” não tinha namorado e,

quando mudou de escola por conta dos problemas que enfrentava, resolveu emagrecer e

conheceu o seu então namorado, Wallenstein Junior. Segundo a entrevistada, ele a entende

perfeitamente porque “sofreu do mesmo problema”: era gordo, sofreu bastante bullying na

escola e resolveu emagrecer.

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No programa, foi valorizada a capacidade de eles se reinventarem diante das

adversidades. Ou melhor, saudou-se o modo como eles submeteram a si e a seus corpos às

normas sociais vigentes de boa forma: ajustando-se para ser feliz e não sofrer mais

preconceito. Desse modo, como venho demonstrando ao longo deste texto, há uma

ambiguidade nessa positivação de experiências consideradas traumáticas: se por um lado

produzem a necessidade de transformar o sofrimento com as adversidades no material que

será internamente reciclado em prol do autoaprimoramento (ILLOUZ, 2003, p.230), por

outro, naturaliza ou minimiza experiências drásticas de violência, preconceito, crime,

catástrofe, guerra ou adoecimento, uma vez que elas serviram para comprovar ou exercitar a

capacidade individual de superação.

É curioso nessa inserção que Danielle e o namorado não aceitam completamente o

papel de heróis de si mesmo, caracterização bastante típica dos discursos midiáticos num

contexto terapêutico (cf. SACRAMENTO e FRUMENTO, 2015). Passeando no shopping

junto com a repórter Aline Prado, ao ser perguntado se superou os problemas e se sente

magro, o estudante contou: “O trauma fica para sempre. Toda vez que me olho no espelho,

acho que estou com uma gordurinha aqui, uma ali. Estou sempre de dieta. Para a vida inteira,

eu acho que vou sentir a sensação de ser gordo”. Danielle concorda com o namorado: “As

sequelas [do bullying] ficam para sempre, até hoje, vinte anos depois”. Nesse sentido,

diferentemente de outros testemunhos considerados, não há uma exemplificação de superação

completa, mas uma incompletude. Por mais que exemplifiquem a conquista da magreza e do

padrão corporal vigente, não conseguem esquecer do que sofreram quando eram gordos e

ainda não conseguem se reconhecer como magros.

Depois da matéria, perguntado por Fátima Bernardes sobre “qual a lição que se

aprende em casos como esses”, o psicanalista Francisco Daudt afirma o seguinte: “Existe um

componente que motiva o bullying e que em geral não é reparado. Esse componente é a

inveja”. De maneira bem-humorada, o psicanalista se volta para o técnico de futebol Joel

Santana e comenta: “O Joel conseguiu fazer com o bullying que sofreu uma reviravolta

maravilhosa que deixou os invejosos se matando a facadas. Ele fez um jeito de rir de si

mesmo, como de ganhar dinheiro”. O psicanalista se refere ao fato de o treinador, quando

comandou a seleção da África do Sul entre 2008 e 2009, ter sido extremamente criticado e

ridicularizado em sites na internet pela sua má pronúncia do inglês. O vídeo da entrevista

dele em inglês após a derrota para o Brasil num jogo na Copa das Confederações de 2009

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viralizou na internet. Diante de tamanha repercussão, ele conseguiu explorar financeiramente

a sua famosa dificuldade de falar em inglês. Após estrelar comerciais da Pepsi, empresa de

bebidas, o treinador virou garoto-propaganda da Head & Shoulders, empresa especializada

em produtos de cabelos. Assim, esquecendo dos relatos de Danielle e Wallenstein, que,

apesar de magros, ainda sofrem pelo que passaram, na narrativa do programa privilegiou-se a

a história positiva de superação e conquista financeira.

No dia 28 de maio de 2014, o programa contou com a participação da modelo

Amanda Griza e sua mãe, Helena Griza. A modelo ficou 17 dias presa na China, porque ela

entrou no país com um visto de negócios e não com um visto de trabalho específico exigido.

Antes da conversa, um vídeo mostra o reencontro emocionado entre mãe e filha. A imagem

das duas abraçadas aos prantos contrasta com a condução narrativa da conversa entre as duas

com a apresentadora Fátima Bernardes e a psicóloga Maria Tereza Maldonado. Depois da

mãe ter explicado que a situação se resolveu após ter conversado com um político conhecido,

a apresentadora interveio: FÁTIMA: Pois é, é uma história muito parecida com Salve Jorge. Não é o seu caso, mas é muito parecido: de alguém que viaja por meio de uma agência que não está com tudo em dia para receber essas jovens e vai trabalhar num país desconhecido. Você vê: uma família bem estruturada, uma menina com informação e que cai numa história dessa. Felizmente, a gente está aqui para contar, mas podia ter sido diferente. FÁTIMA [dirigindo-se para a psicóloga]: Vou colocar a Maria Tereza nessa conversa. Que tipo de aprendizado, de cuidado, de trauma ela pode ter a partir de agora e de que maneira ela precisa se comportar, já que ela quer seguir com a carreira dela? O que ela pode fazer por ela mesma? MARIA TEREZA: Investigar bem detalhadamente esse cenário, investigar outras contratações, quem já foi...Enfim, o que eu acho mais importante de tudo isso é ter esse suporte familiar para poder atravessar essa situação. Está tudo muito recente, mas enfrentar essa situação traumática nos fortalece, nos faz encontrar os recursos para enfrentar as dificuldades que a vida oferece a cada momento. AMANDA: Uma coisa que eu quero ressaltar e quero que todo mundo saiba é que eu não sabia de onde tirar forças. Eu assinei um papel, dizendo que eu tinha que ficar lá por 30 dias e não sabia o que fazer para sair. E a força que eu tirei foi do amor que eu tenho pela minha família; eu nunca tive tanto amor acumulado dentro de mim. Eu não consigo sentir raiva, eu não consigo sentir ódio da agência por tudo que aconteceu. Eu, na verdade, só tenho a agradecer por tudo que eu passei lá. Eu aprendi muito. Eu quero dar mais valor às coisas. Eu tenho muito amor acumulado agora. FÁTIMA: Que bom, que bom. Nós vamos falar de muitas coisas hoje, de família, de adversidades na família, mas o amor é o que é mais importante de se ter.

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De maneira mais enfática, aqui a posição de Fátima Bernardes, mais uma vez, é de

juíza da moral. De modo implícito, ela responsabiliza a família e, especialmente, a modelo

por terem se deixado enganar. Ou seja, por serem bem informados, escolarizados e de classe

média eles deveriam ter sido capazes de preverem o acontecimento desafortunado e de evitá-

lo. Assim, o espaço para o sofrimento na narrativa da conversa do programa fica restrito ao

vídeo da chegada da modelo ao aeroporto de Florianópolis. O que toma lugar, primeiramente,

é a afirmação do discurso neoliberal das recompensas pelas escolhas acertadas e feitas com

responsabilidade e precisão para tornar a própria vida melhor e bem-sucedida (BINKLEY,

2011). Nesse momento, a apresentadora se coloca no lugar de árbitra, com um estatuto moral

e discernimento superiores, uma vez que às duas lhes foi demonstrada a falta de habilidade

em avaliar o certo ou o errado. Por isso, é dado pouco espaço para a modelo contar a sua

própria história. Ela está sendo moralmente julgada pela apresentadora e analisada pela

psicóloga. Nesse momento, a fala da especialista traz uma nova dimensão à conversa:

transformar o sofrimento em “recursos para enfrentar as dificuldades”. Novamente no

programa, o acontecimento desventurado se torna dentro da linguagem terapêutica uma

possibilidade de recuperação. Nesse caso, é como se fosse uma nova chance para as vítimas

reconhecerem que elas mesmas são responsáveis pelos seus sofrimentos e criarem estratégias

para mudarem e terem mais sucesso nas suas escolhas. Fátima Bernardes, por exemplo, ao se

voltar para a psicóloga, coloca o trauma, o aprendizado e o cuidado no mesmo campo

semântico, o que demonstra mais uma vez a minimização ou naturalização da experiência

traumática. Ela passa a ser encarada como teste para que os sujeitos provem a sua capacidade

de autogestão eficaz. O acontecimento chega ainda a ser atenuado diante da comparação com

a telenovela Salve Jorge, sutilmente esvaziando o caráter trágico da experiência.

Quando a própria modelo toma a palavra, há pouco espaço para as lágrimas em seu

testemunho. Ela procura se enquadrar na recomendação da psicóloga e já entende a situação

que viveu como um aprendizado para a sua vida. Nessa construção narrativa, o programa

Encontro com Fátima Bernardes está bastante conectado com um dos mais importantes talk

shows da história da televisão mundial. Em The Oprah Winfrey Show, investiu-se em

conversas que permitem lições de autoajuda e aconselhamento para os telespectadores por

meio de histórias de superação, mas também em muitos momentos a apresentadora se coloca,

como Fátima Bernardes, no papel de juíza da moral.

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4. Considerações finais

É traço comum aos talk shows no contexto contemporâneo a transformação do

procedimento psicanalítico de “cura pela fala” numa exposição midiática do eu (ROTHE,

2011). A maior parte dos estudos sobre as relações entre os talk shows e o discurso

terapêutico asseguram que a forma enunciativa privilegiada na personalização da narrativa é

a confissão. Afirma-se, em geral, que há um imperativo por confessar, ou pelo menos de se

envolver em auto-revelações, nesses programas (DOVEY, 2000; KING, 2012; ILLOUZ,

2003; PECK, 2008; SHATTUC, 1997; WHITE, 1992). Ou seja, a maior parte dos trabalhos

insiste que os talk shows são programas confessionais. No entanto, acredito que as narrativas

autobiográficas de celebridades e indivíduos comuns em programas como Encontro com

Fátima Bernardes são predominantemente testemunhais, uma vez que relatam a superação de

suas experiências ditas traumáticas, como terem sido vítimas de preconceito, violência,

doenças físicas ou mentais, de catástrofes, acidentes e outros acontecimentos (NUDELMAN,

1997; SACRAMENTO, 2015; VAZ, SANTOS e ANDRADE, 2014). O testemunhal tem,

sobretudo, uma função de exemplificação e de prova da capacidade de mudança e de

superação motivada por uma crença, pela fé, pelo amor próprio, pela vontade de viver.

Assim, o testemunho recorrentemente assume uma dimensão moralizante. O testemunho

também é um relato sobre uma experiência vivida. A banalização da experiência traumática

no cotidiano e a espetacularização dela em testemunhos em programas de TV constituem o

processo acelerado de psicologização da vida contemporânea. Já a confissão envolve

necessariamente o reconhecimento de um erro, falha ou problema. Processa-se como um

autoexame para se descobrir a verdade sobre si mesmo mediado pelo discurso médico,

jurídico ou religioso (FOUCAULT, 1988).

No caso dos testemunhos sobre eventos de violência extrema, de sobreviventes do

Holocausto ou de ditaduras, é comum haver a ideia de que eles atestam a necessidade da

lembrança do que ocorreu para que se impeça o esquecimento dos horrores vividos. Nesse

contexto, a primeira pessoa do testemunho expressa uma coletividade, substituindo outros,

não de modo vicário, como representante, mas porque “não morreu no lugar de quem

morreu” (SARLO, 2005, p.35). Se, como demonstrei, o trauma também expandiu seu raio de

abordagem na contemporaneidade, o testemunho também se ampliou. A memória das

tragédias conta com uma dimensão coletiva. Está num modo como um grupo pode fundar a

sua identidade em relação a um passado de extrema violência e dor, tornando-se uma

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“memória do sofrimento compartilhado” (CANDAU, 2012, p.151). Se o século XX

inaugurou uma “era dos testemunhos” (WIEVIORKA, 2002) por conta das catástrofes,

guerras e genocídios ocorridos, abrindo amplo espaço para os relatos pessoais, estamos

vivendo desde os anos 1980 uma generalização crescente de memórias e experiências

traumáticas (HUYSSEN, 2000).

Nos casos analisados neste texto, é possível observar o quanto testemunho assume

uma dimensão extremamente individualizante. A conexão com a coletividade menos se dá

pela identificação com outros sofredores do que pelo estímulo àqueles que padeçam algum

mal pela busca do sucesso individual, superando os sofrimentos com autoestima,

autoconhecimento e, sobretudo, autogerenciamento emocional. Essa centralidade da

autogestão das emoções na cultura contemporânea permite observar o quanto se torna

relevante a sensação de capacidade individual plena para manipular o próprio bem-estar,

transformando a felicidade menos numa “consequência colateral da busca de algum fim

comunal superior” do que uma responsabilidade que deve ser assumida por cada indivíduo

(RIEFF, 1996, p.13).

Como demonstrei, saber transformar as experiências de sofrimento em oportunidades

para identificar os problemas em si mesmo e mudar a própria vida parece ser a solução para o

trauma em Encontro com Fátima Bernardes. Desse modo, enquanto a confissão clínica

envolve um conjunto de processos de individualização que incluem exames pessoais, técnicas

de estudo de caso, documentação geral e recolha de dados pessoais, esquemas interpretativos

e uma série de técnicas terapêuticas para dirimir ou normalizar transtornos e sofrimentos

psíquicos, uma nova forma de revelação pública da intimidade, que prescinde dos espaços de

intimidade da terapia psicanalítica (BREUER e FREUD, 1994), assume o proscênio das

formas enunciativas contemporâneas de narrativas de si. Na televisão – especialmente em

programas como Encontro com Fátima Bernardes –, essas narrativas muito menos procuram

o reconhecimento de um problema por meio da auto-inspeção típica do longo processo de

confissão e escuta terapêuticas (FOUCAULT, 2006) do que se tornam testemunhos da

superação de problemas, transmutando a “cura pela fala” numa forma de aconselhamento.

São testemunhos que, em geral, aconselham modos de se ter uma vida feliz ou de

(re)estabelecer a felicidade como normalidade pelas telas do espetáculo midiático.

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