a formação do projeto teórico de michel pêcheux_claudiana_narzetti_costa
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7/23/2019 A Formao Do Projeto Terico de Michel Pcheux_claudiana_narzetti_costa
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unespUNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
JLIO DE MESQUITA FILHO
Faculdade de Cincias e Letras - Campus de Araraquara
CLAUDIANA NAIR POTHIN NARZETTI
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DEUMATEORIAGERALDASIDEOLOGIAS
ANLISEDODISCURSO
ARARAQUARA2008
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CLAUDIANANAIRPOTHINNARZETTI
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ANLISEDODISCURSO
Dissertao de Mestrado submetida ao Programade Ps-Graduao em Lingstica e LnguaPortuguesa da Faculdade de Cincias e Letras UNESP/Araraquara, como cumprimento dosrequisitos obrigatrios para obteno do ttulo deMestre em Lingstica e Lngua Portuguesa.
Linha de pesquisa: Estrutura, organizao efuncionamento discursivos e textuais
Orientador: Slvia Dinucci Fernandes
Bolsa: FAPEAM
ARARAQUARA2008
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CLAUDIANANAIRPOTHINNARZETTI
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DEUMATEORIAGERALDASIDEOLOGIAS
ANLISEDODISCURSO
Dissertao de Mestrado submetida ao Programa
de Ps-Graduao em Lingstica e LnguaPortuguesa da Faculdade de Cincias e Letras UNESP/Araraquara, como cumprimento dosrequisitos obrigatrios para obteno do ttulo deMestre em Lingstica e Lngua Portuguesa.
Data de aprovao: 03/03/2008
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
Presidente e Orientador: Professora Dra. Slvia Dinucci Fernandes (UNESP FCL/CAR)
Membro Titular:Professora Dra. Maria do Rosrio Valencise Gregolin (UNESP FCL/CAR)
Membro Titular:Professora Dra. Fernanda Mussalim (UNIVERSIDADE FEDERAL DE
UBERLNDIA)
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Ao Rubens
Cmplice de todos os momentos
Sntese do verbo amar
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AGRADECIMENTOS
Agradeo minha orientadora, Slvia, a acolhida, o apoio, a compreenso, a orientao
dedicada e a amizade.
Agradeo aos professores do Programa que muito contriburam para a minha formao
geral.
Agradeo aos membros da Banca Examinadora, a participao, a leitura de meu trabalho
e as ricas contribuies.
Agradeo FAPEAM e SEMED, que, com seus programas de apoio e fomento
pesquisa e formao docente, tornaram possvel a realizao deste trabalho.
Agradeo ao GEADA, grupo com que pude aprender muito nesses dois anos de
convvio, em especial Rosrio e Vanice.
Agradeo aos meus amigos, Luzmara, Carlos, Mara, Amanda e Tasa, a quem tive a
felicidade de conhecer em Araraquara e com quem partilhei timos momentos e pude
aprender muito.
Agradeo minha famlia, que, de longe, sempre me apoiou e torceu por mim.
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preciso, portanto, devolver uma memria
AD, na qual o trabalho de Pcheux retoma
seu sentido e seu lugar (COURTINE, 2005,
p. 31).
... uma cincia no estado nascente uma
aventura terica (...): o acesso ao objeto
obtido por caminhos ainda no desbravados,
onde os falsos passos no esto excludos
(HERBERT, [1966], 1973, p.30).
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RESUMO
O tema desta Dissertao a constituio terica da anlise do discurso
desenvolvida por Michel Pcheux. Especificamente, tratamos da constituio da AD (a
sua primeira poca - o incio da teoria com a obra Anlise Automtica do Discurso, de
1969) e de sua relao com os textos anteriores de Pcheux, assinados com o
pseudnimo Thomas Herbert, Reflexes sobre a situao terica das cincias sociais e,
especialmente, da psicologia social, de 1966 e Observaes para uma teoria geral das
ideologias, de 1968, nos quais o fundador de uma das vertentes da anlise do discurso
francesa ainda no est engajado na elaborao de uma teoria do discurso, mas no
projeto althusseriano de elaborao de uma teoria das ideologias. Acreditamos que o
aparato terico-conceitual apresentado, as temticas desenvolvidas e as crticas feitas
por Pcheux na obraAnlise Automtica do Discursopossuem uma estreita relao com
idias e concepes de seus textos anteriores, dedicados reflexo sobre a ideologia e
sobre a histria das cincias. Sendo assim, tentamos reconstruir o percurso do projeto
terico de Pcheux, identificando que problemas o conduziram do projeto inicial de
elaborao de uma teoria das ideologias construo da teoria e da anlise do discurso;
que relaes existem entre esses dois projetos; que problemas tericos e/ou prticos
provocaram esse deslocamento; como Pcheux foi de uma concepo de ideologia em
que a linguagem no tematizada a uma teoria que a pensa a partir do discurso; qual a
funo que o instrumento anlise do discurso desempenhava nesses projetos; e qual o
papel particular que exerceram as trs cincias que esto na base da AD: Materialismo
Histrico, Lingstica e Psicanlise. Partimos da posio de que importante conhecer
o projeto terico que precede e prepara a construo da AD para melhor compreender a
necessidade de sua construo e seu significado terico.
Palavras-chave: Anlise do discurso. Ideologia. Michel Pcheux. Thomas Herbert.
Histria epistemolgica da AD. Lingstica.
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RSUM
Le sujet de notre recherche est la constitution thorique de lanalyse du discours
dvelopp par Michel Pcheux. Nous nous intressons en particulier la constitution de
lAD (sa premire poque le dbut de la thorie du discours) et son rapport avec les
textes Rflexions sur la situation thorique des sciences sociales et, spcialement, de la
psychologie sociale (1966) et Remarques pour une thorie gnrale des idologies
(1968), qui ont t produits antrieurement par Pcheux sous le pseudonyme de Thomas
Herbert. Dans ces textes, le fondateur de lun des domaines de lanalyse du discours
franaise ne sest pas encore engag dans llaboration dune thorie du discours, mais
dans le projet althussrien de construction dune thorie des idologies. Nous croyons
que le dispositif thorique-conceptuel, les thmatiques et les critiques que Pcheux a
prsents et dvelopps dans son oeuvreAnalyse Automatique du Discours (1969), ont
un rapport troit avec des ides et des conceptions des textes antrieurs de lauteur qui
sont ddis la rflexion sur lidologie et sur lhistoire des sciences. Ainsi, nous
essayons de reconstruire le parcours du projet thorique de Pcheux travers
lidentification des problmes qui lont men du projet initial de llaboration dune
thorie des idologies la construction de la thorie et de lanalyse du discours. Nous
explicitons les rapports qui existent entre ces deux projets et les problmes thoriques et
pratiques qui ont provoqu ce dplacement. Nous expliquons comment Pcheux va
dune conception de lidologie o le langage nest pas abord une thorie qui pense
le langage partir du discours. Nous lucidons la fonction que le dispositif instrumental
analyse du discours jouait dans ces projets. Et, finalement, nous commentons le rle
particulier quont exerc les trois sciences qui forment la base de lAD : le Matrialisme
Historique, la Linguistique et la Psychanalyse. Nous considrons quil est trs important
de connatre le projet thorique qui prcde et prpare llaboration de lAD pour mieuxcomprendre la ncessit de sa construction et son signifi thorique.
Mots-cls:Analyse du discours. Idologie. Michel Pcheux. Thomas Herbert. Histoire
pistmologique de lAD. Linguistique.
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SUMRIO
INTRODUO........................................................................................................... 10
1 A CONJUNTURA DA FORMAO DO PROJETO TERICO DE MICHEL
PCHEUX ....................................................................................................................22
1.1 A conjuntura dos anos 60 .........................................................................................23
1.2 Michel Pcheux e o grupo althusseriano ..................................................................26
1.3 Um programa de pesquisas para o grupo althusseriano ...........................................30
1.4 A ideologia em geral ................................................................................................36
2 PRESSUPOSTOS EPISTEMOLGICOS DA OBRA DE MICHEL
PCHEUX/THOMAS HERBERT .............................................................................43
2. 1 A epistemologia histrica francesa ..........................................................................44
2.1.1 A novidade da epistemologia histrica francesa ........................................45
2.1.2 As principais categorias da epistemologia histrica francesa ....................47
2.2 O Materialismo Dialtico segundo Althusser e seu grupo .......................................56
2.2.1 A especificidade do materialismo dialtico ...............................................56
2.2.2 A prtica terica .........................................................................................58
2.2.3 Objetivos do materialismo dialtico ..........................................................63
2.2.4 A leitura sintomal ......................................................................................71
3 O PROJETO DE UMA CINCIA DAS IDEOLOGIAS E O MTODO DE
ESCUTA SOCIAL .......................................................................................................78
3.1 Esboo de uma teoria geral das ideologias ..............................................................803.2 A primeira articulao entre ideologia, sujeito e discurso .......................................87
3.3 O problema das cincias sociais ..............................................................................90
3.4 O projeto de uma cincia das ideologias .................................................................97
4 A TEORIA GERAL DAS IDEOLOGIAS DE THOMAS HERBERT ...............103
4.1 Princpios gerais .....................................................................................................104
4.2 Apropriao da Lingstica ....................................................................................1074.3 Apropriao da Psicanlise ....................................................................................119
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4.4 As cincias sociais e as garantias ideolgicas ........................................................128
4.5 Variao e mutao ideolgica ...............................................................................130
4.6 O dispositivo instrumental e institucional ..............................................................135
5 RUMO TEORIA E AO MTODO DE ANLISE DO DISCURSO ..............149
5.1 Crticas anlise de contedo ................................................................................150
5.2 Primeiros conceitos da teoria do discurso ..............................................................162
5.3 Apropriao da Lingstica, da Psicanlise e do Materialismo Histrico na teoria
do discurso ....................................................................................................................169
5.4 O mtodo de anlise do discurso e a estratgia de Michel Pcheux .......................171
CONSIDERAES FINAIS .....................................................................................179
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .....................................................................185
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INTRODUO
Sabemos que o que hoje se costuma chamar de anlise do discurso (AD) uma
grande rea do conhecimento, institucionalizada nos departamentos de Lingstica, que
surgiu na Frana no final da dcada de 60, tendo se expandido para outros lugares,
como os Estados Unidos e o Brasil, na dcada de 80. Assim, seria demasiado vago se
dissssemos que nosso trabalho inquire sobre a anlise do discurso, ainda que isso seja
um fato.
Sabemos tambm que esse campo do conhecimento, nas duas primeiras dcadas
de sua existncia na Frana, representa uma confluncia de vrias correntes que tm em
comum o fato de terem tomado por objeto o discurso. Assim, para exemplificar
poderamos citar alguns nomes: Jean Dubois, Michel Foucault e Michel Pcheux.
O que caracterizava cada uma dessas vertentes era a concepo de discurso que
sustentavam, a qual era resultado de posies epistemolgicas diversas, uma das quais
era o papel que os domnios de saber nos quais se embasavam exerceu no s na prpria
construo do conceito de discurso, mas tambm na dos demais conceitos que o
acompanharam para melhor explicit-lo. Assim, cada uma dessas correntes ou vertentes,
ao lado da sua histria comum que as une numa mesma direo, tem uma histria
particular. Portanto, a AD francesa no possui uma identidade nica e ainda seria vago
se dissssemos que nosso trabalho procura reconstruir um momento de sua histria,
ainda que isso no seja uma promessa que no vai ser cumprida pelo menos em parte.
Indo direto ao ponto, podemos dizer que o nosso trabalho trata do processo de
constituio histrica e terica da AD francesa em uma de suas vertentes, a inaugurada
por Michel Pcheux, cujo marco inaugural a publicao da obraAnlise Automtica
do Discurso, em 1969. Nossa proposta analisar minuciosamente um momento bemespecfico e delimitado da histria da disciplina, os anos de 1966 a 1969, o qual
constitui, para ns, o momento em que o projeto de elaborao de uma anlise do
discurso comea a se formar no interior do projeto terico pecheutiano.
A tese que orienta nossa reflexo que a disciplina que hoje chamamos de
anlise do discurso no nasceu pronta, no momento mesmo em que a obra acima
referida foi elaborada e publicada. Na verdade, ela teve sua emergncia marcada por
uma srie de objetivos que foram aos poucos se estabelecendo e tomando forma, no
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interior de um projeto terico mais amplo de Pcheux, de elaborao de uma teoria
geral das ideologias, na esteira de Louis Althusser.
Assim, consideramos que o incio da histria da AD pecheutiana remonta ao
perodo anterior publicao da obra AAD-69, o qual, como j dissemos, se inicia a
partir de 66 e marcado pela escrita de quatro artigos, publicados em revistas de
divulgao cientfica: Reflexes sobre a situao terica das cincias sociais e,
especialmente, da psicologia social (1966); Observaes para uma teoria geral das
ideologias (1968); Analyse de contenu et thorie du discours (1967); e Vers une
technique danalyse du discours (1968). Destes, os dois primeiros foram publicados em
Cahiers pour lanalyse, e assinados com o pseudnimo de Thomas Herbert, enquanto os
dois ltimos foram publicados nas revistas Psychologie Franaisee Bulletin du CERP,
respectivamente, e assinados com o nome prprio do autor. A justificativa dessa posio
ficar explicitada no decorrer de nosso trabalho.
Sendo assim, nosso trabalho consiste prioritariamente em fazer uma anlise da
natureza da relao que une esses textos de Herbert e de Pcheux, ou, dito de outro
modo, do percurso terico traado por Pcheux desde a construo de uma teoria geral
das ideologias at a da anlise do discurso. Considerando que: a) Herbert estava
engajado no projeto althusseriano de construo de uma teoria geral das ideologias,
conforme veremos no captulo 1, e que seus textos so uma contribuio terica a ela; b)
Pcheux, por seu turno, estava elaborando o que posteriormente passou a se chamar a
anlise do discurso; c) segundo Henry (1997), os fundamentos desta podem ser
encontrados naqueles textos, era preciso refletir sobre o processo em que o conjunto da
obra pecheutiana de ento foi se produzindo e sobre o ponto em que ganhava sua
coeso.
Assim, acerca do processo de constituio terica da AD de Pcheux, o nosso
problema geral explicar como e por que o filsofo parte de uma teoria geral dasideologias, no interior de uma reflexo, sobretudo, epistemolgica e chega a uma teoria
e a um mtodo de anlise do discurso. Ligadas a esse problema, algumas questes
surgem: quais as relaes da anlise do discurso com a teoria das ideologias de
Pcheux?; que mudanas de rumo aconteceram na trajetria que o autor percorreu?; a
quais finalidades o mtodo de anlise do discurso deveria atender?; qual o lugar da
anlise do discurso no interior do projeto pecheutiano?
Para responder adequadamente a essas questes, passamos obrigatoriamente pelaexposio e discusso detalhada das idias e dos conceitos elaborados pelo autor em
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seus quatro artigos acima referidos, que, infelizmente, esto hoje fora do alvo de
ateno da grande maioria dos estudiosos da anlise do discurso, mas que, sem dvida,
guardam a chave de compreenso do sentido histrico e epistemolgico da anlise do
discurso.
Essa opo de retornar ao momento da emergncia da AD, (uma poca que
poderamos denominar de pr-AD), ao momento em que ela sequer se encontra
instituda, pode parecer a muitos suprflua, j que vivemos uma fase da disciplina que
abandonou muitas das formulaes antigas, dando desenvolvimentos novos aos
conceitos e aos problemas com os quais lida.
Poderamos responder tomando emprestada uma passagem de Maingueneau
(1990), com a qual concordamos inteiramente:
Os desenhos animados freqentemente nos mostram personagens que, sem osaber, andam no vazio; percebendo repentinamente que deixaram o solo firme,eles caem no abismo. isto que pode acontecer anlise de discurso se ela nose interrogar a respeito de si mesma (p. 65).
Mas tambm poderamos apelar para o que nos ensina a histria das cincias,
qual o prprio Pcheux filiava-se. Em primeiro lugar, ela nos ensina, segundo Japiass
(1997), que: No sendo estudada e ensinada historicamente, a cincia se converte em
objeto de estudo e de ensino dogmticos (p. 24) e, conseqentemente, os cientistas tm
dificultada a tarefa de elaborar uma crtica de seu saber.
fato que a AD no est mais na fase dos tateamentos, encontrando-se
desenvolvida e em fase de construo de novos objetos e conceitos. Alm disso, ela est
institucionalizada e seu quadro terico e metodolgico ensinado com o fim de ser
usado na anlise de discursos concretos. Assim, o que interessa mais diretamente
saber manipular os seus conceitos. O problema que a institucionalizao de um saber
tende a dogmatiz-lo e o seu ensino tende a tom-lo como algo acabado, ignorando as
condies em que foi produzido. Isso uma regra geral e a AD no parece ser uma
exceo dela.
Portanto a investigao do passado da AD, nessa conjuntura, parece ser
dispensvel. Mas o que queremos sustentar aqui o contrrio. Antes de permitir pensar
que a AD algo que nasceu prontamente, desligada de todo o ambiente de urgncia
terica, o que queremos recuperar as condies histricas em que esse saber se
produziu, p-lo em movimento. Acreditamos que essa seja uma das melhores formas de
evitar o dogmatismo no ensino de um saber.
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Em segundo lugar, a histria das cincias nos ensina que:
Aquele que se interroga sobre o significado da cincia atual, deve cada vezmais remontar a seu passado, porque o sentido do devir sempre fornecido pelaflecha do tempo. Conheceremos melhor o que a cincia atual e para onde elavai, quando conhecermos com preciso de onde ela vem (JAPIASS, (1997),
p. 31).
Como entendermos o sentido da anlise do discurso (e da sua obra inaugural, a
AAD-69), sem olhar para trs, para o projeto terico de Pcheux do qual ela parte?
Conhecer tal projeto terico de modo global e o lugar da AD nele, no momento de
constituio da disciplina, ajuda a entender a permanncia de determinados problemas
centrais e as diferentes solues que foram dadas a eles no decorrer da histria.
Em terceiro lugar, a histria das cincias, ao devolver-nos o sentido da aventura
intelectual, vale dizer, de um pensamento que arrisca as suas prprias certezas, constitui
sempre um exerccio renovado da liberdade de pensar... (JAPIASS, 1997, p. 32).
Ora, o que se destaca, quando analisamos a trajetria de Pcheux, justamente
essa aventura terica, o processo de construo, na urgncia, de uma teoria cujos
conceitos no gozam todos do mesmo status: uns so cuidadosamente elaborados,
outros so apenas intudos, arriscados, edificados como metforas; de uma teoria cujos
problemas ficam, muitas vezes, sem soluo ou tm uma soluo apenas esboada.
Desse modo, refletir sobre a histria da anlise do discurso , segundo Gregolin
(2004),
uma necessidade que nos desafia permanentemente e que deve levar-nos avasculhar os documentos a fim de interpretar os vestgios da historicidade dosconceitos que mobilizamos no campo do saber em que nos situamos.Evidentemente, no se trata de pretender encontrar a verdade, mas dereconstruir as falas que criaram uma vontade de verdade cientfica em umcerto momento histrico (p. 11).
Pelo que dissemos at agora, pode-se perceber que este um trabalho que seinclui naquilo que poderamos chamar de histria das cincias. Isso nos leva
necessariamente a vrios problemas de ordem metodolgica.
Em primeiro lugar, a histria das cincias no uma disciplina cientfica, nem
mesmo se inclui no interior de algum curso superior encarregado de ensinar como faz-
la. Assim, ela feita ora na filosofia, ora na prpria cincia da qual se faz a histria.
Em segundo lugar, ela, segundo o que explica Japiass (1997), no possui um
mtodo unitrio, seus problemas so diversificados, suas escolas ou suas tendncias se
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opem (p. 22). Assim, ainda segundo o autor: Aqueles que a praticam, ainda o fazem
de modo mais ou menos selvagem e amadorista (p. 46).
Entre as tendncias existentes em histria das cincias, poderamos citar duas
que nos interessam aqui. Aquela denominada histria das cincias tradicional e a
denominada de histria epistemolgica das cincias. A primeira a comumente
realizada pelos cientistas quando tratam de suas prprias cincias. A segunda aquela
que, em sendo uma crtica primeira, tornou-se um modelo a partir dos anos 30, na
Frana, estando representada, principalmente, pelos trabalhos de Gaston Bachelard,
Georges Canguilhem e Alexandre Koyr.
O primeiro tipo de histria acima mencionado, como observamos, aquela feita
pelos prprios cientistas a respeito das suas cincias. Eles fazem essa histria quando
desejam apresentar um breve histrico do problema ao qual se dedicam, mostrando as
solues dadas a ele no decorrer do tempo a fim de mostrar a novidade de seus
resultados. Eles fazem essa histria tambm em livros didticos das cincias diversas
com o fim de apresentar as principais teorias, conceitos e seus precursores aos iniciantes
naquele ramo do saber. O problema desse tipo de histria das cincias justamente essa
restrio listagem de teorias, conceitos e precursores, o que contribui para se formar
uma idia de cincia como algo que se produz linearmente.
J o segundo tipo de histria das cincias acima referido parte de uma
perspectiva filosfica. Os seus fundadores inauguraram uma nova forma de fazer a
histria de uma cincia, que se apresenta, em parte, como crtica histria tradicional e,
em parte, como uma alternativa a ela. Essa histria epistemolgica tem a grande
vantagem de mostrar a cincia como uma construo do pensamento e no como uma
simples iluminao de alguns gnios. Ela parte do pressuposto de que a cincia percorre
um caminho composto de erros e acertos e que os erros no devem ser totalmente
desprezados, pois serviram para a construo das positividades de uma poca. Almdisso, ela uma histria recorrente e normativa, pois julga o passado da cincia a partir
dos critrios de cientificidade aceitos pela comunidade cientfica no momento atual da
cincia. Ela postula, ainda, que a histria da cincia no linear, mas composta de
descontinuidades e rupturas, sendo que, no decorrer dessa histria, a cincia progride
rumo a uma racionalidade cada vez maior, j que procede por retificaes dos
conhecimentos produzidos anteriormente.
Este trabalho mantm relaes com esses dois tipos de histria das cincias.Com o primeiro pela excluso: ele aqui evitado e at mesmo condenado.
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Com o segundo, na medida em que procura seguir alguns de seus pressupostos.
Procura observar as descontinuidades entre as posies tericas presentes nos textos que
presidem e preparam a constituio terica da anlise do discurso as mudanas
ocorridas nos conceitos que foram produzidos antes de sua constituio e na sua
primeira poca. Procura analisar a transformao dos conceitos antigos e a entrada de
conceitos novos.
Entretanto o modelo dessa histria das cincias no pode aqui ser seguido
radicalmente. O motivo principal dessa impossibilidade que a histria epistemolgica
normalmente trata de cincias constitudas por um corte epistemolgico inegvel. Ora, o
momento da histria da AD que estudamos aquele em que ela no est ainda instituda
e sequer formulada de modo completo, em outras palavras, a fase pr-AD. At mesmo
atualmente seria difcil decidir se a AD uma cincia, uma disciplina, um saber, pois
seria uma tarefa delicada encontrar a existncia de um corte epistemolgico, um ponto
de no-retorno, uma vez que conceitos das trs pocas so utilizados nas anlises feitas
em trabalhos da rea. Seria difcil tambm estabelecer um presente da AD: a histria
epistemolgica exige, para sua realizao, conforme a posio de Bachelard, que o
passado de uma cincia seja julgado a partir de seu presente, sendo este entendido como
o sistema de conceitos mais atual da cincia, considerado pela comunidade cientfica
como a verdade da cincia no momento. Por outro lado, ela possui um aparato de
experimentao que no h em muitas cincias humanas, o que seria um indcio de
cientificidade.
Assim, podemos seguir alguns pressupostos e algumas posies desse tipo de
histria das cincias, como os esboados acima, mas no todos.
Por causa dessa particularidade da histria da AD, somos levados a adotar aqui
uma perspectiva genealgica, j que o trabalho busca compreender a emergncia da AD,
o contexto de seu surgimento, os problemas tericos que a suscitaram, a ligao que elatem com a produo anterior de uma teoria das ideologias de Pcheux.
A genealogia -nos interessante por no ser um mtodo aplicado exclusivamente
histria das cincias, e no estar presa a determinado tipo de objeto. Para dar alguns
exemplos da versatilidade inerente perspectiva genealgica, lembremos que Nietzsche
usou-a para analisar a formao dos nossos valores morais; Foucault aplicou-a para
analisar o nascimento das prises; Koyr e Canguilhem usaram-na em suas histrias
epistemolgicas, para descrever a formao de cincias como a fsica e a astronomia, no
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caso do primeiro e a biologia e a medicina, no caso do segundo. Conforme Badiou
(1979): Os trabalhos de Koyr ou os de Canguilhem so genealgicos (p. 89).
Mas o que permite definir uma pesquisa histrica como sendo genealgica? Para
responder a essa questo, podemos mencionar duas formas de caracteriz-la: uma
negativa, que consistiria em apontar tudo aquilo que ela recusa, e outra positiva, que
consistiria em apontar os conceitos com os quais ela opera.
No que diz respeito a sua caracterizao negativa, a genealogia define-se por
oposio ao que Nietzsche chamava de pesquisa da origem. Esta ltima est impregnada
de alguns pressupostos que a pesquisa genealgica recusa, os quais Foucault ([1971],
2000) comenta.
Em primeiro lugar, a pesquisa da origem busca captar a essncia exata da
coisa; sua identidade, sua forma imvel (FOUCAULT, [1971], 2000, p. 262). Mas,
para a genealogia, conforme nos explica Foucault ([1971], 2000), O que se encontra no
comeo histrico das coisas no a identidade ainda preservada de sua origem a
discrdia entre as coisas, o disparate (p. 263). Em outras palavras, a genealogia no
trabalha com a idia de que, na origem de um fenmeno, ou teoria, etc., que se pode
encontrar a sua essncia. Para a genealogia no h essncia.
Isso importante para nosso trabalho. No intentamos aqui, ao interrogarmos
sobre a emergncia da anlise do discurso e seu lugar no interior do projeto
pecheutiano, apontar qual teria sido a sua essncia. Na verdade, ela no existe. Como
veremos no decorrer dos captulos, a AD deveria responder a vrios objetivos.
Em segundo lugar, ela supe uma alta origem, uma solenidade no nascimento
da coisa, a pureza, a perfeio de algo que, com o tempo desvirtuar-se-ia. Porm,
segundo a genealogia, o comeo histrico baixo, no sentido de derrisrio, irnico
(FOUCAULT, [1971], 2000, p. 263).
E, por fim, a pesquisa da origem acredita que ela o lugar da verdade, que oefeito de verdade da coisa no est relacionado a sua manifestao discursiva.
Entretanto, para a genealogia, por trs da verdade, sempre recente, avara e comedida,
h a proliferao milenar dos erros (FOUCAULT, [1971], 2000, p. 263).
No que diz respeito a sua caracterizao positiva, podemos destacar duas
distines importantes: aquela que existe entre causa da origem e uso e aquela que
existe entre os conceitos de provenincia e emergncia.
No caso da primeira distino, Nietzsche explica que a causa da origemde umacoisa no se confunde com os seus diferentes usos. O filsofo d o exemplo do castigo,
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que teria sido criado com a finalidade de punir, mas era utilizado para as mais diferentes
funes, como as de vingana e de intimidao. Assim, segundo ele, a causa da gnese
de uma coisa e a sua utilidade final, a sua efetiva utilizao e insero em um sistema de
finalidades, diferem toto coelo[totalmente] (NIETZSCHE, 1988, p. 81). importante
lembrar que, para a genealogia, conhecer e compreender a utilidade de algo no
significa necessariamente compreender a sua gnese: costuma-se acreditar que a
utilidade atual de uma coisa coincide com a razo de sua gnese, o que nem sempre
acontece.
Foucault partilha dessa posio ao afirmar que: Esses fins, aparentemente
ltimos, no passam do episdio atual de uma srie de submisses (FOUCAULT,
[1971], 2000, p. 267).
Isso parece ser um equvoco ao qual pode conduzir a anlise de Courtine (2006)
da histria da AD. O autor costuma afirmar, em seus textos, que a disciplina iria se
dedicar ao discurso poltico como objeto privilegiado (p. 30). fato que ela teve essa
funo, mas ela no foi a causa da sua origem, pelo menos quando se trata da anlise do
discurso inaugurada por Pcheux, e isso precisa ser explicitado. A AD foi pensada pelo
filsofo, primeiramente, como um mtodo destinado experimentao de uma teoria
das ideologias, o que com o tempo foi se modificando, como mostraremos no decorrer
do trabalho. Assim, no se pode confundir a utilidade atual da AD com a causa da sua
origem.
Alm disso, Nietzsche (1988) tambm fala da diferena entre oprocedimentoe o
sentido ou o que duradouro e o que fluido. O que ele diz sobre o castigo pode
tranquilamente ser generalizado para a anlise genealgica de qualquer objeto. Para ele,
h algo no castigo que relativamente duradouro, isto , uma certa seqncia
rigorosa de procedimentos e h algo que lhe fluido, isto , o sentido, o fim, a
expectativa ligada realizao desses procedimentos. Assim, o conceito de castigo noapresenta um nico sentido (p. 83-4).
Isso completamente adequado anlise do discurso. Ela composta por um
procedimento relativamente duradouro, que repetido nas anlises, com a aplicao de
alguns de seus conceitos operatrios. Mas apresenta, no decorrer de sua histria, vrios
sentidos: ela foi usada (ou planejada para ser usada) para diferentes e diversos fins,
conforme veremos, sobretudo, no captulo 5. por isso que dizemos que ela uma srie
de submisses.
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Uma outra distino que caracteriza positivamente a genealogia aquela
existente entre os conceitos deproveninciae emergncia. Assim, poderamos dizer que
uma pesquisa genealgica reflete, ao invs da origem, sobre a provenincia e a
emergncia de algo.
Para Foucault ([1971], 2000), falar da provenincia,
situar os acidentes, os nfimos desvios ou pelo contrrio, as completasinverses , os erros, as falhas de apreciaes, os clculos errneos que fizeramnascer o que existe e tem valor para ns (p. 265-6).
Acreditamos que essa posio adequada para tratar da trajetria da AD. O
prprio Pcheux, quando reflete sobre seu trajeto, enfatiza seu aspecto sinuoso e
acidentado, fazendo as seguintes observaes:
... at aqui, o presente trabalho tem sido marcado por uma progressocondicional, sujeita a retrocessos (...). esse tipo de progresso oblqua, afetadapor idas e vindas, que responsvel pelo aspecto, sob muitos pontos,emaranhado dos desenvolvimentos que precedem, isto , desse entrelaamentode elementos freqentemente dspares e ambguos, de notaes que constituemoutro tanto de materiais disponveis, de indicaes disjuntas, tudo isso formandouma espcie de clima terico (com suas nvoas e clares), onde o leitorprecede-segue vrios caminhos entrecruzados, vrios fios que se sobrepem(PCHEUX, [1975], 1988, p.134).
A investigao da provenincia agita o que se percebia como imvel; mostra
a heterogeneidade do que se imaginava conforme a si mesmo (FOUCAULT, [1971],
2000, p. 266).
Quanto ao conceito de emergncia, poderamos dizer que o ponto de
surgimento de um objeto, de uma disciplina terica. Mas o que gostaramos de
enfatizar, a respeito da emergncia, que ela se produz em certo estado de foras.
Assim, de acordo com Foucault ([1971], 2000).
A anlise da emergncia deve mostrar seu jogo, o modo pelo qual elas [as
foras] lutam umas contra as outras, ou o combate que travam diante decircunstncias adversas... (p. 268).
Poderamos dizer, a partir da genealogia, que a emergncia da anlise do
discurso resultou da convergncia de foras de trs campos do saber considerados, por
Pcheux, como cincias institudas por um corte epistemolgico indubitvel:
Materialismo Histrico, Psicanlise e Lingstica. A partir da anlise dos textos
Pcheux/Herbert de que tratamos aqui, possvel compreender: qual Materialismo
Histrico, qual Psicanlise e qual Lingstica foram apropriados pela AD, considerando
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que h vrios marxismos, vrias psicanlises; como o autor se apropriou dos conceitos
provenientes dessas teorias para responder a uma problemtica prpria da AD: e, ainda,
o papel de cada uma delas na constituio de seu projeto terico.
A reflexo sobre a emergncia implica necessariamente a interpretao. Esta,
para a genealogia, conforme nos explica Foucault ([1971], 2000), no significa localizar
uma significao oculta na origem. Para a genealogia,
... interpretar apoderar-se, pela violncia ou sub-repo, de um sistema deregras que no tem em si a significao essencial e impor-lhe uma direo,dobr-lo a uma nova vontade, faz-lo entrar em um outro jogo e submet-lo anovas regras... (p. 270).
Acreditamos que nosso trabalho constitui uma interpretao no sentido
genealgico, j que busca dar uma direo e um sentido aos textos pecheutianos, a partirda correlao das idias neles apresentadas com pressupostos tericos a implcitos.
Aps essas consideraes, resta apresentarmos como o trabalho est organizado.
Ele composto por cinco captulos. O primeiro, intituladoA conjuntura da formao do
projeto terico de Michel Pcheux, direcionado a uma sumria apresentao da
conjuntura terica na qual o trabalho de Pcheux/Herbert se insere. Ele aborda: a)
alguns pontos da conjuntura terica dos anos 60 que tiveram uma grande influncia na
idealizao e construo da anlise do discurso pecheutiana; b) as relaes que se
estabeleceram entre Pcheux e o grupo de filsofos seguidores de Althusser e a
influncia que essa rede de relaes teve sobre a formao do projeto terico do
filsofo; c) o modo como o grupo althusseriano compreendia o que na teoria marxista se
denominava cincia da histria (ou Materialismo Histrico) e filosofia marxista (ou
Materialismo Dialtico); e, por fim, d) a primeira verso da teoria da ideologia
elaborada por Althusser, a qual retomada por Pcheux em seus textos iniciais. O
objetivo desse captulo, ao tratar desses temas bem gerais, situar as referncias
tericas e os propsitos de Pcheux no perodo da formao de seu projeto terico.
O segundo captulo, intitulado Pressupostos epistemolgicos da obra de Michel
Pcheux/Thomas Herbert, procura expor os principais conceitos e categorias de duas
correntes de epistemologia que esto na base dos textos produzidos por
Pcheux/Herbert: o Materialismo Dialtico, segundo a leitura de Althusser, e a
epistemologia histrica francesa, cujos maiores representantes so Bachelard e
Canguilhem.
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O terceiro captulo, de nome O projeto de uma cincia das ideologias e o
mtodo de escuta social, trata do primeiro texto escrito por Pcheux, assinado com o
pseudnimo de Thomas Herbert: Reflexes sobre a situao terica das cincias
sociais e, especialmente, da psicologia social, de 1966. Nele, tentamos mostrar quais as
preocupaes tericas de Pcheux no incio de sua trajetria e em que medida elas se
relacionam com um projeto de uma teoria e uma anlise do discurso. Destacamos,
ainda, a apropriao que o autor faz de conceitos do Materialismo Histrico na
elaborao de sua teoria das ideologias e na crtica s cincias sociais.
O quarto captulo, por sua vez, intitula-se A teoria geral das ideologias de
Thomas Herbert. Apresentamos, nele, as reflexes que perpassam o segundo texto de
Herbert, Observaes para uma teoria geral das ideologias, de 1968, buscando apontar
as continuidades e descontinuidades que este texto mantm com o anterior, bem como
as novidades tericas que ele apresenta em relao quele. Alm disso, destacamos o
modo como o autor utiliza, em sua teoria, conceitos advindos da Lingstica e da
Psicanlise, procurando apresentar como estes foram pensados em seu campo original e
transformados pelo trabalho pecheutiano. Por fim, tentamos elaborar uma interpretao
para a passagem final do referido texto, onde figura uma rpida referncia a um mtodo
de experimentao que, segundo o autor, deveria ser ainda construdo, por acreditarmos
que a reside o ponto em que Herbert e Pcheux se encontram.
O quinto captulo, de nome Rumo teoria e ao mtodo de anlise do discurso,
trata dos dois artigos, assinados com Michel Pcheux, escritos antes da AAD-69:
Analyse de contenu et thorie du discours,de 1967, e Vers une technique danalyse
du discours, de 1968. Procuramos comentar os primeiros conceitos da teoria do
discurso apresentados nesses textos, enfatizando o modo como o autor construiu o
objeto dessa teoria, bem como as linhas gerais do mtodo de anlise proposto. Mas
nossa questo central mesmo discorrer sobre a funo que tal mtodo deveria ter nointerior de vrios domnios: a histria das cincias, o Materialismo Histrico e o
Dialtico e as cincias sociais, seguindo as pistas deixadas pelo prprio Pcheux.
Dessa forma, nosso trabalho engloba o total da produo terica de Pcheux no
perodo que precede a publicao da obra inaugural da anlise do discurso, o qual
chamamos aqui de pr-AD. O conjunto formado por esses quatro textos que, embora
possam parecer ligados a objetivos e preocupaes diferentes, mantm uma ntima
relao que poder ser compreendida ao final de nossas anlises.
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Para finalizar, acreditamos ser necessria uma ltima observao. Tudo o que
dissemos nesta pequena introduo pode dar a falsa idia de que o nosso trabalho
permeado de certezas. Gostaramos de enfatizar, entretanto, que ele, durante sua
construo, foi marcado por muitas dvidas e inseguranas. De fato, no temos a nossa
disposio nenhuma obra que faa uma histria detalhada da AD nesse perodo que
abordamos, ou seja, sua fase de idealizao e preparao, obra essa que possamos
consultar e na qual possamos nos apoiar em nossas interpretaes. Sem dvida, existem
pequenos artigos, como o de Paul Henry, intitulado Os fundamentos tericos da
Anlise Automtica do Discurso de Michel Pcheux (1969), que tratam dos textos
assinados por Thomas Herbert. Ao lado de sua grande validade, eles tm, no entanto,
pouco aprofundamento. Por esse motivo, e por meio dele, tentamos justificar as falhas
que aqui se apresentam, tanto no aspecto do contedo do que dissemos quanto da
problematizao que fazemos. No menor a culpa de quem realizou o trabalho, dado
seu estgio de ainda engatinhamentonas trilhas do discurso.
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CAPTULO 1
A CONJUNTURA DA FORMAO DO PROJETO TERICO DE MICHEL
PCHEUX
Neste captulo, tratamos da conjuntura terica vigente na Frana na dcada de
60, poca em que podemos situar a formao do projeto terico de Michel Pcheux.
Estamos considerando aqui que esse projeto no se resumiu teoria e a anlise do
discurso elaborada e desenvolvida pelo filsofo desde os anos 60 at os 80, mas que ela
seja uma parte dele, a qual obteve cada vez mais importncia e centralidade no percurso
que seu autor seguiu.Nosso pressuposto aqui o de que esse projeto teve sua emergncia em meados
da dcada de 60, antes mesmo da publicao da Anlise Automtica do Discurso
(1969), com a publicao de dois textos de Pcheux, assinados com o pseudnimo de
Thomas Herbert, com o propsito de interveno no campo da histria das cincias e da
teoria das ideologias.
Alm disso, o projeto terico de Pcheux, nos momentos iniciais de sua
constituio, inscreve-se no interior de um amplo programa de desenvolvimento dateoria marxista, encabeado por Louis Althusser e pelo seu grupo de discpulos, no qual
Pcheux se inseria. O programa althusseriano passava necessariamente pela realizao
de certas tarefas de cunho terico, das quais a mais urgente era o desenvolvimento de
uma teoria das ideologias.
Sendo assim, iniciamos dando uma viso panormica sobre a conjuntura terica
da Frana nos anos 60, abordando os trs pontos que tiveram ampla repercusso na
trajetria de Pcheux o movimento das chamadas releituras de clssicos do sculoXIX, o apogeu do estruturalismo e a intensa discusso sobre epistemologia e histria
das cincias.
Em seguida, tratamos da relao de Pcheux com Althusser. Mencionamos
rapidamente a sua entrada para Escola Normal Superior (ENS) da Rue dUlm; seu
encontro a com Althusser; sua participao no grupo de estudantes e filsofos que ele
coordenava; seu engajamento no projeto althusseriano: a participao no programa de
pesquisas empreendido pelo grupo e as primeiras produes tericas resultadas dessa
participao.
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Adiante, explicamos o modo como os althusserianos concebiam a constituio
da teoria marxista. Para tanto, definimos o que eles entendiam por cincia da histria e
por filosofia marxista e apontamos que, no domnio dessas duas disciplinas, havia um
vasto programa de pesquisas a ser realizado. Isso ser importante para entendermos o
papel que Pcheux, que era membro desse grupo, assumiu nesse programa e o modo
como pensava a relao da Anlise do Discurso com a cincia histria.
Finalmente, apresentamos a primeira teoria da ideologia elaborada por
Althusser. Isso importante no s porque essa teoria que est na base do projeto
terico de Pcheux, mas tambm porque a ela que pretende dar sua contribuio
particular.
Consideramos esses pontos importantes para compreendermos a filiao, as
preocupaes e as referncias tericas de Pcheux e a relao delas com o seu projeto
de elaborao de uma anlise automtica do discurso.
1.1 A conjuntura dos anos 60
Michel Pcheux nasceu em 1938. Em 1963, ele obteve a agregao de filosofia.
Em 1969, quando publica sua primeira grande obra, a Anlise Automtica do Discurso,
tem apenas 31 anos de idade. Essas datas nos indicam que os anos de sua formao
terica coincidem com um perodo de profunda transformao da conjuntura intelectual
francesa; uma transformao que comea a se desenhar no incio dos anos 50, mas que
s atinge o seu apogeu durante os anos 60. Um breve panorama dela nos ajudar a
entender o que segue.
Em linhas gerais, trs acontecimentos tericos destacam-se nessa conjuntura: as
releituras de Marx, Freud e Nietzsche; o advento do estruturalismo como fenmenocultural e os esforos para voltar a epistemologia e a histria das cincias para o
domnio das cincias humanas.
A filosofia francesa do ps-guerra fora dominada pela fenomenologia e pelo
existencialismo. Seus representantes principais foram Jean-Paul Sartre e Maurice
Merleau-Ponty. Porm os temas, as questes e os conceitos principais dessas duas
correntes vinham da Alemanha: da dialtica hegeliana, da Fenomenologia de
Edmund Husserl, da Filosofia da Existncia de Martin Heidegger. Nos anos 60, ainfluncia de pensadores de lngua alem ainda forte, mas as referncias
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dominantes agora so o Materialismo Histrico e Dialtico de Marx, a Psicanlise de
Freud e a genealogia de Nietzsche. Porm, preciso destacar que as referncias que
se fazem a esses autores nos anos 60 passam quase sempre pelo filtro de releituras:
o que conta ento o Marx relido por Louis Althusser, o Freud relido por Jacques
Lacan, o Nietzsche relido por Gilles Deleuze.
Nessa poca acontece tambm que o estruturalismo assume um papel renovador
como fenmeno cultural. O estruturalismo era originalmente uma corrente lingstica
surgida como desdobramento do pensamento de Ferdinand de Saussure. A partir dos
anos 50, a Lingstica estrutural, graas a seus evidentes progressos, comea a exercer
uma influncia decisiva e renovadora sobre outros campos do saber. Seus conceitos e
mtodos so transpostos e aplicados ao estudo de outros objetos que no a lngua.Claude Lvi-Strauss utiliza-os na Antropologia; Jacques Lacan, na Psicanlise; Roland
Barthes, na Semiologia. a poca da Lingstica como cincia piloto das cincias
sociais.
Mas, segundo Michel Foucault ([1985], 2000)1, ao lado do papel do marxismo,
da Psicanlise, da Lingstica e da Antropologia, a epistemologia histrica francesa
tambm teve grande importncia para o pensamento da poca. Para ele, nesses
estranhos anos 60 viu-se a passagem de uma filosofia da experincia, do sentido e do
sujeito para uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito (p. 353). A
primeira tinha por referncia Sartre e Merleau-Ponty; a segunda, Jean Cavaills, Gaston
Bachelard, Alexandre Koyr e Georges Canguilhem. Sobre essa segunda linhagem
filosfica seria interessante, no entanto, fazer duas observaes. A primeira que ela
no se ope apenas fenomenologia e ao existencialismo, mas tambm ao positivismo
que dominava a filosofia e a histria das cincias na Frana at ento, segundo observa
Dominique Lecourt (1980, p. 4). A segunda que, a partir dos anos sessenta, essa
filosofia do saber, da racionalidade e do conceito, que estivera, at o momento,
concentrada nas cincias exatas e biolgicas, volta-se ento para as cincias humanas.
Mencionamos acima que nessa conjuntura que Pcheux far sua aprendizagem
filosfica. Agora preciso ir alm e explicar que a partir dos problemas que ela
suscita e das alternativas que oferece que ele comear a esboar o projeto de uma
1
Nas referncias bibliogrficas das citaes que fizermos, colocaremos entre colchetes a data da versooriginal. A data e a pgina indicadas em seguida se referem publicao em portugus da edio queestamos utilizando.
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Anlise do Discurso2. com as personagens que nela despontam que esse projeto
dialoga: evocando essas personagens, Pcheux ([1982], 1997, p. 254) menciona os
nomes de Marx, Nietzsche, Freud, Saussure, Althusser, Lacan, Lvi-Strauss e Barthes.
Entretanto seria injusto no mencionar o papel que tiveram Bachelard e Canguilhem,
nesse momento.
Porm, para a trajetria intelectual de Pcheux, a personagem-chave Althusser.
A influncia de Althusser sobre Pcheux foi to forte que no deixa de ser lembrada por
seus companheiros na aventura terica da Anlise do Discurso, como por exemplo,
Denise Maldidier (2003, p.18):
Se fosse necessrio, nesses anos de aprendizagem, designar um nome, umplo, eu no hesitaria: Althusser , para Michel Pcheux, aquele que faz brotar afagulha terica, o que faz nascer os projetos de longo curso.
Sem dvida, foi atravs daquilo que Althusser ensinava e escrevia que a
conjuntura terica dos anos sessenta adquire um sentido aos olhos de Pcheux. Atravs
de Althusser que Pcheux percebe que as trs tendncias antes mencionadas (as
releituras de Marx, Nietzsche e Freud; o estruturalismo; e a epistemologia) no eram
justapostas nem excludentes; antes convergiam sobre pontos importantes e
apresentavam entrecruzamentos uma influenciando a outra. As trs colocavam em
questo, por exemplo, o estatuto do sujeito e da noo de homem, em torno do qualgirava toda a reflexo desenvolvida pela filosofia anterior.
Mas a partir do modo como Althusser e seu grupo interpretavam o
entrecruzamento dessas tendncias que as questes fundamentais que conduziram ao
projeto de construo da AD vo surgir: a questo da leitura e a questo das relaes
entre a cincia e a ideologia.
Althusser ensinara que as releituras de Marx, Freud e Nietzsche suscitam a
questo crucial que ler?; que esses estudiosos problematizaram esses atos maissimples da existncia humana que ver, escutar, falar e ler, mas tambm alguns
conhecimentos perturbadores que permitem compreender tais atos; que a Lingstica
moderna tem um papel importante na compreenso desses atos na medida em que
contribui para a decifrao do discurso do inconsciente e da ideologia que neles subjaz
(ALTHUSSER et al, [1965], 1979, p.14).
2O modo como Pcheux tentou responder a esses problemas, lanando mo da elaborao de uma anliseautomtica do discurso, ser explicitado nos captulos seguintes.
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Althusser ensinava que as releituras de Marx e Freud e o advento do
estruturalismo levantavam importantes questes epistemolgicas, relativas
cientificidade do marxismo, da Psicanlise e da Lingstica; sua especificidade (j que
se distanciavam muito da concepo positivista das cincias ento dominantes);
legitimidade da transposio de conceitos e mtodos oriundos na Lingstica para outros
domnios do saber (Semiologia, Antropologia, Psicanlise). Isso pe na ordem do dia a
discusso epistemolgica. Da toda essa gerao voltar-se para a tradio de filosofia e
histria das cincias iniciada por Bachelard.
Mas Althusser ensinava tambm que essa epistemologia no estava isenta de
falhas ou ausncias, visto que ignorava as condies sociais (econmicas, polticas e,
principalmente, ideolgicas) nas quais as cincias se produziam. Para corrigir essas
falhas, segundo ele, era necessrio recorrer ao Materialismo Histrico e ao Materialismo
Dialtico.
Antes de tratarmos sobre o que Althusser entendia por Materialismo Histrico
(MH) e Materialismo Dialtico (MD), convm comentarmos o modo como se deu o
relacionamento de Pcheux com o filsofo marxista, pois, retomando Maldidier, ele
quem, para Pcheux, faz nascer os projetos de longa durao.
1.2 Michel Pcheux e o grupo althusseriano
Althusser trabalhou durante mais de trinta anos na ENS da Rue dUlm, onde era
encarregado de preparar os jovens filsofos que iriam prestar concurso para serem
tambm professores de filosofia (DELACAMPAGNE, 1997, p. 220). Pcheux foi um
dos alunos de Althusser, mas a relao entre eles foi muito alm da de professor e aluno.
Na verdade, Pcheux, juntamente com um grupo de outros filsofos, tornou-sediscpulo de Althusser, ao se engajar no projeto de releitura de Marx que ele vinha
desenvolvendo desde h algum tempo. Ao assumir o papel de promotor dessa releitura,
bem como de dar suas coordenadas, ele passou a exercer grande influncia sobre toda
uma gerao de discpulos.
Durante o perodo de 1961 a 1965, que antecede a formao do projeto terico
de Pcheux, Althusser dirigiu estudos fundamentais para o desenvolvimento do
marxismo, os quais traro conseqncias diversas. De 61 a 62, ele organizou um
seminrio sobre o jovem Marx, do qual participaram Pierre Macherey, Roger Establet,
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Michel Pcheux, Franois Rgnault, tienne Balibar, Jacques Rancire (DOSSE, 1993,
p. 325). De 62 a 63, tratou das origens do pensamento estruturalista, a partir da leitura
de Lvi-Strauss, Lacan e Foucault, cujas sesses foram coordenadas pelos alunos.
Jacques Rancire e Michel Pcheux trataram de Lacan (ERIBON, 1996, p. 191). E,
finalmente, em 1965, coordenou uma leitura coletiva da obra O Capital3, de Marx,
realizando, em seguida, um seminrio para apresentao dos resultados tericos dessa
leitura, o qual deu origem obraLer O Capital, publicada em dois volumes pela editora
Maspero.
Em 1967, preocupado com o lugar da filosofia no campo do saber e seu papel na
teoria marxista e na luta de classes, Althusser organizou o Curso de filosofia para
cientistas, estruturado de modo que se formaram duplas para expor determinados temas.
O tema de Althusser, Filosofia e filosofia espontnea dos cientistas, virou depois
livro, sendo publicado em 1974 pela Maspero, bem como a exposio de Pcheux e de
Rgnault, A ruptura epistemolgica.
Os temas e textos estudados durante esses anos de seminrios na ENS foram
decisivos para o grupo ir construindo suas concepes sobre a epistemologia, o
marxismo, a Psicanlise e o estruturalismo. As discusses surgidas e aprofundadas no
grupo acabaram por se tornar objeto de investigaes dos discpulos althusserianos, o
que resultou em teorias diversas sobre a ideologia, a cincia, a literatura, a religio.
A partir da releitura de Marx e dos resultados tericos propiciados por ela,
Althusser estava em condies de defender sua tese central, a de que o Materialismo
Histrico era, de fato, uma cincia, mas com a ressalva de que precisava ser
desenvolvido urgentemente, dado o seu estado (comum a qualquer cincia) inacabado.
Esse desenvolvimento passava obrigatoriamente pela execuo de uma srie de
tarefas, apontadas pela leitura epistemolgica de O Capital. Falaremos mais sobre as
tarefas na seo seguinte, pois elas precisam ser relacionadas definio deMaterialismo Histrico e Dialtico.
Como no poderia deixar de ser, a forte influncia de Althusser tambm se
exerceu sobre os trabalhos de Pcheux, no s com relao escolha dos temas com que
se ocupou, mas tambm com relao s posies tericas: o que o mestre dizia soava
como lei aos ouvidos desse discpulo.
3 Obra composta de trs livros, que contm, segundo Althusser, a teoria cientfica de Marx e a suafilosofia.
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Desse modo, as primeiras produes tericas de Pcheux esto completamente
envolvidas no debate althusseriano sobre as cincias sociais, a ideologia e a
epistemologia. Elas foram publicadas em peridicos organizados pelos discpulos de
Althusser, como os Cahiers pour lanalyse (revista de divulgao das posies do
Crculo de Epistemologia da ENS) e a coleo Teoria. Nos Cahiers, foram publicados
os dois primeiros textos de Pcheux, assinados com o pseudnimo de Thomas Herbert:
em 1966, Reflexes sobre a situao terica das cincias sociais e, especialmente, da
psicologia social e, em 1968, Observaes para uma teoria geral das ideologias
(HENRY, 1997, p. 13), os quais trazem, respectivamente, uma reflexo sobre o estatuto
das cincias sociais, que era uma discusso forte entre os althusserianos 4, e sobre a
ideologia, ponto nevrlgico da teoria marxista, como veremos a seguir. No nmero nove
da coleo Teoria, j em 1969, Pcheux publicou, em parceria com Michel Fichant,
Sobre a histria das cincias, abordando dessa vez os efeitos do corte epistemolgico
de Galileu na fsica e na biologia.
Como podemos ver, esses textos no tratam ainda do tema da Anlise do
Discurso, que parece estar ignorado pelo jovem filsofo. Entretanto devemos notar que,
no intervalo entre a publicao dos seus dois primeiros textos, Pcheux publicou os
textos Analyse de contenu et thorie du discours, de 1967, e Vers une technique
danalyse du discours, do incio de 1968, nos quais certos temas que aparecero na
Anlise Automtica do Discursoj se fazem presentes, como a crtica aos mtodos de
anlise de contedo e a apresentao de um mtodo de anlise do discurso. Esses textos
so publicados, respectivamente, em Bulletin du CERP e em Psychologie franaise,
peridicos no ligados ao grupo althusseriano.
Os temas presentes nesses textos afastam-se em parte daqueles mais
centralmente debatidos na ENS. Se a teorizao sobre a ideologia no mais central, ,
entretanto, a sua materializao por meio do discurso que est sendo visada. Se no acrtica direta s cincias sociais que est em destaque, a crtica aos mtodos por ela
utilizados que est sendo feita e no gratuitamente, mas a fim de poder oferecer uma
alternativa5.
Neste ponto, vemos Pcheux comear a buscar seu prprio caminho. Dentro do
projeto maior de desenvolvimento da teoria marxista, h pequenos projetos que so
4Voltaremos a esse assunto nos captulos 2 e 3.5
Os problemas que permeiam os textos de Michel Pcheux publicados no perodo de 1967 a 1969 seroexpostos tambm nos captulos seguintes, momento em que tentaremos encontrar o ponto que ligareflexes aparentemente to heterogneas.
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etapas a serem cumpridas. Dentro da teoria da ideologia em geral, h a teoria das
ideologias particulares a ser elaborada. Althusser no pensava em tudo, ele deu pistas
sobre a relao linguagem ideologia e foi sobre essa relao que Pcheux comeou a
esboar os primeiros elementos de uma futura teoria.
Os anos 60 no foram vividos por Pcheux somente no interior da ENS. Em 66
ocorre um fato que vai significar mais um momento importante da sua trajetria: a
entrada para o Laboratrio de Psicologia Social do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa
Cientfica). Segundo Michel Plon (2005), a entrada para o Laboratrio foi uma forma de
luta poltica na teoria, um:
plano de reconstruo, de higienizao desses adversrios selvagens e brbarosque so os domnios da psicologia e da psicologia social, feito de missesarriscadas, verdadeiros paraquedas noturnos e clandestinos nas zonas maislamacentas e, como tais, mais perigosas. Michel foi assim designado e lanadoem paraquedas nesse laboratrio da Rue de la Sorbonne (p. 48).
Plon refere-se, com a expresso adversrios selvagens e brbaros que so os
domnios da psicologia e da psicologia social, ao estatuto no cientfico desse campo
do saber, segundo a concepo de cincia e ideologia sustentada por Althusser e seu
grupo.
Mas o que nos interessa salientar no se a entrada para o CNRS teve mesmo
esse objetivo de fazer a revoluo no campo do inimigo, ou seja, levar a cincia para
onde havia a ideologia. O que nos interessa salientar, por enquanto, o encontro com
dois pesquisadores de l: Michel Plon e Paul Henry, que tinham formao, o primeiro,
em matemtica e lingstica, e o segundo, em psicologia. Pcheux, Plon e Henry
encontram um ponto em comum: as crticas que fazem anlise de contedo e
psicologia social. Segundo Maldidier (2003, p. 17): Uma convivncia imediata se
estabelece entre eles. Eles lem, discutem, trabalham juntos. A Comuna dos trs
amigos est na retaguarda do grande projeto de Michel Pcheux, de elaborao de um
mtodo de anlise automtica do discurso.
Assim, vemos que tm uma grande influncia sobre o projeto terico de Pcheux
no somente a conjuntura terica dos anos 60, mas tambm os aliados com quem
estabeleceu relaes e dilogos.
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1.3 Um programa de pesquisas para o grupo althusseriano
Conforme apontamos na seo precedente, Althusser tinha se incumbido da
tarefa de reler Marx. Essa releitura englobaria os textos do prprio Marx,
principalmente da obra que, em sua concepo, era a mais importante por conter a sua
teoria cientfica, O Capital. Essa tarefa se justificava pela necessidade de
desenvolvimento terico do marxismo, que estava h algum tempo estagnado, segundo
acreditava o filsofo.
Na realizao dessa tarefa, ele se posiciona contrariamente a duas tendncias que
tm concepes diferentes a respeito do marxismo. Uma delas j aparecera na poca do
regime stalinista e ficou conhecida como dogmatismo marxista. A outra tem seu
aparecimento datado da realizao do XX Congresso do Partido Comunista da Unio
Sovitica, conhecida como o humanismo terico.
A tendncia dogmtica se caracterizava por limitar a prtica da filosofia ao
comentrio das obras de Marx ou ao silncio. Segundo Althusser ([1965],1979c):
Para um filsofo no havia sada. Se falava ou escrevia filosofia na inteno dopartido, estava votado aos comentrios e s magras variaes sobre as ClebresCitaes, para uso interno (p.17).
Por limitar a prtica terica do marxismo mera repetio de Marx, a tendncia
dogmtica condenou-a a um atraso terico. Ela sacrificou e bloqueou o seu
desenvolvimento, suspeitando de qualquer novidade terica e, assim, impedindo a
liberdade de investigao cientfica nesse campo do saber.
Contra essa postura dogmtica, Althusser defendia que era necessrio
desenvolvera teoria marxista. Para ele, o marxismo era, de fato, uma cincia e a sua
sobrevivncia era possvel somente com seu desenvolvimento, pois uma cincia que se
repete, sem descobrir nada uma cincia morta (...), um dogma fixo (ALTHUSSER,
[1965], 1979b, p. 39). Todas as interpretaes dogmticas deviam ser repelidas.
A tendncia humanista, por sua vez, surge na realizao do XX Congresso a
partir da crtica feita ao dogmatismo reinante no movimento comunista. Ela se
caracteriza por ser liberal e voltar aos velhos temas filosficos da liberdade, de o
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homem, da pessoa humana e da alienao (ALTHUSSER, [1965], 1979c, p. 6),
buscando amparo terico nas obras da juventude de Marx6.
No entanto, para o filsofo, o retorno de todos esses temas era um fenmeno
ideolgico. O humanismo terico pecava por no diferenciar a teoria marxista da teoria
pr-marxista, no cientfica, e por no levar em conta o corte epistemolgico que Marx
efetuou com o seu pensamento ideolgico anterior.
Assim, estavam colocados em cena os dois adversrios a serem combatidos os
dogmticos e os humanistas, que caam ambos na armadilha de tratar o marxismo como
ideologia e no como cincia e, por isso, a reconquista de sua cientificidade [do
marxismo] se converter, para Althusser, numa preocupao quase obsessiva
(VZQUEZ, 1980, p. 17).
As concepes de Althusser a respeito da cincia e de seu desenvolvimento, que
no s embasam a crtica que ele faz s duas tendncias anteriormente citadas, mas
tambm do o suporte no qual ele se apia para levar o marxismo a um nvel mais
avanado de elaborao terica so herdeiras, em grande parte, da corrente da
epistemologia histrica francesa de Bachelard e Canguilhem.
Como referimos h pouco, o desenvolvimento terico do marxismo proposto por
Althusser constitui um grande projeto epistemolgico embasado na releitura de O
Capital. Essa releitura se destinava, segundo o filsofo, a vrios fins: questionar o
objeto especfico de um discurso especfico e as relaes desse objeto com esse
discurso; definir o lugar que O Capital ocupa na histria do saber; estabelecer em que o
discurso dessa obra se distingue do discurso da economia poltica clssica e do discurso
filosfico e ideolgico do jovem Marx (ALTHUSSER et al, [1965], 1979, p. 13). Por
tudo que vimos, acreditamos que relacionar o projeto de releitura de Marx liderado por
Althusser apenas a uma necessidade de restituir o verdadeiro Marx ou salvar o
marxismo7 uma postura um tanto ingnua e reduz muito as dimenses desse projeto.Pois bem. A releitura que Althusser faz do marxismo distingue-se totalmente das
interpretaes dogmticas e humanistas. A tese de Althusser, baseada em conceitos
cientficos do marxismo e em conceitos bachelardianos, o fato de que a teoria marxista
6 Para Althusser, a obra de Marx compreende duas fases uma ideolgica e uma cientfica, que sodesignadas, respectivamente, com as expressesjovem MarxeMarx maduro.7
Essa parece ser a posio de Dosse (1993), ao afirmar que Ressuscitar um marxismo cientficodesembaraado das escrias dos regimes que se valem dele, tal o desafio estimulante que LouisAlthusser apresenta a uma gerao militante, temperada nos combates anticolonialistas (p. 329).
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passa por uma transformao radical h uma ruptura que a divide em duas fases: uma
ideolgica e uma cientfica.
Alm disso, a teoria marxista no uma coisa s. Ela constituda por duas
disciplinas distintas, o Materialismo Histrico (cincia da histria) e o Materialismo
Dialtico (filosofia marxista), ambas fundadas por Marx. A elaborao das pedras
angulares dessas duas disciplinas representava, segundo Althusser, a dupla revoluo
terica de Marx. Uma das tarefas da releitura proposta pelo filsofo francs era a de
apontar no s as condies em que as duas disciplinas puderam ser fundadas, mas
tambm as especificidades de cada uma delas.
Para iniciar, vejamos o que ele diz sobre a fundao da cincia da histria:
Marx fundou uma cincia nova: a cincia da histria. (...). As cincias que nsconhecemos esto instaladas em alguns grandes continentes. Antes de Marxestavam abertos ao conhecimento cientfico dois continentes: o continente-Matemtica e o continente-Fsica. O primeiro pelos gregos (Thales) e o segundopor Galileu. Marx descortinou para o conhecimento cientfico um terceirocontinente: o continente-Histria (ALTHUSSER, [1968], 1980, p. 157).
Como vemos, para Althusser, Marx no elaborou uma teoria do econmico,
simplesmente. Ele fundou uma cincia nova, a cincia da histria, a qual, por sua vez,
no uma cincia qualquer ela um continente cientfico. Para entendermos melhor
essa posio de Althusser, temos que apelar para a concepo que ele tem do espao
terico:
Com efeito, se considerarmos as grandes descobertas cientficas da histriahumana, parece que poderamos descrever aquilo a que chamamos as cincias,como formaes regionais do que designamos pelos grandes continentestericos (ALTHUSSER, [1967], 1976, p. 31).
Nessa passagem, fica exposto implicitamente que o espao terico composto
por continentes cientficos, que abrigam cincias regionais. Por exemplo, uma cincia
como a Qumica, iniciada pelo corte epistemolgico de Lavoisier cincia regional do
Continente-Fsica. A Biologia, ao se integrar qumica molecular, tambm faz parte do
Continente-Fsica. A Lgica moderna pertence ao Continente-Matemtica.
Os continentes cientficos existentes no momento eram trs a fsica, a
matemtica e a histria, sendo este ltimo fundado por Marx. Disso decorre que Marx
no se limitou a elaborar uma teoria econmica. Ele fundou, com um corte
epistemolgico, a cincia da histria, no interior da qual se constituiria uma teoria do
nvel econmico.
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Dizer que o MH a cincia da histria representa uma posio terica nem
sempre bem compreendida por todos. Por isso, necessrio enfatizar que Histria no
entendida pelo grupo althusseriano como a disciplina histria ou a historiografia. A
cincia da histria um continenteque abrange tudo que social. Qualquer fenmeno
social (seja ele econmico, poltico ou ideolgico) cai obrigatoriamente no domnio
desta cincia. Como conseqncia, a cincia da histria no pensada como uma
cincia a mais ao lado de outras cincias sociais, como a sociologia, a economia ou a
psicologia; ela o continente no interior do qual qualquer saber que reivindique para
si o status de cincia social dever vir a se inscrever.
Ter isso em mente extremamente importante para entender o modo como
Pcheux via as relaes entre a Anlise do Discurso e a cincia da histria e para
entender o lugar que ela ocupa no espao terico.
Segundo Althusser ([1966], 1979a), o MH tem por objeto os modos de
produo que surgiram e que surgiro na histria. Estuda a sua estrutura, a sua
constituio e as formas de transio de um modo de produo para outro (p.34).
Um modo de produo se caracteriza por ser uma totalidade orgnica,
constituda de um conjunto de trs instncias 1. a infraestrutura econmica; 2. a
superestrutura jurdico-poltica; 3. a superestrutura ideolgica. Elas so articuladas entre
si, mas possuem uma certa autonomia relativa umas em relao s outras, ainda que a
infraestrutura econmica seja determinante em ltima instncia. Althusser caracteriza a
superestrutura ideolgica como uma instncia composta de regies, como a poltica, o
direito, a arte, a religio, a filosofia.
Sendo assim, o MH a teoria dessa estrutura, do conjunto de suas instncias e
do tipo de articulao e de determinao que as une entre si. Cada uma delas, tendo essa
autonomia relativa, pode ser considerada como um todo parcial, uma estrutura regional,
podendo ser objeto de um tratamento cientfico relativamente independente. Assim, h apossibilidade de uma teoria da histria das diferentes instncias: uma teoria da histria
da poltica, da filosofia, da arte, das cincias, da ideologia, ou seja, todas as regies que
constituem as trs instncias.
Na concepo dos althusserianos, na obra O Capital, Marx forneceu uma anlise
cientfica do nvel econmico do modo de produo capitalista. Ou seja, ele forneceu a
anlise de um s nvel de apenas um modo de produo. Ele no forneceu uma teoria
dos outros nveis do modo de produo capitalista; nem de outros modos de produo;
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nem mesmo uma teoria das formas de transio de um modo de produo a outro. Em
sua obra s se encontram esboos desses assuntos.
Entretanto, em O Capital, encontram-se elementos tericos suficientes para a
elaborao da teoria das superestruturas do modo de produo capitalista, bem como
outros elementos que possibilitam elaborar teorias de outros modos de produo.
Os conceitos tericos que permitiram elaborar a teoria da regio econmicado capitalismo, uma vez extrados e enunciados, apresentam-se a ns comoprincpios tericos gerais que permitem colocar o problema da natureza dasoutras regies, isto , criar a teoria das superestruturas (ALTHUSSER,[1966], 1979a, p. 38).
Com a constatao de que havia, no domnio do MH, toda uma teoria das
superestruturas ideolgica e poltica a ser desenvolvida e de que os conceitos de base
para levar isso a cabo j existiam, o grupo dos althusserianos viu abrir-se diante de si
um vasto programa de pesquisas. Quase todos eles, inclusive Pcheux, dedicaram-se
elaborao da teoria da superestrutura ideolgica, includas a as suas teorias regionais.
Tratamos at agora da definio de cincia da histria e do objeto de que ela se
ocupa. Resta tratar da segunda disciplina que completa a dupla revoluo terica de
Marx, a filosofia marxista.
Na concepo de Althusser ([1968], 1980), toda fundao de uma nova cincia
acarreta uma revoluo na filosofia. Segundo ele:
Isso uma lei: a filosofia est sempre ligada s cincias. A filosofia nasce(com Plato) com a abertura do continente-Matemtica. Foi transformada (comDescartes) pela abertura do continente-Fsica. Est hoje revolucionada pelaabertura do continente-Histria por Marx. Esta revoluo denomina-sematerialismo dialtico (p. 157).
O grande problema que a filosofia, por vir normalmente aps a cincia,
encontra-se num estado de atraso em relao a ela8. Os avanos tericos alcanados por
Marx no domnio da cincia da histria no foram nem de perto os mesmos no domnioda filosofia marxista, j que ele no teve tempo de desenvolv-la teoricamente.
Entretanto essa situao especial do MD no consistia em prejuzo para a teoria
marxista, uma vez que ela existia em estado prtico em O Capital, ou seja, na prtica
terica de Marx, e isso tornava possvel elev-la a um estado terico (ALTHUSSER,
[1965], 1979c, p. 151).
8
Posteriormente, Althusser retificar essa posio, afirmando que a existncia de uma revoluo nocampo da filosofia marxista, possibilitada por uma revoluo na prtica poltica do proletariado, que tornapossvel a fundao da cincia da histria.
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Aqui j se esboa uma das tarefas para os intelectuais marxistas interessados no
desenvolvimento do marxismo: tornar terica essa filosofia que se encontra em estado
prtico. Assim, a afirmao de Althusser: a filosofia marxista est em seus comeos.
Seus progressos dependem de ns ([1966], 1979a, p. 48) adquire a adeso de seus
discpulos.
Mas do que trata a filosofia marxista? Com quais categorias ela trabalha? Tal
filosofia, segundo as concepes do grupo althusseriano, uma espcie de
epistemologia e pode ser definida como a histria da produo de conhecimentos
enquanto conhecimentos (ALTHUSSER, [1966], 1979a, p. 43). Entretanto um trao
diferencial dela que leva em considerao as condies histricas em que o
conhecimento produzido.
Essa filosofia vai reunir conceitos advindos do prprio Marx; de Bachelard e
Canguilhem (corte epistemolgico, descontinuidade do conhecimento cientfico etc.); de
Baruch Spinoza (a verdade como ndice de si mesma etc.); e, finalmente, de Jacques
Martin (problemtica). Por meio deles, ela vai pensar a diferena existente entre cincia
e ideologia e as condies de nascimento das cincias, com vistas a ser uma teoria
histrica da cientificidade.
Entretanto a filosofia marxista no o mesmo que a teoria clssica do
conhecimento. Esta ltima apresentou-se historicamente sob diferentes formas: uma
teoria das condies formais intemporais do conhecimento, do cogito (Descartes,
Husserl); uma teoria das formas a priori do esprito humano (Kant); ou uma teoria do
saber absoluto (Hegel). A filosofia marxista, ao contrrio, uma teoria da histria da
produo dos conhecimentos, isto , uma teoria das condies reais (materiais e sociais
de um lado, e condies internas a prtica cientfica, de outro) do processo desta
produo (ALTHUSSER, [1966], 1979a, p. 43).
O problema tradicional da filosofia se modifica. No mais a questo dasgarantias do conhecimento (como na teoria clssica do conhecimento), mas sim a
questo do mecanismo de produo de conhecimentos enquanto tais. Para a filosofia
marxista, o conhecimento no seno o processo de sua prpria produo, e s se pode
colocar a questo das condies e do mecanismo de sua produo (ALTHUSSER,
[1966], 1979a, p. 51).
Para Althusser, como para a tradio marxista, a filosofia sempre desempenhou
um importante papel na constituio e no desenvolvimento do conhecimento. Althusserexplica que o conhecimento no nasce nem se desenvolve num compartimento
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fechado protegido das influncias do ambiente. Para ele, h influncias sociais e
polticas (que interferem numa cincia, podendo at impedir seu desenvolvimento) e
ideolgicas (que so menos visveis, mas nem por isso menos perigosas).
O modo como o grupo althusseriano vai descrever o processo de produo dos
conhecimentos, ou a prtica terica, ser exposto no prximo captulo.
Assim, vemos que tambm no domnio do MD h um grande programa de
pesquisas a ser realizado pelos pensadores marxistas. A explicao do processo de
produo de conhecimentos, a definio da especificidade das diferentes prticas e,
principalmente, da prtica terica; da diferena entre cincia e ideologia, tudo isso
estava por ser teorizado no domnio da filosofia marxista.
A filosofia marxista, por tratar do conhecimento, tem a necessidade de uma
teoria da ideologia, pois, como veremos em seguida, a ideologia o principal obstculo
epistemolgico da prtica cientfica.
Assim, parece que essa teoria tem dupla importncia nessa empreitada porque
ela requerida tanto pelo MH quanto pelo MD a ideologia no s uma instncia da
formao social (e uma teoria dessa instncia precisa ser elaborada), mas tambm uma
forma de representao do mundo que se ope ao conhecimento cientfico (e a teoria
dessa diferena precisa ser desenvolvida). necessrio construir uma teoria da
ideologia enquanto instncia da formao social e enquanto conjunto de representaes
que se ope ao conhecimento cientfico.
1.4 A ideologia em geral
Sabemos que a teoria da ideologia que est na base da Anlise do Discurso de
Pcheux aquela elaborada por seu mestre Althusser. Sabemos tambm que essa teoriafoi desenvolvida aos poucos e, nesse processo, sofreu ampliaes e retificaes, as
quais, por sua vez, fizeram-se sentir nas retificaes da prpria Anlise do Discurso, que
marcam as suas trs pocas.
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Sendo assim, o nosso enfoque nesta seo ser a primeira teoria althusseriana da
ideologia9. Isso se justifica pelo fato de que ela que est presente guiando as reflexes
constitutivas do momento da formao do projeto terico de Pcheux, isto , o perodo
que vai de 1966 a 1968, no qual so produzidos os textos de Herbert e os primeiros
artigos de Pcheux.
Nas primeiras elaboraes sobre a ideologia, Althusser se ocupou em definir a
ideologia em geral. Entretanto o filsofo advertia que esse nico termo abarcava duas
noes distintas, ainda que relacionadas. A primeira noo tem a ver com certa
representao do real e tambm com um certo conhecimento desse real a funo
terica da ideologia. A segunda tem uma realidade e uma funo sociais a sua funo
prtico-social. A partir da primeira noo, Althusser pensa, por exemplo, a oposio
entre cincia e ideologia e, da segunda, ele pensa sobre a funo da ideologia no interior
de uma formao social (assegurar a diviso da sociedade em classes)10. Sendo assim, a
ideologia em geral relaciona-se tanto com o conhecimento quanto com a sociedade11.
A ideologia antes de tudo uma das instncias da formao social. Como
explicamos h pouco, a teoria marxista define a sociedade como uma totalidade
composta de trs instncias: a econmica, a jurdico-poltica e a ideolgica, sendo que a
primeira constitui a base da sociedade e as duas ltimas constituem a sua superestrutura.
A ideologia , portanto, parte orgnica de toda e qualquer sociedade.
A instncia ideolgica possui relaes com as outras instncias da formao
social e goza, como todas as outras, de certa autonomia relativa. Essa autonomia
permite no s que ela seja estudada independentemente das relaes que mantm com
as outras instncias, mas tambm que seja elaborada sobre ela uma teoria particular.
Desse modo, impossvel conceber uma sociedade sem ideologia, j que sua
parte estrutural. Segundo Althusser, somente uma concepo ideolgica do mundo pode
pensar a sociedade sem ideologia ou a substituio desta pela cincia ([1966], 1979a). O
9As elaboraes tericas que correspondem a essa primeira teoria althusseriana da ideologia so aquelasconstrudas desde o incio at meados da dcada de 60 e divulgadas em artigos publicados em vriasrevistas e jornais. Esses artigos foram, posteriormente, compilados na obraA favor de Marx, de 1965. Htambm algumas observaes sobre a ideologia na obra Ler O Capital I, de 1965, que so por nscitadas no decorrer deste captulo.10 O filsofo desenvolver mais detalhadamente o papel da ideologia nas formaes sociais na obra
Ideologia e Aparelhos Ideolgicos de Estado, de 1970.11 O uso do mesmo termo para designar coisas distintas, segundo opinio de alguns comentadores deAlthusser, levou a algumas confuses por parte dos leitores. Por isso, posteriormente, ele passou a tratarde ideologias tericas (aquelas com funo de conhecimento) e ideologias no-tericas (aquelas com
funo prtico-social). Isso no o isentou de crticas como a seguinte: ... a separao entre ideologiaterica e no-terica to profunda que no vemos por que Althusser recorre ao mesmo termo paradesignar as duas (VZQUEZ, 1980, p. 43).
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que pode acontecer so modificaes nas formas ideolgicas, o aparecimento de novas
formas ou o desaparecimento de outras, mas a ideologia, como instncia da sociedade,
permanece em qualquer formao social.
De um modo geral, a ideologia pode ser definida como:
um sistema (possuindo a sua lgica e o seu rigor prprios) de representaes(imagens, mitos, idias ou conceitos segundo o caso) dotado de uma existnciae de um papel histricos no seio de uma sociedade dada (ALTHUSSER,[1965], 1979c, p. 204).
Esse sistema de representaes indispensvel existncia da formao social e
necessrio aos homens, que sem ele no podem subsistir. Os homens precisam se guiar
por alguma representao do mundo e das relaes com ele. Para Althusser (1966):
Tudo se passa como se os homens tivessem a necessidade, para poder existir
como seres sociais conscientes e ativos na sociedade (...) de dispor de uma certarepresentao do mundo em que vivem... (p. 194).
Assim, todas as atividades praticadas pelos homens (tais como as religiosas,
econmicas e polticas) so investidas ideologicamente e so sustentadas por uma
adeso, consciente ou no, a esse conjunto de representaes ideolgicas. Assim, a
ideologia est presente nas atitudes dos homens em relao ao trabalho; na idia que
tm sobre o mecanismo da produo; nos juzos polticos, no cinismo, na boa conduta;
nas condutas familiares e sociais dos indivduos.A ideologia est presente em todos os atos e gestos dos indivduos at o pontode que indiscernvel a partir de sua experincia vivida, e toda anliseimediata do vivido est profundamente marcada pelos temas da vivnciaideolgica (ALTHUSSER, [1965], 1979b, p. 49)12.
Se a ideologia um sistema de representaes, o que ele exprime? Segundo
Althusser ([1965], 1979c),
Na ideologia os homens exprimem, com efeito, no as suas relaes nas suascondies de existncia, mas a maneira como vivem a sua relao s suas
condies de existncia: o que pressupe, ao mesmo tempo, relao real erelao vivida, imaginria (p. 206).
Apesar de estar presente constitutivamente na sociedade, de guiar as condutas
dos homens e de exprimir suas relaes imag