a felicidade nÃo se compra e wall street 2

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI ARILSON PEREIRA VILAS BOAS A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2: UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DAS CRISES ECONÔMICAS DE 1929 E 2008 SÃO PAULO 2012

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Page 1: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

ARILSON PEREIRA VILAS BOAS

A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2: UMA ANÁLISE DA

REPRESENTAÇÃO DAS CRISES ECONÔMICAS DE 1929 E 2008

SÃO PAULO

2012

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ARILSON PEREIRA VILAS BOAS

A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2: UMA ANÁLISE DA

REPRESENTAÇÃO DAS CRISES ECONÔMICAS DE 1929 E 2008

Dissertação apresentada a Banca

Examinadora como exigência parcial para

obtenção do título de Mestre do Programa

de Mestrado em Comunicação da

Universidade Anhembi Morumbi de São

Paulo, sob a orientação da Profa. Dra.

Laura Loguercio Cánepa.

SÃO PAULO

2012

Page 3: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

ARILSON PEREIRA VILAS BOAS

A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2: UMA

ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DAS CRISES ECONÔMICAS DE

1929 E 2008

Dissertação apresentada a Banca

Examinadora como exigência parcial para

obtenção do título de Mestre do Programa

de Mestrado em Comunicação da

Universidade Anhembi Morumbi de São

Paulo, sob a orientação da Profa. Dra.

Laura Loguercio Cánepa.

Aprovado em ___/___/___

___________________________________

Profa. Dra. Laura Loguercio Cánepa

__________________________________

Prof. Dr. Vander Casaqui

__________________________________

Prof. Dr. Rogério Ferraraz

Page 4: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

Resumo

A pesquisa analisa a representação da cultura do dinheiro da classe média e alta

dos EUA, nas duas grandes crises que abalaram a economia: a Crise de 1929 – a

Grande Depressão - e a Crise de 2008 – a Bolha imobiliária, vistas a partir de dois

filmes: A felicidade não se compra (Frank Capra, 1946, EUA) e Wall Street II: o

dinheiro nunca dorme (Oliver Stone, 2010, EUA). A metodologia utilizada

compreendeu pesquisa teórica, visualização de filmes ligados ao universo do

dinheiro e, especialmente, a análise fílmica de A felicidade não se compra (Frank

Capra, 1946, EUA) e Wall Street II: o dinheiro nunca dorme (Oliver Stone, 2010,

EUA) focando os personagens representantes das classes média e alta, nos

momentos de desespero causados pela falta de dinheiro, sua postura ética e moral

perante os negócios e seu comportamento perante a comunidade que os cerca. A

análise evidenciou que nos filmes há um “esforço” para a necessidade de aprender a

lidar com o dinheiro e a importância de se proteger contra os especuladores do

mercado financeiro. Através da pesquisa e com olhos na cultura do dinheiro,

observou-se que a sociedade americana, tanto na ficção como na vida real, ainda

não está tão preparada quando o assunto é dinheiro.

Palavras-chave

1. Representação. 2. Crises econômicas. 3. Análise Fílmica. 4. Hollywood.

Abstract

This thesis discusses the representation of the “money culture” of middle and upper

class in movies representing the two major crises that shook the Western economy:

the 1929 crisis (the Great Depression) and the 2008 crisis (the Bubble), viewed

through the lenses of two films: It’s a Wonderful Life (Frank Capra, 1946, USA) and

Wall Street II: Money Never Sleeps (Oliver Stone, 2010, USA).The methodology was

applied by means of theoretical research and review of such two movies related to

the money universe, particularly focusing on characters representative of middle and

upper classes, in their moments of despair caused by the lack of money, their moral

and ethical stance towards business and their behavior in the community around

them. The review revealed the "effort" attempted by these Hollywood movies

originating in the need to learn how to deal with money and the importance of

protecting oneself against financial market speculators. Through research and with

eyes gazing the money culture, it was noted that the American society, both in fiction

and real life, is not yet prepared as far as money is concerned.

Keywords

1. Representation. 2. Economic crises. 3. Movie review. 4. Hollywood.

Page 5: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

Agradecimentos

A Deus, Senhor do universo, que é o Maior de todos;

Aos meus pais, Valdomiro de Bastos Pereira e Iromar de Oliveira Vilas-Bôas Pereira,

meu exemplo para a vida toda;

Ao Guibor, que apacentou meu coração e me ensinou a paciência;

À profa. Bernadette Lyra, que me acordou para essa jornada;

A todos os professores, colaboradores e colegas do Mestrado em Comunicação da

UAM que me ajudaram, com especial agradecimento para os professores Gelson

Santana e Rogério Ferraraz;

À amiga Celina Maria Silva de Castro Paiva pela amizade, doçura e motivação.

Aos professores Luiz Antônio Vadico e Vander Casaqui que abriram a minha mente;

Às pessoas especiais que me iluminaram, tranquilizaram e torceram por mim;

À Universidade Anhembi Morumbi que me proporcionou essa incursão maravilhosa

no universo da comunicação;

Por fim, à minha orientadora professora. Laura Loguercio Cánepa, a quem dedico

minha eterna gratidão, carinho, consideração e respeito.

Mestres, obrigado!

Page 6: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

Lista de imagens

Fig.1 - Dorothea Lange e a Depressão Americana dos Anos 30.............. pág.15

Fig.2 - Família Joad em As vinhas da Ira.................................................. pág.16

Fig.3 - Deany (Natalie Wood) e Bud Stamper (Warren Beatty)…….......... pág.17

Fig.4 - Personagens Bud e Gekko em Wall Street: Poder e cobiça.......... pág.20

Fig. 5 - Personagens Mitch e Avery Tolar em A firma…………………...... pág.21

Fig. 6 - Personagem Ryan em Amor sem escalas.................................... pág.23

Fig.7 - Cartaz do filme A felicidade não se compra................................... pág.24

Fig.8 - Cooperativa de crédito imobiliário Bailey….…………….....………. pág.29

Fig.9 - Reunião da Cooperativa Bailey para tratar da sucessão

empresarial................................................................................................ pág.29

Fig.10 - George Bailey tentando acalmar o “estouro da manada”............. pág.31

Fig.11 - Cena inaugural de A felicidade não se compra ........................... pág.32

Fig.12 - George Bailey entra em casa e encontra família decorando

árvore de Natal.......................................................................................... pág.33

Fig.13 - Personagem Tio Billy com barbante no dedo............................... pág.34

Fig.14 - Mãos de Tio Billy, o financeiro da Cooperativa Bailey.................. pág.35

Fig.15 - Bailey, atendende de farmácia, e o painel da Coca-cola ao

fundo.......................................................................................................... pág.35

Fig.16 - Bailey, Tio Billy, empregado e a recepcionista/secretária............ pág.36

Fig.17 - Família americana Bailey............................................................. pág.38

Fig.18 - Personagem Clarence (Henry Travers)........................................ pág.39

Fig.19 - Cartaz de Wall Street II: O dinheiro nunca dorme........................ pág.41

Fig.20 - Cena mostrando aparelho celular dos anos 1987........................ pág.47

Fig.21 – Personagem Gekko em Wall Street II.......................................... pág.48

Fig.22 - Cena mostrando prédios compondo índice Dow Jones............... pág.50

Fig.23 - Cena mostrando personagem Zabel se suicidando..................... pág.52

Fig.24 - Cena mostrando socialites e suas joias....................................... pág.53

Fig.25 - Personagens Ma Joad (Jane Darwell) e Tom Joad (Henry

Fonda)........................................................................................................ pág.54

Fig.26 - Personagem Bud Fox (Charlie Sheen) e Gekko…………...……. pág.55

Fig.27 – Personagem Jake Moore (Shia LaBeouf)………………………... pág.56

Fig.28 - Cena em que Gekko palestra para universitários......................... pág.57

Page 7: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

A narrativa, por Luis Fernando Veríssimo

Fizeram um filme sobre um dia na vida de um jovem financista, um dos mestres do universo,

que comanda seus negócios internacionais de dentro de uma limusine impermeável enquanto lá fora

o mundo — ou pelo menos Nova York — desmorona.

No filme há uma fala que define tanto o poder do jovem protagonista, que pode arruinar

nações inteiras com um toque no seu celular, quanto o caos que o cerca. “Toda riqueza se

transformou em riqueza apenas pela riqueza, e o dinheiro, tendo perdido sua qualidade de narrativa,

passou a só falar com ele mesmo.” Perfeito.

O dinheiro perdeu seu papel na grande narrativa do capitalismo que vem da acumulação

primitiva de capital e chegou à globalização, e hoje é apenas um interlocutor de si próprio. A narrativa

acabou, a riqueza se acumula entre poucos e beneficia ainda menos e o dinheiro, desobrigado de

fazer sentido e de seguir qualquer espécie de roteiro, só produz monstros como o jovem financista do

filme.

O capital financeiro dita a história econômica do mundo e inventou uma nova categoria

literária: o diálogo de um só.

Gostei de saber que um grupo de economistas de várias partes do mundo lançou um

manifesto criticando o que parecia ser uma quase unanimidade — as exceções eram Paul Krugman e

três ou quatro outros — a favor das medidas de austeridade e sacrifício de gastos sociais para

combater a atual crise econômica global provocada pelo capital financeiro.

O grupo reage à ortodoxia monetarista que faz a vítima pagar pelos desmandos do vilão e

tenta interromper o autodiálogo do dinheiro endossado por tantos economistas. Felizmente, não por

todos.

A grande narrativa do capitalismo foi excitante, enquanto durou. Revolucionou a vida humana

e, junto com suas barbaridades, fez coisas admiráveis. Tudo que era sólido se desmanchava no ar,

para ser recriado no ciclo seguinte. Mas nem Marx previu que seu fim seria este: no meio de um

mundo em decomposição, o dinheiro falando sozinho.

Page 8: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

SUMÁRIO

1. Introdução.............................................................................................. pág. 9

2. Hollywood e as crises econômicas ...................................................... pág.13

2.1. A crise de 1929 no cinema............................................................. pág.13

2.2. A crise de 2008, seus antecedentes e o cinema........................... pág.19

3. Uma fábula sobre o dinheiro: A felicidade não se compra................... pág.24

3.1. Tema e sinopse.............................................................................. pág.25

3.2. Contextualização............................................................................ pág.27

3.3. Comentando o enredo e os elementos da narrativa...................... pág.28

3.4. Uma análise do protagonista......................................................... pág.36

3.5. Uma análise do mentor.................................................................. pág.38

4. A ambição e a Bolha: Wall Street 2...................................................... pág.41

4.1. Tema e sinopse.............................................................................. pág.41

4.2. Contextualização............................................................................ pág.43

4.3. Comentando o enredo e os elementos da narrativa...................... pág.47

4.4. Analisando o protagonista.............................................................. pág.56

4.5. Analisando o mentor...................................................................... pág.57

5. Considerações finais............................................................................ pág.61

6. Referências bibliográficas.................................................................... pág.66

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1. Introdução

Faz tempo que, na condição de cidadão e homo economicus1, tenho interesse

pelo estudo do que Jameson (2001) chama de “cultura do dinheiro2" e da relação

que a sociedade ocidental, economicamente representada pelas expressões

“mercado” e “globalização”, teve com as crises econômicas, em particular as de

1929 e 2008.

Economistas e historiadores afirmam que essas duas crises abalaram o

mundo ocidental (delimitado nesta pesquisa no universo da sociedade norte-

americana) e mexeram com o dinheiro fazendo com que ele mudasse de mãos. As

crises de 1929 e 2008 colocaram em xeque certas teorias micro e macroeconômicas

e trouxeram sofrimento para os povos, na forma do desemprego, da fome para os

mais pobres e de toda espécie de humilhação que as famílias podiam sofrer pela

carência do dinheiro e dos postos de trabalho. Enquanto a Crise de 1929 se

concentrou mais nos povos das Américas, especialmente nos EUA, a Crise de 2008

teve um alcance bem maior em função da globalização da economia.

Em minha época de estudante das Ciências Econômicas, mais precisamente

da Política Econômica, aprendi com meus professores economistas que a cultura do

dinheiro é importante para a sociedade, e acreditando nessa teoria, como

pesquisador da comunicação, indago: a sociedade dedica esforço para essa

chamada cultura do dinheiro? Deveria o homem ocidental aprender a “lidar” com o

dinheiro?

Grandes nomes da Economia e da História falaram sobre o dinheiro e o

comportamento das pessoas no trato e na falta deste. É fato que o assunto, de

forma geral, agrada principalmente àqueles que gostam do dinheiro e de ter

dinheiro. No século XVI, Maquiavel (2007, p. 69), em O Príncipe, já dizia que “os

homens se esquecem mais facilmente da morte do pai do que da perda do

patrimônio”. Já Max Weber, no começo do século XX, em A ética do protestantismo

1 Homem econômico: racional, informado e centrado em si próprio. Tem a capacidade de decidir a

forma a atingir seus objetivos com relação ao dinheiro. (n.d.a.). 2 JAMESON (2001), em sua obra A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização, afirma que a

globalização trouxe conceitos tais como: sociedade de consumo, capital financeiro, pós-modernismo e cultura de massas, e para o entendimento dos fenômenos sociais, culturais e econômicos é preciso recorrer a um exercício de periodização do capitalismo e reconhecer seus diferentes estágios.

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e o espírito do capitalismo – no qual aborda o protestantismo, movimento que

contestou os dogmas e a organização da Igreja Católica, no século XVI – acerca de

mercado, afirma sobre os especuladores do século 19:

(...) tem havido especuladores das oportunidades de ganho monetário de todos os tipos. Este tipo de empreendedor, o aventureiro capitalista, existiu em toda parte. Suas atividades, à exceção do comércio e do crédito, assim como das transações bancárias, eram de caráter predominantemente irracional e especulativo, ou direcionado para a aquisição pela força, (...) tanto na guerra como na exploração fiscal contínua das pessoas a eles sujeitas. (WEBER, 2003.p.28)

Talvez, por isso, o autor tenha afirmado, na epígrafe do capítulo 4 (que para

alguns estudiosos, trata-se da síntese de seu livro) que a igreja católica deixou o

mosteiro e foi para o mercado da vida:

O ascetismo cristão, que de início se retirava do mundo para a solidão, já tinha regrado o mundo ao qual renunciara a partir do mosteiro e por meio da igreja. Mas no geral, tinha deixado intacto o caráter naturalmente espontâneo da vida laica no mundo. Agora avançava para o “mercado” da vida, fechando atrás de si a vida do mosteiro;... (Id Ibid, p.116)

O economista Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia no ano de 1998 e um

dos idealizadores do IDH (o índice criado pelas Nações Unidas, para comparar o

grau de desenvolvimento humano dos países) apresenta um homem que espera

uma porção de Justiça. A justiça a que o autor citado se refere tem uma abordagem

humanística e, a respeito dela, SILVA (2007) comenta:

Sen propõe [a respeito da teoria da justiça...], uma abordagem para o

problema da justiça calcada nos conceitos e funções ou funcionamentos e

capacitações (...). Seu critério para a avaliação e ordenamento de estados

de mundo diferentes utiliza o conceito de capacitações. Por terem acesso a

produtos, bens ou serviços, os agentes podem adquirir várias funções

mentais e físicas que podem promover uma melhoria em suas condições de

vida e no bem estar. (...) Centra o problema da justiça no acesso à renda e

bens, enquanto o utilitarismo se funda na busca, por parte dos agentes, de

prazer ou felicidade. (SILVA, 2007, p.173).

Ainda segundo Sen, o homem em sua história batalha com a dubiedade entre

o desejo de ser feliz e o de ter renda e dinheiro guardado no banco. Para complicar

ainda mais o dilema, esse dinheiro a ser guardado deve ser investido em imóveis,

em produção nacional ou agressivamente aplicado e especulado no mercado de

ações?

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E as perguntas continuam: Qual a importância da cultura do dinheiro para a

sociedade das Américas e, especialmente, para o povo dos EUA? A sociedade

como um todo, inclua-se aí o planeta globalizado, tem consciência da cultura do

dinheiro?

Diante deste contexto, considero relevante examinar o trato dessas questões

em um dos principais produtos culturais de exportação dos EUA – o cinema –

buscando, em filmes de Hollywood, a forma como retratam as principais crises

econômicas dos últimos cem anos, que revelaram de maneira intensa a relação das

pessoas com o dinheiro e com a falta dele.

Para examinar a representação da crise de 1929 em Hollywood, optei pelo

filme A felicidade não se compra, dirigido por Frank Capra, em 1946. O motivo dessa

escolha deveu-se, sobretudo, ao caráter de fábula expressamente pretendido no

filme, o que reforça seu objetivo “pedagógico”. Também a fama que esse filme

preserva até os dias de hoje como um dos mais emblemáticos filmes “inspiracionais”

de Hollywood faz dele um exemplo importante para o tipo de análise que se

pretende aqui.

Já para refletir sobre a representação da crise de 2008, escolhi Wall Street II:

O dinheiro nunca dorme (2010), de Oliver Stone. Esse filme, por ser a continuação

de uma obra emblemática dos anos 1980, Wall Street – Poder e Cobiça (1987),

acaba por apresentar uma reflexão mais complexa sobre o mundo das finanças e da

ambição, em função da retomada de personagens que se tornaram símbolos do

capital especulativo, em particular o sedutor vilão Gordon Gekko, interpretado nas

duas ocasiões por Michael Douglas.

A partir da análise desses dois filmes, o trabalho tentará responder a algumas

questões: De maneira geral, como o cinema de Hollywood tem tratado as crises

econômicas? Como a crise de 1929 foi encarada como oportunidade de aprendizado

sobre os valores humanos no filme de Frank Capra? Como o cinema americano

mostrou o estouro da grande bolha de 2008, cujas consequências ainda podem ser

percebidas ao redor do mundo, e cujos responsáveis ainda não foram punidos?

Esses fatos marcantes tiveram e ainda têm muitas repercussões sociais,

históricas e econômicas, junto às diversas camadas sociais, sendo representados no

cinema americano, lugar de onde essas crises tiveram origem. Então, este trabalho

também tem a proposta de analisar, através de filmes emblemáticos, de que

maneira o cinema de Hollywood deu forma a ideias significativas como a da cultura

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12

do dinheiro, procurando observar como vão sendo construídas as imagens, diálogos

e ideias de riqueza, felicidade, bem estar ou de crise. Para tanto, o caminho

percorrido compreendeu conversas com professores e pesquisadores, pesquisa

teórica, visualização de filmes ligados à questão econômico-financeira e análise de

alguns aspectos narrativos dos filmes em questão, buscando apontar a forma como

representam a cultura do dinheiro.

O trabalho está dividido em três capítulos.

No primeiro, Hollywood e as crises econômicas, procurou-se discutir o

problema da cultura do dinheiro e da representação das crises econômicas no

cinema de Hollywood, mencionando-se outros filmes importantes além dos que são

objetos de análise neste trabalho.

No segundo capítulo, Uma fábula sobre o dinheiro – A felicidade não se

compra, propõe-se análise do filme de Capra, buscando-se compreender como as

questões relativas à cultura do dinheiro e da reação às crises foram tratadas.

No terceiro capítulo, A ambição e a Bolha – Wall Street 2, analisa-se como a

crise de 2008 e seus agentes foram representados em Wall Street 2 – O dinheiro

nunca dorme.

Com isso, pretende-se realizar uma aproximação entre as discussões do

cinema e da teoria econômica, que poderá abrir espaço para outras análises, mais

amplas e/ou mais aprofundadas, em trabalhos posteriores.

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2. Hollywood e as crises econômicas

O cinema pode levar a diversas experiências de reflexão sobre atitudes,

convenções e comportamentos, mesmo para os espectadores que, prazerosamente

e apaixonadamente, frequentam as sessões dos filmes que tratam de negócios. O

objeto desta pesquisa está centrado justamente nisso: em filmes que tratam do tema

dos negócios, e em particular da cultura do dinheiro, e foram feitos para o grande

público assistir nas salas de cinema. Eles também têm em comum o fato de tratarem

do tema das crises econômicas. Trata-se das obras A felicidade não se compra

(1946, EUA) de Frank Capra, que trata de eventos imediatamente anteriores à Crise

de 1929; e Wall Street II: o dinheiro nunca dorme (2010, EUA) de Oliver Stone, que

trata da crise econômica internacional de 2008.

Para introduzir a discussão desses filmes, será necessário contextualizá-los

no ambiente social, econômico e cinematográfico em que surgiram – que é o

objetivo deste capítulo.

2.1. A crise de 1929 no cinema

Durante longo período (do século XVIII ao início do século XX), o pensamento

econômico sobre o capitalismo seguiu o pensamento dos economistas clássicos,

dentre eles, Adam Smith3, que acreditava na “mão invisível” do mercado regulando

as relações econômicas nesse sistema. De acordo com Marco Antonio Vasconcellos

e Manuel Enriquez Garcia:

Adam Smith advogava a ideia de que todos os agentes

4, em sua busca de

lucrar o máximo, acabam promovendo o bem-estar de toda a comunidade. É como se uma “mão invisível orientasse todas as decisões da economia, sem necessidade da atuação do Estado”, ou seja, no não intervencionismo do Estado nos assuntos de ordem econômica e financeira. (VASCONCELLOS; GARCIA, 2008, p.18)

3 Adam Smith (1723-1790) foi considerado o precursor da moderna teoria econômica, colocada como

conjunto científico sistematizado, com um corpo teórico próprio. Smith era um renomado professor quando publicou sua obra A riqueza das nações, em 1776. O livro é um tratado muito abrangente sobre questões econômicas que vão desde as leis de mercado e aspectos monetários até a distribuição de rendimento da terra, concluindo com um conjunto de recomendações políticas. Seus argumentos baseavam-se na livre iniciativa, no laissez-faire. (VASCONCELLOS & GARCIA, 2008, p.19). 4Os indivíduos, famílias, empresas e governo. (n.d.a).

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Segundo Bremmer, temos:

Os defensores do capitalismo puro insistem que se deve permitir que a “mão invisível” opere a sua mágica – e que qualquer esforço do governo no sentido de orientar suas ações pode acabar onerando os mercados e distorcendo o funcionamento natural destes. Outros alegam que os escritos de Smith sobre a moralidade e a empatia natural sugerem que o autor rejeitaria grande parte do dogma libertário justificado em seu nome. (BREMMER, 2011, p. 36).

No início do século XX, surgia uma nova teoria, a Keynesiana (de John

Maynard Keynes5), que via como fundamental para o bom funcionamento do

mercado a intervenção do Estado, com o seu poder de “regulador”. Durante a

trajetória desta pesquisa, pode-se afirmar que tanto Smith como Keynes foram

influentes tanto na compreensão da economia quanto nas políticas econômicas

implementadas pelos governos norte-americanos para lidar com suas crises.

De acordo com Cáceres, o capitalismo americano, após o término da Primeira

Guerra Mundial, ao contrário do capitalismo europeu, “trepidava ululante em meio a

uma agressividade típica dos campeões” (1949-p. 140). Fortemente enriquecidos,

enquanto as potências europeias lutavam para se recuperar, os Estados Unidos lhes

vendiam manufaturas de toda espécie e emprestavam dinheiro. O comércio

americano crescera muito no período da Guerra.

Mas, com a chegada da Grande Depressão em 1929, tudo mudou, levando a

intensos debates sobre o problema da especulação, da autorregulação do mercado

e da necessidade ou não da participação do Estado na proteção econômica dos

cidadãos. Seria apenas com o começo da II Guerra Mundial, em 1939, que os

Estados Unidos dariam um novo salto econômico em função das entradas de

dinheiro no país com a continuidade da comercialização de matéria-prima e

materiais bélicos para países em guerra.

Segundo Steven Jay Schneider, o cinema de Hollywood muito pouco se

manifestou com relação ao sofrimento e aos transtornos provocados pela Crise de

1929, na própria época. Para ele, “Hollywood, em sua grande maioria, deixou que

outras mídias, como o teatro, a literatura e a fotografia documentassem o desastre

nacional” (2008, p.162). De fato, é sabido que Hollywood, particularmente no período

5 John Maynard Keynes (1883-1946) ocupou a cátedra que havia sido de Alfred Mashall na

Universidade de Cambridge. Acadêmico respeitado, Keynes tinha também preocupações com as implicações práticas da teoria econômica. (VASCONCELLOS & GARCIA, 2008, p.23).

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da Grande Depressão, optou por um tipo de entretenimento mais escapista,

priorizando os musicais alegres, os filmes policiais, os romances e os épicos.

Nesse contexto em que o cinema deixou, pelo menos em um primeiro

momento, o trabalho da representação histórica da crise para outras artes, algumas

obras importantes surgiram. Entre elas, a fotografia tornou-se uma das expressões

mais importantes, transformando-se em referência para os filmes sobre o tema feitos

na década seguinte. A foto clássica de Dorothea Langer (Figura 1, na página a

seguir), mostrando uma mãe imigrante e seus dois filhos numa situação de

desolação, mostra uma situação típica dos retirantes que seriam representados,

posteriormente, no filme As vinhas da ira (The Grapes of Wrath, 1940, EUA), de

John Ford (Figura 2, na página a seguir), um dos maiores clássicos do cinema

hollywoodiano em torno do trauma da depressão econômica, inspirado no livro

homônimo lançado no ano anterior, 1939, por John Steinbeck, que receberia o

Prêmio Nobel de Literatura por esta obra, em 1962.

.

Figura 1: Dorothea Lange e a Grande Depressão Americana dos Anos 30.

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Figura 2: Família Joad em As vinhas da Ira (John Ford, 1939).

Sabemos que esse período importante na história do povo americano, causa

estranhamento e ao mesmo tempo fascínio, e, conforme cita Bernard Gazier, “a

penúria absurda explica sem dúvida o fato de ainda termos por esse período

verdadeira obsessão, consciente ou inconsciente.” (2009, p.7).

Ainda, conforme Schneider, “o feito histórico e corajoso de Darryl Zanuck [um

dos mais importantes produtores de Hollywood nos anos 1930/40], comprando os

direitos da obra de John Steinbech para a 20th Century Fox [que produziu o filme de

Ford], mesmo que contrário a controladores conservadores daquele estúdio” (2008,

p.162), foi de grande valia para a documentação histórica, econômica e social do

povo americano daquela época, facilitando a compreensão de gerações futuras

acerca do flagelo vivido por aquela gente.

Como observa Cáceres, essa crise viera mudar a economia e o modo de vida

americanos, que assim podia ser descrito no momento imediatamente anterior ao

crash da Bolsa que deflagraria a Crise de 1929, encerrada definitivamente apenas

com a eclosão da Segunda Guerra Mundial:

[No final dos anos 1920] Era a época da abundância sem fim que havia chegado. Todos os estados estavam ligados por ferrovias e vias aéreas, milhões de automóveis estavam em circulação, dezenas de grandes cidades possuíam arranha-céus, 17 milhões de residências estavam ligadas à rede elétrica. Isso contagiou o americano comum. A riqueza parecia estar a espera de todos. Milhões de americanos especulavam na Bolsa de Valores e investiam acima de suas posses, pagando em prestações. Arriscavam as economias de toda uma vida e chegavam a hipotecar a própria casa para especular e aumentar o seu capital. Balconistas e

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lavadeiras, depois de ganhar dinheiro especulando na Bolsa, compravam casacos de pele e iam para o trabalho em seu próprio automóvel. (CÁCERES, 1949, p.141)

No filme Clamor do sexo (Splendor in the Grass, 1961, EUA), de Elia Kazan,

por exemplo, há a representação em retrospecto desse período da economia

americana aquecida e especulativa. Numa cena importante que se passa durante

uma missa, a câmera, após exibir a torre da igreja e a chuva (símbolo universal da

fertilidade e prosperidade), foca o padre no seu sermão dominical, que diz: - “Sim. É

um tempo de prosperidade para todos nós”.

Já na cena em que os pais da protagonista Wilma Dean Loomis (Natalie

Wood), típicos representante da classe média americana da época, conversam e

acompanham a alta dos papéis na Bolsa de New York pelo rádio e sonham com o

retorno do montante de U$ 15.000, uma quantia que para o casal representa um mar

de oportunidades; inclusive, a possibilidade de enviar a filha para cursar a faculdade

no próximo ano, possibilidade essa restrita naquela época somente às famílias mais

abastadas, como era o caso da família de Bud Stamper (Warren Beatty), seu par

romântico.

Figura 3: Deany (Natalie Wood) e Bud Stamper (Warren Beatty).

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No mesmo filme, na cena do réveillon de 1929, no salão de festa da cidade,

todos estão reunidos com tudo girando em torno dos Stamper’s. Comemoração,

clima de festa. A câmera dá um close em uma bexiga rosa com a inscrição ‘28 e

todos no salão contam: - “1, 2, 3...”, a bexiga estoura; e, numa panorâmica, essa

mesma câmera mostra uma torre de petróleo em miniatura que jorra champagne e o

diretor Elia Kazan mostra para o espectador: tempo de fartura, prosperidade e

dinheiro.

Embora o filme não discuta apenas a questão da crise econômica, estando

também interessado em representar a cruel repressão sexual sofrida pelo casal em

função das rígidas regras comportamentais da época, O Clamor do Sexo também

exibe as consequências da crise de 1929 para cada uma das famílias. O filme

representa a crise econômica de 1929 sob a ótica da classe média, tipicamente

americana e metropolitana, representada por intermédio da família de Wilma Deany

Loomy, e a classe alta, representada através da família de Bud Stamper. A família

de classe média, representada por um casal de comerciantes e sua filha única, é um

exemplo importante do perfil “arrojado” do investidor da classe média americana

daquela época que apostava todas suas economias em “ações” e a família de classe

alta, representada por um investidor do ramo petrolífero, empresário arrogante e

autoritário, pai “castrador” que começa a fazer “encanto” para as grandes

companhias orientais, representando assim, desde aquela época, uma sombra do

“mercado capitalista globalizado”.

Enfim, o cinema de Hollywood representou a Grande Depressão de 1929 sob

várias óticas do cenário econômico e sob o olhar dos diretores acerca daquele

período, sem desconsiderar a influência do cenário econômico da época em que os

filmes foram produzidos. É comum entre todos os filmes o sofrimento que uma crise

econômica causa nos agentes econômicos. Em As vinhas da ira (The Grapes of

Wrath, 1940, EUA), realizado mais de dez anos após a crise, quem padece são os

personagens meeiros representados pela família rural Joad, agricultores com suas

terras hipotecadas, que são obrigados a migrar para a cidade grande juntamente

com milhares de outras famílias, sem ter confirmadas suas esperanças de uma vida

melhor.

Se o filme de Kazan trazia, sobretudo, uma crítica geral às normas da

sociedade da época, o filme de Ford tinha uma crítica social mais incisiva, discutindo

Page 19: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

19

claramente os problemas da distribuição de renda e da cidadania (ou da falta dela)

através do acesso (ou não) à sobrevivência e aos bens de consumo.

Já em A felicidade não se compra, tem-se a representação da classe média

urbana, a classe das donas de casa, dos trabalhadores das indústrias que já

sonham com a “casa própria”. O filme, como veremos mais adiante, retoma de

maneira fantasiosa fatos dramáticos que remetem facilmente à crise, mas destaca a

capacidade de superação das comunidades através da solidariedade.

2.2. A crise de 2008, seus antecedentes e o cinema

Com a vitória em 1945 na II Guerra Mundial e a ajuda financeira a vários

países, os EUA conheceram, entre 1950 a 1990, a continuidade no processo

industrial com a consolidação das grandes corporações e o poderio econômico-

militar ajudado pela chamada Guerra Fria.

Nos anos 1980, Ronald Reagan, ex-ator de Hollywood e filiado ao Partido

Republicano, foi eleito e reeleito Presidente dos Estados Unidos (em dois mandatos

que, em conjunto, foram de 20/01/1981 a 20/01/1989) e estabeleceu um marco na

administração do capital financeiro do planeta, promovendo junto com Margareth

Thatcher, primeira-ministra britânica por onze anos (de 04/05/1979 a 22/11/1990),

uma política neoliberal de inspiração clássica (ou seja, que pregava a liberdade total

do mercado) caracterizada, entre outras coisas, pela financeirização da economia,

fenômeno do campo macroeconômico que tem como principal característica a

apropriação dos ativos da economia pelo mercado financeiro.

No campo macroeconômico e na boca dos capitalistas, a expressão

“alavancagem financeira” era constante: o dinheiro gerando dinheiro, auge do

capitalismo, um cenário em que os mais ricos ficavam cada vez mais ricos. Para a

juventude dessa época, recém-saída das universidades, a possibilidade de

ascensão social e a conquista de um cargo de destaque no cenário corporativo,

promovendo a melhora do padrão de vida e consumo, possibilitando residir em

apartamento ou flat situado em bairros sofisticados e a busca incessante de

prestígio tornam-se constantes. Surge, então, a figura do yuppie – YUP (Young

urban professional), representado nos filmes Negócio arriscado (Paul Brickman,

1983, EUA), Wall Street: poder e cobiça (Oliver Stone, 1987, EUA), O Segredo do

meu sucesso (Herbert Ross, 1987, EUA) e Psicopata Americano (Mary Harron,

2000, EUA).

Page 20: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

20

No filme Wall Street: Poder e cobiça (1987, EUA), de Oliver Stone, a

representação desse processo aconteceu de maneira emblemática através do

personagem Bud, interpretado pelo ator Charlie Sheen, jovem ambicioso que sonha

em conhecer o seu ídolo do mundo dos negócios: o personagem Gekko,

interpretado pelo ator Michael Douglas, no filme (Figura 4).

Figura 4: Personagens Bud e Gekko em Wall Street: Poder e cobiça (Oliver Stone, 1987).

Bud queria status e ascensão social a qualquer preço e para tanto furava

cercos, facilitava o vazamento de informações, corria atrás do dinheiro, até que se

dá mal e vê um fim para essa ganância sequiosa. Nesse momento, Hollywood

mostra para a sociedade que a ascensão meteórica tem sempre um preço. Nesse

mesmo filme, Oliver Stone, crítico do capitalismo e filho de um operador da Bolsa de

Valores de Nova York, nos apresenta o mentor de Bud, Gekko, um milionário

ganancioso e frio, típica representação de grande parte dos executivos daquela

época, que contratavam novos talentos num piscar de olhos, ofereciam fortunas,

sonhos e depois trituravam, pisavam, demitiam sem maiores preocupações e

escrúpulos.

A partir de 1990, com a queda da URSS e o fim da Guerra Fria, dá-se a

completude do que se entende por globalização do planeta, o desenvolvimento

Page 21: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

21

rápido da tecnologia da informação, a aceleração de mudanças, o tempo das

incertezas. Neste trabalho, é possível perceber que o cinema de Hollywood

gradativamente acompanha a história econômica através de alguns filmes:

Em A firma (The Firm, Sidney Pollack, 1993), é trazido às telas o

questionamento acerca do que está presente: a universidade renomada, o poder, a

corrupção, lavagem de dinheiro, fraude e o código de ética (Figura 5).

Figura 5: Personagens Mitch (Tom Cruise) e Avery Tolar (Gene Hackman) em A firma (Sidney Pollack, 1993).

O personagem Mitch, um jovem advogado recém-formado (interpretado pelo

ator Tom Cruise), encantado com uma excelente proposta que empacotava um alto

salário, um carro de luxo, uma casa confortável e a possibilidade de crescimento

profissional, vai trabalhar para uma firma (um escritório de advocacia) de Memphis e

de maneira rápida e precisa percebe a enrascada em que se meteu. A firma está

envolvida com lavagem de dinheiro e todos os advogados que descobrem são

misteriosamente mortos. Mitch, fruto de uma grande instituição de ensino, consegue

se desvencilhar da trama, mesmo estando frente ao código de ética dos advogados

que diz que o cliente deve contar com o sigilo do advogado, e num desempenho

interessante, consegue provar que o lado ético da vida é o que vale e que a paz é a

grande riqueza da pessoa humana.

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22

Os tempos são de crescimento econômico, a sociedade traz à tona o

questionamento do comportamento ético profissional e, mais uma vez, Hollywood

está presente nessa construção. No mundo corporativo, grandes empresas passam

a levantar a bandeira ao valorizar “de forma mais evidente” o capital humano e

intelectual. O planeta aponta para o profissional que, além do conhecimento

empírico e científico, traz em sua alma uma bagagem holística e espiritual para

sobreviver nesses novos tempos, marco de individualidade e solidão. Segundo o

professor Gelson Santana6 (Mestrado em Comunicação/UAM/2010_2) “tem-se que o

homem nunca esteve tão só”. Mas, o mundo dos negócios, palco da atuação do

capitalismo, cobra cada vez mais e mais.

E o mercado paga, pois ele faz dinheiro com muita facilidade. Mas, será que

dinheiro paga tudo? No filme Clube da luta (David Fincher, 1999, EUA)7, o

personagem Jack, vivido pelo ator Edward Norton, é o narrador do filme que

entediado pela vida que leva trancafiado em um escritório, passa a buscar apoio em

Grupos de ajuda na tentativa de sentir algo. Talvez seja Jack, um destes

personagens representativos do homem pós-moderno a que SANTANA se refere:

uma solidão brutal, violenta. O mercado corporativo, fruto do domínio do dinheiro,

tem relação direta com essa violência.

Em 2006, o cinema de Hollywood acompanhando: (1) a onda da

desregulação dos mercados americano, europeu e asiático, com exceção para a

economia emergente dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) (2) o deslocamento

desordenado do dinheiro no fluxo circular da renda, (3) o empobrecimento e

enriquecimento rápidos de muitos, (4) e a criação de nichos de mercado.

Por intermédio do filme O Diabo veste Prada (David Frankel, 2006, EUA) tem-

se uma representação do mercado de luxo, segmento que se expandiu por todo o

planeta, principalmente, para os países do BRIC, novos portos para onde o dinheiro

começava a escorrer. Paralelamente, o filme apresenta a jovem recém-formada,

Andy Sachs (Anne Hathaway) com mil sonhos que tem a possibilidade de ser

assistente de uma famosa editora de Nova York e abre mão de um guarda roupa

invejável, repleto de Prada, Gucci, Miumiu, Chanel, além do emprego, o posto-alvo

6 Tema discutido em sala de aula na disciplina Conceitos culturais do pop nos meios de comunicação

massivos, Prof. Dr. Gelson Santana, do Programa de Mestrado em Comunicação da UAM, São Paulo, novembro/2010. 7 Para saber mais veja Cinema e filosofia uma interlocução possível – a ética, a cultura organizacional

e a estética da violência nos filmes Clube da Luta e Tropa de Elite. PIVA, Celina M. S. de Castro. Dissertação de mestrado em comunicação. UAM, 2009.

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de desejo de muitas jovens recém-saídas de uma universidade, por sua liberdade e

pela sobrevivência do seu próprio “eu”. Será que o homem também começa a entrar

em crise?

Já em Amor sem escalas (Jason Reitman, 2009), Ryan, representado pelo

ator George Clooney, senhor de meia-idade que demite pessoas em consequência

das agruras da Crise de 2008, conhecida como a “bolha do mercado imobiliário”,

vive de aeroporto em aeroporto, encena traços de objetividade e atesta isso como

ninguém, quando arruma a sua mala de viagem. Esse executivo nômade é solitário

e continua buscando um sentido para a vida, pois ele pensa nas pessoas e ele

pensa no futuro (Figura 6).

Figura 6: Personagem Ryan em Amor sem escalas (Jason Reitman, 2009).

A crise de 2008 trouxe à tona, novamente, aquele pensamento conhecido

pela sociedade americana após a crise de 1929: até que ponto o homem pode ficar

à margem do controle de suas atividades especulativas no mundo dos negócios?

Em Wall Street II: o dinheiro nunca dorme (2010), com o retorno de Gekko (Michael

Douglas), a “velha raposa” do universo financeiro, faremos uma análise do papel

desses ambiciosos capitalistas do mercado globalizado que através da omissão e

manipulação de informações e atuando como se fossem mágicos, criam “bolhas” e

queimam “fortunas” que, economicamente, nunca existiram.

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24

3. Uma fábula sobre o dinheiro: A felicidade não se compra

Figura 7: Cartaz do filme A felicidade não se compra

Desde o começo das grandes civilizações, o homem utilizava-se de permutas

para conseguir bens e produtos que iriam ao encontro da satisfação de suas

necessidades e desejos. A troca baseava-se no interesse de uma pessoa pelo

oferecido pela outra. Com o desenvolvimento das civilizações foi criada a moeda

para funcionar como um sistema igualitário na hora da troca. Com o passar dos

anos, vimos que muitas pessoas souberam como ninguem acumular este papel tão

valioso, assim como articular negociações ao melhor estilo mercantilista. Em data

mais recente, assistimos como agentes ativos do sistema financeiro, o papel-moeda

cada vez mais ficava representativo, a própria idéia de moeda cada vez mais se

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25

distanciando daquilo que os economistas chamam “lastro” e o dinheiro cada vez

mais desmaterializado.

Neste capítulo, será feita a análise fílmica de A felicidade não se compra

(Frank Capra, 1946, EUA), filme militante que aborda o universo do mundo dos

negócios, a ambição desmedida do ser humano, o reflexo que a falta de regulaçao

no mercado financeiro gera e a cultura do dinheiro, acompanhando o

comportamento, as interfaces e as manobras pela posse do dinheiro. Neste filme, o

espectador se depara com assuntos ligados à generosidade do ser humano,

redenção e esse mesmo ser humano mostrando o seu lado frágil, terreno associado

à sua capacidade de amar e de ajudar.

Para que esta análise produza bons resultados, comungarei das idéias de

Bernadette Lyra (Papéis avulsos 1 2010/2)8 acerca do que ela entende por análise

filmica:

Assim, já se pode pensar que a chamada análise fílmica é um território muito amplo, bastante multifacetado. Não pode ter uma única regra científica sobre ela. A análise de filmes vai depender do ponto de vista empregado pelo pesquisador e da teoria (ou teorias) de que o pesquisador estiver fazendo uso. Penso que a única coisa que une a análise fílmica é o termo análise. (Papéis avulsos 1 2010/2 - UAM/Mestrado em comunicação)

Inspirado em LYRA (2010), farei a análise de A felicidade não se compra

tendo como referencial a crise econômica de 1929, que abalarou o planeta e causou

grandes transtornos e sofrimentos à vida das pessoas, especialmente nos Estados

Unidos. Com isso, farei uma leitura dos valores morais, éticos e afetivos e dos

elementos fílmicos que figuram na narrativa do filme.

3.1. Tema e sinopse

George Bailey (James Stewart) é um homem que nunca quis seguir a

benevolente carreira de banqueiro do seu pai. Jovem sonhador e dotado de espírito

de aventura, ele queria sair para conhecer o mundo e seus segredos. Mas, como era

um ser humano que colocava os problemas e questões de todos de sua família e

comunidade à frente de seus ideais, ele acaba não conseguindo realizar o seu

desejo de sair de sua cidadezinha Bedford Falls e conquistar o mundo. Com a morte

do pai, acaba por se envolver no processo de sucessão dos negócios da família e

8 Texto discutido em sala de aula na disciplina Metodologias de Análises em Imagem e Som,

Profa. Dra. Maria Bernadette Cunha de Lyra, do Programa de Mestrado em Comunicação da UAM, São Paulo, agosto/2010.

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assume o cargo de gestor responsável pela Cooperativa de Crédito Imobiliário

Bailey. Mas, com a crise de 1929 a empresa passa por dificuldades financeiras e

George Bailey atormentado, vê como última saída se suicidar pulando em um rio

congelado numa noite fria de Natal. E aí, ele recebe uma mãozinha lá de cima.

Em A felicidade não se compra, George Bailey, logo na cena inicial, está

prestes a cometer suicídio, pulando de uma ponte sobre um rio, motivado pela Crise

de 1929, associada ao fato de seu tio Billy ter deixado no balcão do banco do Sr.

Potter (banqueiro malvado, interpretado por Lionel Barrymore) um envelope com U$

8,000.00 (oito mil dólares).

Morador da pacata cidade fictícia chamada Bedford Falls, em Connecticut, em

flashback, George Bailey é apresentado como o garoto generoso que, durante uma

brincadeira de escorregar na neve, salva a vida do irmão mais novo, Harry Bailey,

que não sabendo nadar cai no rio e começa a afogar. Trabalhando na farmácia de

manipulação de Emil Gower (H. B. Warner), impede que uma cliente receba uma

caixa com cápsulas envenenada que, ora antes, foram manipuladas pelo

farmacêutico (Sr. Gower) que aturdido pela notícia de morte do filho Robert,

enganosamente colocara veneno na fórmula. Ao longo do filme, George Bailey,

deixa claro para o espectador a lisura de seu caráter. Seja, também, auxiliando

financeiramente a amiga de infância, Violett Bick (Gloria Grahame), ou na cena em

que a diretoria da Cooperativa Bailey discute acerca da decisão de conceder um

empréstimo de U$ 5,000.00 para um taxista. George diz: - Sabe quanto tempo leva

para um trabalhador arrumar U$ 5,000.00?

Mas, como já mencionado, a vida de George Bailey muda da água para o

vinho com a crise de 1929. Aquele pai amoroso passa a ser um homem irritado,

impaciente com os filhos, deixando sua esposa Mary Hatch (Donna Reed)

entristecida por ver o marido naquela situação de agonia. E aconteceu a George o

mesmo que aconteceu a outros homens que já se desesperaram pela falta do

dinheiro e tentaram cometer suicídio. E aí, todo o universo conspira em prol da vida

de George e o anjo Clarence (Henry Travers), que espera há 220 anos para ganhar

“asas”, entra na história de forma estratégica. Como ele sabia que George estava

prestes a pular da ponte, resolveu pular antes dele, e começar a gritar por socorro. E

a bondade, sempre presente no coração de George, faz com que ele desista logo de

sua ideia e vá ao socorro daquela pessoa, Clarence, que acena do rio pedindo

ajuda. Após George ter salvado a vida de Clarence, conversam e o anjo diz que

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27

veio pra lhe ajudar e começa a mostrar para George, em flashback, como seria ruim

e desinteressante a historia de vida das pessoas de Bedford Falls, se ele não tivesse

nascido.

Quase no final do filme, George Bailey volta para sua casa e encontra sua

família unida, feliz e esperando por ele de braços abertos. É noite de Natal! Na tela

do cinema, dentro de um céu estrelado que anuncia a presença de Deus, uma

estrelinha pisca, avisando que mais um anjo ganhou sua asa pelo próprio

merecimento e que George Bailey venceu a Crise, pois, nenhum homem é um

fracasso quando tem amigos, da terra e dos céus. Há um questionamento sobre o

que é o sucesso e a importância dada ao homem médio.

3.2. Contextualização

Segundo Anne Gillain (1988), o cineasta francês François Truffaut, também

roteirista, produtor e ator francês, afirmava que com o término da II Guerra Mundial,

“a vida social das pessoas ficara endurecida e o egoísmo e a obstinação dos

milionários com a convicção de que levariam com eles os bens materiais, tornaram

seus milagres mais previsíveis”. (GILLAIN, 1988, p.27). Dizia ainda, Truffaut: “Capra,

em meio à descrença humana, à angústia causada pela falta de dinheiro e à luta

árdua do dia a dia foi uma espécie de curandeiro” (GILLAIN, 1988, p. 28), um

“médico de almas” para a sociedade americana. Por isso, pode-se classificar A

felicidade não se compra9 como “um filme inspiracional”, um filme de extrema

importância para o acervo do cinema de Hollywood, um filme que aposta numa

fórmula: falar das coisas do coração, dos bons sentimentos e do amor ao próximo.

O sucesso foi tão grande que o ator James Stewart gravou uma versão do

seu famoso personagem George Bailey para a rádio NBC Radio Theater, em 1949.

A escolha de James Stewart para o papel do protagonista foi um tanto quanto

estratégica. O ator, que, inicialmente, chegou a recusar o papel por motivo dos

traumas sofridos pela sua participação como piloto na II Guerra, era a “laranja” da

vez: Stewart voltava da guerra, tinha uma figura máscula, viril e era condecorado10.

9A felicidade não se compra era um dos filmes favoritos de Capra e Stewart, e “ambos expressaram

profundo descontentamento quando ele se tornou vítima precoce da febre da colorização” (SCHENEIDER, 2008, p.222).

10

George Marshall, em junho de 1945, condecorou James Stewart com a medalha por “serviços notáveis” pela resposta positiva dos documentários que produziu para os soldados da II Guerra.

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28

A arte representando a vida, e nela o homem americano do pós-guerra. Após sua

participação no filme de Capra, o ator James Stewart foi mais uma vez condecorado

com medalhas e com a patente de coronel.

3.3. Comentando o enredo e os elementos estilísticos

A câmera de A felicidade não se compra, já na abertura, anuncia ao

espectador a temporalidade da diegese fílmica: o Natal. Em contra-plongée, um sino

de uma igreja toma conta da tela e três badaladas anunciam a importância do tempo

festivo. Na sequencia, um zoom foca os cartões natalinos em que os créditos do

filme vão sendo apresentados um a um.

Em seguida, um close em uma placa, localiza o espectador: “you are now in

Bedford Falls”. Neste mesmo enquadramento da câmera, logo mais atrás, é possível

ler, em outro, cartaz: “welcome home Harry Bailey”, fazendo referência a Harry

Bailey (interpretado pelo ator Todd Karns), irmão do protagonista George Bailey

(interpretado pelo ator James Stewart), que está de volta à cidade após ter saído

para cursar a faculdade, como era o costume com os rapazes daquela pequena

cidade. E, em meio aos flocos, de neve que caem na calada da noite, o espectador

ouve pedidos a Deus, Pai celestial, para que interceda pela George Bailey:

- “Ajude-o senhor”.

- “Jesus, Maria e José ajudem o meu amigo Sr. Bailey”.

- “Ele nunca pensa em si mesmo, por isso, está com problemas”.

- “O George é um homem bom”.

- “Dê-lhe uma chance, Senhor”.

E a voz de uma criança [a filha de Bailey], suplica:

- “Por favor, Deus, tem alguma coisa errada com o papai. Por favor, Deus,

traga o papai de volta”.

George Bailey, um idealista convicto, é um homem com grandes ideias que

acaba sacrificando seus sonhos em prol da família e dos moradores da fictícia

cidade de Bedford Falls. Menino criado naquela cidadezinha, desde pequeno mostra

os traços de sua personalidade: dócil, amigo e responsável. Filho mais velho de uma

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família americana de classe média, com a morte do pai, acaba assumindo os

negócios da Cooperativa de Crédito Imobiliário Bailey. Mas, os tempos eram difíceis,

época da Grande Depressão, crise econômica de 1929 que assolou a economia

americana e, principalmente, as classes de média e baixa renda.

Figura 8: Cooperativa de crédito imobiliário Bailey

Figura 9: Reunião da Cooperativa Bailey para tratar da sucessão empresarial.

Em A felicidade não se compra, o diretor Frank Capra deixa bem claro para o

espectador a dimensão temporal e econômica a que os personagens envolvidos na

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30

trama estão atrelados. Na cena em que George Bailey conversa com tio Billy

(Thomas Mitchell), afirma: “A cidade enlouqueceu”, fazendo menção ao desespero

das pessoas em função da crise econômica que assolava aquele país. Na

sequência, um telefone toca. Em plano geral, do outro lado, a câmera mostra o

banqueiro frio, malvado, ganancioso, representação típica do capitalista

inescrupuloso: Sr. Potter (interpretado pelo ator Lionel Barrymore), que, rodeado de

assessores em um bonito escritório, através do telefone, diz a George: “George, há

rumores na cidade que você fechou as portas. Isto é verdade? Olha, eu fico muito

feliz com isso”. Na sequência, Sr. Potter, em tom de ironia, dirige seu recado a

George: “George, eu estou fazendo tudo que posso para ajudar vocês nesta crise.

Diga ao seu pessoal [referindo-se aos mutuários da cooperativa gerenciada por

George] para trazerem suas ações. Pagarei 50 centavos por cada dólar”.

George Bailey, colocando em xeque a conduta ética e o tipo de pessoa que é

o banqueiro Sr. Potter, contra-ataca: “Quer sempre lucrar, não é”? E a câmera, em

plano médio, mostra um letreiro com os dizeres “own your own home” fazendo

alusão ao negócio da cooperativa: a concessão de crédito imobiliário para quem

sonha em ter a casa própria e não tem liquidez financeira para tal.

Na cena subsequente, em plano médio, os clientes em alvoroço e assustados

vão tomando conta da recepção da Cooperativa Bailey. Falando alto e gesticulando,

deixam claro para o espectador sua preocupação e agonia com o que pode ter

acontecido, em decorrência da crise econômica, com o dinheiro que eles mantinham

em depósito na cooperativa rendendo juros; dinheiro esse que, na contrapartida, era

muito bem empregado ao ser emprestado para outros clientes que com a concessão

do crédito construíam as suas casas próprias.

Nessa cena, a movimentação faz lembrança a um termo típico do mercado

financeiro e econômico: o “estouro da manada” – atitude típica de investidores

primários que, ao toque de um aviso de “recessão” ou “crise econômica”, correm

para o seu banco depositário com a intenção de sacar cada centavo do dinheiro que

ali depositaram na ânsia de alavancar o capital – e, com isso, acabam precipitando a

crise. Pressionando George Bailey, um deles diz: “Vou levar todo o meu dinheiro”.

George Bailey, em tom de voz brando e firme, como um grande homem de

negócios, conversa com eles: “O dinheiro não está aqui, está na casa dos Kennedy,

da Sra. Maitland e cem outras. Vocês lhes emprestam e eles devolvem assim que

puderem”. Ainda, fazendo alusão ao banqueiro Potter, diz: “O Potter controla o

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31

banco, a linha de ônibus, as lojas de departamento e está atrás de nós. Por quê?

Porque interferimos nos seus negócios. Ele quer que vocês morem em cortiços

pagando aluguel a ele”.

Figura 10: George Bailey tentando acalmar o “estouro da manada”.

A cena acima descrita é de suma importância para a completude deste

trabalho. Quando George Bailey diz que “o dinheiro não está aqui, está na casa dos

Kennedy, da Sra. Maitland e cem outras” é possível verificar a diferença de universo

entre Bedford Falls e Wall Street. Em A felicidade não se compra, a crise se passa

em uma cidade interiorana onde a quantia módica de U$ 8.000,00 é capaz de

desestruturar uma Cooperativa de crédito, muito diferente de U$ 700 bilhões de

dólares, a quantia pleiteada pelos banqueiros de Wall Street junto ao Tesouro

americano em 2008.

Em A felicidade não se compra, o dinheiro era comprovadamente

materializado, e o banqueiro sabia com precisão onde se encontrava cada centavo.

Opostamente, em Wall Street II: o dinheiro nunca dorme, será perceptível para o

espectador que o dinheiro passou por um processo de “desmaterialização”. Após o

movimento de desregulação financeira dos mercados, advinda da globalização

imperialista, e com o desenvolvimento acelerado do parque tecnológico, o dinheiro

virtualizou-se.

Em A felicidade não se compra, o espectador assiste a um duplo festival de

boa vontade, camaradagem, casais felizes, filhos lindos. A bravura do personagem

George Bailey no papel do gestor de pessoas e homem de negócios, pai amoroso,

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marido fiel, conterrâneo inserido no contexto social da comunidade em que vive,

homem religioso e assumidamente do bem, transporta a plateia para um mundo

ideal. É impossível um espectador não se deixar envolver pela doçura do filme e

pela leveza das tomadas de câmera.

Isso até o momento-chave do suicídio de George Bailey, na cena em que

Clarence pula no rio e o espectador ainda não sabe o desfecho: se ele caiu por

descuido ou por alguém que o empurrou. Acontece que Bailey, totalmente

desorientado, ameaçava pular no rio congelado daquele inverno de 1928, e por fim à

sua vida. Mas, inesperadamente, uma “pessoa” pula em sua frente e começa a gritar

por socorro, propositadamente, porque essa pessoa era um anjo enviado por Deus

para proteger a vida do homem que minutos antes, ameaçava se jogar. Esse anjo

conhecia ao pé da letra o coração de seu protegido. Mas tanto, que soube que

pulando antes faria com que George Bailey desistisse do suicídio e, ao contrário de

por fim à vida, lutasse para continuar a vida do “desconhecido”. Nesse momento, o

filme mostra que vale a pena ser uma pessoa do bem, pois, contamos com a

proteção divina. Deus está sempre conosco! Até nos momentos de crise financeira,

como era o caso de George Bailey.

Figura 11: Cena inaugural de A felicidade não se compra (Frank Capra, 1946).

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33

A cena inicial de A felicidade não se compra com as badaladas do sino da

Igreja de Bedford Falls anunciando a véspera de Natal do ano de 1928, leva o

espectador a pensar numa certa vocação católica para o filme. Se considerarmos a

origem do diretor Frank Capra, a Sicilia, região da Itália, o berço do catolicismo, e

que seus pais eram católicos, conforme cita LEPIANE (1990, p. 8), essa suposta

vocação cresce.

Durante as várias sessões de visualização fílmica, a atenção foi redobrada

em elementos presentes na película que pudessem de fato classificar o filme como

um “típico filme católico”, mas, em todos os cenários, seja no escritório da

Cooperativa Bailey ou no escritório do banqueiro Potter, na residência dos pais de

George Bailey, na parte em que o filme em flashback mostra a vida do protagonista

como criança e depois como adolescente e no casarão antigo em que George e

Mary edificaram o seu matrimônio e construíram a sua família, não foi encontrado

qualquer símbolo ou elemento que possa pudesse confirmar de fato a vocação

católica em A felicidade não se compra. A clareza de concepção que se tem é que a

mensagem proferida por Capra é fundamentada em valores cristãos e sendo a

sociedade americana daquela época, 1946, tempo de produção do filme ou 1929,

tempo da diegese fílmica, majoritariamente protestantes advindos de Lutero e

Calvino, permanece esse ponto de interrogação.

Figura 12: George Bailey entra em casa e encontra família decorando arvore de natal.

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34

O filme, além de Bailey, apresenta personagens marcantes, assim como o Tio

Billy (Thomas Mitchell), o encarregado financeiro da Cooperativa Bailey. Ele é um

tanto quanto esquecido que para lembrar-se dos compromissos da agenda do dia,

recorre à ação de amarrar fiapos de um barbante nos dedos das mãos. Mas, como

além de esquecido, Tio Billy é, também, um pouco atrapalhado, ele, passado algum

tempo, acaba esquecendo o “porquê” daquele barbante. Nessa parte, chamamos a

atenção para a construção de Frank Capra do personagem que representa o modus

operandi de um gestor financeiro daquela época em que não havia

microcomputadores, planilhas de Excel, celulares, internet e emails, agendas

eletrônicas e o dinheiro desmaterializado dos tempos atuais, mas, certeiramente:

papel moeda, cadernetas de anotações, lápis pendurado atrás da orelha, máquinas

de datilografia, telegramas, tempo de sobra e provavelmente, mais qualidade de

vida.

Figura 13 – Personagem Tio Billy com barbante no dedo.

Page 35: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

35

Figura 14: Mãos de Tio Billy, responsável financeiro da Cooperativa Bailey.

Figura 15: Bailey, atendente de farmácia, e o painel da Coca-cola ao fundo.

Também é possível que se perceba no filme A felicidade não se compra, ao

contrário de filmes recentes como Wall Street II: O dinheiro nunca dorme, o ambiente

masculino do mundo dos negócios. Seja na reunião dos acionistas da Cooperativa

Bailey, seja na reunião do Sr. Potter e seus assessores, em qualquer um desses

lugares não tinha a presença de uma mulher. No universo corporativo daqueles

Page 36: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA E WALL STREET 2

36

tempos, a participação feminina se resumia ao papel de recepcionista e/ou

secretária11. De certa forma, isso mostra que naquele tempo, o “dinheiro era

masculino” e trazendo para o contexto real, a cédula do dólar americano confirma,

pois ainda não existe a estampa de mulher nas cédulas de dinheiro, nem no cinema

de Hollywood, nem no mundo real.

Figura 16: Bailey, Tio Billy, empregado e a recepcionista/secretária.

3.4. Uma análise do protagonista

Em plano geral, a câmera mostra a família Baley fazendo uma refeição.

George Bailey conversa com seu pai e ouve: - “Você já nasceu velho, George”.

George, indaga: - “Como?” E o pai responde: - “Você já nasceu velho”.

Nas cenas de A felicidade não compra (Frank Capra, 1946), destacam-se

frases pronunciadas por George Bailey:

a) Na cena em que ele conversa com a mãe Ma Bailey (Beulah Bondi) sobre

a possibilidade de namoro com Mary Hatch (Donna Reed), diz: - “Tudo se justifica no

amor e na guerra”.

11

Para saber mais veja A representação da secretária no Cinema. PIRES, Antonio Carvalho. Dissertação de mestrado em comunicação. UAM, 2008.

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37

b) Na cena em conversa com Clarence, seu anjo da guarda, acerca do

dinheiro, deixa bem claro a sua visão utilitarista acerca da importância do dinheiro

para o homem comum: - “O dinheiro é útil para a vida terrena”.

c) Na cena com a amiga de infância e fã Violett, demonstra seu lado amigo e

fraterno ao auxiliar a moça, dando-lhe ajuda financeira para que a mesma saia da

cidade e vá à busca de um emprego em outro lugar. Nessa parte do filme, dá-se a

impressão que Violett era uma moça mal falada na cidade.

d) Enfim, até na cena do suicídio, percebe a tamanha preocupação de George

com a pessoa humana. Ele que estava prestes a saltar da ponte sobre o rio

congelado daquela noite de Natal, não pensa duas vezes ao ouvir o pedido de

socorro de Clarence, seu já quase “anjo da guarda”.

Existe no personagem George Bailey, um “quê” de irmão mais velho e, por

isso, responsável por todo o resto da prole, de homem bom marido nas cenas com

Mary, sua esposa e de pai dedicado e amoroso na forma como se relaciona com os

filhos dentro da casa e, principalmente, na inteligência emocional que o personagem

ao longo de todo o filme passa para o espectador. Além de tudo isso, George Bailey

é um profissional ético e compromissado com as questões relacionadas à

Cooperativa de crédito Bailey e que ainda luta pelos interesses dos moradores de

Bedford Falls. Impossível o espectador não se identificar com ele ou mesmo que

isso não aconteça, impossível não sentir empatia por Bailey.

Através da trama que envolve George Bailey e os outros personagens em A

felicidade não sem compra é dado ao espectador o termômetro capaz de sentir a

condução sábia e sensível de Frank Capra em um período importante para a vida do

povo americano: o pós-Segunda Grande Guerra Mundial e por outro lado o cinema

de Hollywood falando da Crise Econômica de 1929 (crise que ocorreu quase dois

ciclos econômicos antes do filme ter sido produzido) e retratando um assunto um

tanto quanto ainda não desbravado pelo cinema hollywoodiano: a relação dinheiro

versus ética no mundo dos negócios e o capitalismo já um tanto quanto selvagem.

Daí, conclui-se que George Bailey é a representação ideal e exemplar dos

diversos papeis que um homem que vive em sociedade poderia encarnar: o papel do

executivo comandando megaorganizações com responsabilidade social, que

preocupa, antes de tudo, com o resto do planeta e não em primeiro lugar com a

maximização do capital e com a maior possível distribuição de dividendos; do

político honesto, decente e que luta pela melhoria de qualidade de vida de seu povo,

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38

do colega de trabalho que respeita o espaço e o pensamento de todos que o

cercam, enfim, do homem que, na opinião cristã de Capra e dos fãs do filme, todos

deviam ser.

Figura 17: Família americana Bailey

3.5. Uma análise do “mentor”

Clarence, interpretado pelo ator Henry Travers, é um anjo da guarda de

segunda categoria, do “tipo trapalhão”, meio abobado, quem recebe de Deus uma

importante missão: a possibilidade de salvar a vida de George Bailey, que está

prestes a saltar de uma ponte sobre um rio nos arredores de Bedford Falls na

véspera do Natal, por conta da situação financeira criada pela crise de 1929 que

assola os negócios da Cooperativa de Crédito Imobiliário Bailey. Assim como

George Bailey, também é um sonhador. Para entrar para a primeira categoria na

hierarquia angelical e, definitivamente, conquistar o seu par de asas, ele entra em

cena no momento em que George ia saltar da ponte sobre o rio. Nessa parte da

cena, o diretor Frank Capra desloca sua câmera e dá um zoom nas águas geladas

do rio, a imaginar pelas placas brancas de gelo que brilham no contato com a água.

Com esse movimento de câmera o espectador acaba não tendo no momento a

certeza se Clarence pulou por alguma intenção ou se sendo ele atrapalhado,

escorregou e caiu. Logo após, ouve-se um som diégetico que lembra a queda de

algo pesado na água e o anjo começa a gritar: -“Socorro! Alguém, por favor, me

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39

ajuda”. E tal situação acaba sendo um “prato cheio” para o valente e protetor George

Bailey que sem pensar pula em seguida nas águas do rio a fim de salvar a vida

daquela pessoa que ele ainda não conhecia. Bailey consegue tirar Clarence das

águas e os dois começam a conversar. Bailey logo percebe que Clarence dispunha

de todas as informações a seu respeito e que ele era um anjo enviado pelos Céus

para salvar a vida dele. A partir desse momento, o anjo Clarence em flashforward

começa a mostrar para George como seria a vida das pessoas da pacata cidade

Bedford Falls se ele tivesse se suicidado. A partir desse momento do filme, Clarence

convence o espectador de que é um anjo que apesar de atrapalhado é um ser muito

especial.

Figura 18: Personagem Clarence (Henry Travers)

O diretor Frank Capra fez questão de atribuir ao personagem Clarence,

elementos que o fizessem se parecer bem de perto com um ser humano qualquer,

um homem do povo. Na cena em que Clarence conversa com George sobre o

dinheiro e ouve: -“O dinheiro é útil para a vida terrena”, em um movimento de

câmera rápido, o espectador passa a ver um close do pescoço e cabeça de

Clarence compactuando com Bailey acerca da utilidade do dinheiro. Logo em plano

sequencia, o anjo troca de roupa e veste uma camisola que segundo ele fora de sua

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40

esposa. A figura do anjo metido em uma camisola é um tanto quanto hilária.

Impossível o espectador olhar aquela cena e não sentir vontade de dar uma risada.

Nessa cena, por intermédio de Clarence, Frank Capra fez graça com humor.

Enfim, o mentor Clarence, é a representação da bondade e generosidade

entrelaçadas com a condição mundana do ser humano. Através do personagem, o

diretor Frank Capra mostra ao espectador dois lados: de um, a complacência e a

providência divina com um Deus protetor que nunca falha e que sempre está de olho

no seu rebanho, de outro, a condição imanente de um anjo que quando se

materializa é um homem imperfeito, meio “lesado” e desmiolado; defeitos esses

próprios e perceptíveis em todos, seja no padeiro, no vizinho do lado direito da rua,

no líder espiritual que comanda uma seara e até mesmo, no companheiro que junto

à outra (o) divide uma vida.

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41

4. A ambição e a Bolha: Wall Street 2

Figura 19: Cartaz de Wall Street II: O dinheiro nunca dorme (Oliver Stone, 2010).

O filme Wall Street II: O dinheiro nunca dorme (Oliver Stone, 2010) terá maior

enfoque nessa pesquisa, pelo “frescor” de seu tempo: produção recente (depois

anos após a Crise de 2008), pelo interesse ao tema pelo pesquisador e por tratar de

um assunto relevante para o cinema hollywoodiano, para a economia e para a

própria história.

4.1. Tema e Sinopse

O enredo de Wall Street II se dá em torno do tema vingança e redenção. O

suicídio de Louis Zabel (Frank Langela) acarreta todo o desenrolar da trama quando

Jake (Shia LaBeouf), pupilo de Zabel, resolve vingar a morte do seu querido mentor

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42

e procura James Bretton (Josh Brolin) o responsável por aquela tragédia. Em

segundo plano, temos a redenção e o perdão para o enigmático Gordon Gekko

(Michael Douglas), que estivera preso por 13 anos depois da ação passada no filme

Wall Street – Poder e cobiça (1987), quando fora condenado por fraude.

Jacob "Jake" Moore é um novato corretor da Bolsa de Valores, que está

namorando Winnie (Carey Mulligan), a filha de Gordon Gekko. Jake acredita que seu

chefe, Bretton James teve alguma ligação com a morte de seu mentor, ocorrida

durante o estouro da Bolha Imobiliária norte-americana, em 2008. Gekko decide,

então, ajudar o jovem em seus planos de vingança, mas o que Jake não sabe é que

Gekko tem planos de se reaproximar da filha para resgatar milhões de dólares

presos em uma conta na Suíça que o pai abrira em seu nome.

Jake Moore (Shia LaBeouf), após se desligar do banco Keller Zabel, aceita o

convite feito por Bretton para se juntar a sua equipe. Movido pelo sentimento de

vingança, Jake começa a ter destaque na nova instituição financeira, o banco de

investimentos Churchill Schwartz, e começa “intencionalmente” a chamar a atenção

de Bretton James através de sua brilhante atuação, na reunião com os investidores

chineses, na qual “vende o peixe” do banco Churchill: fundos de ações de empresas

americanas do setor energético. Em Wall Street II: o dinheiro nunca dorme (Oliver

Stone, 2010, EUA) não passa despercebido o “interesse” do diretor Stone pela

nação emergente China. Temos elementos representativos como, por exemplo, a

frase de Jake “cooperar com os comerciantes chineses”, quando Jake oferece

presentes aos chineses, fazendo alusão ao costume deles de oferecer presentes na

negociação e a própria inclusão do país na narrativa.

Paralelamente, Jake procura Gekko (Michael Douglas) com a intenção de

descobrir mais informações acerca de Bretton e de seu banco Churchill. Por

intermédio de Gekko, o maior “insider trading12" do mercado americano, descobre

que Bretton foi o responsável pela falência do Keller Zabel. Jake espera uma

oportunidade e quando está frente a frente com Bretton o desmascara, se demite e

diz que tem nojo de homens com o caráter dele. Bretton ainda pergunta a Jake qual

é o seu preço. Jake cospe, vira as costas e vai embora. Nas cenas seguintes, o

espectador assiste o dono do banco Churchill Schwartz sendo preso pelo FBI

(Federal Bureau of Investigation), a polícia federal americana.

12

Termo utilizado no mercado financeiro para se referir tanto ao praticante quanto à prática da manipulação de informações privilegiadas. (n.d.a.).

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43

Apesar das tensões ao longo da trama, Jake acaba ganhando e fazendo

papel de “bom moço” que desmascara o chefe, garante a harmonia em família com

a mulher, o sogro e o filho recém-nascido.

4.2. Contextualização

O enredo de Wall Street II: o dinheiro nunca dorme gira todo em torno das

caudas e consequências da crise econômica mundial de 2008.

Uma grande onda de calotes no mercado imobiliário dos Estados Unidos que

acabou, em efeito dominó, afetando globalmente o mercado de ações, de crédito e

de câmbio. Os efeitos catastróficos chegaram rapidamente à indústria, ao comércio

e à economia do planeta. destruindo empregos e, inclusive, sociedades econômicas

tidas até então como estáveis, como era o caso da Islândia, retratada no

documentário Trabalho interno (Charles Ferguson, 2010, EUA), narrado pelo ator

Matt Damon, que ganhou o Oscar de melhor na categoria documentário em 2011.

Essa crise provou que a facilidade de acesso ao dinheiro camufla e reduz a

noção de risco, colocando as pessoas na busca do lucro fácil, frente a investimentos

ousados e assim, surgem as “bolhas”: tipo de investimento que, segundo a

estatística, vira “moda” e, por isso, valoriza muito acima do que realmente vale,

comprometendo, assim, o retorno. É como uma bola de neve, quanto maior o

numero de investidores que entram no mercado, maior a valorização; quanto maior a

valorização, mais investidores querem participar.

Oliver Stone representou como ninguém a “história da bolhas” em seu Wall

Street II: o dinheiro nunca dorme.

Numa cena, o personagem Gordon Gekko mostra para Jake o quadro das

tulipas, e dá uma aula de bolhas explicando ao genro a primeira bolha especulativa

conhecida, ocorrida no século XVI nos países baixos, quando as tulipas,

introduzidas pela beleza de suas flores, provocaram uma febre fazendo com que as

pessoas, das mais variadas classes sociais, vendessem seus imóveis para investir

no cultivo da planta. Já por volta do ano 1630, surgiam os “contratos de futuros” para

negociar os bulbos antes da colheita. Devido a fatores diversos, assim como na

Crise de 1929, os títulos perderam credibilidade, seus preços tiveram queda súbita

fazendo com que as pessoas perdessem todo o capital investido e fossem à

falência.

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44

Também na cena em que os banqueiros reunidos pedem socorro ao FED, o

banco central americano, e o personagem Julie Steinhardt (Eli Wallach), conselheiro

mais velho do grupo, faz um gesto com as mãos e emite um som fazendo alusão a

uma bolha que sobe e “plac” estoura.

Há também vários trechos em que o espectador assiste aos contra-plongées

da câmera exibindo bolhas de sabão subindo para os ares, ou ainda, quando Oliver

Stone, profeticamente, faz alusão à próxima bolha: “a bolha das energias limpas13”,

um mercado que cresce a cada dia nos EUA com a fabricação de produtos

fotovoltaicos que convertem energia solar em eletricidade.

Contudo, na “bolha” que gerou a crise de 2008 dos EUA, imóveis com preços

cada vez mais em alta, serviam de garantia para financiamentos e refinanciamentos

imobiliários que contribuíam para aumentar ainda mais os preços, gerando novos

financiamentos de altíssimo risco para pessoas que não tinham como pagar. Nesse

estado, o primeiro sinal de uma possível quebra da “bolha” causou, como já

mencionamos em cena de A felicidade não se compra, o “estouro da manada” onde

todos queriam escapar do possível prejuízo, fazendo assim com que grandes

bancos como o Bear Sterns, socorrido pelo JP Morgan Chase que o comprara, se

desestabilizasse.

Mas, coube ao banco Lehman-Brothers, quarto maior banco de investimentos

dos Estados Unidos, através de seu pedido de concordata, o marco referencial da

Crise de 2008. A AIG, grande seguradora americana, também sofreu abruptamente

com a crise e quase quebrou, caso não fosse o socorro do tesouro americano que

fez a aquisição de oitenta por cento de seu capital.

O filme Wall Street II: o dinheiro nunca dorme representa como ninguém o vai

e vem dos bancos e dos banqueiros á beira da loucura, implorando e pedindo

socorro para o tesouro americano. Na cena em que os banqueiros reunidos,

conversam e falam com representantes oficiais do governo americano, citam a

quantia de 700 bilhões de dólares (que efetivamente foi o montante injetado pelo

tesouro americano para que os bancos não quebrassem) como se falassem de

dinheiro para ir à padaria e comprar pão.

O palco da agonia pelo dinheiro criado por Oliver Stone em Wall Street foi

muito diferente daquele criado por Frank Capra em A felicidade não se compra, mas

13

Veja mais em Os Barões da Energia. OLIVEIRA. M. Revista Exame, ed. 884, p. 97, de 12/01/2006.

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45

em ambos os filmes, tanto Capra como Stone deixam bem claro para o espectador

que sempre tem alguém ganhando dinheiro, por pior que seja a crise, por melhor

que seja a situação.

O filme de Stone é irônico e dá a sua versão dos encontros entre banqueiros

e governo que culminaram num socorro público de U$ 700 bilhões. E, assim como

na vida real, no filme ,enquanto o secretário do tesouro americano pergunta: - “De

quanto falamos?”, o personagem de Josh Brolin, Bretton James, complementa: -“600

ou 700” como se falasse de unidades de dólares e não de bilhões deles. O

secretário, nervoso, contra-argumenta: -“Vocês querem que o governo banque isso?

Sabem o que é isso? É socialismo!”.

O ator Josh Brolin, que interpreta Bretton James, sócio de um banco de

investimentos, nos moldes do Lehman Brothers, acrescenta em entrevista dada ao

Jornal Folha de São Paulo SP “que os bilionários de Wall Street se acham

invencíveis. De repente, acabam sem nada”.(SCIARRETTA, T. Filme é engajado,

mas é fiel a ética financista.Jornal Folha de S.Paulo, cad. Ilustrada, p. E10, de

24/09/2010). Contudo, o parecer final fica para o personagem Jake (Shia LaBeouf)

que, no final do filme, diz: “Eles podem se ferir, mas nunca morrem. Eles voltam

diferentes”. É o que acontece com o personagem Gordon Gekko, que, já em 1987,

rendera a Michael Douglas o Oscar de melhor ator por sua atuação.

O personagem Gordon Gekko cativa, ironicamente. Sua índole é desprezível

e sua lábia remete a uma estampa sociopata. Mas, no filme, ele paga o preço por

suas fraudes e lavagens de dinheiro e, isso acaba servindo de lição para os

capitalistas e especuladores que através de meios nada éticos usurpam e acumulam

recursos econômicos, enquanto outros, menos avisados, pagam a conta.

Passados 23 anos, Oliver Stone fez com este filme a sequência com Wall

Street: O dinheiro nunca dorme (2010), e o personagem que ficara preso 13 anos,

vira escritor e defensor do axioma: “a ganância é boa”. O filme, citado por alguns

como uma aula de economia e história, não deixa a desejar. Seja na cena do

socorro de bilhões de dólares feito pelo tesouro americano, tal como foi na vida real,

seja na cena de reunião com os negociantes chineses em que Jake, à frente de

todos, oferece um presente para a delegação chinesa alegando ser esse um

costume do povo chinês, seja na preocupação com a sustentabilidade através da

renovação de fontes de energia limpa.

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A indústria cinematográfica tem relação muito estreita com os personagens de

Wall Street. Assim como no filme, eles, os grandes executivos do cinema, buscam

investidores que possam financiar seus projetos e o cinema de Hollywood, desde os

primórdios, retratando a indústria da mídia, como no filme Cidadão Kane (1941) de

Orson Welles, também um drama, que, assim como em Wall Street: o dinheiro

nunca dorme (2010), o dinheiro compra tudo. O poder conferido pela posse do

dinheiro e a ganância cada vez mais atiçada leva o personagem Charles Foster

Kane, interpretado pelo próprio Orson Welles, de garoto pobre no interior a magnata

de um império dos meios de comunicação até a sua destruição.

Assim como em A felicidade não se compra, em Wall Street II, o dinheiro

continua preponderantemente masculino. Na reunião dos banqueiros, a cúpula do

poderio econômico, não tinha uma mulher sequer sentada à mesa de negociações.

Mas, mesmo assim, se analisarmos a participação da mulher no mundo fictício dos

negócios dos dois filmes analisados, veremos que muita coisa mudou de 1929 para

2008. Na reunião dos empresários chineses em Wall Street II: o dinheiro nunca

dorme, a mulher está frente a frente na tomada de decisões. A personagem Audrey

(Vanessa Ferlinto) desempenha como ninguém o papel da mulher executiva

moderna.

Enfim, Oliver Stone, em seus dois filmes, acompanha a história do homem no

mundo dos negócios. Em Wall Street: poder e cobiça mostra o individualismo, a

figura emergente do yuppie, frio, calculista e buscando um distanciamento e

isolamento da família. Já em Wall Street II: o dinheiro nunca dorme, o diretor traz

uma pitada de afetividade e mostra a importância do amor e da família para a

completude do ser humano; mesmo que o drama do relacionamento entre o pai

Gekko e a filha Winnie deixe um pouco a desejar. A filha que odeia o pai desde o

início de sua adolescência, mas que se rende facilmente aos argumentos desse pai.

Tendo em vista o curso das ações, a personagem Winnie parece incoerente com o

que vinha sendo mostrado. Faltou-lhe, além do discurso, aquela postura mais

proativa, decidida e política, postura tão presente nos verdadeiros ativistas.

Opostamente, no filme A felicidade não se compra (1946) de Frank Capra fica muito

mais clara a preocupação com os valores da moralidade, ética e a importância dada

à família como o sentido da vida, do que nos dois filmes, acima citados, de Oliver

Stone.

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47

4.3. Comentando o enredo e os elementos da narrativa

Wall Street – O dinheiro nunca dorme inicia com a cena do personagem

Gordon Gekko saindo da prisão após cumprir a pena de 13 anos por crime contra o

sistema financeiro: fraude de negócios e seguros. Na saída da prisão, ele recebe

do agente penitenciário um lenço de seda, um relógio, um anel, um prendedor de

notas de ouro (sem dinheiro) e um telefone celular, tipo “tijolão”, modelo usado no

ano 1987, época de sua prisão.

Figura 20: Cena mostrando aparelho celular dos anos 1987

Nessa cena, a câmera dá um close no aparelho, causando uma impressão de

distanciamento no tempo, pois faz referência, de certa forma, ao tempo que passou

e de que alguma coisa deve ter mudado – notoriamente, o formato dos telefones

celulares. Na sequencia, o espectador vê os outros objetos, também simbólicos: o

anel de ouro, símbolo de poder econômico e domínio; o prendedor de notas,

elemento fílmico que induz o espectador a pensar nos milhares de dólares que

passaram por aquele prendedor; e o bilhete de metrô, deixando claro que Gordon

Gekko e sua história continuam, mas agora com menos glamour. Como dirá mais

adiante o personagem Jake: “Eles podem se ferir, mas nunca morrem. Eles voltam

diferentes”.

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48

Na tela, em plano geral, lê-se a data: 22 de outubro de 2001. Na sequência,

ao receber o bilhete de ida para Nova York, Gekko ouve do agente penitenciário:

“Não volte”. Ele não voltará.

Sete anos depois, 2008: ano do estouro da bolha imobiliária ocasionando

mais uma crise econômica.

Logo ficamos sabendo que, no período em que Gekko estivera preso,

escrevera o livro A ganância é boa, em função do qual realiza palestras em

universidades sobre o mercado financeiro, que em 2008 se encontraria em colapso.

Figura 21: Personagem Gekko em Wall Street II: O dinheiro nunca dorme.

Do outro lado, em Wall Street, o jovem Jake Moore, um novato operador do

mercado de ações, está noivo da filha de Gordon Gekko, Winnie. Acontece que o

banco para o qual Jake trabalha entra em colapso financeiro por conta da bolha

imobiliária que deflagra uma crise terrível para todo o planeta, e, com isso, o dono

do banco, seu patrão Louis Zabel, suicida-se no metrô de Nova York, o que perturba

Jake profundamente, pois Zabel era uma espécie de mentor espiritual para ele.

Revoltado com a morte do patrão, Jake desconfia de que o principal culpado pode

ser o executivo Bretton James, seu colega de empresa.

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Sabendo que o sogro está palestrando na universidade, ele o procura e é

seduzido pelo sogro, que pede uma foto de sua filha Winnie, agora adulta, pois a

que ele carrega em sua carteira é de quando ela tinha 8 anos. Os dois firmam um

pacto de sociedade: Jake quer a “verdade” sobre o envolvimento de Bretton James

no caso Keller Zabel e Gekko quer uma foto atual da filha Winnie. Gekko, que dispõe

de todas as possíveis informações acerca do mercado, acaba contando para Jake

que o provável culpado pela morte Zabel pode ser Bretton, antigo conhecido de

Gordon, com sua atuação antiética e imoral por trás do banco Churchill Schwartz.

Jake, então, movido pela sede de vingança, acaba indo trabalhar com Bretton

(Josh Brolin) a fim de desmascará-lo, e consegue. Primeiro, Jake encanta o novo

chefe com seu profissionalismo e postura de homem de negócios, depois ele vai se

dando conta de todas as falcatruas de Bretton, até que, em data oportuna, ele

confronta Bretton James numa conversa “ao pé do ouvido” e, depois, o denuncia

para a polícia americana. E Bretton James vai preso. Mas, na trama, o pior está por

vir. Gekko engana Jake e a filha Winnie e usa-os para sacar um quantia exorbitante,

cem milhões de dólares, depositados em nome da filha, em um banco da Suíça.

Winnie, que já tinha avisado Jake de que o pai não havia mudado nada, termina o

relacionamento com Jake, mesmo estando grávida. Ele, desorientado, procura

Gekko e tenta chantageá-lo, afim de que o sogro não mexa no dinheiro depositado

na Suíça, exibindo a ultrassonografia do bebê que está para nascer. Mas isso não

comove o avô – pelo menos num primeiro momento. O esperto Gordon Gekko

consegue sacar o dinheiro e no filme, o espectador assiste que no período curto de

um mês, a “velha raposa” especula e transforma os cem milhões em um bilhão de

dólares. Nesse momento, Stone, o autor, faz piada.

Na cena seguinte, Gekko resolve visitar a filha Winnie e o genro. Exprimindo

no rosto uma feição de quem está redimido, pede desculpas. E as desculpas são

facilmente aceitas e na trama não se mostra mais nada. Na próxima cena, a cena

final do filme, todos reunidos na casa do casal Winnie e Jake comemoram, felizes, o

aniversário de um ano de vida do filhinho, o neto de Gekko. O que mostra que, aos

moldes de Hollywood, não existe segunda chance sem perdão. E, finalmente, o vovô

Gordon Gekko está redimido! “Feliz aniversário, Louie!”, lê-se numa faixa pendurada

no salão de festas. E, assim, ouve-se mais um estouro, só que agora não se trata do

estouro de uma bolha, mas da bexiga de aniversário da festa do Louie.

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Durante a narrativa dessa história familiar atravessada pela crise financeira de

2008, várias cenas de Wall Street II ilustram para o espectador diversos comentários

do narrador sobre a situação política e, sobretudo, econômica dos EUA. Em um

momento, o filme proporciona ao espectador a visão, em plano geral, dos lindos

prédios de Nova York, assistindo, em seguida, a uma animação gráfica contornando

desses mesmos prédios, fazendo uma referência clara aos gráficos do pico de

“altas” e “baixas” do índice Dow Jones da Bolsa de Valores, instrumento comum no

mercado financeiro de Wall Street.

A edição, contemporânea e criativa, é fruto de recursos de computação

gráfica e leva o espectador, de imediato, a pensar no poderio econômico da indústria

cinematográfica de Hollywood e a colocar-se de prontidão frente a mais uma

narrativa sobre o business world.

Figura 22: Cena mostrando prédios compondo índice Dow Jones

Já na cena em que o espectador conhece o casal Jake e Winnie, a câmera faz uma

panorâmica exibindo o apartamento do casal, painéis da Bolsa de Valores, objetos de

decoração e, em seguida, em plongée, mostra em primeiro plano o rosto angelical de Winnie

e em seguida Jake que jogado sobre a cama dorme como um menino. Nesse momento,

Oliver Stone deixa claro que a continuação para Wall Street: poder e cobiça (1987) que

naquela época promovia a individualidade típica do yuppies, é diferente, pois promove o

lado humano dos personagens, as relações afetivas e de certo modo tenta mostrar que os

touros de Wall Street também têm coração.

Mas, será que têm mesmo? Nessa mesma sequência, Winnie sobe as escadas e vai

até a cama acordar o amado, e dizendo “Pare de dormir”, ouve de Jake que seria melhor

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“Hora de acordar”, pois soa, segundo ele, mais “positivo”. Nessa abordagem, o espectador

vê o espírito idealista de Jake que no desenrolar do filme, apesar da vontade de fazer

fortuna, acredita nos investimentos em energia limpa e sustentável – possível atitude que o

une a Winnie. Ela, por sua vez, despreza o pai, tudo o que o cerca e ainda o responsabiliza

pela morte do irmão, vítima de uma overdose. Winnie é também uma idealista, trabalhando

em um site que divulga verdades inconvenientes.

Noutra sequência, a câmera em plano médio mostra Jake no escritório de

Louis Zabel, recebendo um cheque de US$ 1 milhão de dólares. O empregado ouve

do patrão que ele era um verdadeiro “caddy”, termo do mundo das finanças que

seria o equivalente a “braço direito” do investidor. Zabel, sentado em sua bonita

mesa com vistas para Wall Street, diz a Jake que se sente um dinossauro e que

seus parceiros devem estar rindo dele em seus túmulos e ainda complementa:

“Agora, são as máquinas que dizem o que devemos fazer.” Continuando o diálogo

Zabel complementa: “Você tem fome, Jake. Posso sentir o cheiro”.

Continuando, destaca-se a cena do suicídio de Louis Zabel. É uma das cenas

mais importantes, pois é em função da sua morte que Jake se aproxima do sogro

Gordon Gekko; e, todo o filme gira em torno da vingança de Jake contra Bretton

James (Josh Brolin), um dos responsáveis pela quebra do banco concorrente Keller

Zabel, que acaba sendo condenado por crime de “colarinho branco”. No filme, a

câmera dá um close no despertador que indica 5h30. Em seguida, dá um close no

rosto de Louis Zabel dando a impressão que não deve ter pregado os olhos a noite

inteira. Está com rosto pensativo e rugas de preocupação entre as sobrancelhas.

Dá-se um novo corte e aparecem, em plano geral, Zabel e a esposa tomando o

desjejum. Novo corte: Zabel, em plano médio, saindo do seu prédio. Mais um corte:

Zabel entra em uma banca de jornal e compra um exemplar do New York Post e um

pacote de batatas fritas da marca Lay’s. A câmera dá um close na prateleira

mostrando as batatas e, inclusive, o preço: U$ 0,75. Novo corte: Zabel descendo as

escadarias do metrô: 77 Street Station. Mais um corte. Zabel aparece juntos às

outras pessoas. A câmera dá um close e o mostra comendo as batatas. Ele mastiga

vagarosamente, dando a impressão que tudo é em câmera lenta, mas não é. Zabel

levanta, bate com as mãos no sobretudo, limpando-o do que caiu da batata e

atravessando por entre as pessoas, caminha até a linha do metrô e se joga na frente

do trem. Ouve-se gritos, tudo fica escuro e o banqueiro que andava de metrô fica

para a história.

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Figura 23: Cena mostrando personagem Zabel se suicidando.

Também merece destaque a cena do baile beneficente para arrecadar fundos

para uma campanha humanitária é uma das mais importantes e resume o tema dos

dois filmes de Oliver Stone: ganância, cobiça e poder. A câmera descreve um amplo

movimento pelo salão e em panorâmica, tendo o foco, principalmente, nas orelhas

das mulheres (velhas, jovens, belas e feias) sempre com joias, especialmente os

brincos de diamante. É possível acreditar que o espectador tenha em mente que se

vendesse toda aquela ostentação, ter-se-ia dinheiro para acabar com a fome do

mundo.

Nessa cena, vê-se algo parecido com o famoso baile da Ilha fiscal, no Brasil,

em que a aristocracia reunida em torno de D. Pedro II, comemorava e dançava

enquanto raiava a República. Tem-se também a sensação de impunidade. No baile,

circulam todos os poderosos de Wall Street como se nada tivesse acontecido. De

certa forma, eles podem tudo: mexem com nosso dinheiro, manipulam as

informações, obtêm lucros exorbitantes, falam da crise para justificar demissões em

massa, dominam a política e a economia do planeta e eles continuam impunes,

leves, soltos, sãos e salvos. “Eles” representam essa aura que paira sobre nossas

cabeças, representam o capitalismo.

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Figura 24: Cena mostrando socialites e suas joias

O filme Wall Street II: o dinheiro nunca dorme é um prato cheio para

reflexões, principalmente, para quem aprecia o dinheiro. Nele é possível que o

espectador questione: a ganância pode ser vista de forma positiva? Pensar isso é

importante, pois contraditoriamente, é a ganância que faz com que o homem saia da

sua zona de conforto e adentre na zona de desconforto em busca de melhoria em

seu padrão/qualidade de vida. O grande viés dessa questão ainda é que a ganância

tem uma relação diretamente proporcional com a falta de ética e moral e quando a

ganância se estabelece, o ser humano muda: irmão engana irmão, pai engana filha,

assim como o personagem Gordon Gekko engana a sua filha Winnie. Segundo

Maquiavel, em sua obra O Príncipe: “o homem esquece mais facilmente a morte do

pai do que a perda do patrimônio” (2007, cap. XVII, p. 24).

Em Wall Street: O dinheiro nunca dorme, o filme é contado por Jake que inicia

o filme falando das “bolhas” que assolaram a humanidade nas chamadas “crises

econômicas” e o papel dos homens no mundo dos negócios, que mais uma vez

ratifica a fala do personagem Jake: “Eles podem se ferir, mas nunca morrem. Eles

voltam diferentes”. É o que acontece com o personagem de Michael Douglas,

Gordon Gekko.

Percebe-se semelhança em As vinhas da ira (John Ford, 1939), na cena final

quando Pa Joad (Russel Simpson) e Ma Joad (Jane Darwell) conversam acerca do

quanto sofreram com a Crise de 1929 e a Ma Joad diz: “É isso que nos faz fortes.

Os ricos nascem, morrem, e seus filhos também não prestam e desaparecem. Mas,

nós (o “povo”) continuamos. Somos nós que vivemos. Eles não podem acabar

conosco. Não podem nos vencer. Nós viveremos para sempre, pai, porque nós

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somos o povo”. Na sequência, a câmera em plano médio foca os personagens

suspirando como se fosse um alento. Ainda na cena, mãe e filho conversam: “Eu

estarei nos cantos escuros. Estarei em todo lugar. Onde quer que olhe. Onde

houver uma luta para que os famintos possam comer, eu estarei lá. Onde

houver um policial surrando um sujeito, eu estarei lá. Estarei onde os homens

gritam quando estão enlouquecidos. Estarei onde as crianças riem quando

estão com fome e sabem que o jantar está pronto. E, quando as pessoas

estiverem comendo o que plantaram e vivendo nas casas que construíram, eu

também estarei lá.”

Figura 25: Personagens Ma Joad (Jane Darwell) e Tom Joad (Henry Fonda)

O protagonista Jake de Wall Street II: O dinheiro nunca dorme que trabalha

apostando em mercados financeiros na renomada Keller Zabel e o seu mentor

Gordon Gekko, seu sogro, tem um relacionamento ao mesmo tempo oposto e

semelhante: oposto, porque o próprio Jake sabe que o sogro é um homem sem

valores, antiético e calculista e Jake não é um tipo assim. Semelhante, porque a

paixão dos dois pelo mercado financeiro é muito parecida e, provavelmente, talvez

seja isso que tenha unido Winnie a Jake. Mas, será que é possível analisar a

atração que Jake sente por seu mentor Gekko? No filme, o personagem Gekko

conhece todos do mercado financeiro e seus problemas, falcatruas, punhaladas e

chantagens e o personagem Jake, pupilo de Zabel, quer ir a fundo e descobrir o que

realmente aconteceu. Aproxima-se do sogro em busca de “assessoria” e em troca

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promete tentar reaproximar Gekko de sua filha Winnie. Uma troca “aparentemente”

segura, ou seja, um grande negócio.

Ao longo da narrativa, dentre muitas informações que estouram como

“bolhas” e que levam o espectador a possíveis dúvidas quanto ao contexto

econômico/financeiro mostrado, percebe-se a agressividade velada de Wall Street,

assim como é na vida real: conta-se a história de um homem que busca sua

redenção, tentando voltar aos negócios e se aproximar de sua única filha, que o

odeia e o culpa pela morte do irmão, viciado em drogas. É claro que Gekko mudou,

mas não o suficiente e isso é o que se vê filme.

Utilizando do humor de forma inteligente, a obra também é recheada de

referências, como a participação de Bud Fox, personagem de Wall Street: Poder e

cobiça interpretado por Charlie Sheen, que acompanhado de duas lindas moças

com um sorriso irônico e maroto estampado no rosto, ao encontrar seu antigo

mentor Gordon Gekko no baile beneficente, o aconselha: “-Não se meta em

confusão, ok?” Parece mesmo que o pupilo Bud Fox (Sheen) tirou de alguma forma

proveito da experiência que teve com o seu antigo mestre Gekko. Aquele yuppie

ambicioso dos anos 1980, que convidava o velho amigo de faculdade para fazer

trapaças na Bolsa de valores burlando informações, não existe mais. O que se vê

agora é um executivo sério, um homem respeitável que tem dinheiro e aproveita a

vida, e que, no final das contas, parece ter aprendido a lição: o crime contra o

sistema financeiro, o chamado “crime do colarinho branco”, não compensa”.

Figura 26: Personagem Bud Fox (Charlie Sheen) e Gekko.

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4.4. Analisando o protagonista

Figura 27: Personagem Jake Moore (Shia LaBeouf).

Jake Moore, interpretado pelo ator Shia LaBeouf, é um operador idealista do

mercado de ações e noivo de Winnie Gordon (interpretada por Carey Mulligan), filha

de Gekko. O anel de noivado remete ao compromisso, a uma ligação e ideia de

continuação da história.

Jake, que trabalha para o banco Keller Zabel Investments, vê,

inesperadamente, o colapso financeiro porque passa o seu banco empregador, por

conta da crise imobiliária de 2008. Ouve pela TV, logo pela manhã, a notícia da

morte de seu patrão, Louis Zabel, que se suicida no metrô de Nova York. No

desenrolar da trama, Jake acaba indo trabalhar com Bretton (Josh Brolin) com a

finalidade de vingar a morte de seu mentor Zabel e Jake consegue.

Enfim, o protagonista Jake é bem diferente do protagonista George Bailey de

A felicidade não se compra (Frank Capra, 1946). Jake, um típico representante da

chamada geração Y, deixa transparecer um grande desencontro entre as suas

atitudes de protagonista versus os objetivos e comportamento dos espectadores da

mesma faixa etária. Jake, a todo momento, passa a ideia de que é um workaholic,

um desesperado pelo trabalho, característica pouco presente no universo da

geração Y que procura cada vez mais conforto, comodidade e uma vida tranquila.

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Também, contrariamente à geração yuppie de Bud Fox (Charlie Sheen) em

Wall Street: poder e cobiça, a geração Y a que Jake está inserido, deseja muito mais

qualidade de vida do que bônus financeiros a qualquer custo. No filme Wall Street II:

o dinheiro nunca dorme, de imediato, Jake recebe uma bonificação de U$ 1,5 milhão

das mãos de seu padrinho Zabel e, para surpresa do espectador, gasta parte desse

valor comprando ações da própria companhia. Um erro grave, à luz do mercado

financeiro moderno, para um operador de mercado de ações, pois se a empresa for

à falência, ele perde o emprego e o dinheiro investido. Como típico representante da

geração Y, todos jovens muito bem informados e antenados contra qualquer tipo de

risco, o que Jake devia fazer era abrir seu próprio negócio e, a partir daí, tirar o seu

próprio sustento. No entanto, é Winnie (Carey Mulligan) mesmo quem melhor

representa a geração Y. Dando um desconto para a sua fragilidade desmedida, a

moça é tranquila, zen e trabalha como ativista em um organismo não

governamental.

Enfim, Jake Moore, é um típico jovem de Wall Street que não vem de grandes

universidades, assim como o personagem Bud Fox (Charlie Sheen). Ainda existem

perfis assim em Wall Street que, ao contrário do que todos pensam sobre a maioria,

não é um físico ou matemático, PhD oriundo de universidades como Chicago, MIT e

Princeton ou um recém-formado em um MBA renomado de alguma escola do

planeta.

4.5. Analisando o mentor

Figura 28: Cena em que Gekko palestra para universitários

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Gekko, interpretado pelo ator Michael Douglas, em inglês significa “raposa”.

Ele é um corporate raider, termo muito usado nos anos 1980 para se referir àquele

especulador e oportunista que, por uma ação que alguém acredita que está cara, ele

acredita que vai subir mais ainda e, inescrupulosamente, faz uso de informações

privilegiadas (insider trading, no jargão em inglês).

Em Wall Street: Poder e cobiça (Oliver Stone, 1987), na cena em que o

personagem discursa na assembleia da empresa Papéis Teldar, ele diz a sua mais

famosa frase e que se tornou o nome de seu livro em Wall Street II: O dinheiro

nunca dorme: “Greed is good”, ou, em português, “A ganância é boa”. Essa

expressão tornou-se o símbolo da América corporativa chegou a ser foi repetida em

artigos de jornal e programa de televisão. Séries de TV americanas como The

Office, Chuck e White Collar já fizeram menção ao personagem.

Contudo, no enredo de Wall Street: Poder e cobiça, Gordon Gekko utiliza o

discurso como artifício para que não descubram quem realmente ele é. Percebe-se

isso, quando a câmera dá um close no rosto de Gordon Gekko, já quase no final de

seu discurso e o espectador tem a “impressão” de ouvir a expressão “bando de

idiotas”. Nesse filme, Gekko tem vários apartamentos e carros luxuosos, anda de

limusine e jato particular, é um colecionador de obras de arte e como o filme é

militante, o personagem utiliza frases de efeito. Quando é convidado para almoçar,

devolve: - “Almoço? Almoço é para os fracos”. Conversando com investidores, diz: –

“A ganância é boa!” Falando sobre o dinheiro, solta: –“Se alguma coisa merecer ser

realizada [nessa vida], é por dinheiro.” Sobre o seu status em meio à comunidade

Wall Street, revela: “São pessoas como eu que fazem as regras, as notícias, a

guerra, a paz, a fome, as revoltas, o preço de um clipe de papel”.

Durante o desenrolar da trama em Wall Street: Poder e cobiça (1987), Gordon

continua com suas pérolas: “A ganância é certa, dá certo”. “A ganância esclarece,

corta ao meio e captura a essência do espírito embrionário”. “A ganância tem

marcado a evolução ascendente da humanidade”. “Eu não sou um devastador de

empresas, sou um libertador”.

Já em Wall Street II, o personagem Gordon Gekko parece, a princípio, ter

recebido uma lição de humildade: vive em um apartamento alugado, faz uso do

metrô como meio de transporte, usa roupas simples. Isso até o momento em que

consegue enganar a filha e sacar os 100 milhões de dólares, fruto das trapaças,

falcatruas e, porque não dizer, da sua habilidade em alavancar dinheiro, que

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estavam depositados em um banco na Suíça. A partir daí, Gekko, a “velha raposa”,

se transforma. Vai a uma alfaiataria e encomenda costumes de primeira linha.

Aparece calçado com bons sapatos italianos e o circo continua.

Na cena em que Gordon Gekko palestra para estudantes de uma

universidade, referindo-se ao livro que escreveu enquanto esteve preso por crime

contra o sistema financeiro, diz: “Comprem o meu livro”. Sobre essa nuvem que

paira por nossas cabeças chamada de capitalismo, acerta: “O capitalismo é

sistêmico, global e maligno como um câncer”. Ainda sobre o dinheiro, diz: “Se eu

aprendi alguma coisa na prisão, foi que dinheiro não é a coisa mais importante na

vida... O tempo é!” Sobre seu “novo” status na comunidade Wall Street, afirma com

propriedade: “Perto desses tubarões de hoje, sou um amador”.

Mas, na parte afetiva a vida de Gordon é um verdadeiro desastre. Na cena do

jantar em que tenta reatar o relacionamento com sua filha Winnie (interpretada pela

atriz Carey Mulligan), ouve da mesma: “Você é um sociopata”. E as pérolas de

Gordon continuam no segundo filme. Ele diz a um rival: “Vamos combinar uma coisa.

Você pare de contar mentiras sobre mim e eu paro de contar verdades sobre você”.

Na cena do baile beneficente, ele afirma, ironicamente: “Se esse lugar fosse

bombardeado, não sobraria ninguém para comandar o mundo”. Na cena do

lançamento do livro, explica a uma senhora que o indaga acerca do que seria “risco

moral”: “É quando alguém pega seu dinheiro e não é responsável por ele”.

Enfim, o personagem Gekko representa um marco na história financeira do

mundo com a ascensão do dinheiro, sua desmaterialização e a consequente

virtualização. Antes de Gordon Gekko, nenhum diretor de Hollywood traduziu para o

espectador com tamanha ousadia e coragem o lado “sujo” da cultura do dinheiro,

dos traços de personalidade presentes em vários daqueles que comandam e

manipulam o capital financeiro do planeta. Gekko, além de frio, calculista, ambicioso

desmedido, péssimo pai de família e “sociopata”, como sua própria filha o classifica,

é asqueroso, arrogante, prepotente e, infelizmente, inteligente. O impacto do

personagem na sociedade contemporânea é tão grande que recentemente o ator

Michael Douglas foi contratado pelo Federal Bureau of Investigations (FBI), a polícia

federal americana, para “convencer” os profissionais de Wall Street a andar na

linha14.

14

Fonte: Gekko muda de lado. PRESSINOTT, F. Revista Isto é dinheiro, São Paulo, Finanças, ed.752, de 02/03/2012.

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A influência do mentor Gekko (Michael Douglas) sobre o “herói” Jake Moore

(Shia Labeouf) só é possível porque o jovem operador do mercado de ações é

fascinado por Gekko e como tem sede de vingança, isso o deixa atraído ao ponto de

fazê-lo procurar quando palestrava em uma universidade. O ensinamento maior que

Gekko deu para Jake é que “não se deve confiar em ninguém”, pois até mesmo um

pai, como no caso dele, pode “trapacear” com a filha quando o assunto envolve

dinheiro. Tudo muito diferente do mentor Clarence (Henry Travers) de A felicidade

não se compra (Frank Capra, 1946) que procura o “herói” George Bailey, homem

exemplar e tão “bem intencionado” com o dinheiro alheio, e o ajuda, ensinando-o

que aquele que age pelo bem, mesmo quando o assunto é dinheiro, merece e

recebe a proteção de Deus.

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Considerações finais

Da década de 1940 para cá, a definição do protagonismo e do antagonismo

representando, respectivamente, o herói e o vilão, o bem e o mal, torna-se mais

difícil, complexa, “cinzenta”. Além disso, antes era o banqueiro a figura central;

agora é a dupla especulador/banqueiro. A estrutura, a forma do filme, acompanha

essa mudança também. O próprio estilo clássico modifica para se manter o mesmo.

Será que com o capitalismo também não é assim? Mas, a minha análise recai mais

sobre o enredo e a caracterização dos personagens, com algumas

observações/reflexões interpretativas sobre objetos de cena.

Nos filmes A felicidade não se compra e Wall Street II: o dinheiro nunca

dorme observa-se dois momentos distintos da história do capitalismo que a partir

dos anos 1960/70 vai se intensificando até os dias atuais, o que JAMESON (1997)

chama de “lógica do capitalismo tardio”.

As crises econômicas, vividas pelas classes média e alta dos dois filmes

analisados: A felicidade não se compra e Wall Street II: o dinheiro nunca dorme, nos

remetem ao desespero e sofrimento vivido pelos personagens dos filmes que ao

longo da narrativa vão apresentando os elementos simbólicos e representativos da

cultura do dinheiro de cada época distinta.

Em A felicidade não se compra, no cenário que compunha o escritório do

banqueiro, Sr. Potter (Lionel Barrymore), além de belos quadros, da cadeira de

“presidente” e da escravinha toda entalhada em madeira, semelhante ao mobiliário

português, do século XVII, sobre essa escrivaninha, uma caveirinha de metal usada

como peso de papel. Esse elemento como uma mensagem ao espectador de que o

“mal”, representado pela caveira, estava mais do que presente naquele ambiente e

na vida do capitalista.

Em Wall Street II: o dinheiro nunca dorme, o cenário do loft alugado pelo

especulador Gekko exibe toda a sua decoração fria, em meio a isso, lá está o

quadro da “Tulipomania” (a Crise das tulipas nos países baixos, no século XVII: a

primeira bolha especulativa conhecida), no momento em que, nos EUA, o preço de

um apartamento ficou mais barato do que acreditavam que valia, fazendo uma

alusão à época em que um apartamento chegou a valer menos que uma tulipa. Esse

elemento leva o espectador a crer que esses astutos especuladores do mercado

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financeiro, ao contrário da maioria das outras pessoas que aplicam, estão muito bem

preparados, sabem a história do dinheiro e, por isso e oportunamente, aproveitam as

lacunas deixadas pela desregulação do mercado financeiro. Homens iguais ao

Gekko, implacáveis, pouco preocupados com a moralidade e o lado ético dos

negócios, construíram sem fazer força e sem perguntar por que o que se chama de

“capitalismo que mata”.

Tanto em A felicidade não se compra, quanto em Wall Street II: o dinheiro

nunca dorme, vê-se um “esforço” chamando a atenção para a necessidade de

aprender a lidar com o dinheiro e a importância de ficar protegido contra aqueles que

especulam gananciosamente o seu dinheiro. Por intermédio deles, assim como no

mundo real, a sociedade ainda não é tão esclarecida com relação às questões do

universo do dinheiro e suas peripécias. Tanto é fato que se a sociedade americana

fosse mais preparada e menos consumista, tanto a crise de 1929, quanto a crise de

2008 não teriam efeitos tão abrasadores.

Ao longo da análise dos filmes, confirma-se que o aventureiro capitalista com

suas ações de caráter especulativo e irracional, totalmente a parte dos bons

costumes e da moralidade, sempre existiu e existirá. A irracionalidade, ligada à

ausência da moralidade, faz com que essas “raposas”, tão semelhantes ao

personagem Gekko, de Oliver Stone, se sintam fascinadas com a profundidade de

suas artimanhas e com as bolhas que podem explodir a qualquer momento, mas,

claro, depois de protegidos e salvos os seus investimentos, e longe, é claro, dos

olhos da maioria dos cidadãos que andam prá lá e pra cá sem ter uma noção

mínima do que acontece.

Economicamente, analisando tópicos relacionados ao comportamento dos

personagens com relação à crise, é possível afirmar que em A felicidade não se

compra, a um menor alerta de crise, todos correm para os bancos e sacam cada

centavo na tentativa de diminuir o rombo; e isso, fenômeno conhecido no mercado

como o “estouro da manada”, um erro crucial para a economia, leva os bancos muito

mais rápido à falência.

Com relação ao perfil de investidor frente à volatilidade das ações, em Wall

Street II: o dinheiro nunca dorme o preço de uma ação começa em U$ 17 pela

manhã, e no final do dia cai para U$ 2. Também isso leva a um questionamento:

todos estariam aptos a aplicar na Bolsa? A volatilidade do dinheiro, representado

pela alta e baixa das ações, faz com que se exija um nível de conhecimento para

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que alguém aplique em Bolsas de Valores e, como acontece, pessoas continuam

investindo sem ter a menor ideia do risco, tal como a ex-enfermeira e mãe de Jake,

personagem “relâmpago” interpretada pela atriz Susan Sarandon, que no filme

abandona o posto de enfermeira em um hospital, até então motivo de orgulho do

filho, e se transforma da noite para o dia em uma “inexperiente” especuladora do

mercado imobiliário, conforme se vê no filme.

A indústria de Hollywood podia fazer mais filmes “inspiracionais” como A

felicidade não se compra que encara a crise de 1929 e seus reflexos como uma

oportunidade de crescimento através do aprendizado sobre a importância dos

valores humanos em qualquer situação que seja. Mais filmes como Wall Street II: o

dinheiro nunca dorme, no qual o diretor Oliver Stone chama a atenção do

espectador para a divisão do planeta em dois grupos: os que têm e que não têm

dinheiro e que ainda – infelizmente, quem tem dinheiro continua não sendo punido,

assim como Gekko e os responsáveis pela Crise de 2008, cujos efeitos ainda podem

ser percebidos ao redor do mundo.

O cinema pode ser um ótimo veículo para ensinar as pessoas a lidar com o

dinheiro, pois, se pensarmos bem, estamos perto de uma “nova” guerra, só que

agora uma guerra que dispara, em vez mísseis, como na II Grande Guerra,

proibições e boicotes econômicos, como na Guerra Fria, essa nova guerra dispara

“conglomerados econômicos” concorrentes, ávidos por capital, numa inusitada

batalha por domínio econômico.

A ética nos negócios é proclamada em todo momento, dentro e fora desse

campo de atuação, da mesma forma como é ministrada e proferida pelos defensores

do assunto nas disciplinas lecionadas nos cursos de gestão de negócios. Tanto no

mundo dos negócios, quanto nos filmes analisados, vê-se uma preocupação com o

sistema financeiro, os dogmas do mercado e com a importância da ética e da

moralidade na economia como um todo. Mas, infelizmente, vê-se, também, uma

inércia, um não fazer. Tanto é que Oliver Stone em Wall Street II: o dinheiro nunca

dorme poderia ter abordado o universo de quem “pagou o pato” efetivamente com a

crise de 2008, e isso ele não fez.

Também, mesmo que com um olhar à distância e superficial, pois merecia

mais estudos, gostaria de citar a indústria cinematográfica que representa um

segmento de mercado bem expressivo, dentre os muitos investidores que têm

dinheiro. A crise de 1929, período de penúria na vida da sociedade americana,

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controversamente é contemporânea de outro importante advento: o surgimento do

cinema falado, que exigia alta tecnologia, diretores e atores de expressão. Esse fato,

analisado à luz da economia, pode mais uma vez confirmar que “em época de crise

de dinheiro, sempre tem alguém ganhando dinheiro” e perdendo. Afinal, essa não é

a lógica do sistema?

Outro ponto, não menos interessante, foi perceber, através da análise de A

felicidade não se compra e Wall Street II: o dinheiro nunca dorme que o “dinheiro” na

época da Crise de 1929 era materializado, conforme a própria fala do personagem

Bailey: quando diz “o dinheiro não está aqui, está na casa dos Kennedy, da sra.

Maitland e cem outras” e, ao longo do século XX, mais especificamente na década

de 1980, passou para o universo total da desmaterialização. Em Wall Street II: o

dinheiro nunca dorme, vê-se o dinheiro desmaterializado, virtualizado e totalmente à

deriva do que em economia se chama lastro; aqui falo de uma situação, em que nem

investidores e nem mesmo profissionais de mercado sabem precisar a materialidade

ou o lastro do dinheiro que circula no planeta e, principalmente, em tempos de

“bolhas econômicas”. Por isso, é comum ouvir: - “O chão está cedendo sob nossos

pés”.

Enquanto em A felicidade não se compra a crise está restrita ao capital

econômico e o antídoto é a ética, protestante ou não, em Wall Street II: o dinheiro

nunca dorme a grande temática é a crise moral, pois, se pai (Gekko) rouba a filha

(Winnie), imagina o que os banqueiros fazem com a fortuna de “terceiros”. Não

menos importante, é o distanciamento temporal existente entre os dois filmes.

Enquanto A felicidade não se compra foi produzido em 1946, período inicial do ciclo

de expansão da economia americana após a crise de 1929, quando o ânimo e

otimismo voltam a imperar na vida da sociedade americana, Wall Street II foi

produzido em 2010, no “olho do furacão”.

Também, em A felicidade não se compra, se levarmos em conta que a crise

se deu pela “singela” ou “simbólica” quantia de U$ 8 mil dólares contra os U$ 700

bilhões de dólares pleiteados pelos banqueiros de Wall Street II: o dinheiro nunca

dorme, pode-se chegar a reflexões do tipo: - tanto na vida real, quanto no mundo da

representação econômica dos dois filmes analisados, houve, efetivamente, o

fenômeno econômico da expansão do capital financeiro.

Por fim, para fazer jus à porção de justiça, que segundo Amartya Sen todo

homem espera, tanto em A felicidade não se compra, de Frank Capra,

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representando a Crise de 1929, quanto em Wall Street II: o dinheiro nunca dorme de

Oliver Stone, representando a Crise de 2008, cheguei à conclusão que o cinema não

educa, mas se levado para o universo didático, tem-se, excepcionalmente, excelente

material para “aulas” de história e economia. As diferenças são positivas até para

esse tipo de utilização dos filmes. Enquanto Frank Capra, nacionalista, acreditava no

sistema, Oliver Stone, por sua vez, panfletário, foi um crítico voraz do sistema. O

filme de Capra, ao contrário da obra de Stone, um filme “direcionado”, um filme que

apresenta uma estratégia política e econômica por parte do diretor e do governo

americano daquela época. Mas, aprendi que isso é cinema. Isso é Hollywood!

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