a federaÇÃo brasileira: reconstrução permanente · quando, trabalhando sobre a trajetória...
TRANSCRIPT
A FEDERAÇÃO BRASILEIRA: reconstrução permanente
Maria Aparecida Grendene de Souza
RESUMO
O presente trabalho insere-se na discussão sobre a possibilidade da construção de uma
federação cooperativa no País. Para tanto, enfoca a questão do pacto federativo brasileiro a partir
de sua origem e referido a duas hipóteses básicas. De um lado, a sua funcionalidade – no sentido
de que encontrou, tanto nos períodos políticos de centralização quanto nos de descentralização,
soluções para a preservação da unidade nacional. De outro, de seus reduzidos efeitos
relativamente à redução das desigualdades regionais, considerada como condição essencial para
uma Federação mais equilibrada. A dimensão republicana, por sua vez, é apontada como base
para reformas consistentes - do estado, política e tributária –, reconhecidas na literatura como
necessárias para a construção de uma ‘federação cooperativa’.
Palavras-chave: Brasil, federação, pacto federativo, funcionalidade, desigualdades regionais.
ABSTRACT
This paper concerns the discussion of the feasibility of a cooperative federation in the
country. Therefore it approaches the issue of the Brazilian federative pact since its origin and
deals with two basic hypotheses. On the one hand, its functionality – in the sense that if found,
both in times of political centralization and in times of decentralization, solutions to preserve the
nation’s unity. On the other hand, its small effects in relation to the reduction of the regional
inequalities, a situation considered to be essential in terms of a more balanced federation. The
republican magnitude, for its part, is said to be the foundation for consistent state, political and
tax reforms which are known to be essential in order to build a cooperative federation.
Key-words: Brazil, federation, federative pact, functionality, regional inequalities.
Professora Assistente na FCE/UFRGS
2
1 APRESENTAÇÃO
Este trabalho se insere no âmbito da atual discussão sobre o pacto federativo brasileiro e,
especificamente, na pesquisa que estamos desenvolvendo sobre o tema, no período 1930-19881.
Nele reunimos aspectos gerais sobre a questão, de acordo com a bibliografia consultada, e
introduzimos duas hipóteses como focos de organização do material. São elas: a funcionalidade
do pacto federativo brasileiro, traduzida na manutenção da ordem federativa e da unidade
nacional ao longo do período; e a redução das desigualdades econômicas regionais como
fundamento de uma dimensão republicana na federação brasileira.
O trabalho está dividido em cinco partes. A primeira apresenta um diagnóstico do que
seriam os principais problemas da federação brasileira, concentra-se na hipótese da
‘funcionalidade’ do pacto federativo e aborda suas origens. Neste contexto aparecem os
conceitos de ‘centralização e ‘descentralização’, referidos sempre ao poder político, mais do que
à questão fiscal. Em seguida, tendo como referência o que seria a natureza essencial de uma
organização federativa, é considerada a situação do Brasil a partir da Constituição de 1998 e
introduzida a forma de ‘federação cooperativa’ como a qualidade essencial de um pacto
federativo legítimo, mais do que apenas funcional. A terceira parte faz uma abordagem suscinta
da evolução histórica do federalismo brasileiro no período da pesquisa. A quarta enfoca
especificamente a segunda hipótese, ou seja, a questão das desigualdades regionais, cuja
redução, estando na base da construção da cidadania nacional, seria um desafio à construção de
uma ‘federação cooperativa’. Finalmente, a última parte apresenta as conclusões do trabalho.
2 DIAGNÓSTICO E FUNCIONALIDADE DO PACTO FEDERATIVO BRASILEIRO
A inexistência de um pacto federativo definido em função das necessidades de hoje e o
desafio de acordá-lo sobre uma estrutura fiscal cujas bases objetivem a redução das
desigualdades regionais são apontados como as principais questões da federação brasileira na
atualidade (AGUIRRE, 1999). Enfrentá-las seria condição para um desenvolvimento interno maior
1 “Federalismo: Ideologia, Arranjos Institucionais e Política Econômica-1930/1988”.
3
e mais equilibrado2, de um lado, e, de outro, para que a inserção de regiões/estados num mundo
globalizado não configure uma ameaça à unidade nacional – muitas das abordagens atuais sobre
a questão destacam a possibilidade da relação direta entre os estados brasileiros e qualquer parte
do mundo como uma nova fonte de instabilidade para o pacto federativo. De fato, paralelamente
ao movimento de globalização dos últimos anos, observa-se a ressurgência de regionalismos em
diferentes países.
Como a república brasileira se definiu como federativa já em seu surgimento, e essa
dimensão não foi alterada nas sucessivas Constituições republicanas, é aceitável a hipótese de
que o pacto federativo se manteve atualizado relativamente a diferentes contextos, através de
arranjos políticos e de políticas econômicas próprias, ou seja, adequadas às reais possibilidades
de avanço, em cada período. Afinal, a unidade nacional foi preservada e, mesmo hoje, quando o
tema é recolocado, muitas vezes de forma apaixonada, não há ‘separatismos’ agudos nos
Estados. O que há, de nosso ponto de vista, é uma consciência maior da importância de uma
federação mais coesa3, de um lado e, de outro, da responsabilidade dos agentes políticos
regionais nas mazelas de federação.
Partimos do suposto de que uma federação mais equilibrada seria condição para a
efetividade da res publica (ABRUCIO,1998). Adicionalmente, que tal equilíbrio, traduzido numa
maior consciência política, em termos de defesa concreta dos interesses locais e de sua coerência
com o sentido nacional da Federação - avaliada geralmente em função das destinações de
recursos da União e da ordem fiscal vigente, numa simplificação inadequada -, só pode ter como
raiz a maior ‘igualdade’ econômica das regiões, concretamente avaliada como acesso de suas
populações à educação, saúde e renda mínima, supostos de cidadania, ou seja, de uma ordem
efetivamente republicana.
2 “Você não pode ter uma federação que se agüenta nas pernas se você tem uma concentração do poder econômico em alguns Estados, como em São Paulo.” (OLIVEIRA, 1999a). “É dever da Federação uma eqüitativa distribuição da riqueza produzida por sua própria “economia política” (OLIVEIRA, 1999b). 3 A comprovada inexistência de partidos políticos nacionais, no sentido próprio, que se evidenciou com o fracasso da tentativa recente de verticalização nas eleições, poderia ser interpretada como um manifesto da força dos interesses locais/regionais na orientação da política nacional ou da debilidade da coesão política da Federação. A questão é recorrente em nossa história. Aspásia Camargo (2001) destaca que “O ponto fraco da Constituição de 1934 foi o de não ter conseguido implantar um sistema partidário nacional”, o que teria facilitado o caminho de um Governo Constitucional para a ditadura do Estado Novo.
4
Como idéia diretriz de nossa abordagem, adotamos o ponto de vista de Caldeira (1999)
quando, trabalhando sobre a trajetória monetária do Brasil na época colonial, propõe “buscar
associar as soluções econômicas adotadas aos padrões de pensamento da época em que foram
feitas as opções”. Nesse sentido, pensamos ser necessário buscar explicações em fatores internos,
na investigação do caminho do pacto federativo no Brasil. Assim, localizamos na inter-relação
dos atores regionais/estaduais e federal/executivo o pacto federativo estabelecido em cada uma
das fases republicanas: na República Velha, no pós-1930, no Estado Novo, no período
democrático de 1945 a 1964, na ditadura militar e na redemocratização do início dos 80 até a
Constituição de 1988. O que pretendemos é dimensionar o tema da sobredeterminação quase
absoluta do Estado nacional à qual se encontrariam submetidos os Estados regionais, nos
períodos de centralização, e verificar quais as alterações efetivadas naqueles de descentralização,
numa perspectiva da interação entre os agentes, ou da interdependência dos pólos
nacional/regional. Uma grande questão precisa ser enfrentada: como se posicionaram as elites
políticas regionais frente à questão federativa, ao longo da República? Respondê-la significa
identificar em que grau existe convergência consciente entre os interesses locais e nacionais. De
fato, trata-se de incorporar na análise a definição de ideologia política do federalismo de Burgess
(apud SOUZA, 1998), o que permitiria compreender o funcionamento dos sistemas políticos
federais, que ultrapassa aspectos meramente formais e legais. Nesse sentido, Souza (1998)
afirma que “a razão de ser do federalismo brasileiro sempre foi, e continua sendo, uma forma de
acomodação das demandas das elites com objetivos conflitantes, bem como um meio para
amortecer as enormes disparidades regionais”. Também nessa direção, a observação de
Kugelmas (2000) sobre o que definimos como pactos silentes, no sentido de que os arranjos em
situações de crise do pacto federativo são feitos sem uma explicitação maior dos elementos de
barganha, em fun da “indefinição ainda presente do padrão de relações intergovernamentais” e
“da imprecisão dos dispositivos sobre competências concorrentes”. Camargo (2001) afirma que
as “zonas de sombra e os focos de dissenso em torno de acordos tácitos que fortalecem a
integração federativa são, em geral, habilmente encobertos pela estratégia do silêncio”, como é o
caso das distorções existentes na representação estadual na Câmara Federal dos Deputados.
Nessa linha, podemos considerar que o pacto federativo brasileiro é essencialmente conservador,
5
ou seja, preserva a unidade nacional – uma virtude, de nosso ponto de vista – mas sem enfrentar
concretamente a questão das desigualdades regionais.
É recorrente na literatura, ao enfocar a constituição da federação brasileira, contrapor a
herança centralista, consolidada no Segundo Império, e que se reflete na importância de um
executivo forte - “o brasileiro confia mais no executivo”, afirma Tôrres (1958) -, às tendências à
descentralização, presentes desde a colonização portuguesa e o início de nossa formação
econômica e política. Jorge Caldeira afirma que, na época colonial, “o desenvolvimento
brasileiro aconteceu exatamente porque a política retardadora deixava brechas, no mundo
‘natural’ da economia interior”. A economia interior, de fato, organizava-se independentemente
da Coroa que, dada a impossibilidade portuguesa de destinar recursos compatíveis com a
vastidão do território da Colônia, controlava os pontos-chave da economia da época, apenas.
Caio Prado Júnior (1970) destaca o relativo liberalismo da política portuguesa na Colônia até as
primeiras descobertas das jazidas auríferas, o que reforça, em nosso ponto de vista, a tese da
organização de interesses e atividades paralelos à regra metropolitana. A origem das províncias
imperiais está na existência de ‘centros’ secundários no território brasileiro, que resultariam num
reforço das identidades regionais.
Relativamente às tensões entre tendências centralizadoras e tendências
descentralizadoras que estão na origem da Federação brasileira, vale lembrar com Ruy Barbosa
que, politicamente, tivemos unidade antes de ter autonomias regionais. Ao mesmo tempo,
distintas realidades regionais, cultural, étnica e economicamente configuradas, exigiam
expressão e poder e acabaram coadjuvando a opção republicana e federativa.
Oliveira Vianna, na sua obra clássica O Ocaso do Império (1959), observa que o grande
movimento em favor da descentralização e da federação, acentuado após a destituição do
gabinete Zacarias, em 1858, esteve associado com a derrubada do Império, indissoluvelmente
ligado à idéia de centralização: “Urgia libertar o mais rapidamente possível os centros locais e
provinciais de vida política da pressão intolerável do poder da Coroa”.
Daí federação e república e não “Federação com ou sem a Coroa”, como advogava Ruy
Barbosa. O mesmo Vianna, em outra passagem, aponta a influência externa na reação contra o
unitarismo do Império, na época: “Como todos os movimentos políticos no Brasil, este
6
movimento em favor das franquezas provinciais teve, antes de tudo, uma origem exógena; foi
também, como ideal da eleição direta, um reflexo das aspirações dominantes no meio
internacional daquela época”. Complementa apontando o exemplo da vizinha Confederação
Argentina e, com influência mais decisiva, da Confederação Norte-Americana.
É interessante ressaltar que, se os Estados Unidos foram modelo em matéria do arranjo
federativo para o Brasil, a base material de tal arranjo era bastante distinta, uma vez que naquele
país houve uma associação de estados independentes, que se reuniram numa Confederação,
cedendo parte de sua soberania, com a finalidade de defesa frente à possível ameaça externa,
enquanto em nosso país a autonomia relativa dos estados, ou ganho de instâncias de soberania,
seria definida com a instituição da federação4. Os graus de liberdade das províncias do Império
correspondiam a uma dimensão de descentralização administrativa, mas não rompiam o
unitarismo do Estado, no sentido da concentração do poder político no Executivo. De qualquer
forma, como lembra Tôrres, “havia, além da estrutura unitária do Império, um elemento
sociológico de caráter plural, que se revelava em muitos movimentos e aspirações que se diziam
‘federais’, e cuja raiz última, perfeitamente visível, era o reconhecimento de que havia uma
vocação própria nas províncias com nítidas aspirações ao ar e à luz”. Assim, “não surgiu o
Estado Brasileiro da associação de províncias anteriormente autônomas, nem adotou semelhantes
formas em face de uma dissociação da soberania nacional; as províncias surgiram dentro do
corpo nacional, aí estão e aí ficarão”5.
O Decreto N° 1 da República, de 15 de Novembro de 1889, em seus três primeiros
artigos, proclama e decreta como forma de governo da nação brasileira a República Federativa,
diz que as antigas províncias do Império, reunidas pelo laço da federação, passam a constituir os
Estados Unidos do Brasil, e que cada um desses Estados, no exercício de sua legítima soberania,
apresentará a sua Constituição, elegendo os seus corpos deliberantes e os seus governos locais.
4 Sobre o que chama de União brasileira, Amaro Cavalcanti (1983) afirma: “Ela é, antes de tudo, uma verdadeira Federação ou Estado-federal, e não, uma Confederação de Estados”. 5 Evandro Cabral de Mello, no artigo A sinistra federação (2002), mostra que as raízes do federalismo brasileiro já estão claras quando da Constituinte de 1823. Em A pedra no sapato (2004) destaca as circunstâncias que culminaram com a Monarquia e a unidade nacional, quando da Independência, contrastando o consistente debate autonomista presente no país e concentrado na Bahia e em Pernambuco.
7
3 O QUE DEFINE FEDERAÇÃO
A questão da soberania está no cerne da Federação (KUGELMAS, 2000). Soberania dual ou
soberania compartilhada, ou ainda, na expressão concisa de Elazar (apud KUGELMAS, 2000),
self-rule plus shared rule, define a natureza política do sistema federativo. Por isso, exatamente,
a definição das competências e atribuições de cada esfera federativa é elemento essencial ao bom
funcionamento do sistema.
No caso brasileiro, a partir da Constituição de 1988, temos soberania tripartida entre
União, Estados e Municípios, com definição de competências específicas em termos legislativos
e fiscais. É o que Miguel Reale chamou de “federalismo trino”.
A conciliação entre as áreas de competência específica e comum exige permanente
negociação entre as esferas de poder, de que são exemplos as vinculações relativas a algumas das
transferências de recursos, como no caso de parcelas do Fundo de Participação dos Estados
(FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), a exigência de cobrança de seus
impostos próprios, no caso dos Municípios, definida pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei
Complementar n° 101/00), o FUNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério (Lei n° 9424/96), e o equacionamento das dívidas
dos Estados, acordado entre Estados e União em 19966, mas que permanece como um foco de
tensões, conforme se pôde observar, em 2002, nas plataformas eleitorais dos candidatos aos
governos estaduais de oposição ao governo central. Registre-se que a questão da dívida dos
estados atravessa todo o período republicano. Uma das linhas centrais da atuação do governo
provisório, após a revolução de 1930, foi a de enfrentar essa mesma questão. Assim, ao final de
1931, é instituída a Comissão de Estudos Financeiros dos Estados e Municípios. Oswaldo
Aranha, em entrevista dada no início de 1932, afirmaria que “para o equilíbrio orçamentário dos
Estados ficou determinado por lei federal que a despesa dos Estados não pode ser superior à
6 Os termos do acordo estabelecem, na troca da dívida mobiliária por uma dívida de longo prazo com a União, juros preferenciais de 6% a 7,5% ao ano e o pagamento de parcelas entre 11% a 13% da receita líquida dos Estados (KUGELMAS, 2000).
8
receita. Os Estados não podem contrair empréstimos sem autorização do governo federal” (CP,
06/02/32).
De fato, o grande desafio, segundo parte da literatura sobre a questão, é a superação do
atual “federalismo predatório”, de que são características a disputa pelos recursos a serem
destinados a cada instância federativa e a guerra fiscal7 entre os Estados. Em seu lugar, a
construção de um “federalismo cooperativo” buscaria garantir um jogo ganha-ganha, no sentido
horizontal, entre os estados, e no vertical, entre a União e as outras instâncias da federação.
Construir o entendimento nessa direção, em todo o caso, exige que se abandone, em
primeiro lugar, a visão de que a União é a única responsável pelos descaminhos da Federação
Brasileira, ignorando que, principalmente nos períodos democráticos, os atores regionais são co-
responsáveis pelas decisões tomadas. Ainda, dado que temos caracteristicamente uma ‘federação
desigual’, a dimensão redistributiva coloca-se como essencial e, apesar de contemplada na
Constituição de 1988, é ainda hoje incipiente no Brasil, enquanto prática republicana consciente,
baseada no reconhecimento de que é um elemento essencial para o jogo ganha-ganha. A
federação alemã e a União Européia têm essa dimensão como um princípio, identificando nas
desigualdades um elemento potencialmente desorganizador do pacto federativo. A primeira
evidenciou tal posição quando da recente reunificação alemã, com fortes subsídios à região
oriental, para reduzir os desníveis de padrão de vida então existentes. A União Européia realizou
significativos aportes de recursos a Portugal e Grécia, para que se capacitassem a uma integração
competitiva no mercado europeu. “A União Européia, que é uma federação em construção,
aplica em suas regiões mais pobres ou periféricas recursos significativos, aliados ao
planejamento regional, para fortalecer a unidade política” (CAMARGO, 2001).
No caso brasileiro, encontramos no FUNDEF um bom exemplo de rearranjo cooperativo,
ainda que localizado. Sem entrar nas questões específicas relativas à educação e aos recursos
vinculados8, o aspecto essencial que pode ser relacionado com o equilíbrio e a dimensão
republicana da Federação é a destinação que todos os Estados tiveram de fazer de um mesmo
7 Os Estados, para atrair novos investimentos, adotam mecanismos de renúncia fiscal tributária. Os casos das montadoras da GM, no Rio Grande do Sul, e da Ford, na Bahia, ilustram bem esse caso. 8 Questões como o piso mínimo definido pela União, a relação entre valores alocados e educação de qualidade, a abrangência do FUNDEF e a composição dos recursos que o constituem.
9
valor mínimo/aluno/ano ao ensino público fundamental, eliminando, dentro de cada Estado,
vantagens a alunos em municípios de maior arrecadação relativamente aos daqueles menos
arrecadadores.
4 A FEDERAÇÃO BRASILEIRA
Foi um legado do Império a manutenção da unidade territorial, a constituição de um
sentimento de nacionalidade e a criação de um consenso entre as elites brasileiras sobre a
necessidade de uma autoridade central definida (MERQUIOR, apud Abrucio,1998). Com a
queda do Império tomam relevo as reivindicações federativas, traduzindo a tensão entre as
tendências de centralização e as de descentralização (aqui como dicotomia
unidade/parcelamento) que se verificavam no País. A federação surge como resposta para
acomodar tais tendências. Aspásia Camargo (2001) destaca que “atributo relevante do
federalismo é a flexibilidade, isto é, a capacidade de ajustar-se às circunstâncias de forma mais
ou menos descentralizada e de resolver tensões regionais dentro de um mesmo marco legal e
político”. Esse tipo de organização do Estado teria, portanto, uma dimensão pragmática essencial
em nações que possuem realidades e interesses regionais definidos e virtualmente conflitantes.
Como vimos, no Brasil, a Constituição de 1891, em seu Artigo 1°, consagra como forma
de governo a República Federativa. A relação dos estados com a União e seus graus de
autonomia ao longo da República resultaram em diferentes feições do pacto federativo,
basicamente relacionados com a característica democrática ou autoritária de cada um dos
períodos que atravessou.
Na República Velha, dominada pelas oligarquias regionais e sob os ventos das tendências
de descentralização, reativas à unidade imperial, foi grande a autonomia dos estados9, traduzida
na definição da apropriação de impostos pelos estados e a União, e resultando numa nítida
hierarquização dos estados da federação, com a supremacia dos estados exportadores, detentores
9 “A Constituição de 1891, por influência americana, introduziu no Brasil a total liberdade de legislação estadual, desconstruindo a uniformidade conseguida no Império. Cada estado tinha suas próprias regras eleitorais e seus códigos específicos, inclusive a liberdade de contrair empréstimos internacionais, além do controle total sobre a polícia e a justiça, sob o comando dos governadores e dos coronéis”. (CAMARGO, 2001).
10
do imposto sobre aquela atividade, na época, com o café, centro dinâmico da atividade
econômica do país. Abrucio (1998) destaca que a federação brasileira nasce com duas
características básicas: a hierarquia de importância dos estados dentro da Federação, que
consagra o predomínio de São Paulo e de Minas Gerais no plano nacional, e a garantia de que as
elites locais comandarão autonomamente o processo político interno.
De fato, o sistema político da Primeira República teve como foco os estados, sob a
hegemonia dos economicamente mais fortes, “liberal em sua forma, oligárquico quanto ao
funcionamento efetivo”.10 A prerrogativa de contrair empréstimos no exterior sem autorização
federal, estabelecida pela primeira Constituição republicana, levou os estados a um
endividamento progressivo11. Ainda em função das novas prerrogativas econômicas, passam a
ser cobrados impostos interestaduais, interpretando-se por analogia, para o comércio entre
estados, o direito de tributar exportações. A autonomia dos estados, em todo o caso, tinha
limites, já que o Governo Federal concentrava em suas mãos atribuições exclusivas, como a
representação do país em assuntos internacionais. “O crédito favorável que a União detinha no
exterior, levando-a a uma capacidade de tomar empréstimos externos muito maior que a do
conjunto dos estados, e possibilitando-lhe avalizar empréstimos de grandes proporções tomados
pelos governos estaduais em determinadas circunstâncias”12, é um indicador do poder da União,
malgrado a grande autonomia dos estados.
Sob o ângulo político, o chamado ‘federalismo oligárquico’13, se tornou vitoriosa a
descentralização, ameaçou a unidade com a legitimação do clientelismo. O arbítrio que lhe foi
inerente na prática política acabou gerando o descontentamento nacional traduzido na revolução
de 30. De fato, como escreve Campello de Souza (1976), “no início da década de 30, o pêndulo
ideológico se inclinara decisivamente no sentido da centralização autoritária, (e essa) concepção
dava lugar a uma completa deslegitimação dos partidos políticos e dos mecanismos eleitorais”.
10 Souza, apud Carvalho e Pereira, 2000. 11 Vargas, no pós-30, irá apontar tal endividamento como prova da necessidade de limitação da autonomia dos estados, ver Fonseca ( 1987). 12 Carvalho e Pereira, 2000. 13Camargo, 2001.
11
O período seguinte, que se estende de 1930 a 1945, apresenta dois momentos distintos. O
primeiro, após a Revolução, caracteriza-se pela tentativa de normalização institucional do País,
traduzida na Constituição de 1934, que, entre outras providências, define que deve ser respeitada
a autonomia dos municípios e introduz um capítulo específico sobre a “Ordem Econômica e
Social”, trazendo ao Estado a responsabilidade sobre padrões mínimos de dignidade, a partir dos
quais seria garantida a liberdade econômica. Este mesmo capítulo, em seu Artigo 121, define a
legislação do trabalho. Como pano de fundo, trata-se de reduzir o espaço regionalista, abusivo na
República Velha, e recompor o Estado Nacional, cuja atuação coordenadora é percebida como
essencial para consolidar o caminho econômico em que o país se lançava com a industrialização
através do Processo de Substituição de Importações.14
É exatamente essa percepção da necessidade de recompor a ênfase unitária da república
que conduzirá ao Estado Novo. Fonseca (1987) afirma que o pensamento autoritário do início
dos anos 1930 “passava a criticar a forma na qual entendia estar assentado o poder oligárquico: o
federalismo. Em contraposição a ele, pregava a necessidade de fortalecimento do Estado
nacional, a eliminação dos poderes locais oligárquicos e a supremacia do executivo sobre os
demais poderes”. Embora sem atacar frontalmente a questão federativa, Vargas (1938) revela sua
posição contra a excessiva autonomia dos estados e os prejuízos da política regionalista, sem
dimensão nacional. Assim, por exemplo, quando faz o balanço do primeiro ano do Governo
Provisório afirma que: “No tocante às obras contra as secas, verificou-se, de começo, a
necessidade de organizar um plano geral que coordenasse a ação construtora do Governo, livre
das influências da política regionalista, às quais, em grande parte, se deve atribuir o que houve de
dispersivo e desorientado nas obras com sacrifício dos interesses da zona flagelada”.
A Constituição outorgada, de 10 de novembro de 1937, em seu Artigo 9° decreta que “O
Governo Federal intervirá nos Estados mediante a nomeação pelo Presidente da República de um
interventor, que assumirá no Estado as funções que, pela sua Constituição, competirem ao Poder
Executivo, ou as que, de acordo com as conveniências e necessidades de cada caso, lhe forem
atribuídas pelo Presidente da República”. No Capítulo “Da Ordem Econômica”, Artigo 135,
14A maior eficiência econômica na administração de projetos e na alocação de recursos – nacional/regional – é uma discussão permanente quando se foca a questão federativa. Ver Nunes e Nunes (2000).
12
consagra a opção intervencionista, após ressalvar que ela só se justifica para “suprir as
deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores de produção”, atendendo aos
interesses da Nação, representados pelo Estado. Assim, define que a intervenção no domínio
econômico poderá ser mediata e imediata, sob a forma de controle, estímulo ou gestão direta.
Nessa mesma Constituição é instituída a justiça do trabalho, e as corporações de trabalhadores,
consideradas forças representativas do trabalho nacional, são colocadas sob a tutela do Estado
(Artigos 139 e 140).
Durante o Estado Novo, Vargas, embora adotando o centralismo, desenvolveu um
permanente diálogo político com os estados e as regiões, cooptando as lideranças estaduais, de
forma a propiciar uma convivência razoavelmente pacífica entre os interesses regionais e a
realidade da intervenção. O resultado mais positivo desta prática foi a diluição do poder
concentrado da aliança São Paulo-Minas, sustentáculo da política café-com-leite da República
Velha, e a conseqüente explicitação dos interesses das demais regiões do País15. O estilo
varguista de fazer política durante o Estado Novo, combinando forte centralização no Executivo,
acomodação dos interesses das oligarquias, negociação com as lideranças novas e inclusão dos
trabalhadores urbanos através da legislação social que implanta, está na base do ‘pacto populista’
que irá vigorar no País até o golpe de 1964.
Com o fim do Estado Novo e a redemocratização, a partir de 1945, as tendências à
descentralização são manifestas. A Constituição de 18 de setembro de 1946, em seu Artigo 7°,
define que “O Governo Federal não intervirá nos Estados”, salvo nas situações excepcionais
clássicas. O período que se estende até 1964, com o novo autoritarismo, será de tensões entre a
busca de fortalecimento institucional da União – essencial para a sustentação do “pacto
populista” – e as aspirações de maior autonomia dos estados. Na medida em que é inerente ao
populismo a relação direta entre os governantes e as massas, que se sobrepõe às mediações
institucionais, ou aos partidos políticos e seus representantes, pode-se inferir que a centralização
era predominante, acomodando-se as demandas regionais mediante a barganha na alocação de
recursos, o que legitimava os políticos junto a suas regiões.
15Camargo ( 2001).
13
O início do período autoritário, em 1964, recoloca em atuação a tendência centralizadora
e o executivo forte. Dois Atos Institucionais sepultam o sistema institucional híbrido implantado
inicialmente pelo golpe militar, no qual os elementos políticos anteriores conviviam com as
regras de exceção. Em outubro de 1965, o AI-2 extinguia os partidos políticos existentes e
tornava indiretas as eleições para Presidente e Vice. Em fevereiro de 1963, o AI-3 tornava
indiretas também as eleições dos governadores. A redução da autonomia de Estados e
municípios e a hipertrofia do Poder Executivo Federal eram constitutivos da nova forma da
Federação. Abrucio (1998) aponta os três pilares do que define como modelo unionista-
autoritário de relações intergovernamentais do período. O financeiro, com a máxima
centralização das receitas tributárias nas mãos do Executivo Federal, o que lhe garantia o
domínio sobre as transferências de recursos para estados e municípios. O administrativo, com a
adoção de um planejamento central e a uniformização administrativa nos três níveis de governo.
E o político, com o controle sobre as eleições de governadores, em função do peso que tais atores
sempre tiveram como contraponto ao Executivo Federal. Tal modelo de relações federativas
manteve-se hegemônico até as eleições de 1974, quando a Arena, e o governo autoritário que
representava, teve sua primeira grande derrota eleitoral.
No cerne da Constituição de 1988, resultante da redemocratização do país, após um longo
período de autoritarismo, está o objetivo de fortalecimento da federação. Nesse sentido, foi
estabelecido uma maior autonomia fiscal de estados e municípios, a desconcentração dos
recursos tributários disponíveis e a transferência de encargos da União para as unidades
subnacionais16. O grande debate sobre as disposições federativas da Constituição de 1988
concentra-se na relação entre redistribuição de receitas e de encargos entre União, estados e
municípios. A União perdeu receita, os estados ganharam e os municípios ganharam mais doque
os estados. As estimativas são de que, entre 1989 e 1996, a participação federal na receita
disponível tenha caído de 61,1% para 56,4%, a dos estados tenha crescido de 25% para 27% e a
dos municípios tenha passado de 13,9% para 16,7%17. Para compensar as perdas, não
acompanhadas de redução de encargos, a União, a partir de 1996, vem lançando mão de outras
16 Versano et alii, 1998, apud Kugelmas, 2001. 17 Versano et alii, 1998, apud Kugelmas, 2001.
14
fontes de receitas, para as quais não há obrigatoriedade de compartilhamento, como as
contribuições sociais e a CPMF, o que, na opinião de especialistas, significa o agravamento da
irracionalidade do sistema fiscal.
Abrucio (1998) aponta o surgimento no país, no período que vai de 1991 a 1994, do que
chama de federalismo estadualista, centrado no poder dos governadores, verdadeiros ‘barões da
federação’, com forte influência nos rumos da política nacional, e que foi possibilitado pelo
enfraquecimento do presidente da República no sistema político brasileiro, naquele período. Essa
“política dos governadores”, entretanto, não foi similar à desenvolvida na República Velha, uma
vez que, além da União ser mais forte, nenhum grupo de estados conseguiu tornar-se
hegemônico, a exemplo do que acontecera, então, com São Paulo e Minas Gerais. A partir de
1994, o Governo Federal vai atuar no sentido de assumir novamente a liderança na condução do
pacto federativo, principalmente tratando de reforçar sua receita disponível e de estabelecer
regras para o reordenamento das finanças estaduais.
5 AS DESIGUALDADES REGIONAIS
Quando destacamos a questão das desigualdades regionais como um dos principais
problemas de federação brasileira, nos referimos, primeiramente, ao caráter não republicano –
domínio das oligarquias, patrimonialismo e ausência do povo - apontado por Abrucio em sua
origem, e que só pode ser plenamente superado na medida em que esteja garantido à população o
acesso a mínimos básicos para uma inserção social cidadã. Em segundo lugar, achamos realista a
hipótese de que um acentuado nível de desigualdade econômica e social entre os integrantes da
federação implica negociações complexas e nem sempre explícitas para a sustentação do pacto
federativo18. “Os fundos públicos, cujo papel é inegável nos arranjos federativos, adquirem uma
importância decisiva em países com grande heterogeneidade estrutural, como é o caso do Brasil.
Nesses casos, a estruturação do poder entre esferas do governo e a própria unidade da Federação
pressupõem uma transferência significativa de recursos públicos entre regiões com desigual
18 “O que chamamos ‘pacto federativo’ consiste, na verdade, em um conjunto de complexas alianças, na maioria pouco explícitas, soldadas, em grande parte, através dos fundos públicos”. Affonso (1994).
15
capacidade econômica e com grandes assimetrias sociais”19. Finalmente, não supomos que a
federação, como sistema político, possa eliminar as desigualdades. De fato, federação supõe
diversidade e, portanto, tensão, tanto entre autonomia e união, quanto entre perfis e resultados no
campo econômico e social. A federação brasileira certamente vem encontrando suas formas de
processar a diversidade – embora não enfrentando de modo decisivo a questão das desigualdades
regionais - e é por isso que a forma federativa e a unidade nacional se mantêm.
Ainda no período que antecedeu à República, o problema das desigualdades econômicas
regionais impedia a união das províncias em torno de uma proposta comum de reforma
tributária. A própria luta pela autonomia provincial concentrava-se na questão da autonomia
política, já que todas as províncias uniam-se na defesa do projeto federalista como forma de
acabar com a interferência do Poder Central nas eleições locais e assegurar a eletividade dos
antigos presidentes, transformados em governadores de estado. Já a autonomia em termos
financeiros tinha peso diverso nas diferentes províncias20. De fato, a constituinte inaugural
aprovou o projeto que beneficiava basicamente os estados exportadores, como vimos. Assim, a
autonomia financeira favorecia os mais ricos, e, em especial, São Paulo, “deixando claro o
caráter originalmente hierárquico da Federação brasileira”21. Aspásia Camargo refere a posição
de Tavares Bastos, cuja tese de que “o dinamismo e as necessidades dos estados mais prósperos
e modernos não podem ser ignorados para adaptarem-se às condições incipientes dos mais
fracos”, permite-lhe concluir: “Autonomizar as regiões significava, portanto, hierarquizá-las em
função de suas condições de vida e de sua potencialidade de riqueza”.
Enfocando as desigualdades regionais em suas dimensões política e econômica,
registramos inicialmente que, já em 1932, foi introduzida a maior representação proporcional dos
estados menos desenvolvidos na Câmara dos Deputados como mecanismo de compensação para
as grandes disparidades socioeconômicas. A sobre-representação dos menores, que se mantém e
está em permanente discussão na atualidade, obriga as instâncias políticas a integrarem na
agenda a questão das desigualdades regionais.
19 Affonso (1994). 20 Abrucio (1998). 21 Abrucio (1998).
16
Na verdade, do ponto de vista político, todas as federações adotam dispositivos para
proteção de minorias e/ou fazem distinções de tipo territorial no estabelecimento das regras de
representação. O caráter consociativo das organizações federativas, nas palavras de Kugelmas,
determinam a existência de mecanismos que limitam a regra simples das maiorias. Tais
mecanismos são mais decisivos em federações que apresentam grandes disparidades entre as
instâncias federadas, como é o caso do Brasil. Ainda Kugelmas (2000), utilizando o quadro
analítico proposto por Stepan, aponta como elementos importantes na análise do regime
federativo brasileiro:
1. a questão da sobre-representação na câmara de representação territorial – o Senado –
no Brasil é muito acentuada, dada as diferenças de povoamento entre as unidades
federadas (Roraima, com 250 mil habitantes, e São Paulo e Minas Gerais com 31 milhões
e 17 milhões, respectivamente, são exemplos claros de tais diferenças). Na Câmara de
Deputados que, como em outros regimes bicamerais, deveria representar o conjunto da
população do país, também é forte o grau de distorção. A existência de um limite inferior
de oito deputados por estado e de um limite superior de 70, introduz um efeito grande de
desproporção;
2. o elevado grau de extensão das atribuições da câmara territorial, ou seja, do Senado
que, no caso do Brasil, detém muitas áreas de competência exclusiva, incluindo a de
aprovar os limites de endividamento estadual, o torna tal câmara um dos principais atores
na questão da redefinição das relações intergovernamentais. Ainda, a amplitude das
atribuições do Senado torna especialmente significativos os efeitos potenciais de uma
coalizão regional;
3. a extensão das atribuições, ainda que nominais, das entidades subnacionais no Brasil é
significativa, o que reforça as dificuldades de efetuar mudanças no texto constitucional, e
acentua a presença dos mecanismos de limitação das maiorias. Tais dificuldades se
acentuam nos períodos em que a competência residual, quanto à tributação, pertence aos
estados;
4. a notória ausência, no Brasil, de um sistema partidário forte e disciplinado, orientado
por temas de caráter nacional, é mais uma fonte de fragmentação e descentralização de
17
poder. De nosso ponto de vista, isto dificulta a formação da necessária consciência dual –
regional/nacional – que deve estar na base de uma federação.
No que se refere, agora, ao campo especificamente econômico, ainda em 194622, a
adoção de um sistema fiscal redistributivo visava à redução das desigualdades regionais,
transferindo receita das regiões mais desenvolvidas para as menos desenvolvidas. Em 1959, a
criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) dá início ao apoio
sistemático ao desenvolvimento regional. No período autoritário, pós-1964, as questões
referentes a um desenvolvimento regional mais equilibrado foram constantes, sobretudo no
período do ‘Milagre’, embora numa concepção centralizadora, que considerava a União como
‘mais capaz’ de conduzir tal processo e que, por isso, reduziu a participação do FPE e do FPM
na receita arrecadada. Finalmente, a Constituição de 1988 vai ampliar substancialmente as
transferências das regiões mais desenvolvidas para as de menor desenvolvimento.
Dados do IBGE sobre a participação das grandes regiões e estados no PIB brasileiro
(preços correntes), para o período 1985 a 1999, são reveladores das desigualdades que
atravessam a federação brasileira. Assim, enquanto a Região Sudeste, no período, participa com
cerca de 60% do PIB nacional (58%, em 1999), a Região Sul, com cerca de 18%, o Nordeste
responde por 13%, o Centro-Oeste evolui de 4,8%, em 1985, para 6,5%, em 1999, o Norte passa
de 3,8%, em 1985, para 5,2%, em 1993, e 4,4%, em 1999, o que evidencia resultados
razoavelmente positivos na política de redução das desigualdades entre as regiões. Isto fica mais
claro se considerarmos, ainda com base nos dados do IBGE, a evolução do volume do Valor
Adicionado das regiões, naquele mesmo período. As regiões Norte e Centro-Oeste apresentam os
maiores crescimentos, de 103% e 72%, respectivamente. Na Região Sudeste, que concentra o
PIB brasileiro, como vimos, a evolução é de 30%; no Sul, 52%, e no Nordeste 41%, que é
também a média da evolução no Brasil. Se, entretanto, adotarmos o estudo do IPEA/PNUD para
199623, encontramos o país dividido em três regiões. Uma que agrupa sete estados do sul (RS,
22 A Constituição de 1946, embora não tenha promovido uma reforma da estrutura tributária, modificou profundamente a discriminação das receitas entre as esferas do Governo, institucionalizando um sistema de transferências de impostos, acompanhadas de restrições quanto à utilização dos recursos, e visava reforçar as finanças municipais, ver Varsano (1996). 23 Dados de Souza (1998)
18
SC, PR, MS, SP, RJ e ES), mais o DF, concentra cerca de 70% do PIB nacional, com um
elevado IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Outra região seria o Noroeste, a partir de
Minas Gerais, agrupando MG, GO, MT, RO, AM, RR e AP, com 16,5% do PIB nacional, e IDH
médio. E finalmente o Nordeste, juntamente com o Pará e o Acre, com cerca de 15% do produto
e níveis reduzidos de IDH.
Aspásia Camargo (2001) tem uma visão positiva sobre o sistema federativo nessa
questão, considerando que prestou bons serviços “como instrumento de integração nacional e de
redução das desigualdades regionais, seja em períodos autoritários, seja em períodos
democráticos” e que apresenta bons resultados em países de grande território e/ou de arraigadas
diversidades culturais, étnicas e econômicas. Refere ainda que, em casos de aguda assimetria,
como o do Brasil e do Canadá, em que prevalecem extremas diferenças de renda ou de
distribuição populacional entre as unidades federadas, esse é o regime mais seguro para
promover a redução das desigualdades e a unidade política, pela uniformização crescente das
partes dissociadas. De nosso ponto de vista, entretanto, os resultados são modestos e tornam
distante a perspectiva de uma ‘federação cooperativa’.
6 CONCLUSÃO
Tendo por base as considerações anteriores, cabe destacar algumas questões, à guisa de
conclusão.
Em primeiro lugar, o fato de que, apesar da alternância de períodos de centralização
(autoritários) e de descentralização (democráticos), ao longo da República, o pacto federativo se
manteve, preservando-se a unidade nacional e seu convívio com realidades regionais distintas, o
que não é desprezível num país com uma diversidade sócio-econômica tão acentuada. Ou seja, as
lideranças políticas nacionais souberam encontrar as regras mínimas para a sobrevivência da
forma federativa.
Após a redemocratização do país, e em função das disposições da Constituição de 1988,
entretanto, tornou-se evidente a necessidade de aprimoramento qualitativo da federação
brasileira. Isso inclui, de um lado, a definição de relações transparentes entre a União e as esferas
19
subnacionais, em termos de competências, fontes de arrecadação e obrigações. De outro lado, tal
avanço só será possível com a inserção consciente da população – e, conseqüentemente, de suas
lideranças políticas - na realidade federativa, o que, num país com índices ainda reduzidos de
escolarização, apesar da melhora registrada nos últimos 8 anos, é um desafio considerável.
Como pré-requisitos para o necessário avanço, as questões mais importantes para o
funcionamento equilibrado do pacto federativo brasileiro referem-se ao arcabouço
institucional24, político e econômico, em que se apóia. Nesse sentido, no caso brasileiro a
reforma do estado, a reforma política e a reforma tributária são essenciais.
No que diz respeito, agora, à questão específica da ideologia federalista, enquanto suporte
de um verdadeiro pacto federativo num país como o nosso, onde o desafio das disparidade
regionais é constante, cabe sublinhar aqui a tese de Stepan (apud KUGELMAS, 2000), segundo
a qual “uma federação democrática é aquela em que os cidadãos participam pelo voto em duas
instâncias distintas, com atribuições diversas constitucionalmente definidas. Em termos ideais,
estes cidadãos teriam identidades políticas duplas, porém complementares”.
Relacionados a esses aspectos – reformas e ideologia – estariam a viabilidade e o papel a
ser desempenhado por um sistema partidário forte, de caráter nacional, integrado regional e
localmente.
Affonso (1994, p.334) afirma que:
No Brasil, os congressistas são escolhidos em eleições de âmbito estadual, com teor fortemente local. Esse fato, aliado à inexistência de partidos programáticos e nacionais (com a possível exceção do PT) estabelece a necessidade de obter recursos públicos como forma primordial de constituição e reprodução das bases partidárias. O Congresso transforma-se, assim, em uma ‘Câmara Nacional de Vereadores’, esvaziando o espaço de articulação nacional. Em contrapartida, a União necessita dispor de competências e recursos livres (transferências negociadas, dispêndios da Administração Direta não vinculados e das empresas estatais) para poder saldar as alianças nacionais e contrapor-se ao peso político das regiões e/ou estados.
Do ponto de vista econômico, cabe lembrar que as questões da competência de
arrecadação e da distribuição dos recursos tributários entre as instâncias nacional e as
subnacionais, no Brasil, vêm sendo mais conflituadas a partir da Constituição de 1988 e das
24 Aguirre (1999) destaca que uma mudança na estrutura federalista, lidando com problemas políticos, envolve mais do que questões econômicas, devendo ser enfocada numa perspectiva institucionalista, que supera a pura racionalidade econômica.
20
decisões posteriores da União de criar fontes de arrecadação não compartilhadas com estados e
municípios. De fato, as zonas cinzentas deixadas pela Lei Maior, no que se refere a competências
e obrigações compartilhadas entre as instâncias e a ausência de regulamentação posterior, têm
levado a uma permanente disputa em torno de recursos e de responsabilidades. Os interesses em
jogo e os riscos de perdas de uns e benefícios de outros, na federação, vêm postergando a
realização de uma Reforma Tributária, cuja necessidade é consenso no país. Sobre o tema,
encontramos em Varsano (1996) o que pensamos ser o critério mais geral a nortear uma Reforma
Tributária no Brasil: “é preciso que a reforma explicite os conflitos para que, através do
entendimento do que se paga, para quem e para que, eles se resolvam de uma forma que coloque
o Estado efetivamente a serviço da sociedade e sob o controle desta”. Resta saber se a sociedade
brasileira está madura para uma transparência de tal ordem na gerência e destinação dos recursos
arrecadados. Afinal, áreas cinzentas, possibilitando negociação e barganha, têm uma função
clássica na acomodação de interesses políticos.
Finalmente, a conquista de uma dimensão efetivamente republicana, em que a esfera
pública reflita os interesses de uma população consciente e participativa, é a condição para o
equacionamento das questões anteriores e suposto básico para a construção de uma federação
cooperativa.
21
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRUCIO, Luiz F. Os barões da federação. São Paulo, Editora Hucitec, 1998. ___________.Os descaminhos da democracia. Revista Rumos,São Paulo. ano 1, n.2 (Quem és tu federação?), mar./abr. 1999. AFFONSO, Rui. A crise da federação no Brasil. Ensaios FEE, Ano 15, n. 2 (Estado, políticas públicas e federalismo). Porto Alegre, 1994. ____________. A federação na encruzilhada. Revista Rumos, São Paulo.ano 1, n. 2,(Quem és tu federação?), mar./abr. 1999. AGUIRRE, Basília. Federalism and Institutions: a Comparative Perspective. Economia Aplicada. São Paulo, FEA-USP/FIPE. v 3, n. 4, out./dez., 1999. CALDEIRA, Jorge. A nação mercantilista – ensaio sobre o Brasil. São Paulo, Editora 34, 1999. CAMARGO, Aspásia. Federalismo e identidade nacional. In: SACHS, WILHEIM e PINHEIRO (Org.). Brasil: um século de transformações. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. CAMPELLO DE SOUZA, Maria do Carmo. Estado e partidos políticos no Brasil (1930 a 1964). São Paulo, Alfa-Omega Ltda., 1976. CARVALHO, Maria Lúcia L. e PEREIRA, Paulo Roberto D. Rio Grande do Sul e São Paulo no federalismo fiscal da Primeira República. Ensaios FEE, ano 21, n. 1. Porto Alegre, 2000. CAVALCANTI, Amaro. Regime federativo e a República brasileira. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1983. FONSECA, Pedro Cezar Dutra. O Capitalismo em Construção. São Paulo, Brasiliense, 1987. FURTADO, Celso. A federação por fazer. Revista Rumos, São Paulo. ano 1, n. 2 (Quem és tu federação?), mar./abr., 1999. GUIMARÃES Neto, Leonardo. Desigualdades regionais e federalismo. In: AFFONSO, R. de B. e SILVA, P. L. (Org.). Desigualdades Regionais e Desenvolvimento. São Paulo, FUNDAP, 1995. KUGELMAS, Eduardo. A evolução recente do regime federativo no Brasil. In: HOFMEISTER e CARNEIRO (Org.). Federalismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo, Fundação Konrad Adenauer, 2000. MELLO, Evaldo Cabral de. A sinistra federação. Folha de São Paulo, Mais! n. 555, 29/09/02, São Paulo. _________. A pedra no sapato. Folha de São Paulo, Mais! n. 620, 04/01/2004, São Paulo. NUNES R. da C. e NUNES, S. P. Revenue Sharing: a Problem of Federalism in Brazil. Brazilian Journal of Political Economy, vol. 20, n° 4 (80), Oct./Dec., 2000. OLIVEIRA, Francisco (depoimento). In: MANTEGA e REGO (Org.). Conversas com economistas brasileiros II. São Paulo, Editora 34, 1999a. ____________. A federação desfigurada. Revista Rumos, São Paulo. ano 1, n. 2 (Quem és tu federação?),. mar./abr., 1999b. PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo, Editora Brasiliense, 1970. SADDI, Fabiana da Cunha. Política e Economia no Federalismo do Governo Geisel. Revista de Economia Política, v. 23, n. 2 (90), abr./jun.,2003, São Paulo.
22
SOUZA, Celina. Federalismo e intermediação de interesses regionais nas políticas públicas brasileiras. Trabalho apresentado ao Seminário Internacional sobre Reestruturação e Reforma do Estado: Brasil e América Latina no Processo de Globalização. São Paulo, maio de 1998, (mimeo). TÔRRES, João Camillo de Oliveira. A formação do federalismo no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1958. VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil (I). Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1938. VARSANO, R. A evolução do sistema tributário brasileiro ao longo do século: anotações e reflexões para futuras reformas. Rio de Janeiro, IPEA, jan. 1996. (texto para discussão n° 405). VIANNA, Oliveira. O ocaso do império. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1959.
23