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A FEDERAÇÃO BRASILEIRA: reconstrução permanente Maria Aparecida Grendene de Souza RESUMO O presente trabalho insere-se na discussão sobre a possibilidade da construção de uma federação cooperativa no País. Para tanto, enfoca a questão do pacto federativo brasileiro a partir de sua origem e referido a duas hipóteses básicas. De um lado, a sua funcionalidade – no sentido de que encontrou, tanto nos períodos políticos de centralização quanto nos de descentralização, soluções para a preservação da unidade nacional. De outro, de seus reduzidos efeitos relativamente à redução das desigualdades regionais, considerada como condição essencial para uma Federação mais equilibrada. A dimensão republicana, por sua vez, é apontada como base para reformas consistentes - do estado, política e tributária –, reconhecidas na literatura como necessárias para a construção de uma ‘federação cooperativa’. Palavras-chave: Brasil, federação, pacto federativo, funcionalidade, desigualdades regionais. ABSTRACT This paper concerns the discussion of the feasibility of a cooperative federation in the country. Therefore it approaches the issue of the Brazilian federative pact since its origin and deals with two basic hypotheses. On the one hand, its functionality – in the sense that if found, both in times of political centralization and in times of decentralization, solutions to preserve the nation’s unity. On the other hand, its small effects in relation to the reduction of the regional inequalities, a situation considered to be essential in terms of a more balanced federation. The republican magnitude, for its part, is said to be the foundation for consistent state, political and tax reforms which are known to be essential in order to build a cooperative federation. Key-words: Brazil, federation, federative pact, functionality, regional inequalities. Professora Assistente na FCE/UFRGS

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Page 1: A FEDERAÇÃO BRASILEIRA: reconstrução permanente · quando, trabalhando sobre a trajetória monetária do Brasil na época colonial, propõe “buscar ... na República Velha,

A FEDERAÇÃO BRASILEIRA: reconstrução permanente

Maria Aparecida Grendene de Souza

RESUMO

O presente trabalho insere-se na discussão sobre a possibilidade da construção de uma

federação cooperativa no País. Para tanto, enfoca a questão do pacto federativo brasileiro a partir

de sua origem e referido a duas hipóteses básicas. De um lado, a sua funcionalidade – no sentido

de que encontrou, tanto nos períodos políticos de centralização quanto nos de descentralização,

soluções para a preservação da unidade nacional. De outro, de seus reduzidos efeitos

relativamente à redução das desigualdades regionais, considerada como condição essencial para

uma Federação mais equilibrada. A dimensão republicana, por sua vez, é apontada como base

para reformas consistentes - do estado, política e tributária –, reconhecidas na literatura como

necessárias para a construção de uma ‘federação cooperativa’.

Palavras-chave: Brasil, federação, pacto federativo, funcionalidade, desigualdades regionais.

ABSTRACT

This paper concerns the discussion of the feasibility of a cooperative federation in the

country. Therefore it approaches the issue of the Brazilian federative pact since its origin and

deals with two basic hypotheses. On the one hand, its functionality – in the sense that if found,

both in times of political centralization and in times of decentralization, solutions to preserve the

nation’s unity. On the other hand, its small effects in relation to the reduction of the regional

inequalities, a situation considered to be essential in terms of a more balanced federation. The

republican magnitude, for its part, is said to be the foundation for consistent state, political and

tax reforms which are known to be essential in order to build a cooperative federation.

Key-words: Brazil, federation, federative pact, functionality, regional inequalities.

Professora Assistente na FCE/UFRGS

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1 APRESENTAÇÃO

Este trabalho se insere no âmbito da atual discussão sobre o pacto federativo brasileiro e,

especificamente, na pesquisa que estamos desenvolvendo sobre o tema, no período 1930-19881.

Nele reunimos aspectos gerais sobre a questão, de acordo com a bibliografia consultada, e

introduzimos duas hipóteses como focos de organização do material. São elas: a funcionalidade

do pacto federativo brasileiro, traduzida na manutenção da ordem federativa e da unidade

nacional ao longo do período; e a redução das desigualdades econômicas regionais como

fundamento de uma dimensão republicana na federação brasileira.

O trabalho está dividido em cinco partes. A primeira apresenta um diagnóstico do que

seriam os principais problemas da federação brasileira, concentra-se na hipótese da

‘funcionalidade’ do pacto federativo e aborda suas origens. Neste contexto aparecem os

conceitos de ‘centralização e ‘descentralização’, referidos sempre ao poder político, mais do que

à questão fiscal. Em seguida, tendo como referência o que seria a natureza essencial de uma

organização federativa, é considerada a situação do Brasil a partir da Constituição de 1998 e

introduzida a forma de ‘federação cooperativa’ como a qualidade essencial de um pacto

federativo legítimo, mais do que apenas funcional. A terceira parte faz uma abordagem suscinta

da evolução histórica do federalismo brasileiro no período da pesquisa. A quarta enfoca

especificamente a segunda hipótese, ou seja, a questão das desigualdades regionais, cuja

redução, estando na base da construção da cidadania nacional, seria um desafio à construção de

uma ‘federação cooperativa’. Finalmente, a última parte apresenta as conclusões do trabalho.

2 DIAGNÓSTICO E FUNCIONALIDADE DO PACTO FEDERATIVO BRASILEIRO

A inexistência de um pacto federativo definido em função das necessidades de hoje e o

desafio de acordá-lo sobre uma estrutura fiscal cujas bases objetivem a redução das

desigualdades regionais são apontados como as principais questões da federação brasileira na

atualidade (AGUIRRE, 1999). Enfrentá-las seria condição para um desenvolvimento interno maior

1 “Federalismo: Ideologia, Arranjos Institucionais e Política Econômica-1930/1988”.

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e mais equilibrado2, de um lado, e, de outro, para que a inserção de regiões/estados num mundo

globalizado não configure uma ameaça à unidade nacional – muitas das abordagens atuais sobre

a questão destacam a possibilidade da relação direta entre os estados brasileiros e qualquer parte

do mundo como uma nova fonte de instabilidade para o pacto federativo. De fato, paralelamente

ao movimento de globalização dos últimos anos, observa-se a ressurgência de regionalismos em

diferentes países.

Como a república brasileira se definiu como federativa já em seu surgimento, e essa

dimensão não foi alterada nas sucessivas Constituições republicanas, é aceitável a hipótese de

que o pacto federativo se manteve atualizado relativamente a diferentes contextos, através de

arranjos políticos e de políticas econômicas próprias, ou seja, adequadas às reais possibilidades

de avanço, em cada período. Afinal, a unidade nacional foi preservada e, mesmo hoje, quando o

tema é recolocado, muitas vezes de forma apaixonada, não há ‘separatismos’ agudos nos

Estados. O que há, de nosso ponto de vista, é uma consciência maior da importância de uma

federação mais coesa3, de um lado e, de outro, da responsabilidade dos agentes políticos

regionais nas mazelas de federação.

Partimos do suposto de que uma federação mais equilibrada seria condição para a

efetividade da res publica (ABRUCIO,1998). Adicionalmente, que tal equilíbrio, traduzido numa

maior consciência política, em termos de defesa concreta dos interesses locais e de sua coerência

com o sentido nacional da Federação - avaliada geralmente em função das destinações de

recursos da União e da ordem fiscal vigente, numa simplificação inadequada -, só pode ter como

raiz a maior ‘igualdade’ econômica das regiões, concretamente avaliada como acesso de suas

populações à educação, saúde e renda mínima, supostos de cidadania, ou seja, de uma ordem

efetivamente republicana.

2 “Você não pode ter uma federação que se agüenta nas pernas se você tem uma concentração do poder econômico em alguns Estados, como em São Paulo.” (OLIVEIRA, 1999a). “É dever da Federação uma eqüitativa distribuição da riqueza produzida por sua própria “economia política” (OLIVEIRA, 1999b). 3 A comprovada inexistência de partidos políticos nacionais, no sentido próprio, que se evidenciou com o fracasso da tentativa recente de verticalização nas eleições, poderia ser interpretada como um manifesto da força dos interesses locais/regionais na orientação da política nacional ou da debilidade da coesão política da Federação. A questão é recorrente em nossa história. Aspásia Camargo (2001) destaca que “O ponto fraco da Constituição de 1934 foi o de não ter conseguido implantar um sistema partidário nacional”, o que teria facilitado o caminho de um Governo Constitucional para a ditadura do Estado Novo.

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Como idéia diretriz de nossa abordagem, adotamos o ponto de vista de Caldeira (1999)

quando, trabalhando sobre a trajetória monetária do Brasil na época colonial, propõe “buscar

associar as soluções econômicas adotadas aos padrões de pensamento da época em que foram

feitas as opções”. Nesse sentido, pensamos ser necessário buscar explicações em fatores internos,

na investigação do caminho do pacto federativo no Brasil. Assim, localizamos na inter-relação

dos atores regionais/estaduais e federal/executivo o pacto federativo estabelecido em cada uma

das fases republicanas: na República Velha, no pós-1930, no Estado Novo, no período

democrático de 1945 a 1964, na ditadura militar e na redemocratização do início dos 80 até a

Constituição de 1988. O que pretendemos é dimensionar o tema da sobredeterminação quase

absoluta do Estado nacional à qual se encontrariam submetidos os Estados regionais, nos

períodos de centralização, e verificar quais as alterações efetivadas naqueles de descentralização,

numa perspectiva da interação entre os agentes, ou da interdependência dos pólos

nacional/regional. Uma grande questão precisa ser enfrentada: como se posicionaram as elites

políticas regionais frente à questão federativa, ao longo da República? Respondê-la significa

identificar em que grau existe convergência consciente entre os interesses locais e nacionais. De

fato, trata-se de incorporar na análise a definição de ideologia política do federalismo de Burgess

(apud SOUZA, 1998), o que permitiria compreender o funcionamento dos sistemas políticos

federais, que ultrapassa aspectos meramente formais e legais. Nesse sentido, Souza (1998)

afirma que “a razão de ser do federalismo brasileiro sempre foi, e continua sendo, uma forma de

acomodação das demandas das elites com objetivos conflitantes, bem como um meio para

amortecer as enormes disparidades regionais”. Também nessa direção, a observação de

Kugelmas (2000) sobre o que definimos como pactos silentes, no sentido de que os arranjos em

situações de crise do pacto federativo são feitos sem uma explicitação maior dos elementos de

barganha, em fun da “indefinição ainda presente do padrão de relações intergovernamentais” e

“da imprecisão dos dispositivos sobre competências concorrentes”. Camargo (2001) afirma que

as “zonas de sombra e os focos de dissenso em torno de acordos tácitos que fortalecem a

integração federativa são, em geral, habilmente encobertos pela estratégia do silêncio”, como é o

caso das distorções existentes na representação estadual na Câmara Federal dos Deputados.

Nessa linha, podemos considerar que o pacto federativo brasileiro é essencialmente conservador,

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ou seja, preserva a unidade nacional – uma virtude, de nosso ponto de vista – mas sem enfrentar

concretamente a questão das desigualdades regionais.

É recorrente na literatura, ao enfocar a constituição da federação brasileira, contrapor a

herança centralista, consolidada no Segundo Império, e que se reflete na importância de um

executivo forte - “o brasileiro confia mais no executivo”, afirma Tôrres (1958) -, às tendências à

descentralização, presentes desde a colonização portuguesa e o início de nossa formação

econômica e política. Jorge Caldeira afirma que, na época colonial, “o desenvolvimento

brasileiro aconteceu exatamente porque a política retardadora deixava brechas, no mundo

‘natural’ da economia interior”. A economia interior, de fato, organizava-se independentemente

da Coroa que, dada a impossibilidade portuguesa de destinar recursos compatíveis com a

vastidão do território da Colônia, controlava os pontos-chave da economia da época, apenas.

Caio Prado Júnior (1970) destaca o relativo liberalismo da política portuguesa na Colônia até as

primeiras descobertas das jazidas auríferas, o que reforça, em nosso ponto de vista, a tese da

organização de interesses e atividades paralelos à regra metropolitana. A origem das províncias

imperiais está na existência de ‘centros’ secundários no território brasileiro, que resultariam num

reforço das identidades regionais.

Relativamente às tensões entre tendências centralizadoras e tendências

descentralizadoras que estão na origem da Federação brasileira, vale lembrar com Ruy Barbosa

que, politicamente, tivemos unidade antes de ter autonomias regionais. Ao mesmo tempo,

distintas realidades regionais, cultural, étnica e economicamente configuradas, exigiam

expressão e poder e acabaram coadjuvando a opção republicana e federativa.

Oliveira Vianna, na sua obra clássica O Ocaso do Império (1959), observa que o grande

movimento em favor da descentralização e da federação, acentuado após a destituição do

gabinete Zacarias, em 1858, esteve associado com a derrubada do Império, indissoluvelmente

ligado à idéia de centralização: “Urgia libertar o mais rapidamente possível os centros locais e

provinciais de vida política da pressão intolerável do poder da Coroa”.

Daí federação e república e não “Federação com ou sem a Coroa”, como advogava Ruy

Barbosa. O mesmo Vianna, em outra passagem, aponta a influência externa na reação contra o

unitarismo do Império, na época: “Como todos os movimentos políticos no Brasil, este

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movimento em favor das franquezas provinciais teve, antes de tudo, uma origem exógena; foi

também, como ideal da eleição direta, um reflexo das aspirações dominantes no meio

internacional daquela época”. Complementa apontando o exemplo da vizinha Confederação

Argentina e, com influência mais decisiva, da Confederação Norte-Americana.

É interessante ressaltar que, se os Estados Unidos foram modelo em matéria do arranjo

federativo para o Brasil, a base material de tal arranjo era bastante distinta, uma vez que naquele

país houve uma associação de estados independentes, que se reuniram numa Confederação,

cedendo parte de sua soberania, com a finalidade de defesa frente à possível ameaça externa,

enquanto em nosso país a autonomia relativa dos estados, ou ganho de instâncias de soberania,

seria definida com a instituição da federação4. Os graus de liberdade das províncias do Império

correspondiam a uma dimensão de descentralização administrativa, mas não rompiam o

unitarismo do Estado, no sentido da concentração do poder político no Executivo. De qualquer

forma, como lembra Tôrres, “havia, além da estrutura unitária do Império, um elemento

sociológico de caráter plural, que se revelava em muitos movimentos e aspirações que se diziam

‘federais’, e cuja raiz última, perfeitamente visível, era o reconhecimento de que havia uma

vocação própria nas províncias com nítidas aspirações ao ar e à luz”. Assim, “não surgiu o

Estado Brasileiro da associação de províncias anteriormente autônomas, nem adotou semelhantes

formas em face de uma dissociação da soberania nacional; as províncias surgiram dentro do

corpo nacional, aí estão e aí ficarão”5.

O Decreto N° 1 da República, de 15 de Novembro de 1889, em seus três primeiros

artigos, proclama e decreta como forma de governo da nação brasileira a República Federativa,

diz que as antigas províncias do Império, reunidas pelo laço da federação, passam a constituir os

Estados Unidos do Brasil, e que cada um desses Estados, no exercício de sua legítima soberania,

apresentará a sua Constituição, elegendo os seus corpos deliberantes e os seus governos locais.

4 Sobre o que chama de União brasileira, Amaro Cavalcanti (1983) afirma: “Ela é, antes de tudo, uma verdadeira Federação ou Estado-federal, e não, uma Confederação de Estados”. 5 Evandro Cabral de Mello, no artigo A sinistra federação (2002), mostra que as raízes do federalismo brasileiro já estão claras quando da Constituinte de 1823. Em A pedra no sapato (2004) destaca as circunstâncias que culminaram com a Monarquia e a unidade nacional, quando da Independência, contrastando o consistente debate autonomista presente no país e concentrado na Bahia e em Pernambuco.

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3 O QUE DEFINE FEDERAÇÃO

A questão da soberania está no cerne da Federação (KUGELMAS, 2000). Soberania dual ou

soberania compartilhada, ou ainda, na expressão concisa de Elazar (apud KUGELMAS, 2000),

self-rule plus shared rule, define a natureza política do sistema federativo. Por isso, exatamente,

a definição das competências e atribuições de cada esfera federativa é elemento essencial ao bom

funcionamento do sistema.

No caso brasileiro, a partir da Constituição de 1988, temos soberania tripartida entre

União, Estados e Municípios, com definição de competências específicas em termos legislativos

e fiscais. É o que Miguel Reale chamou de “federalismo trino”.

A conciliação entre as áreas de competência específica e comum exige permanente

negociação entre as esferas de poder, de que são exemplos as vinculações relativas a algumas das

transferências de recursos, como no caso de parcelas do Fundo de Participação dos Estados

(FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), a exigência de cobrança de seus

impostos próprios, no caso dos Municípios, definida pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei

Complementar n° 101/00), o FUNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino

Fundamental e de Valorização do Magistério (Lei n° 9424/96), e o equacionamento das dívidas

dos Estados, acordado entre Estados e União em 19966, mas que permanece como um foco de

tensões, conforme se pôde observar, em 2002, nas plataformas eleitorais dos candidatos aos

governos estaduais de oposição ao governo central. Registre-se que a questão da dívida dos

estados atravessa todo o período republicano. Uma das linhas centrais da atuação do governo

provisório, após a revolução de 1930, foi a de enfrentar essa mesma questão. Assim, ao final de

1931, é instituída a Comissão de Estudos Financeiros dos Estados e Municípios. Oswaldo

Aranha, em entrevista dada no início de 1932, afirmaria que “para o equilíbrio orçamentário dos

Estados ficou determinado por lei federal que a despesa dos Estados não pode ser superior à

6 Os termos do acordo estabelecem, na troca da dívida mobiliária por uma dívida de longo prazo com a União, juros preferenciais de 6% a 7,5% ao ano e o pagamento de parcelas entre 11% a 13% da receita líquida dos Estados (KUGELMAS, 2000).

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receita. Os Estados não podem contrair empréstimos sem autorização do governo federal” (CP,

06/02/32).

De fato, o grande desafio, segundo parte da literatura sobre a questão, é a superação do

atual “federalismo predatório”, de que são características a disputa pelos recursos a serem

destinados a cada instância federativa e a guerra fiscal7 entre os Estados. Em seu lugar, a

construção de um “federalismo cooperativo” buscaria garantir um jogo ganha-ganha, no sentido

horizontal, entre os estados, e no vertical, entre a União e as outras instâncias da federação.

Construir o entendimento nessa direção, em todo o caso, exige que se abandone, em

primeiro lugar, a visão de que a União é a única responsável pelos descaminhos da Federação

Brasileira, ignorando que, principalmente nos períodos democráticos, os atores regionais são co-

responsáveis pelas decisões tomadas. Ainda, dado que temos caracteristicamente uma ‘federação

desigual’, a dimensão redistributiva coloca-se como essencial e, apesar de contemplada na

Constituição de 1988, é ainda hoje incipiente no Brasil, enquanto prática republicana consciente,

baseada no reconhecimento de que é um elemento essencial para o jogo ganha-ganha. A

federação alemã e a União Européia têm essa dimensão como um princípio, identificando nas

desigualdades um elemento potencialmente desorganizador do pacto federativo. A primeira

evidenciou tal posição quando da recente reunificação alemã, com fortes subsídios à região

oriental, para reduzir os desníveis de padrão de vida então existentes. A União Européia realizou

significativos aportes de recursos a Portugal e Grécia, para que se capacitassem a uma integração

competitiva no mercado europeu. “A União Européia, que é uma federação em construção,

aplica em suas regiões mais pobres ou periféricas recursos significativos, aliados ao

planejamento regional, para fortalecer a unidade política” (CAMARGO, 2001).

No caso brasileiro, encontramos no FUNDEF um bom exemplo de rearranjo cooperativo,

ainda que localizado. Sem entrar nas questões específicas relativas à educação e aos recursos

vinculados8, o aspecto essencial que pode ser relacionado com o equilíbrio e a dimensão

republicana da Federação é a destinação que todos os Estados tiveram de fazer de um mesmo

7 Os Estados, para atrair novos investimentos, adotam mecanismos de renúncia fiscal tributária. Os casos das montadoras da GM, no Rio Grande do Sul, e da Ford, na Bahia, ilustram bem esse caso. 8 Questões como o piso mínimo definido pela União, a relação entre valores alocados e educação de qualidade, a abrangência do FUNDEF e a composição dos recursos que o constituem.

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valor mínimo/aluno/ano ao ensino público fundamental, eliminando, dentro de cada Estado,

vantagens a alunos em municípios de maior arrecadação relativamente aos daqueles menos

arrecadadores.

4 A FEDERAÇÃO BRASILEIRA

Foi um legado do Império a manutenção da unidade territorial, a constituição de um

sentimento de nacionalidade e a criação de um consenso entre as elites brasileiras sobre a

necessidade de uma autoridade central definida (MERQUIOR, apud Abrucio,1998). Com a

queda do Império tomam relevo as reivindicações federativas, traduzindo a tensão entre as

tendências de centralização e as de descentralização (aqui como dicotomia

unidade/parcelamento) que se verificavam no País. A federação surge como resposta para

acomodar tais tendências. Aspásia Camargo (2001) destaca que “atributo relevante do

federalismo é a flexibilidade, isto é, a capacidade de ajustar-se às circunstâncias de forma mais

ou menos descentralizada e de resolver tensões regionais dentro de um mesmo marco legal e

político”. Esse tipo de organização do Estado teria, portanto, uma dimensão pragmática essencial

em nações que possuem realidades e interesses regionais definidos e virtualmente conflitantes.

Como vimos, no Brasil, a Constituição de 1891, em seu Artigo 1°, consagra como forma

de governo a República Federativa. A relação dos estados com a União e seus graus de

autonomia ao longo da República resultaram em diferentes feições do pacto federativo,

basicamente relacionados com a característica democrática ou autoritária de cada um dos

períodos que atravessou.

Na República Velha, dominada pelas oligarquias regionais e sob os ventos das tendências

de descentralização, reativas à unidade imperial, foi grande a autonomia dos estados9, traduzida

na definição da apropriação de impostos pelos estados e a União, e resultando numa nítida

hierarquização dos estados da federação, com a supremacia dos estados exportadores, detentores

9 “A Constituição de 1891, por influência americana, introduziu no Brasil a total liberdade de legislação estadual, desconstruindo a uniformidade conseguida no Império. Cada estado tinha suas próprias regras eleitorais e seus códigos específicos, inclusive a liberdade de contrair empréstimos internacionais, além do controle total sobre a polícia e a justiça, sob o comando dos governadores e dos coronéis”. (CAMARGO, 2001).

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do imposto sobre aquela atividade, na época, com o café, centro dinâmico da atividade

econômica do país. Abrucio (1998) destaca que a federação brasileira nasce com duas

características básicas: a hierarquia de importância dos estados dentro da Federação, que

consagra o predomínio de São Paulo e de Minas Gerais no plano nacional, e a garantia de que as

elites locais comandarão autonomamente o processo político interno.

De fato, o sistema político da Primeira República teve como foco os estados, sob a

hegemonia dos economicamente mais fortes, “liberal em sua forma, oligárquico quanto ao

funcionamento efetivo”.10 A prerrogativa de contrair empréstimos no exterior sem autorização

federal, estabelecida pela primeira Constituição republicana, levou os estados a um

endividamento progressivo11. Ainda em função das novas prerrogativas econômicas, passam a

ser cobrados impostos interestaduais, interpretando-se por analogia, para o comércio entre

estados, o direito de tributar exportações. A autonomia dos estados, em todo o caso, tinha

limites, já que o Governo Federal concentrava em suas mãos atribuições exclusivas, como a

representação do país em assuntos internacionais. “O crédito favorável que a União detinha no

exterior, levando-a a uma capacidade de tomar empréstimos externos muito maior que a do

conjunto dos estados, e possibilitando-lhe avalizar empréstimos de grandes proporções tomados

pelos governos estaduais em determinadas circunstâncias”12, é um indicador do poder da União,

malgrado a grande autonomia dos estados.

Sob o ângulo político, o chamado ‘federalismo oligárquico’13, se tornou vitoriosa a

descentralização, ameaçou a unidade com a legitimação do clientelismo. O arbítrio que lhe foi

inerente na prática política acabou gerando o descontentamento nacional traduzido na revolução

de 30. De fato, como escreve Campello de Souza (1976), “no início da década de 30, o pêndulo

ideológico se inclinara decisivamente no sentido da centralização autoritária, (e essa) concepção

dava lugar a uma completa deslegitimação dos partidos políticos e dos mecanismos eleitorais”.

10 Souza, apud Carvalho e Pereira, 2000. 11 Vargas, no pós-30, irá apontar tal endividamento como prova da necessidade de limitação da autonomia dos estados, ver Fonseca ( 1987). 12 Carvalho e Pereira, 2000. 13Camargo, 2001.

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O período seguinte, que se estende de 1930 a 1945, apresenta dois momentos distintos. O

primeiro, após a Revolução, caracteriza-se pela tentativa de normalização institucional do País,

traduzida na Constituição de 1934, que, entre outras providências, define que deve ser respeitada

a autonomia dos municípios e introduz um capítulo específico sobre a “Ordem Econômica e

Social”, trazendo ao Estado a responsabilidade sobre padrões mínimos de dignidade, a partir dos

quais seria garantida a liberdade econômica. Este mesmo capítulo, em seu Artigo 121, define a

legislação do trabalho. Como pano de fundo, trata-se de reduzir o espaço regionalista, abusivo na

República Velha, e recompor o Estado Nacional, cuja atuação coordenadora é percebida como

essencial para consolidar o caminho econômico em que o país se lançava com a industrialização

através do Processo de Substituição de Importações.14

É exatamente essa percepção da necessidade de recompor a ênfase unitária da república

que conduzirá ao Estado Novo. Fonseca (1987) afirma que o pensamento autoritário do início

dos anos 1930 “passava a criticar a forma na qual entendia estar assentado o poder oligárquico: o

federalismo. Em contraposição a ele, pregava a necessidade de fortalecimento do Estado

nacional, a eliminação dos poderes locais oligárquicos e a supremacia do executivo sobre os

demais poderes”. Embora sem atacar frontalmente a questão federativa, Vargas (1938) revela sua

posição contra a excessiva autonomia dos estados e os prejuízos da política regionalista, sem

dimensão nacional. Assim, por exemplo, quando faz o balanço do primeiro ano do Governo

Provisório afirma que: “No tocante às obras contra as secas, verificou-se, de começo, a

necessidade de organizar um plano geral que coordenasse a ação construtora do Governo, livre

das influências da política regionalista, às quais, em grande parte, se deve atribuir o que houve de

dispersivo e desorientado nas obras com sacrifício dos interesses da zona flagelada”.

A Constituição outorgada, de 10 de novembro de 1937, em seu Artigo 9° decreta que “O

Governo Federal intervirá nos Estados mediante a nomeação pelo Presidente da República de um

interventor, que assumirá no Estado as funções que, pela sua Constituição, competirem ao Poder

Executivo, ou as que, de acordo com as conveniências e necessidades de cada caso, lhe forem

atribuídas pelo Presidente da República”. No Capítulo “Da Ordem Econômica”, Artigo 135,

14A maior eficiência econômica na administração de projetos e na alocação de recursos – nacional/regional – é uma discussão permanente quando se foca a questão federativa. Ver Nunes e Nunes (2000).

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consagra a opção intervencionista, após ressalvar que ela só se justifica para “suprir as

deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores de produção”, atendendo aos

interesses da Nação, representados pelo Estado. Assim, define que a intervenção no domínio

econômico poderá ser mediata e imediata, sob a forma de controle, estímulo ou gestão direta.

Nessa mesma Constituição é instituída a justiça do trabalho, e as corporações de trabalhadores,

consideradas forças representativas do trabalho nacional, são colocadas sob a tutela do Estado

(Artigos 139 e 140).

Durante o Estado Novo, Vargas, embora adotando o centralismo, desenvolveu um

permanente diálogo político com os estados e as regiões, cooptando as lideranças estaduais, de

forma a propiciar uma convivência razoavelmente pacífica entre os interesses regionais e a

realidade da intervenção. O resultado mais positivo desta prática foi a diluição do poder

concentrado da aliança São Paulo-Minas, sustentáculo da política café-com-leite da República

Velha, e a conseqüente explicitação dos interesses das demais regiões do País15. O estilo

varguista de fazer política durante o Estado Novo, combinando forte centralização no Executivo,

acomodação dos interesses das oligarquias, negociação com as lideranças novas e inclusão dos

trabalhadores urbanos através da legislação social que implanta, está na base do ‘pacto populista’

que irá vigorar no País até o golpe de 1964.

Com o fim do Estado Novo e a redemocratização, a partir de 1945, as tendências à

descentralização são manifestas. A Constituição de 18 de setembro de 1946, em seu Artigo 7°,

define que “O Governo Federal não intervirá nos Estados”, salvo nas situações excepcionais

clássicas. O período que se estende até 1964, com o novo autoritarismo, será de tensões entre a

busca de fortalecimento institucional da União – essencial para a sustentação do “pacto

populista” – e as aspirações de maior autonomia dos estados. Na medida em que é inerente ao

populismo a relação direta entre os governantes e as massas, que se sobrepõe às mediações

institucionais, ou aos partidos políticos e seus representantes, pode-se inferir que a centralização

era predominante, acomodando-se as demandas regionais mediante a barganha na alocação de

recursos, o que legitimava os políticos junto a suas regiões.

15Camargo ( 2001).

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O início do período autoritário, em 1964, recoloca em atuação a tendência centralizadora

e o executivo forte. Dois Atos Institucionais sepultam o sistema institucional híbrido implantado

inicialmente pelo golpe militar, no qual os elementos políticos anteriores conviviam com as

regras de exceção. Em outubro de 1965, o AI-2 extinguia os partidos políticos existentes e

tornava indiretas as eleições para Presidente e Vice. Em fevereiro de 1963, o AI-3 tornava

indiretas também as eleições dos governadores. A redução da autonomia de Estados e

municípios e a hipertrofia do Poder Executivo Federal eram constitutivos da nova forma da

Federação. Abrucio (1998) aponta os três pilares do que define como modelo unionista-

autoritário de relações intergovernamentais do período. O financeiro, com a máxima

centralização das receitas tributárias nas mãos do Executivo Federal, o que lhe garantia o

domínio sobre as transferências de recursos para estados e municípios. O administrativo, com a

adoção de um planejamento central e a uniformização administrativa nos três níveis de governo.

E o político, com o controle sobre as eleições de governadores, em função do peso que tais atores

sempre tiveram como contraponto ao Executivo Federal. Tal modelo de relações federativas

manteve-se hegemônico até as eleições de 1974, quando a Arena, e o governo autoritário que

representava, teve sua primeira grande derrota eleitoral.

No cerne da Constituição de 1988, resultante da redemocratização do país, após um longo

período de autoritarismo, está o objetivo de fortalecimento da federação. Nesse sentido, foi

estabelecido uma maior autonomia fiscal de estados e municípios, a desconcentração dos

recursos tributários disponíveis e a transferência de encargos da União para as unidades

subnacionais16. O grande debate sobre as disposições federativas da Constituição de 1988

concentra-se na relação entre redistribuição de receitas e de encargos entre União, estados e

municípios. A União perdeu receita, os estados ganharam e os municípios ganharam mais doque

os estados. As estimativas são de que, entre 1989 e 1996, a participação federal na receita

disponível tenha caído de 61,1% para 56,4%, a dos estados tenha crescido de 25% para 27% e a

dos municípios tenha passado de 13,9% para 16,7%17. Para compensar as perdas, não

acompanhadas de redução de encargos, a União, a partir de 1996, vem lançando mão de outras

16 Versano et alii, 1998, apud Kugelmas, 2001. 17 Versano et alii, 1998, apud Kugelmas, 2001.

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fontes de receitas, para as quais não há obrigatoriedade de compartilhamento, como as

contribuições sociais e a CPMF, o que, na opinião de especialistas, significa o agravamento da

irracionalidade do sistema fiscal.

Abrucio (1998) aponta o surgimento no país, no período que vai de 1991 a 1994, do que

chama de federalismo estadualista, centrado no poder dos governadores, verdadeiros ‘barões da

federação’, com forte influência nos rumos da política nacional, e que foi possibilitado pelo

enfraquecimento do presidente da República no sistema político brasileiro, naquele período. Essa

“política dos governadores”, entretanto, não foi similar à desenvolvida na República Velha, uma

vez que, além da União ser mais forte, nenhum grupo de estados conseguiu tornar-se

hegemônico, a exemplo do que acontecera, então, com São Paulo e Minas Gerais. A partir de

1994, o Governo Federal vai atuar no sentido de assumir novamente a liderança na condução do

pacto federativo, principalmente tratando de reforçar sua receita disponível e de estabelecer

regras para o reordenamento das finanças estaduais.

5 AS DESIGUALDADES REGIONAIS

Quando destacamos a questão das desigualdades regionais como um dos principais

problemas de federação brasileira, nos referimos, primeiramente, ao caráter não republicano –

domínio das oligarquias, patrimonialismo e ausência do povo - apontado por Abrucio em sua

origem, e que só pode ser plenamente superado na medida em que esteja garantido à população o

acesso a mínimos básicos para uma inserção social cidadã. Em segundo lugar, achamos realista a

hipótese de que um acentuado nível de desigualdade econômica e social entre os integrantes da

federação implica negociações complexas e nem sempre explícitas para a sustentação do pacto

federativo18. “Os fundos públicos, cujo papel é inegável nos arranjos federativos, adquirem uma

importância decisiva em países com grande heterogeneidade estrutural, como é o caso do Brasil.

Nesses casos, a estruturação do poder entre esferas do governo e a própria unidade da Federação

pressupõem uma transferência significativa de recursos públicos entre regiões com desigual

18 “O que chamamos ‘pacto federativo’ consiste, na verdade, em um conjunto de complexas alianças, na maioria pouco explícitas, soldadas, em grande parte, através dos fundos públicos”. Affonso (1994).

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capacidade econômica e com grandes assimetrias sociais”19. Finalmente, não supomos que a

federação, como sistema político, possa eliminar as desigualdades. De fato, federação supõe

diversidade e, portanto, tensão, tanto entre autonomia e união, quanto entre perfis e resultados no

campo econômico e social. A federação brasileira certamente vem encontrando suas formas de

processar a diversidade – embora não enfrentando de modo decisivo a questão das desigualdades

regionais - e é por isso que a forma federativa e a unidade nacional se mantêm.

Ainda no período que antecedeu à República, o problema das desigualdades econômicas

regionais impedia a união das províncias em torno de uma proposta comum de reforma

tributária. A própria luta pela autonomia provincial concentrava-se na questão da autonomia

política, já que todas as províncias uniam-se na defesa do projeto federalista como forma de

acabar com a interferência do Poder Central nas eleições locais e assegurar a eletividade dos

antigos presidentes, transformados em governadores de estado. Já a autonomia em termos

financeiros tinha peso diverso nas diferentes províncias20. De fato, a constituinte inaugural

aprovou o projeto que beneficiava basicamente os estados exportadores, como vimos. Assim, a

autonomia financeira favorecia os mais ricos, e, em especial, São Paulo, “deixando claro o

caráter originalmente hierárquico da Federação brasileira”21. Aspásia Camargo refere a posição

de Tavares Bastos, cuja tese de que “o dinamismo e as necessidades dos estados mais prósperos

e modernos não podem ser ignorados para adaptarem-se às condições incipientes dos mais

fracos”, permite-lhe concluir: “Autonomizar as regiões significava, portanto, hierarquizá-las em

função de suas condições de vida e de sua potencialidade de riqueza”.

Enfocando as desigualdades regionais em suas dimensões política e econômica,

registramos inicialmente que, já em 1932, foi introduzida a maior representação proporcional dos

estados menos desenvolvidos na Câmara dos Deputados como mecanismo de compensação para

as grandes disparidades socioeconômicas. A sobre-representação dos menores, que se mantém e

está em permanente discussão na atualidade, obriga as instâncias políticas a integrarem na

agenda a questão das desigualdades regionais.

19 Affonso (1994). 20 Abrucio (1998). 21 Abrucio (1998).

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Na verdade, do ponto de vista político, todas as federações adotam dispositivos para

proteção de minorias e/ou fazem distinções de tipo territorial no estabelecimento das regras de

representação. O caráter consociativo das organizações federativas, nas palavras de Kugelmas,

determinam a existência de mecanismos que limitam a regra simples das maiorias. Tais

mecanismos são mais decisivos em federações que apresentam grandes disparidades entre as

instâncias federadas, como é o caso do Brasil. Ainda Kugelmas (2000), utilizando o quadro

analítico proposto por Stepan, aponta como elementos importantes na análise do regime

federativo brasileiro:

1. a questão da sobre-representação na câmara de representação territorial – o Senado –

no Brasil é muito acentuada, dada as diferenças de povoamento entre as unidades

federadas (Roraima, com 250 mil habitantes, e São Paulo e Minas Gerais com 31 milhões

e 17 milhões, respectivamente, são exemplos claros de tais diferenças). Na Câmara de

Deputados que, como em outros regimes bicamerais, deveria representar o conjunto da

população do país, também é forte o grau de distorção. A existência de um limite inferior

de oito deputados por estado e de um limite superior de 70, introduz um efeito grande de

desproporção;

2. o elevado grau de extensão das atribuições da câmara territorial, ou seja, do Senado

que, no caso do Brasil, detém muitas áreas de competência exclusiva, incluindo a de

aprovar os limites de endividamento estadual, o torna tal câmara um dos principais atores

na questão da redefinição das relações intergovernamentais. Ainda, a amplitude das

atribuições do Senado torna especialmente significativos os efeitos potenciais de uma

coalizão regional;

3. a extensão das atribuições, ainda que nominais, das entidades subnacionais no Brasil é

significativa, o que reforça as dificuldades de efetuar mudanças no texto constitucional, e

acentua a presença dos mecanismos de limitação das maiorias. Tais dificuldades se

acentuam nos períodos em que a competência residual, quanto à tributação, pertence aos

estados;

4. a notória ausência, no Brasil, de um sistema partidário forte e disciplinado, orientado

por temas de caráter nacional, é mais uma fonte de fragmentação e descentralização de

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poder. De nosso ponto de vista, isto dificulta a formação da necessária consciência dual –

regional/nacional – que deve estar na base de uma federação.

No que se refere, agora, ao campo especificamente econômico, ainda em 194622, a

adoção de um sistema fiscal redistributivo visava à redução das desigualdades regionais,

transferindo receita das regiões mais desenvolvidas para as menos desenvolvidas. Em 1959, a

criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) dá início ao apoio

sistemático ao desenvolvimento regional. No período autoritário, pós-1964, as questões

referentes a um desenvolvimento regional mais equilibrado foram constantes, sobretudo no

período do ‘Milagre’, embora numa concepção centralizadora, que considerava a União como

‘mais capaz’ de conduzir tal processo e que, por isso, reduziu a participação do FPE e do FPM

na receita arrecadada. Finalmente, a Constituição de 1988 vai ampliar substancialmente as

transferências das regiões mais desenvolvidas para as de menor desenvolvimento.

Dados do IBGE sobre a participação das grandes regiões e estados no PIB brasileiro

(preços correntes), para o período 1985 a 1999, são reveladores das desigualdades que

atravessam a federação brasileira. Assim, enquanto a Região Sudeste, no período, participa com

cerca de 60% do PIB nacional (58%, em 1999), a Região Sul, com cerca de 18%, o Nordeste

responde por 13%, o Centro-Oeste evolui de 4,8%, em 1985, para 6,5%, em 1999, o Norte passa

de 3,8%, em 1985, para 5,2%, em 1993, e 4,4%, em 1999, o que evidencia resultados

razoavelmente positivos na política de redução das desigualdades entre as regiões. Isto fica mais

claro se considerarmos, ainda com base nos dados do IBGE, a evolução do volume do Valor

Adicionado das regiões, naquele mesmo período. As regiões Norte e Centro-Oeste apresentam os

maiores crescimentos, de 103% e 72%, respectivamente. Na Região Sudeste, que concentra o

PIB brasileiro, como vimos, a evolução é de 30%; no Sul, 52%, e no Nordeste 41%, que é

também a média da evolução no Brasil. Se, entretanto, adotarmos o estudo do IPEA/PNUD para

199623, encontramos o país dividido em três regiões. Uma que agrupa sete estados do sul (RS,

22 A Constituição de 1946, embora não tenha promovido uma reforma da estrutura tributária, modificou profundamente a discriminação das receitas entre as esferas do Governo, institucionalizando um sistema de transferências de impostos, acompanhadas de restrições quanto à utilização dos recursos, e visava reforçar as finanças municipais, ver Varsano (1996). 23 Dados de Souza (1998)

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SC, PR, MS, SP, RJ e ES), mais o DF, concentra cerca de 70% do PIB nacional, com um

elevado IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Outra região seria o Noroeste, a partir de

Minas Gerais, agrupando MG, GO, MT, RO, AM, RR e AP, com 16,5% do PIB nacional, e IDH

médio. E finalmente o Nordeste, juntamente com o Pará e o Acre, com cerca de 15% do produto

e níveis reduzidos de IDH.

Aspásia Camargo (2001) tem uma visão positiva sobre o sistema federativo nessa

questão, considerando que prestou bons serviços “como instrumento de integração nacional e de

redução das desigualdades regionais, seja em períodos autoritários, seja em períodos

democráticos” e que apresenta bons resultados em países de grande território e/ou de arraigadas

diversidades culturais, étnicas e econômicas. Refere ainda que, em casos de aguda assimetria,

como o do Brasil e do Canadá, em que prevalecem extremas diferenças de renda ou de

distribuição populacional entre as unidades federadas, esse é o regime mais seguro para

promover a redução das desigualdades e a unidade política, pela uniformização crescente das

partes dissociadas. De nosso ponto de vista, entretanto, os resultados são modestos e tornam

distante a perspectiva de uma ‘federação cooperativa’.

6 CONCLUSÃO

Tendo por base as considerações anteriores, cabe destacar algumas questões, à guisa de

conclusão.

Em primeiro lugar, o fato de que, apesar da alternância de períodos de centralização

(autoritários) e de descentralização (democráticos), ao longo da República, o pacto federativo se

manteve, preservando-se a unidade nacional e seu convívio com realidades regionais distintas, o

que não é desprezível num país com uma diversidade sócio-econômica tão acentuada. Ou seja, as

lideranças políticas nacionais souberam encontrar as regras mínimas para a sobrevivência da

forma federativa.

Após a redemocratização do país, e em função das disposições da Constituição de 1988,

entretanto, tornou-se evidente a necessidade de aprimoramento qualitativo da federação

brasileira. Isso inclui, de um lado, a definição de relações transparentes entre a União e as esferas

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subnacionais, em termos de competências, fontes de arrecadação e obrigações. De outro lado, tal

avanço só será possível com a inserção consciente da população – e, conseqüentemente, de suas

lideranças políticas - na realidade federativa, o que, num país com índices ainda reduzidos de

escolarização, apesar da melhora registrada nos últimos 8 anos, é um desafio considerável.

Como pré-requisitos para o necessário avanço, as questões mais importantes para o

funcionamento equilibrado do pacto federativo brasileiro referem-se ao arcabouço

institucional24, político e econômico, em que se apóia. Nesse sentido, no caso brasileiro a

reforma do estado, a reforma política e a reforma tributária são essenciais.

No que diz respeito, agora, à questão específica da ideologia federalista, enquanto suporte

de um verdadeiro pacto federativo num país como o nosso, onde o desafio das disparidade

regionais é constante, cabe sublinhar aqui a tese de Stepan (apud KUGELMAS, 2000), segundo

a qual “uma federação democrática é aquela em que os cidadãos participam pelo voto em duas

instâncias distintas, com atribuições diversas constitucionalmente definidas. Em termos ideais,

estes cidadãos teriam identidades políticas duplas, porém complementares”.

Relacionados a esses aspectos – reformas e ideologia – estariam a viabilidade e o papel a

ser desempenhado por um sistema partidário forte, de caráter nacional, integrado regional e

localmente.

Affonso (1994, p.334) afirma que:

No Brasil, os congressistas são escolhidos em eleições de âmbito estadual, com teor fortemente local. Esse fato, aliado à inexistência de partidos programáticos e nacionais (com a possível exceção do PT) estabelece a necessidade de obter recursos públicos como forma primordial de constituição e reprodução das bases partidárias. O Congresso transforma-se, assim, em uma ‘Câmara Nacional de Vereadores’, esvaziando o espaço de articulação nacional. Em contrapartida, a União necessita dispor de competências e recursos livres (transferências negociadas, dispêndios da Administração Direta não vinculados e das empresas estatais) para poder saldar as alianças nacionais e contrapor-se ao peso político das regiões e/ou estados.

Do ponto de vista econômico, cabe lembrar que as questões da competência de

arrecadação e da distribuição dos recursos tributários entre as instâncias nacional e as

subnacionais, no Brasil, vêm sendo mais conflituadas a partir da Constituição de 1988 e das

24 Aguirre (1999) destaca que uma mudança na estrutura federalista, lidando com problemas políticos, envolve mais do que questões econômicas, devendo ser enfocada numa perspectiva institucionalista, que supera a pura racionalidade econômica.

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decisões posteriores da União de criar fontes de arrecadação não compartilhadas com estados e

municípios. De fato, as zonas cinzentas deixadas pela Lei Maior, no que se refere a competências

e obrigações compartilhadas entre as instâncias e a ausência de regulamentação posterior, têm

levado a uma permanente disputa em torno de recursos e de responsabilidades. Os interesses em

jogo e os riscos de perdas de uns e benefícios de outros, na federação, vêm postergando a

realização de uma Reforma Tributária, cuja necessidade é consenso no país. Sobre o tema,

encontramos em Varsano (1996) o que pensamos ser o critério mais geral a nortear uma Reforma

Tributária no Brasil: “é preciso que a reforma explicite os conflitos para que, através do

entendimento do que se paga, para quem e para que, eles se resolvam de uma forma que coloque

o Estado efetivamente a serviço da sociedade e sob o controle desta”. Resta saber se a sociedade

brasileira está madura para uma transparência de tal ordem na gerência e destinação dos recursos

arrecadados. Afinal, áreas cinzentas, possibilitando negociação e barganha, têm uma função

clássica na acomodação de interesses políticos.

Finalmente, a conquista de uma dimensão efetivamente republicana, em que a esfera

pública reflita os interesses de uma população consciente e participativa, é a condição para o

equacionamento das questões anteriores e suposto básico para a construção de uma federação

cooperativa.

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