a experiência interior como antessala do espaço literário

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A EXPERIÊNCIA INTERIOR COMO ANTESSALA DO ESPAÇO LITERÁRIO No fundo – não há fundo, mas afundamento, movência contínua desgarrada de toda fixidez, condução sem direção alguma ao extremo do possível, para o tudo que é nada, para a anulação, para o não saber (único fundamento, sendo necessário admitir algum – o que já é bastante irônico). É um movimento sem finalidade, um mover-se por si só, fadado eternamente ao fracasso – não há fracasso, uma vez que seria supor o não fracasso. O sentido é o que redime, é a salvação, a gloriosa síntese do caos múltiplo – mas o entendimento só nos dá a imagem do conhecido, suas categorias nomearão o desconhecido e o infinito, será o Uno, Deus, Espírito, Totalidade. Tudo para que a movência tenha uma direção, para que ascenda, transcenda do singular imperfeito para a perfeição imortal. Deus – e seus nomes – é o muro. No fundo – não há fundo – o que há é o afundamento e o não saber. Todas as crenças são lenitivos, próteses, muletas cuja única função é manter o homem erguido quando tudo o mais desaba na morte. Quando o mundo do sentido se revela para nós como uma construção do pensamento discursivo, crer na síntese é admitir uma postura dogmática, é mascarar o fato de que na imanência absoluta que é o ser não há no exterior nada que venha salvá- lo. Dispor-se ao serviço da verdade – entregar-se à servidão – é ceder a um destino precário, limitado por outrem. A verdade é que tanto faz ficar dentro ou fora caverna – tudo afunda no não saber.

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A EXPERINCIA INTERIOR COMO ANTESSALA DO ESPAO LITERRIO

No fundo no h fundo, mas afundamento, movncia contnua desgarrada de toda fixidez, conduo sem direo alguma ao extremo do possvel, para o tudo que nada, para a anulao, para o no saber (nico fundamento, sendo necessrio admitir algum o que j bastante irnico). um movimento sem finalidade, um mover-se por si s, fadado eternamente ao fracasso no h fracasso, uma vez que seria supor o no fracasso. O sentido o que redime, a salvao, a gloriosa sntese do caos mltiplo mas o entendimento s nos d a imagem do conhecido, suas categorias nomearo o desconhecido e o infinito, ser o Uno, Deus, Esprito, Totalidade. Tudo para que a movncia tenha uma direo, para que ascenda, transcenda do singular imperfeito para a perfeio imortal. Deus e seus nomes o muro. No fundo no h fundo o que h o afundamento e o no saber. Todas as crenas so lenitivos, prteses, muletas cuja nica funo manter o homem erguido quando tudo o mais desaba na morte. Quando o mundo do sentido se revela para ns como uma construo do pensamento discursivo, crer na sntese admitir uma postura dogmtica, mascarar o fato de que na imanncia absoluta que o ser no h no exterior nada que venha salv-lo. Dispor-se ao servio da verdade entregar-se servido ceder a um destino precrio, limitado por outrem. A verdade que tanto faz ficar dentro ou fora caverna tudo afunda no no saber.A essa ausncia de pontos de apoio, de ideais, Bataille chamou de experincia interior ttulo de seu livro publicado em 1943. Ainda que possa ser entendida da mesma forma, essa experincia distingue-se da experincia mstica. Em ambas comum o xtase e o arrebatamento. A diferena fundamental que a primeira livre de amarras, nua, isto , longe de pressupor dogmas, no est atrelada a nenhuma instituio religiosa, como o termo mstico, na segunda, pode sugerir. mstica porque similar ardncia dos santos, dilacerao e ao aspecto insano, para no dizer fantico, que assumem os transes religiosos. O mstico aquele que no encontra repouso em lugar algum sobre a terra, tentado continuamente pela imagem turva do impossvel, forado a uma busca inesgotvel, sempre em desequilbrio, sem harmonia um fascnio que o faz arder em sua cegueira. Nem mesmo turva, a imagem se desfaz. Ela palavra, viso, portanto, consolo, tentativa de sntese, ao do entendimento sobre o caos que nos constitui. Bataille menciona, em algumas passagens, a hostilidade do mstico So Joo da Cruz a tudo o que possa apresentar Deus de forma positiva como ocorre na teologia baseada na verdade revelada da Escritura. Escreve: A experincia para ele s tem sentido na apreenso de um Deus sem forma e sem modo (BATAILLE, 1992, p. 12-13). A apreenso/viso intelectual de Deus ainda sua disposio no horizonte de uma experincia que se quer nua e sem amarras, livre para todos os movimentos, para o extremo do possvel. Mas a partir da dramatizao prpria da experincia mstica que se pode compreender a experincia interior.[footnoteRef:1] O problema da compreenso , aqui, central. O jogo com os termos conhecido e desconhecido sugere entre ambos uma interdependncia cuja fratura o rompimento com o limite do pensvel (do possvel). O mstico tem vises do desconhecido a fora, digamos assim, absoluta do universo mediante imagens conhecidas as histrias de aparies, as revelaes de Deus, que no fogem s imagens fornecidas pela Igreja ou simplesmente sugeridas no mundo. Toda a apreenso do desconhecido, do estranho a ns, carregada de sensaes j experimentadas, mais ou menos fixas ou conhecidas. Do contrrio no nos tocaria. O extremo do possvel, seja l o que isto queira dizer, no poderia ser intudo se no assumisse uma imagem tocante nossa sensibilidade como diz Kant, a razo, com todo o seu desejo pelo incondicionado, s encontra no mundo aquilo que nele j ps. No estranhamos o mundo completamente, sempre subsiste o fio que nos conduz ao solo do conhecido. Mas este ainda no problema crucial um falso problema porque no podemos nos desvencilhar do que se nos apresenta por meio da sensibilidade (os dados sensveis). A absoluta ausncia , simplesmente, a morte todavia, a proposio de Bataille est longe de ser simples, uma vez que se debate agressivamente, no apenas com a tradio filosfica do ocidente, mas com as tendncias do pensamento dos seus contemporneos. [1: Veremos adiante a importncia da dramatizao como mtodo, pois se no h nada, se no fundo o que h ausncia de fundo e de verdade, como possvel qualquer comunicao e, portanto, compreenso? O recurso ao drama a soluo encontrada por Bataille.]

Acerca da servido aos fins moraisNa imanncia absoluta, o nada que somos abertura ao ser fora calada de todo o possvel, como escreveu Heidegger. A essa abertura Bataille chama de soberania. Mas a manuteno dessa abertura e dessa soberania a que nos convida a experincia interior vai de encontro com a nossa existncia prtica, concreta, enquanto somos chamados continuamente a agir no mundo, para que correspondamos s exigncias do trabalho, da produo e do consumo. A ao engajada numa finalidade, seu ponto de gravidade est fora dela no que geralmente um bem que queremos alcanar. Nesse sentido, a abertura que somos, puro ser e puro nada, converge, afunila-se sob a fora no mais calada de uma finalidade, dirigida para o til e o eficaz. O bem que se elege como fim por si um valor e se coloca, em relao a ns, no domnio da transcendncia. Pensamos habitualmente que o engajamento numa ao significa exercer plenamente a liberdade o sumo bem. Todavia, a escolha de um valor transcendente tambm pode ser compreendida como a mais incisiva alienao, se pensarmos que, ao convergir para um fim, abrimos mo do possvel que somos. Do nada indeterminado, vemo-nos alinhados numa determinao. Neste ponto, no h distino entre ao no mundo e ao no pensamento, como se uma fosse prtica e a outra, terica, ou como se uma fosse concreta e a outra, abstrata. O que est em jogo que a ao enquanto determinao de um fim nos separa de todo o possvel a imobilidade (mstica) e o no saber, ainda que contraditoriamente, a plenitude. Da mesma forma que grupos de pessoas se unem numa luta contra a opresso admitamos essa forma geral da luta tomando como norte valores que constituem seus fins, o pensamento recusa sua movncia perptua e encontra para si pontos fixos, a sntese, o fundo, onde pode descansar tranquilamente. O pensamento cai na servido, recusa suas possibilidades em funo de algo que deve ser. Se o pensamento a recusa de um porto seguro, se a ao no mundo nos mutila, o extremo do possvel a que refere Bataille o impossvel, o que no se pode apreender uma experincia.O prprio Kant vislumbrou uma potncia na razo, uma liberdade de ir adiante, at o incondicionado, sem admitir nenhuma sntese totalizadora (como fazem os dogmticos) sob o argumento de que seria demasiado pequena para o entendimento. H um desejo de infinito, avanando, dedutivamente, sntese aps sntese, at o extremo do possvel (como fazem os empiristas). Kant sabia que as snteses totalizadoras da razo, as ideias puras que tornam a experincia possvel, no so mais que falcias oriundas da prpria natureza da razo ele faz sua filosofia prosseguindo como se existissem Alma, Mundo e Deus. Contudo, sua soluo inteiramente interessada: prefervel o dogmatismo, pois a existncia de um ser supremo e de uma alma imortal serve de fundamento para os nossos costumes morais e religiosos, de modo a garantir a boa paz universal entre os indivduos.[footnoteRef:2] [2: Ver Crtica da razo pura]

A experincia interior entra em conflito com a autoridade dos valores transcendentes que nos guiam para esta ou aquela finalidade. Ao dar a ns uma direo, nos fragmenta. O pensamento de Bataille se torna, neste ponto, no apenas radical, mas tortuoso e angustiante. No posso me manter totalmente seno enquanto nego qualquer tipo de ao que no seja a prpria movncia indeterminada da experincia interior. Do contrrio, posso mutilar-me assumindo uma misso na vida, sendo professor, poltico, soldado etc. No somos livres pelo fato de lutarmos pela liberdade (BATAILLE, 1979 p. 20). A liberdade, enquanto objeto de luta e desejo, um bem para Bataille, a liberdade tem a ver com o mal. A nica maneira de no cair na servido fazendo da experincia interior a prpria autoridade. Ele escreve: Por ser negao de outros valores, de outras autoridades, a experincia tendo uma existncia positiva, torna-se positivamente o valor e a autoridade (BATAILLE, 1992, p. 15). O primeiro momento da negao se torna, no segundo, afirmao. Pode parecer estranho, e at mesmo solipsista, que essa autoridade e esse valor dimanem do eu. Mas no bem isso. Na experincia interior no existe apelo a uma subjetividade, a uma substncia. O eu da experincia, levado ao seu limite, corre o risco de extraviar-se. Mesmo assim, evidente que algo subsiste, pois mesmo que esse impossvel encontre dificuldades no momento da expresso, h um eu que experimenta e comunica ou que ao menos se contorce e convulsiona para isso. Seria muito simples anular o eu, seria o mesmo que mat-lo. O eu que experimenta no possui autoridade que no seja a sua prpria experincia. Significa dizer que esse eu, ao afirmar a soberania da experincia, nega toda a moral que, em sua existncia histrica, herdou da tradio. O essencial no moralismo que ele faz pesar sobre a vida uma srie de julgamentos, no sentido de como devemos nos conduzir um nome de valores superiores. Em suma, assumir uma moral admitir, como norte de nossa vida, uma experincia que no fizemos, pondo limites no possvel aberto de toda a experimentao. A moral separa a vida do que ela pode no faz mais que inocular a desconfiana e o medo.A negao de toda moral tem, ao lado da afirmao do valor e da autoridade da experincia, outro efeito que lhe conseguinte. A ausncia de pontos exteriores a partir dos quais se pode julgar a vida, nos lana na imanncia, ao nvel de uma vida frvola (BATAILLE, 1979, p. 22). seriedade da vida moral, pela qual tanto se derramou sangue, Bataille ope a frivolidade da vida despreocupada diante das necessidades da ao, livre, risonha e trgica num mundo sem deuses. bastante clara a influncia do pensamento de Nietzsche. No fundo, o homem completo no mais que um ser no qual fora abolida a transcendncia, de quem j nada est separado: um pouco marionete, um pouco Deus, um pouco louco... a transparncia (BATAILLE, 1979, p. 22).[footnoteRef:3] [3: Chego ao fim deste tpico sem poder me conter diante de uma contradio gritante. No me iludo, verdade, e sei que a contradio ora encontrada no pensamento de Bataille, ele mesmo a reconhece como inerente ao caminho que tomou. Todavia, sem pretenso de solucion-la, tento, mediante esta nota, esclarec-la, como etapa integrante deste trabalho escolar. A pergunta deve ser precisa como um golpe: uma vez que o homem pode no faz-la, qual a necessidade da experincia? Ele escreve: E no entanto, sem o extremo, a vida somente uma longa tapeao, uma srie de derrotas sem combates, seguidas de debandadas impotentes, a decadncia (1992, p. 45). A contradio: Bataille afirma a vida frvola, bem como a vida conduzida ao extremo do possvel. Diante da vida imanente, despreocupada e que no carrega valores superiores, Bataille exige a experincia, o ardor do no saber, do afundamento. ]